quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo XII – A Volta


Estavam todos prontos para a volta, exceto Emília. Narizinho refletia sobre o seu caso. Por fim pediu a opinião de Tom Mix sobre o melhor meio de a levar.

-Acho que temos de pôr a senhora condessa dentro dum dos ancorotes de mel.

— Que disparate, Tom! Emília ficaria toda melada !...

— Sim, mas há um vazio — respondeu ele. — Creio que ali irá mais comodamente do que na garupa do cavalinho pangaré.

Emília fez cara feia e protestou. O meio de sossegá-la foi permitir-lhe seguir na frente do bando, para que pudesse “ir vendo as coisas antes dos outros”. Estava nascendo nela aquele espírito interesseiro que a ia tornar célebre nos anais da ciganagem.

Puseram-se em marcha. Meia légua adiante Emília pôs-se de pé dentro do barrilzinho e gritou:

— Estou vendo uma coisa esquisita lá na frente! Um monstro com cabeça de porco e “peses” de tartaruga!

Todos olharam, verificando que Emília tinha razão. Era um monstro dos mais estranhos que possa alguém imaginar. Tom Mix puxou da faca e avançou, dizendo a Narizinho que não se mexesse dali. Chegando mais perto percebeu o que era.

— Não é monstro nenhum, princesa! Trata-se do senhor marquês montado num pobre jabuti! Vem metendo o chicote no coitado, sem dó nem piedade.

E assim era. Rabicó dava de rijo no pobre jabuti e ainda por cima o descompunha.

— Caminha, estupor! Caminha depressa, se não te pico de espora até a alma! — gritava ele.

Narizinho ficou indignada com aquilo. Era demais! Vendo-a assim, Tom Mix puxou do revólver e disse:

— Se quer, apeio aquele maroto com uma bala!

— Não é necessário — respondeu ela. — Eu mesma lhe darei uma boa lição. Deixe o caso comigo.

Nisto o marquês alcançou o grupo, e já estava armando cara alegre de sem-vergonha, quando a menina o encarou, de carranca fechada.

— Desça já do pobre jabuti, seu grandíssimo...

Muito espantado daquela recepção, Rabicó foi descendo, todo encolhido.

— E para castigo — continuou a Menina — quem agora vai montar é o senhor jabuti. Vamos, senhor jabuti! Arreie o marquês e monte e meta-lhe a espora sem dó!

O jabuti assim fez, e sossegadamente, porque jabuti não se apressa em caso nenhum, botou os arreios no leitão, apertou o mais que pôde a barrigueira, montou muito devagar e lept! lept! fincou-lhe o chicote como quem surra burro bravo.

— Coin! coin! coin! — berrava o pobre marquês.

— Espora nele, jabuti! — gritava a boneca. — Espora nesse guloso que me comeu os croquetes!

— E também uma boas lambadas por minha conta! — murmurou uma voz fina no ar.

Todos ergueram os olhos. Era a libelinha enganada, que ia passando, veloz como um relâmpago.

O caso foi que naquele dia Rabicó perdeu pelo menos um quilo de peso e pagou pelo menos metade dos seus pecados...

Depois desse incidente puseram-se de novo em marcha, só parando numa figueira de boa sombra, já pertinho do sítio.

— Ponto de almoço! — gritou Narizinho, que estava com uma fome tirana. Desde que saíra de casa só comera os bolinhos trazidos.

Apearam-se. Estenderam no chão uma toalhinha. Tom Mix abriu dois barriletes de mel. Narizinho remexeu no bolso a ver se ainda encontrava algum pedaço de bolo. Não encontrou nem o besouro. Tinha fugido, o ingrato! Puseram-se a manducar mel puro, único alimento que havia.

No melhor da festa — tzzsiu! um passarinho cantou na árvore próxima. A menina ergueu os olhos: era um tiziu.

— Emília — disse ela intrigada — não acha aquele tiziu com um certo ar de Pedrinho?

— Muito! E querem ver que é ele mesmo?

— Pedrinho! Pedrinho! Venha cá, Pedrinho! — gritou a menina, aflita.

O tiziu desceu da árvore, vindo pousar em seu ombro.

— Então que é isso, Pedrinho? Deixo você em casa feito gente e o venho encontrar virado em ave!...

— Assim é — disse ele. — Todos viramos aves lá em casa.

— Como? Explique isso! — gritou Narizinho ansiosa.

