sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 11: A verdade aparece

Senhor Antônio, não contou nada a respeito dos novos negócios à esposa e à filha. Mas suas expressões de preocupação, repentinamente transformaram-se em cantarolados, assobios e até gargalhadas, ao trocar qualquer ideia com os peões. Além disso, andava caseiro e, pelo menos uma vez ao dia, entrava no quarto para saber da mulher.

‘O que deu nele?’ Pensou Isadora.

Os dias foram passando e nada do fazendeiro voltar ao seu estado “normal”. Claro, ainda era grosseiro e cheio de ideias machistas.

-   Teu vestido tá muito decotado, “fia” - reclamou ao ver a guria com um vestido de chita, florido, com o tecido em fundo vermelho. Aliás, vermelho não, encarnado. Era assim que ele denominava o tom avermelhado das coisas e afirmava ser essa a cor favorita das “mulheres da vida”.

Com receio de estragar o bom humor do pai, a filha, imediatamente trocou o vestido por um em tom azulado, delicado e sóbrio.

Ainda assim, o velho estava diferente. Não parecia ser a mesma pessoa. Todas as manhãs, sentava na varanda para matear em frente ao fogão à lenha e brincar com o amigável cusco da casa.

Tal mudança acalmava o coração de Isadora, mas não a convencia por completo.

Da janela do seu quarto, perdida em seus pensamentos, por várias noites seguidas se perguntou: - será possível alguém em idade avançada e costumes tão medonhos, mudar da noite para o dia?...

No decorrer desse inusitado período de paz, a moça cuidava dos afazeres domésticos e aplicava-se ao máximo para ver a mãe plena em sua saúde.

- Mãezinha, preparei uma sopa deliciosa para a senhora. - disse ela ao entrar no quarto num dia de extremo frio.

-   Teu pai nem parece ser o mesmo homem de antes. Ele está mudado. - disse a esposa, cheia de esperança.

- Espero que essa mudança seja real e venha para o bem de todos, minha mãe.

- Sempre te alertei sobre o lado bom do teu pai.

- A aparente mudança não apaga tudo o que ele fez a senhora sofrer. És uma mulher incrível, merecia um marido mais presente e carinhoso. Mas não vamos discutir sobre isso. Coma. Quero vê-la forte.

- Estou sem fome.

- Ainda sem apetite. Precisas se alimentar.

- Está bem, meu anjo. Tenho que exercitar a minha força de vontade.

- Gostei de ver. É assim que se fala!

Logo após o almoço, enquanto Isadora lavava a louça, dona Ana sentiu enjoos e desmaiou.

Meia hora depois, ao entrar no quarto, Isadora tentou reanimá-la.

- Mãe, acorda, pelo amor de Deus. Socorro! – gritou, desesperada.

Ao entrar, o senhor Antônio deu-se conta do estado lamentável da esposa e, às pressas, correu atrás do Juca.  

- Tua patroa tá passando mal. Precisa ser levada para o “hospitar”. - disse o patrão, já quase sem ar com a correria.

Com o peão no comando da direção do jipe da família, eles partiram até a cidade na fé de que dona Ana chegasse ainda com vida ao pronto-socorro.

Após ser internada novamente, o médico confirmou o estado gravíssimo de saúde da mulher.

- O coração dela está muito fraco. Precisamos conduzi-la a São Paulo para que se realize uma cirurgia. Mas vou logo avisando: a operação custará um alto valor financeiro. - explicou o cardiologista sem fazer rodeios.

- Quanto? - indagou o marido, sentindo-se apreensivo.

- Alguns mil cruzeiros.

O senhor Antônio levou as mãos ao peito. E acometido por uma vertigem, foi amparado pelo doutor que verificou a sua pressão.

- Pai. O senhor está se sentindo melhor? - perguntou Isa, minutos depois.

-  Parece que me “farta” o ar, “fia”.

- Mas sua pressão está ótima. Respire fundo e tudo ficará bem. Precisamos tratar logo sobre a transferência da mãe.

- Ela não pode ser tratada aqui, doutor?

- Pai. Não ouviste o que o médico disse?

- Sabe o que é minha “fia”, não tenho como pagar essa despesa. É uma operação cara. - disse Antônio, gaguejando.

- Pai, precisamos ter uma conversa em particular.

- Vou deixá-los a sós. Quando decidirem o que devemos fazer, é só chamar. - disse o plantonista.  
 
- Pai, que história é essa de não ter dinheiro para pagar a operação?

- Tô falido.

- O momento é totalmente impróprio para pensar em economizar.

- Tô falido. Sem dinheiro pra comprar um mísero bezerro.

- Mas o senhor é dono de uma grande fazenda e de outras fazendas menores. E, ao que parece, os peões estão com os seus salários em dia. Esclareça o que está acontecendo.

- Nesse mês os “peão” não vão receber nada.

Isadora, sem saber o que fazer, levou as mãos à cabeça, girou em torno de si e, chorando, desabafou.

- Gastou todo o dinheiro da família com mulheres e jogos.

- Nenhum “fio” ou “fia” tem o direito de acusar pai e mãe.

- Tem, sim. E eu estou lhe acusando de torrar o dinheiro da família na rua, enquanto a sua esposa ficava em casa, limpando, cozinhando e fazendo doces para vender. Trabalhou tanto que perdeu o seu maior bem: a saúde. Aliás, o trabalho é apenas uma parte do problema. A sua ausência, a sua falta de amor para com ela, a vinha matando aos poucos desde sempre.

- Cala a boca, guria. Senão o “reio”  (relho) te acha!

- Fica o senhor sabendo que não sinto medo das suas ameaças.

- Eu ergui aquela fazenda. Ela é minha.

- Sendo assim, por que batizou as terras prestando homenagem a mim?

- Porque tu também é minha! - bradou o pai, cheio de ira.

- Se a mãe morrer a culpa é sua.

-  Mas se ela se “sarvar”, a “curpa” é todinha tua.

- O que queres dizer?

- Caso aceite uma proposta, tua mãe sai dessa, viva.

- Que proposta?

- O “fio” do xiru Pafúncio tá querendo casar contigo.

- Casar comigo? Mal me conhece.

- Tá enfeitiçado por tua beleza. A “famía” é muito rica. Pode “sarvá” tua mãe e a fazenda.

- Agora estou entendendo ... Eu já estava envolvida entre os negócios de vocês ... Por isso o senhor estava diferente, cantarolando pela casa. Estava sentindo-se desapertado por teres encontrado uma forma de salvar a fazenda, me sacrificando.

- Agora tá tudo entregue nas tuas mãos.

- Covarde. O senhor é um covarde! - gritou Isadora, chorando copiosamente.

- Gente, estamos dentro de um hospital. Que gritaria é essa? -perguntou o médico ao passar pelo corredor.

- Tô fa...

- Pode preparar a transferência. A mãe será operada. - disse a filha, interrompendo a fala do pai que já se preparava para contar da sua falência financeira ao médico.

Ao ouvir as palavras de Isadora, o senhor Antônio sorriu e suspirou aliviado.
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Nota de ropdapé:
Relho: Chicote feito com couro; fita de couro cru usada para chicotear animais.

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continua…

Fonte:
Enviado pela autora

Concurso de Trovas Memorial "Cláudio de Cápua" (Prazo: 31 de outubro de 2023)

 

Realização:
Blog Pavilhão Literário Cultural Singrando Horizontes
Coordenação: J. Feldman (editor do blog)
 
Entidades Parceiras:
Academia Brasileira de Trova/RJ
Academia Internacional União Cultural/SP
Academia de Letras e Artes de Paranapuã/RJ
Academia Mourãense de Letras/PR
Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia/PR
Confraria Brasileira de Letras
Falando de Trova (https://falandodetrova.com.br) /SP

O Blog Singrando Horizontes, comemorando 16 anos de existência, com quase 18 mil publicações e cerca de 3 milhões de leitores, realiza o Concurso de Trovas homenageando o trovador Cláudio de Cápua.

Cláudio de Cápua, aviador, jornalista profissional. Especialista em jornalismo cultural, nas áreas de Artes Plásticas e Literatura, com publicações em diversos veículos de Comunicação da Pauliceia e Litoral paulista. Lato Sensu em História da Arte (Universidade Mackenzie), graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Santos. Nasceu em 8 de março de 1945, São Paulo/SP. Iniciou na TV Tupi em um grupo que adapta obras literárias para novelas, na década de 70. Produtor e diretor de jornalismo especializado (arte, cultura e lazer) na TV Gazeta, entre 1978 e 1980. Editou a Revista Santos Arte e Cultura, da qual foi editor e articulista. Biógrafo, prosador e poeta, foi um dos fundadores da “União Brasileira de Trovadores”, Seção de São Paulo e, desde 1980, parte do quadro associativo da Seção de Santos. Conquistou vários prêmios em Concursos de Trovas em território nacional. Cláudio de Cápua, que era casado com Carolina Ramos,  faleceu em Santos/SP,  onde se radicou definitivamente, de aneurisma, a 5 de dezembro de 2021, aos 76 anos.

ÂMBITO NACIONAL/INTERNACIONAL

Categoria Veteranos: 
 
Tema: SEGREDO/S (lírica/filosófica)

Em noite alta... madrugada,
contemplo a lua contrito
- Barca de prata aportada
nos segredos do infinito.
Cláudio de Cápua

Categoria Novo Trovador: 
 
Tema: SEMENTE/S (lírica/filosófica)

Com mensagem sempre nova,
transpondo mágoas e dor,
pelos caminhos da trova
planto sementes de amor.
Cláudio de Cápua

Novo Trovador é aquele que não obteve até a divulgação deste regulamento 3 (três) classificações em concursos de trovas oficiais da UBT, a nível nacional, independente de ser associado ou não à UBT.

A palavra tema deve estar na trova.

Máximo de 2 (DUAS) Trovas por concorrente.

Apesar do concurso seguir as normas da UBT, mas por não ser promovido por ela, não se enquadra como concurso oficial da entidade. Este é, como os concursos anteriores, independente.

ENVIO DAS TROVAS POR EMAIL (Prazo: 31 de outubro)

para o Fiel Depositário:
Prof. Giuseppe Paolo Dell’Orso

E-mail:    gpdellorso@gmail.com

Como enviar trovas por e-mail (no corpo do e-mail):

Assunto: Concurso de Trovas Memorial “Cláudio de Cápua”

Acima da Trova:
Categoria (Novo Trovador ou Veterano)

Abaixo da trova:
Nome inteiro, cidade/estado (país se não for do Brasil), e-mail para contato (obrigatório).

Caso o trovador use pseudônimo ou abreviatura do nome, favor enviar o nome completo, caso venha a ser premiado, a não ser que opte por manter a abreviatura ou pseudônimo.

Anexos não serão aceitos.
 
Após o encerramento haverá uma espera de mais 5 dias para os envelopes que podem estar atrasados nos correios, e ao final do quinto dia as trovas serão enviadas para julgamento.

As Trovas devem ser inéditas, isto é, que não tenham sido premiadas em outros concursos ou divulgadas pela Internet ou outros meios de divulgação até a data da publicação do resultado.

Serão eliminadas as trovas que contenham erros como: não colocar pontuações; não seguir o sistema ABAB (rimar 1. com 3. verso e 2. com o 4. verso); erros gramaticais; não tiver a palavra tema na trova; de conteúdo racista, pornográfico, político, etc.

O Prazo se encerra à meia-noite de 31 DE OUTUBRO DE 2023.

Os resultados serão divulgados em blogs, sites, facebook, emails enviados aos premiados, revistas virtuais, academias e blogs.

As decisões das comissões julgadoras serão definitivas.

A premiação, composta de certificado e ebook com as trovas premiadas, serão enviados diretamente aos premiados via e-mail.

Será premiado também, o trovador veterano melhor colocado em seu estado e que tenha obtido pelo menos a média mínima (e não tenha sido premiado na classificação geral do Nacional/Internacional).

Os membros da comissão julgadora, o coordenador e os fiéis depositários não poderão participar do concurso.

A participação no concurso significa aceitação plena das normas aqui relacionadas.

Maringá ,  08 julho de 2023.
J. Feldman – coordenador geral
Contatos, dúvidas: gralha1954@gmail.com

IV Concurso de Trovas da Seção Recife/PE (Prazo: 31 de outubro)


TEMAS: 
Não há temas diferentes para as categorias Veterano ou Novo Trovador. 

Nacional / Internacional (L/F) = OLINDA

Humorística – CARNAVAL

Enviar para a Fiel Depositária – Aline Sales 
E-mail – alines.1@outlook.com 

Assunto do e-mail - Colocar "IV Concurso de Trovas da UBT Recife" 
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ESTADUAL (L/F) = OLINDA

Humorística – CARNAVAL
 
Enviar para Fiel Depositária –Regina Rinaldi
E-mail -  ubtpariqueraacu@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "IV Concurso de Trovas da UBT Recife"
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O tema, a trova, categoria, nome, endereço completo, e-mail e telefone, deverão constar no corpo do email. NÃO ANEXAR ARQUIVO. 

Todas as trovas líricas ou filosóficas, em um e-mail e todas as trovas humorísticas, em outro. 

Digitar todas as trovas  e logo abaixo, colocar NOME, ENDEREÇO COMPLETO, E-MAIL e TELEFONE COM O DDD. 

Permite-se até 02 (duas) Trovas inéditas por tema para todas as modalidades.

A palavra-tema do Concurso deve constar no corpo da Trova. 

LXV Jogos Florais de Nova Friburgo (Prazo: 31 De Dezembro)


Concurso Nacional / Internacional 
(Máximo: 3 Trovas por tema)

Tema – “Retorno” - (L/F) / Veteranos e Novatos

E-mail – trovasliricas.friburgo@gmail.com  
(Fiel Depositário: Pedro Melo)
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Tema: “Corrida” (Humor) – Veteranos e Novatos

E-mail –  humorfriburgo@outlook.com 
(Fiel Depositário: Sérgio Ferreira da Silva)
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Concurso Local – (Somente para moradores em Nova Friburgo)
(Máximo: 3 trovas por tema)

Tema: “Viagem” (L/F) - Tema: “Confusão” (Humor)

E-mail - trovasliricas.friburgo@gmail.com  
(Fiel Depositário: Pedro Melo)
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Concurso Magníficos Trovadores   

Conjunto L/F – Tema: “Censura” 

Conjunto Humor – Tema: “Trabalho”

E-mail: ra.renatoalves@gmail.com 
Fiel Depositário: Renato Alves/RJ

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 7 –

 

Coelho Neto (O talismã)

Em escusa e sórdida viela, tremedal (brejo) nauseante entre arruinados casebres, na baiúca mais acaçapada e tão velha que os muros fendidos abriam-se em largas brechas por onde, ao cair da noite, saiam, aos trissos, revoadas de morcegos, em companhia de escaveirada bruxa, vivia velho mouro; tido por feiticeiro por ser muito sabido em curas e profundamente versado na ciência dos augúrios.

Os seus filtros operavam como se fossem o próprio elixir da vida, cuja fórmula os alquimistas procuravam.

Enfermo à cuja cabeceira se sentasse, ainda que houvesse sido desenganado por todos os físicos da cidade, logo readquiria o espírito e sarava. Horóscopo que tirasse consultando os astros cumpria-se com a precisão com que o sol faz o seu curso no céu.

Era tão celebrado o poder do homem mágico que os cristãos, sempre acirrados contra os marrados da sua laia, gente aleivosa e má, aparceirada com o demônio, indigna do ar e da luz, temiam-no e respeitavam-no e os fidalgos de maior entono (majestade), depois do toque de correr, quando as ruas escuras ficavam a discrição dos volteiros (desordeiros) temidos, cuidadosamente embuçados, renteando os muros eriçados de ervas, onde piavam corujas lúgubres, iam pela viela em passos ligeiros e, com o punho da espada, batiam rijamente à porta do muro desaparecendo de repelão nas trevas do corredor.

Uns, dados a amores, iam buscar amavios (elixires); outros, achacados (enfermos), iam a remédios. Ainda os havia crentes que confiavam nos grandes livros cabalísticos nos quais o mouro decifrava presságios sempre venturosos: anúncios de riquezas e honrarias, vitórias em expedições, sorte em amores, tal fosse o consultante: namorado, ambicioso ou cavaleiro.

Um dia correu a cidade a notícia de uma grande e maravilhosa descoberta do mouro — que ele conseguira compor, com o prestígio de um signo, um talismã de ventura. Quem o possuísse, teria o que desejasse.

Senhor de terras, deixava a sua lavoura medrar com abundância, multiplicar-se o armentio, reenxamearem-se as colmeias abandonadas, reviçarem os vageiros (terras estéreis). Fontes, desde muito estancadas, borbotoariam aos golfões; árvores sem ceira brotariam de novo.

Pastores descobririam minas, mesteirais (obreiros) achariam tesouros, guerreiros teriam os melhores despojos, enfermos ficariam sãos e só com uma volta de canto e um trêmulo nos alaúdes os namorados veriam aparecer na adufa (parte externa da janela) o rosto amado, logo ouviriam ranger de quícios (dobradiças)e um braço branco, estendendo-se na sombra, recebe-los-ia à porta guiando-os através de corredores silentes à câmara tão ardentemente desejada.

Com tal notícia foi imenso o alvoroço entre os homens e todos afluíram à baiuca do mouro e as escancelas de veludo, as bolsas de couro despejavam moedas na banca do descobridor do talismã da ventura.

A viela, dantes sossegada e deserta, mais silenciosa que almocóvar (cemitério judeu) maldito, onde nem aves cantam, encheu-se de gente; fidalgos e vilões, burgueses e campônios, todos aldrabando à porta do mouro, desaparecendo, com pressa ansiosa, na sombra fria do corredor.

A todos o homem mágico, em cujos lábios pairava irônico sorriso, entregando o talismã da ventura, repetia as mesmas palavras:

— Tendes na mão a chave de toda a fortuna e tudo obtereis, dentro em um ano, se não cederdes à curiosidade. No breve que vos entrego encerrei misterioso segredo. Tive a sua revelação em uma noite de Agosto, à hora em que nos vales e nos desfiladeiros os espíritos bailam à luz funérea do luar.

“Para que se realize o prodígio é necessário que conserveis o breve tal como lhe entrego, sem vos preocupardes com o que nele existe. Se tal cumprirdes vereis mudar-se a vossa sorte. Tereis na riquezas maiores, todos os amores; não haverá bravura que prevaleça contra vós e ainda que as pestes assolem a terra, dizimando os seus habitantes, passareis refratários a todo o mal, sem que o próprio Anjo sinistro possa alcançar-vos com o seu flagelo.

“Onde os outros virem arca e arro (lama) descobrireis ouro e gemas. A sorte está em vossas mãos. Se abrirdes, porém, o breve, o talismã imediatamente perderá toda a virtude. Assim, é preciso que observeis a condição do mistério. Se tal fizerdes, voltai dentro de um ano à casa do vosso servo, que muito se alegrará em ver-vos, ouvindo da vossa boca a confirmação do que lhe foi dito pelo gênio quando lhe comunicou os sete arcanos do talismã que levais.”

Foram-se os vários homens contentes, jurando que nunca procurariam ver o que havia nas suas nôminas, tanto, porém, que deixaram a viela, logo, em todos, começou a curiosidade a pruir: “Que será? Sete arcanos!” E apalpavam, cheiravam, viravam, reviravam entre os dedos o breve de couro. “Que haveria ali dentro?”

Alguns afirmavam haver sentido estranho, deliciosíssimo perfume; outros garantiam ter percebido movimentos, como de animal. “É uma pedra, talvez da lua”; dizia este. “É uma esquírola (fragmento) de osso”; asseverava aquele. Um: — “É frio, mais frio que a neve”. Outro: —“Abrasa que nem fogo vivo”. E discutindo, com as mais desencontradas opiniões, lá iam.

Sós, na baiuca: o mouro e a bruxa, puseram-se a contar as moedas. Ao fim, disse a mulher, que conhecia o segredo do talismã:

— Que pensas fazer agora? É prudente que, quanto antes, passemos a lugar seguro, porque os homens, ao fim do tempo, vendo que nada obtêm do talismã, darão pelo embuste e... ai! de nós.

Mas o mouro, que era atilado, ajuntando, uma a uma, as moedas luzentes, retorquiu com serenidade:

— E esperas que voltem? Bem mostras que não conheces a alma humana. Nem um só aqui tomará, porque a condição que impus será a minha garantia. Dei o prazo de um ano e estou em afirmar que, antes da noite, todos os breves estarão abertos, expondo os seixos que encerram. Satisfeita a curiosidade, ficarão os homens arrependidos, mas será tarde e cumprir-se-á o que eu disse: o talismã perderá a sua virtude. Descansa — nem um só tornará.

O homem, por curiosidade, desceria ao fundo do inferno, se lhe descobrisse o caminho, ainda que todo ele fosse assoalhado de pez (piche) ardente. Não te dê cuidado o amanhã.

Efetivamente o prazo escoou sem que um só dos possuidores do talismã aparecesse.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.

I Concurso de Trovas de São Luís do Maranhão (Trovas Pemiadas)


NACIONAL / INTERNACIONAL

NOVOS TROVADORES

Tema: GONÇALVES DIAS
 
VENCEDORES:

1º Lugar
João Rodrigues Ferreirra
Reriutaba - CE
Saudades, noites sombrias...
Foram tantos meus degredos!
Mas lendo Gonçalves Dias,
afugentava meus medos.
 
2º Lugar
Rosinéa Siqueira
Campos dos Goytacazes - RJ
Antônio Gonçalves Dias
é eterno em nossa memória:
merecidas honrarias
compuseram sua história!
 
3º Lugar
Maria Stella
Taubaté – SP
Com elegância em seus versos,
o grande Gonçalves Dias
descreveu feitos diversos,
em formatos de poesias.
 
4º Lugar
Carlos Alberto Campos
Juiz de Fora - MG
Além de escrever a história,
inspirando o destemor,
Gonçalves Dias é glória
em lindos versos de amor.
 
5º Lugar
Pedro Neto
São José de Ribamar - MA
Nasceu na velha Caxias,
do mundo foi cidadão...
Teus versos, Gonçalves Dias,
nosso maior galardão!

MENÇÕES HONROSAS

6º Lugar
Maria Stella
Taubaté - SP
Gonçalves Dias além
do seu tempo, nos permite,
ver o valor que o índio tem...
E a cultura que transmite!
 
7º Lugar
Maria Teresinha Cirilo dos Santos
Taubaté - SP
Com muito amor escreveu
as mais lindas poesias!
O Brasil enalteceu,
e eu louvo Gonçalves Dias!
 
8º Lugar
José Carlos Castro Sanches
São Luís - MA
Antônio Gonçalves Dias
fez do Exílio uma Canção.
Filho ilustre de Caxias,
orgulho do Maranhão.
 
9º Lugar
Heloyna de Oliveira
Taubaté - SP
Gonçalves Dias, o culto
poeta da natureza,
fez da poesia um culto
ao Brasil, com singeleza!
 
10º Lugar
Déa Lúcia Araújo de Castro
Juiz de Fora - MG
Um salve a Gonçalves Dias!
Maior poeta não há!
Exaltou as alegrias
da terra do sabiá.

MENÇÕES ESPECIAIS

11º Lugar
Marcelo Marques
São Paulo - SP
És ícone cultural,
talentoso em poesias;
és nobre e fenomenal,
poeta Gonçalves Dias.
 
12º Lugar
Mírian Menezes de Oliveira
Taubaté - SP
Com seu sentimentalismo,
o grande Gonçalves Dias,
poeta do romantismo,
plantou: rimas, melodias...
 
13º Lugar
Jonathan Leandro Martins Reis
Congonhas - MG
Antônio Gonçalves Dias,
um poeta do indianismo,
valorizou tais etnias,
por meio de seu lirismo.
 
14º Lugar
Rosinéa Siqueira
Campos dos Goytacazes - RJ
Antônio Gonçalves Dias
foi poeta brasileiro,
que recebeu honrarias
justas, no país inteiro.
 
15º Lugar
Jonathan Leandro Martins Reis
Congonhas - MG
A saudade das palmeiras
inspirou Gonçalves Dias,
canto das aves matreiras,
Juca... Timbiras... baías..
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NACIONAL / INTERNACIONAL

VETERANOS

Tema: TIMBIRAS

VENCEDORES

1º Lugar:
José Ouverney
Pindamonhangaba - SP
Gonçalves Dias, a história
se retrata em tuas liras:
todos nós, na somatória,
somos um pouco Timbiras!
 
2º Lugar
Roberto Tchepelentyky
São Paulo - SP
Louvo "Os Timbiras" na história,
por ser um poema fecundo:
São quatro cantos de glória
nos quatro cantos do mundo!...
 
3º Lugar
Professor Garcia
Caicó - RN
“Os Timbiras”, rica ideia
do indianismo mais profundo,
compõe a linda epopeia
que Gonçalves deu ao mundo!
 
4º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba - SP
 São meus heróis de verdade
esses Timbiras valentes:
lutar pela liberdade
enaltece os combatentes!
 
5º Lugar
Cléber Leandro Nardeli
Iturama - MG
Luta, ó tribo de “Os Timbiras”,
contra as flechas de Akari!
Não há nas terras safiras -
mas há a luz de Arapari!
 
MENÇÕES HONROSAS

6º Lugar
Marina Caraline de Almeida Carvalhal

Itaperuna - RJ
Timbiras remanescentes
fazem parte de “gigantes”
que hoje são os combatentes,
por direitos tão distantes.
 
7º Lugar
A. A. de Assis
Maringá - PR
Todo o povo maranhense
tem dos Timbiras um traço:
acredita que o que vence,
mais que a flecha, é um forte abraço.
 
8º Lugar
Lucrécia Welter Ribeiro
Toledo - PR
Ilíada Brasileira
é assim chamada “Os Timbiras”.
É em versos de além fronteira,
que tu, poeta, te inspiras.
 
9º Lugar
Elizabeth A. C. Fontes
Joinville - SC
“Os Timbiras” – obra prima –
“Ilíada” brasileira;
história indígena em rima:
a epopeia pioneira.
 
10º Lugar
Sérgio Bernardo

Nova Friburgo - RJ
 Seus versos geniais são tantos,
que, apesar de obra incompleta,
Os Timbiras, nos seus Cantos,
guarda a alma de um poeta.
 
MENÇÕES ESPECIAIS

11º Lugar
Célia M. G. Mendonça de Melo
Juiz de Fora - MG
 Timbiras, povo valente
que preserva a tradição.
Seu legado está presente
na história do Maranhão.
 
12º Lugar
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo - SP
 Ah, Poeta, em quatro cantos,
tu cantaste o que sentiras
de um mundo cheio de prantos
desaguando...  n'Os Timbiras!
 
13º Lugar
Edson de Paiva
Rafael Godeiro - RN
 Gonçalves Dias fez glória,
embalando, em belas liras,
toda a vida e trajetória
dos intrépidos Timbiras.
 
14º Lugar
 Professor Garcia
Caicó - RN
 Gonçalves, seu romantismo,
em “Os Timbiras”, o expõe...
Mostrando que o indianismo
tem a força que o compõe!
 
15º Lugar
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte - MG
 São povos originários,
que habitam esta Nação,
os Timbiras, relicários
da cultura e tradição.
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NACIONAL / INTERNACIONAL

HUMORÍSTICA

Tema: SABIÁ

VENCEDORES

1º Lugar
José Maria Luz e Silva
Maceió - AL

 O pardal desconfiou
do sabiá, seu vizinho;
só depois que ele notou
um ovo estranho no ninho.
 
2º Lugar
Massilon Ferreira da Silva
Poço Redondo - SE

O gato muito enxerido
pensou que tinha abafado,
pegou na loja, escondido,
um sabiá empalhado.
 
3º Lugar
Francisco Gabriel
Natal - RN

O meu sabiá gongá,
teve uns cinco faniquitos,
ao ver sua sabiá,
chocando dois periquitos.
 
4º Lugar
A. A. de Assis
Maringá - PR

Tem cara que fica rico,
mas disso não passará.
Vira um gordo tico-tico,
porém nunca um sabiá...
 
5º Lugar
José Maria Luz e Silva
Maceió - AL

Disse o gato:  "venha cá,
vamos sambar lá no morro?"
Respondeu a sabiá:
"que tal chamar o cachorro?"

MENÇÕES HONROSAS
 
6º Lugar
Roberto Tchepelentyky
São Paulo - SP

Sabiá malandro insiste,
já de rotina, à noitinha,
em bicar o "seu" alpiste
na arapuca da vizinha...
 
7º Lugar
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo - RJ

Que o sabiá, entre as penas,
abrigava a cotovia
todos sabiam, apenas
a sabiá não sabia...
 
8º Lugar
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora - MG

Para a tristeza ir embora
e evitando a solteirice,
o meu sabiá namora
a periquita da Alice.
 
9º Lugar
A. A.  de Assis  
Maringá - PR

Meu quintal não tem palmeira
nem tampouco sabiá.
E se acaso eu der bobeira,
logo nem quintal terá.
 
10º Lugar
Márcia Jaber
Juiz de Fora - MG

O Sabiá não sabia
se sabia assobiar,
mas quando viu a Maria,
fez fiu-fiu sem nem notar.

MENÇÕES ESPECIAIS

11º Lugar
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Niterói - RJ

Viu o filhote crescer
falante e verde encardido,
e foi o último a saber
o sabiá, pai sabido...

12º Lugar
Elizabeth A. C. M. Fontes
Joinville - SC

Qual sabiá que fascina
com o peito todo aprumado,
foi cantar para a menina...
mas... gritou, desafinado!
 
13º Lugar
Edweine Loureiro da Silva
Saitama - Japão

Ó sabiá-laranjeira,
por que você não se toca?
Troca o disco que a palmeira
prefere um funk carioca!
 
14º Lugar
Rosinéa Siqueira
Campos dos Goytacazes - RJ

Sabiá, sempre fiel,
cantava ao entardecer,
avisando ao nhô Miguel:
o seu galho vai crescer!
 
15º Lugar
Albano Bracht
Toledo - PR

Sabiá longe do bando.
Eu me aproximo e arrisco:
que lindo, você cantando!
- Não, estou ouvindo um disco.

16º Lugar
Renata Paccola
São Paulo - SP

Eu me divirto sozinha
numa cena que me assanha:
o sabiá e a rolinha
disputando a mesma aranha!
==========================================

ESTADUAL- ESTUDANTIL

Tema: CANÇÃO DO EXÍLIO

VENCEDORES


1º Lugar
Sérgio Murillo Rodrigues Costa
8º ano (Unidade Escolar Maria da Conceiçao Soares)
Santa Luzia - MA

Canção do Exílio é o tema
que me traz tanta saudade!...
E eu fico nesse dilema:
entre a cruz e a liberdade.
 
2º Lugar
Paulo Roberto Moraes Alves Neto
7º ano (Escola Adventista da Cohab - SL - MA)
São José de Ribamar - MA

Eu irei cantarolando
a linda Canção do Exílio;       
os seus versos recitando;     
à poesia peço auxílio.
 
3º Lugar
Paulo Roberto Moraes Alves Neto
7º ano (Escola Adventista da Cohab - SL - MA)
São José de Ribamar - MA

A Canção do Exílio é bela.
Uso-a com inspiração;
igual à tinta aquarela,              
ela pinta o coração.

Nilto Maciel (Da noite para o dia)

Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a ideia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa,  grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.

César sonhava com a glória literária. Ser membro da Academia, escritor de fama, ganhador do Nobel. Já meu sonho se contentava com as migalhas da simples publicação. Eu não tinha vocação literária, embora rabiscasse versos vez por outra. Aprazia-me mesmo era desenhar. Daí a capa do futuro livro de César e algumas ilustrações ao texto.

Iríamos trabalhar juntos sempre: ele como escritor de novelas, eu como ilustrador de seus livros. E nunca ele aceitaria outro ilustrador, nem eu ilustraria livro de outro escritor. Pacto de sangue, de morte, de amizade eterna.

Planejamos publicar a primeira novela. Cinquenta mil exemplares na primeira edição. Ele havia sonhado com cem mil, até que o convenci a ser mais modesto. Iríamos ficar famosos da noite para o dia: ele como escritor, eu como ilustrador. Lidos e vistos em todo o Brasil. E depois em todo o mundo. Inclusive na China. Falaríamos com Mao Tse-tung. A juventude chinesa precisava de ler textos mais do coração e não só o livrinho vermelho.

Enviamos cópias para algumas editoras. As respostas vieram desalentadoras: “livro pouco comercial”, dizia uma; “muitas obras no prelo nos impedem de dar publicação à sua novela”, esclarecia outra; “não estamos no momento publicando novelas”, explicava uma terceira; “livro não aprovado pelo nosso Conselho de Leitores”, resumia uma quarta. E outras do mesmo teor.

Algumas editoras nem sequer deram resposta. Fizemos então novos planos maravilhosos. Não iríamos precisar das editoras. Pouparíamos. Deixaríamos de fumar, beber, merendar, ir ao cinema, etc. César iria trabalhar e depositaria a maior parte do ordenado na caderneta. Meu pai não me deixava trabalhar, mas, em compensação, eu exigiria mesada mais gorda. Dela tiraria apenas o suficiente para os gastos mais necessários e depositaria o restante na poupança. Quando já tivéssemos alguns milhões, mandaríamos publicar a novela numa gráfica qualquer. Venderíamos os livros nas escolas, nos cinemas, nas ruas, lojas, repartições públicas, nos bares. Viajaríamos pelo interior. Com o dinheiro da venda mandaríamos publicar o segundo livro. Mas quando teríamos os milhões suficientes para pagar a primeira impressão? A esta pergunta perdemos o entusiasmo.

Concluídos os estudos secundários, César deixou de estudar e arranjou emprego. Não para juntar dinheiro, mas para sobreviver. Seu pai mergulhava cada vez mais na pobreza. E não falamos mais na novela. Nossas relações pouco a pouco iam perdendo o calor, nossos encontros se distanciando no tempo. E, quando nos víamos por acaso, apenas nos cumprimentávamos.

Esqueci logo os desenhos, as ilustrações, os sonhos. E fui estudar Direito.

Um ano depois meu pai morreu. Estranhamente assassinado. Crime horrível – latrocínio. Morto e roubado. Encontraram seu corpo numa valeta a poucos quilômetros do centro da cidade. Um tiro no crânio. E o carro estacionado à margem da estrada. Nenhum vestígio do assassino.

Meu pai nunca teve inimigos, dava-se bem com todo mundo e quase toda a cidade o conhecia. Nós, os filhos, estudávamos nos melhores colégios. Minha mãe o adorava. A polícia ficou tonta. Não sabia a quem atribuir o crime. Nenhum indício, nenhum suspeito.

No dia de sua morte havia sacado uma grande soma em dinheiro ao banco, como sempre fazia. E seus negócios ele mesmo os resolvia. Deixava o carro estacionado nas proximidades do banco, levava uma pasta, um revólver e só. Não queria guarda-costas.

A polícia concluiu finalmente que o assassino só podia ser um assaltante comum. Foram então presos todos os ladrões e suspeitos de terem cometido crimes contra o patrimônio. A nenhum deles, porém, foi possível imputar o latrocínio.

Folheei a novela e por um bom tempo me deixei a cismar. Pensei no meu passado, em César, e quase não consegui dormir. E decidi que hoje procuraria saber onde vivia César. Queria recordar com ele todos os nossos sonhos, todos os nossos sofrimentos, ele por ter tido suas ilusões tão duramente mortas, eu por ter perdido meu pai de maneira tão bárbara e misteriosa. Como pudemos nos esquecer tão depressa, apesar daquela amizade quase apaixonada que nutríamos um pelo outro? Como somos fracos, débeis, inconstantes!

Onde, porém, eu poderia encontrá-lo? Detrás de um balcão de loja? Na cozinha de um restaurante? Ou teria conseguido realizar seus sonhos literários, pelo menos os mais modestos? Ou teria ido embora para bem longe? Talvez até estivesse morto.

Não, não adiantava fazer suposições. Mais fácil procurar seu nome na lista telefônica. Se não estivesse tão mal, certamente teria um telefone. Tentei lembrar-me de seu nome completo. Lamentei mais uma vez a fragilidade do coração humano. Como pude esquecer tão facilmente o nome de meu melhor amigo? Ainda bem que a novela se encontrava comigo, e, com toda certeza, nela estaria o nome inteiro, um sobrenome pelo menos. Corri os olhos e li: César Augusto dos Reis, no alto da capa.

Hoje disquei o número e atendeu uma voz grossa e autoritária. “Quero falar com o novelista César Augusto dos Reis”. A voz do outro lado se mostrou aborrecida: “Não existe nenhum novelista aqui. Quer deixar de brincadeiras, meu senhor.” Apresentei-me. Ele se fez de esquecido ou de fato não se lembrava mais de mim. Depois se disse surpreso: “Não sabia que você ainda era gente”. Conversamos mais. Quis saber de minha vida. “Sou advogado. E você?” Falou em barzinho, dificuldades, “aturando esses bêbados dia e noite”. Pedi o endereço.

O barzinho chama-se “Restaurant Carnivorous”, serve pratos da cozinha internacional, recebe a fina flor da sociedade e é irmão de outros dois e de um prédio de doze andares.

César mandou dizer por um moleque de recados que não podia receber ninguém. Em um minuto deveria sair para compromisso inadiável. Não dei ouvidos ao recado e entrei no escritório. E só saí de lá uma hora depois.

Falamos da morte de meu pai, de comércio, de literatura e artes plásticas, do passado, de nossos sonhos, mil coisas, tudo de forma desordenada, como se quiséssemos falar todas as palavras ao mesmo tempo. Contou-me sua história: antes de adquirir o primeiro barzinho, trabalhou como garçom, copeiro e cozinheiro. O barzinho rendia alguma coisa, até se transformar num bar de verdade. O bar virou restaurante. “Tudo porque sou muito controlado e trabalhador. Não ando esbanjando dinheiro”.

Surpreendi-me diante de tanta riqueza e fui para casa desconfiado não sei de quê. E todo o passado voltou à tona, aos borbotões, feito vômito. Relembrei todas as nossas conversas, todos os sonhos, todos os projetos, a novela, tudo. E me interroguei com mil perguntas: por que César não publicou o livro, não virou o escritor que desejava ser, se tem tanto dinheiro? E se havia dito numa de nossas últimas conversas que nada o impediria de se transformar num grande homem, famoso, reconhecido por todos! Como um barzinho podia ter se transformado num restaurante daqueles em tão pouco tempo?

Não durou muito aquele vômito e voltei ao restaurante. Da porta gritei: “César, você matou o meu pai”. Ele quis explodir, gritar, correr, agredir. Apontei-lhe o revólver e ele se rendeu.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
Enviado pelo autor.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “03”

 

Francisco José Pessoa (Estaleiro versus Titanzinho)

Fim de tarde melancólico no pontal do Mucuripe... lá em cima, o céu aos poucos se enluta; cá embaixo, maré seca, pequenas ondas tênues pouco encrespadas teimam em beijar a praia do Titanzinho, como se fora o derradeiro afago.

Uma folha de jornal quase desfeita se abraça a um coral vigilante que veio tomar fôlego na superfície. Eis a chave do mistério para tanta tristeza.

A cada momento seguinte, numa suave nuança, a abóbada celeste também lacrimeja piscando estrelas, ao ouvir atentamente os soluços do mar que, desesperado, roga aos deuses do Olimpo pela sobrevivência daquela praia, criatório de talentosos equilibristas de pranchas que hoje surfam na crista da onda em competições internacionais. E não é só disso de que se alimenta a Titanzinho, pois, viveiro de variadas espécimes de peixe, faz-se cardápio para os praianos que vivem em seu derredor.

Nem tudo são flores, no dizer do poeta, na praia do Titanzinho. A nossa sociedade míope enxerga-a como uma zona franca da prostituição, paraíso para os marinheiros sedentos e famintos que arriam âncora em nossos mares. Relegada ao esquecimento, ela tornou-se lembrada por jovens que se aventuram no trágico mundo do tráfico. Existem titãs, paradoxalmente, sem forças, que procuram maiusculizar a Titanzinho. São nativos de pele crestada que cheiram a maresia, cujos vagidos se confundem com o roçar do peito das ondas no dorso da praia, ou que nasceram no meio do mar e foram atraídos pelo canto das sereias, com a missão de diminuir a dor daquele povo sofrido.

Quão bom é ver e sentir o lado bom da comunidade Serviluz, que busca servir a luz para nossos irmãos que portam óculos escuros em noites trevosas.

Sob o teto de um azul já escurecido e o gotejar de lágrimas vindo de estrelas chorosas e refulgentes, pois que a lua ausente se fazia, pus-me a meditar naquela noite fria, fitando quase às cegas o lúgubre horizonte. Eis que me envolve os pés, já desbotada, aquela folha de jornal liberta dos corais, indecisa no seu ir e vir por tantas vezes no alcançar da praia, sem saber que trazia a chave do mistério, do porquê de tanta tristeza naquela praia condenada a desaparecer.

- MORTE ÀS PRANCHAS! VIVA O ESTALEIRO!... Lia-se com dificuldade as letras garrafais embaralhadas na página molhada.

360, Tubo, Cabuloso, Casca grossa, Kaó, Maroleiro, são gritos de guerra que tendem a perder eco naquela praia pequena que se fez grande aos olhos da Transpetro, empresa gerenciada por um cearense que na sua juventude, desfrutou dos distintos sabores que aquele pedaço de chão O mar lhe ofertou.

"é doce morrer no mar"... Que esta ideia de estaleiro na Titanzinho pereça sob as ondas que carregam no dorso nossos surfistas campeões. E os paquetes domados por homens de pele crestada e braços fortes sorrirão onda após onda, num duelo saudável entre o jangadeiro e aquele mundão d'água que lhe garante a sobrevivência.

Por um momento, submergiu a folha de jornal. Cá, na superfície, flutua a decisão dos nossos governantes; um sim, um não, conforme a maré...

Titanzinho, se morreres, morro contigo!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Enviado pelo autor.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 9


DOCE MAGENTA & TEXTURA


Entre as páginas do livro -
A poesia entreaberta
Recebe o bailar da Luz e sombra -
Diáfana por do sol...

Cores, recantos, da Holanda,
Das telas de Monet,
Saudades dos moinhos -
Ninhos de ventos
Pétalas dobradas...
Doce Magenta
Em silêncio, abraçando
As palavras, os versos,
E as anotações ao pé da página -
Inclinadas pétalas
De origem tão distante
Atemporais tintas -
Esmaecidas tulipas...
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FAÇO-ME LÁGRIMA

Quando àquelas distantes
nuvens
Nublam teu olhar
(Abraço teus tons
de gris)
Abro e
fecho
parênteses
E inebriada, silencio-me

Faço-me lágrima
Para deslizar dos teus cílios,
Alongando desejos
De te beijar
E desaguo no cantinho
Dos teus lábios
E, assim desperto uma pontinha
Do teu sorriso...
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MONJOLO

A madeira antiga
Dilui-se com a passagem
Do tempo, tempo
Que afaga teus contornos...
A madeira antiga
Resiste e ainda
Insiste, em sobreviver,
Mesmo com a ausência das águas,
Mantém vivo
O som distante
E repetitivo.
Da teu cadenciado toque...
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OUTONO EM TÊMPERA

O vento menino
Que guardei na tela
Com as quatro folhas
plátano -
Hoje, de manhãzinha
Deixou a têmpera e,
Despedindo - se do Canson
Visitou - me...
Ah, esse ventinho
Que acaricia meu rosto
E envolve cada pérola
Do colar, com teu perfume...
Esse aroma de Amor é encantado -
Paleta com outonais cores
A fluir em meu corpo e alma

Teu vento menino
Refaz em nosso céu
Àquele... coração de nuvem
E nessa manhã fria
Teu carinho em fios.
Douradas filigranas
Cintilam em nosso
Ninho de orvalho -
Teu carinho
É o meu solzinho...
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POÉTICO ABANDONO

As folhas de hera cobrem tuas paredes,
Portas, janelas e varandas,
Lembrando verdes demãos
de tintas,
Afagos a protegê-la das
intempéries...
A escada com nove degraus, ainda,
Preserva parte do mármore,
A porta principal, já sem a dourada
Maçaneta é aberta com facilidade,

E a cada passo, sinto a solidão -
Um silêncio especial espreita-me
Nos gastos tapetes, no piano
Deixado à própria sorte,
Sonhando com Debussy...
A alma da casa abandonada
Refugia-se em imagens e sons
Do passado -
Continuo minha aventura -
Caminhada, sem pressa, com o olhar
E, curiosa, abro mais uma porta,
Encontrando, janelas sem vidros
Que deixam o canto dos pássaros
Mais próximos, fazenda parte
Da linda, mas esquecida, adega
As garrafas de vinho,
Sem rótulos e rolhas
(Nuas - vazias)
Ocupam prateleiras
Como se livros fossem -
Lunetas encantadas
Intocáveis,
Umas sobre as outras
Cobertas por camadas de poeira
Lembram uma segunda pele
Imagino diálogos entre
As garrafas e as partículas de pó,
E a sonolenta cadeira, sem palhas,
A observá-las...
Ah. esse aconchego da passagem
Do tempo, tatuando objetos e sonhos -
Tempo, que tudo desgasta, esmaece,
(Enferruja)
Leva os sorrisos e, aos poucos
Ávida desaparece...
Choro com ela, sinto
Na casa adormecida
Um poético abandono,
Quem sabe,
Ela despertará
Em uma futura aquarela,
Quem sabe?
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PRENÚNCIOS

Sensível, o olhar
Pousa na fonte
Repleta,
De falhas do plátano,
Sinto a poesia
E solidão do cântaro...

Distancia-se o pensamento,
O venta sussurra teu nome...
E, nas esmaecidas e diáfanas cores
De mais um por do sol -
Prenúncios de Saudade...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TRÊS SÍLABAS

Noite outonal -
Estava a três passos
De reencontra-lo,
Antigo piano -
Debussy...
Durante as aulas
Ficava com meu caderno
Próximo de ti
Tínhamos
Conversas
(Segredos) -
E, em silêncio
Nos olhávamos...
Não tivemos
Tempo de despedidas,
Estava a três passos
De ti, mas há
Um mundo de distância
Entre nós -
Solidão,
Apenas, três sílabas
Contidas em um universo
De saudade...

Fonte:
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.
Enviado pela poetisa.

Sonia Regina Rocha Rodrigues (Homenagem à Sophia Leite Cruz)

Pura luz

Qual uma esteira de prata,
O luar cai sobre a areia,
e o mar, numa serenata,
faz trovas à lua cheia!
Sophia Leite Cruz


A poetisa santista Sophia Leite Cruz, que, ao final do século vinte, residia em Santos, sofrendo de mal de Parkinson há mais de dez anos, infartou. Sophia foi uma das pessoas mais alegres que conheci. Se alguma de nós entrasse esbaforida, a lutar com o guarda-chuva, em dia de vento, ouvia-se Sophia a rir:

O vento passa, curioso,
Por entre frondas e faias,
e levanta, malicioso,
a barra de tuas saias.


Posso imaginar Sophia, que sobreviveu ao ataque, acordando na UTI, ao lado de uma dessas desprestigiadas profissionais da saúde, de olhar desiludido e semblante amargurado, mecanicamente a trocar um frasco de soro, e murmurar um ‘obrigada, querida’ seguido de uma rima:

E que caminhes sempre firmemente
A cada passo, uma conquista a mais,
Tendo no peito muita paz somente,
Anjo de Amor, orgulho de teus pais.


E acrescentando:

- De teus pais e de nós, teus pacientes.

Pronto; lançado o encanto, a face da moça se transformaria, surpresa.

E quando o médico se aproximasse a perguntar pelo coração de poeta, ela responderia:

Em busca de beleza e pelo amor,
Corre o poeta a soltar-se no espaço.
Leva no verso a força e o resplendor,
Não mede esforço, despreza o cansaço.


E o médico, a provocá-la:

- Não cansa mesmo, avozinha? Depois de horas a escrever, não cansa, não?

E Sophia afirmaria:

E a pena corre firme no papel
e exprime com fervorosa emoção,
artista a debuxar com seu cinzel,
as fímbrias fundas de seu coração.


Ora, há muito que a pena de Sophia não corria firme em lugar algum, motivo pelo qual o banco lhe cancelara os cheques e ela se ajeitara ao teclado de um computador, digitando pacientemente, dedo a dedo, uma letra por vez, persistente.

Quando o médico hesitasse em revelar-lhe a verdade sobre sua saúde, ela, esperta, o interromperia:

Não dirijas tua vida
Buscando luz na mentira.
Vê que a verdade sofrida
Seja mesmo tua mira.


Coração forte, o de Sophia! Após longos anos de doença, ela erguia o rosto risonho e enfrentava o que fosse.

A enfermeira, mais animada, conversaria com ela sobre a cidade, tão bonita, berço de renomados poetas, e Sophia concordaria:

Os jardins de nossas praias,
Possuem lindos recantos.
Entre alfambras, flores, faias,
Fazem a graça de Santos!


Depois de tomar seus remédios e despedir-se das visitas, Sophia se prepararia para dormir, despedindo-se assim:

É tão gostoso adormecer assim,
pela madrugada misteriosa,
sorver no espaço o aroma do jasmim,
Apaixonado pela rubra rosa!


As amigas, para animá-la, riam e atiçavam:

- Sei não, não era bem assim que um certo ‘alguém’ ouviu estes versos, não! Como eram mesmo?

Sophia, alegre, relembrava os versos feitos ao antigo namorado:

É tão gostoso adormecer assim,
no limiar do sonho, um beijo teu,
em revoada como um querubim,
buscando rápido um carinho meu.


A enfermeira, admirada, lhe perguntaria, curiosa:

- Avozinha, como consegue declamar tão facilmente, assim tão à vontade com as palavras e as rimas?

A mesma pergunta eu já lhe fizera e obtivera como resposta:

- Eu penso em decassílabos...

Cartões de Natal, vindos de Sophia, só rimados:

Natal! E toda a celeste legião
Festeja o nascimento de Jesus.
Anjos e arcanjos sorridentes vão
em cada estrela colocar mais luz.


Assim era Sophia, imersa em poesia, sem deter-se nas contrariedades presentes na paisagem da vida, buscando a beleza, focando no Bem.

Anos mais tarde, ela se foi, e deixou-nos seu exemplo de vida. Seu enterro, ao que sei, foi concorrido, e seus amigos poetas foram cantando acompanhar o caixão.

Sophia, como os gregos do Parnaso, buscava a Excelência.

Tendo seus talentos reconhecidos pelos prêmios que recebeu, pelas entidades das quais participou, pelos leitores do seu jornal poético O Espaço, Sophia realizou seu desejo de publicar seu livro Um Grande Sonho.

Para muitos que a conheceram, ela personificou o sonho.

Bibliografia:
Um grande sonho – Sophia Leite Cruz - 1992
Em Verso e Prosa – AFCLAS – 1998
Antologia A lua e a Pena – APEBS - 1995
Antologia A lua e a Pena – APEBS - 1996


Fonte:
Enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Almas carentes)

“A solidão era tanta, tanta e tamanha, que entrelaçava seus corações até antes mesmo de terem nascido”.
Tompson de Panasco
    

TINHA MAIS QUE MORRER O SUJEITO.  Vagabundo, desocupado, vivia pelas ruas andejando com visível dificuldade, batendo de porta em porta, vomitando a sua impotência desenfreada a quem cruzasse com ele. Tomado pelo instinto de um esmoleiro dos tempos medievais, parecia preso numa piedade calada. Aqui e acolá, implorava restos de comida, pães velhos, roupas fora de uso. E quem doasse alguma coisa - se esperasse um muito obrigado ou um Deus lhe pague - fosse tirando o cavalinho da chuva.  Aquele homem não abria a boca de jeito nenhum, para agradecer um nadinha que lhe fizessem.

Além de todos esses defeitos, terrivelmente mal-agradecido. Sem vergonha e descarado, atrevido e impávido, quando cruzava com mulheres bonitas, abria-se em gracejos e mesuras. Fazia piadinhas sem graça e pesadas. Deixava as boquiabertas raparigas com seus rebolados perdidos, inclusive as senhoras que não tinham mais rebolado, fisgadas pelo avanço da idade. O certo é que tais velhotas coravam boquiabertas e desgostosas com o infeliz.  

Um dia, um bando de desocupados e desordeiros deu-lhe algo forte para beber, e o colocaram a pique. Deu "tilte" no cabeção. Quando as irmãs do convento de São Francisco de Assis, por acaso, atinaram com o pobre, jazia o coitado, caído de bruços, numa vala aberta recentemente pela prefeitura nos arredores da cidade, as roupas quase a despencar do corpo mal nutrido e debilitado de saúde. Penalizadas, avisaram o Padre Gregório, que imediatamente providenciou uma equipe da pastoral. Resgatado, levaram-no para o banheiro público (cidadezinhas do interior tem muito desses WCs coletivos) e deram-lhe aos costados, um chuveiro em regra.

Trocaram as roupas farropoídas por novas. Fizeram-lhe a barba, apararam os cabelos e ainda descolaram um par de sapatos e até um paletó fora de moda, mas bom. Como para ele não havia isso de moda, a nova vestimenta veio a ser útil demais, até porque não se tinha notícia de algum dia os habitantes lhe terem visto vestido num paletó.

Dessa maneira, aquele andarilho, de repente, tornou-se até bem-apessoado, de personalidade firme e maneiras delicadas. Seu rosto sem a barba de semanas apresentava um aspecto jovial. Quem o visse agora, não daria para ele vinte e poucos anos, embora pela certidão, ou melhor, pelo que havia sobrado do documento, contasse trinta e cinco. Vendo-se assim, tão remoçado, o próprio não se reconheceu no espelho que lhe botaram na frente dos olhos espantados.

De fato, aquela tez refletida, deveria ser outra, menos a dele, o desgraçado, o traste, que vivia de deu em deu. “Que homem bonito – pensou com ares narcisistas – parece até artista de cinema”. Ao diabo, fosse quem fosse. Se o espelho estava ali, plantado diante de seu nariz, só poderia ser ele mesmo. Danasse o resto e tudo mais!

Bonito, simpático, atraente, passou a fazer as refeições junto com o padre, na casa paroquial que ficava colada a igreja. Poderia, agora, quem sabe, se desse a sorte, arranjar uma namorada. Mas naquele lugarejo... nenhuma rameira, ou dama que prezasse a honra, iria querer flertar com um borestia (folgado) daqueles... mesmo as encalhadas se candidatariam a viver ao lado de um homem que ninguém sabia de onde tinha pintado, se fugitivo da justiça, ou procurado por dever qualquer coisa à sociedade.

Somente ele sabia de onde provinha. Somente ele tinha as respostas e poderia falar abertamente do passado. Contudo, pobre mendigo, desprezível alma que ninguém dava importância. A ninguém interessava saber ou entender que, outrora, ele fora um rico e abastado fazendeiro, que tinha mansão, carro do ano, lojas de comércio, muitas terras, uma centena de empregados, mulher bonita e uma filha maravilhosa. Nos dizeres de Ovidio, “Donec eris felix, multos numerabis amicos; tempora si fuerint nubila, solus eris”*. Verdade, por sinal, incontestável.

O que se apurou depois, a companheira, sem mais nem menos, o abandonou e foi embora para outra localidade, a tiracolo com um sujeito esquisito, levando a filha de quinze anos (na época) e nunca mais dando sinais de vida. Ele, apavorado, sem saber o que fazer, ficou desatinado, alienado. Andou, procurou, fez mil loucuras, porém não soube, jamais topou com o paradeiro de sua consorte. Abestado e mentecapto, abandonou o sítio, as terras onde plantava café e virou andarilho. Na sua pequena e pacata Andirá, interior do Paraná, morador por mais antigo que fosse saberia dar notícias precisas. Nem da mulher ou da filha, ou do elemento que, com elas, se debandara.

Por isso, ele se tornara um nômade cigano, sem porto seguro, a vagar errante de cidade em cidade, sem paradeiro certo, alma vazia, comendo, vivendo, e se mantendo a custas da ajuda alheia. Quem, naquela localidade, iria se interessar por ele? Ninguém. Viva alma se atreveria a descer tanto... de novo com suas dores e misérias, lembranças e medos, abandonou o aconchego do padre Gregório e voltou à malfadada e incerta vida de João Ninguém.

Nem mesmo outra ambulante que há quinze ou vinte dias chegara e rodopiava por ali, igual a ele, vinda de algum eito com as suas típicas imundices, ou talvez, pior em flagelo, pudesse ser comparada. Moça bonita lembrava Oriana, amada de Amadis de Gaula**, apesar de seus olhos tristes e sofridos, as roupas frangalhadas, porcamente cobrindo um corpo escultural, os cabelos compridos em desalinho, figura que em pouco tempo tornou-se conhecida da galera pela ternura e meiguice que transmitia. Só tinha o defeito de ser pobre e a falha de ninguém saber de onde havia aparecido.

Coisa de dois sábados, o imprevisível criou vida e forma. Ambos se encontraram na praça, se viram em relance ligeiro. A beldade, num ímpeto fugiu alígera, porque ele quis maliciosamente, levantar a sua saia (ou o que restava dela) visando apreciar melhores perspectivas. A gargalhada dos transeuntes se generalizou. Uns queriam se divertir, outros acharam afrontoso. Teve meia dúzia de apressadas bocas que cuspiu no desgraçado rejeitos. Pura maldade. Padre Gregório apareceu de repente e lascou um sermão nos insensatos e a coisa caiu no esquecimento.

Todo esse incidente não passou de um fato a mais na pacata localidade, que logo em seguida mergulhou no marasmo rotineiro de sempre. Porém, uma semana após esse quase desentendimento entre o casal de indigentes, aconteceu uma coisa que espantou a todos, desde os cidadãos mais honrados, as damas da alta sociedade com suas riquezas à ponta do nariz, até os menos abastados pela sorte.

Tudo aconteceu numa chuvosa manhã de domingo. Ninguém avistou o mendigo pelas ruas e calçadas. Criaturas mais afoitas, perguntaram daqui e dali, mais por questão de desencargo de consciência, que por solidariedade. O fato é que durante todo o domingo ninguém avistou o rapaz. De roldão, tampouco a moça. Entretanto, na quarta-feira à tarde, um bando de garotos que brincava pelas redondezas da linha do trem, achou, num terreno baldio, dois corpos. O primeiro pertencia ao sem rumo que vivia de porta em porta pedindo comida e um copo de café.  

O segundo, da infeliz menina que chegara fazia pouco. Estavam de mãos dadas, rostos muito unidos, como se pretendessem eternizar um longo e derradeiro beijo de despedida. Os habitantes deduziram que o mendigo encontrara a garota numa ruela qualquer e a tivesse arrastado para o mato, a fim de violentá-la. Porém, dias mais tarde, em face da estação de rádio noticiar os fatos, o jornaleco publicar fotografias da dupla, a polícia civil entrar em ação, o ministério público se fazer presente, etc., e tal, investigadores e repórteres de uma dezena de emissoras de televisão se deslocaram da capital e até autoridades da longínqua Andirá para desvendarem o mistério.

E desvendaram. O pobre homem, abastado fazendeiro do norte do Paraná, que saíra pelo mundo feito louco, em busca de sua família, ou a procura da paz para si mesmo, finalmente fora abençoado com o evento benfazejo do objetivo que incansavelmente procurava. A moça, nada mais, nada menos, Érica, sua filha. O rebento que ele tanto especulou encontrar na sua triste e melancólica vida de solitário. Ambos (não se sabe como) se reencontraram naquele fim de mundo, e não se teve explicação plausível, de como se reconheceram, e pior, ninguém soube aclarar pormenorizadamente como bateram de frente com as garras frias da morte.

Um pequeno grupo de comerciantes a pedido do padre Gregório, em sintonia com as irmãs do convento de São Francisco de Assis, providenciou os enterros de pai e filha, com direito a velório, flores, gente chorando, cantoria, missas de sétimo dia... e até quermesse. Na verdade, o mínimo que poderia ser feito (e, diga-se de passagem, puseram em prática), para que dois seres humanos não fossem enterrados em covas rasas no pequeno cemitério local, como simples indigentes.

Atualmente, uma estátua enorme (“Almas Carentes”) se vê à entrada de quem chega ou sai dos arredores para a rodovia que interliga a São Paulo. As honras e os galardões recaíram claro, no atual prefeito, que trouxe para as redondezas, uma multidão sem conta de turistas e curiosos que deixam uma soma considerável em dinheiro nos restaurantes, bares e quiosques da (até então, antes e pacata) cidadela incrustrada entre montanhas e rios entre outros atrativos da natureza a se perderem de vistas.                       
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*"Enquanto fores feliz, contarás muitos amigos; se os tempos estiverem nublados, estarás só"

**Amadis de Gaula é uma obra marcante do ciclo de novelas de cavalaria da Península Ibérica do século XVI. Apesar de se saber que a obra existe desde, pelo menos, o século XIV, a versão definitiva mais antiga, atualmente conhecida, é a de Garci Rodríguez de Montalvo, impressa em língua castelhana em 1496, provavelmente (a edição mais antiga conservada é de 1508), e denominada Los quatro libros de Amadís de Gaula. Tudo indica, contudo, que a versão original era portuguesa e muito anterior. O próprio Montalvo reconhece ter emendado os três primeiros livros e ser apenas autor do quarto. (wikipedia)


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