— Pois apareceu por lá uma velha coroca, de porrete na mão e cesta no braço. “Menino”, disse-me ela, “é aqui a casa onde moram duas velhas dugudéias em companhia duma menina de nariz arrebitado, muito malcriada?” Furioso com a pergunta, respondi: “Não é da sua conta. Siga seu caminho que é o melhor”. “Ah, é assim”? exclamou ela. “Espere que te curo”! E virou a mim em passarinho, virou vovó em tartaruga e tia Nastácia em galinha preta...

— Que horror! — foi o grito que escapou de Narizinho. — Que vai ser de nós agora? Já sei quem é essa velha! Não pode ser outra! Bem ela me disse que havia de vingar-se...

— Que foi que aconteceu, princesa? — indagou Tom Mix, já de mão no revólver.

— Não sei, Tom, se desta vez nos poderá valer! Você é invencível, mas só de igual para igual. Contra uma bruxa feiticeira, não sei... não sei... e contou o que havia acontecido.

— Deixe tudo por minha conta, princesa, e não duvide da minha arte de resolver situações complicadas. Siga viagem que eu vou dar volta pelos arredores a fim de apanhar essa velha. Juro que hei de trazê-la bem segura, para que desfaça o mal que fez...

— Os anjos digam amém! — suspirou Narizinho mais animada. E dando rédeas ao cavalo pangaré tocou para o sítio com o tiziu ainda pousado no ombro.

Que tristeza! Mal Narizinho apeou no terreiro e já ouviu uma galinha cacarejar lá dentro.

— É tia Nastácia, coitada! — suspirou com o coração apertado.

Entrou. Na sala de jantar viu sentada na rede, costurando, uma tartaruga de óculos.

— Vovó! — gritou a menina com desespero. — Não me conhece mais vovó?

A tartaruga, quieta, quieta...

— Veja, Emília, que desgraça! — gritou Narizinho em lágrimas.

Vovó é aquele bicho cascudo que está na rede! Nastácia é aquela horrenda galinha preta que mais parece urubu...

Emília olhou, olhou e também rompeu em choro, abraçando-se com a menina.

— A única esperança que nos resta é Tom Mix – disse Narizinho. — Mas este caso é tão estranho que receio que nem ele possa nos salvar...

Passaram-se dois dias. Narizinho, inconsolável, não podia conformar-se com a idéia da sua querida avó tartarugando na rede, nem de tia Nastácia volta e meia botando um ovo na cozinha.

— Sossegue, Narizinho. Tom Mix é um danado. De repente reaparece e conserta tudo, como no cinema — dizia a boneca para a consolar.

— Mas está demorando tanto, Emília!...

— Dois dias só. Você sabe que a conta para tudo é três...

Chegou afinal o terceiro dia. As duas amiguinhas, postadas à janela desde cedo, espiavam os horizontes, ansiosas. Nem uma poeira se erguia! Narizinho suspirou.

— Qual, Emília! Está tudo perdido... Se a velha tem o poder de virar os outros em bicho, também pode virar-se a si própria em pedra, árvore, tronco seco — e como há de Tom Mix saber?

— Paciência, Narizinho! Vai ver que de repente ele brota por aí com a velha na ponta da faca...

Palavras não eram ditas e um cachorrinho latiu no terreiro.

— Deve ser ele! — gritou Emília correndo para a porta.

E era mesmo. Era Tom Mix que voltava com dois revólveres apontando e a velha à frente, de braços erguidos.

— É agora! — berrou o cowboy no ouvido da bruxa. – Vais desfazer o mal que fizeste, se não te como os fígados, já neste momento...

Horrorizada com a feiúra da velha, Narizinho fechou os olhos.

Depois criou coragem e os foi abrindo devagarinho. E viu... sabem quem? Viu tia Nastácia a olhar para ela e a dizer:

— Acorde menina! Parece que está com pesadelo...

Narizinho sentou-se na cama, ainda tonta, esfregando os olhos.

— E vovó? — perguntou.

— Lá dentro, costurando.

— E Pedrinho?

— Fazendo uma arapuca no quintal.

— E... e Tom Mix?

— Deixe de bobagens e venha tomar o seu café que já está esfriando — rematou tia Nastácia.
––––––––
Continua... O Marquês de Rabicó – I – Os Sete Leitõezinhos

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 3)


ALAMEDA
Atualmente alameda é qualquer caminho ladeado de árvores. Mas, na sua origem, tinha o sentido restrito de via margeada de álamos (um tipo de árvore). Alameda veio de álamo mais a terminação -eda, variação de -edo (significando coletivo), que também aparece em arvoredo.

ALARDE
Em português, existe a palavra alardo, que significa revista anual de tropas e veio do árabe al-"ard (revista, resenha).Alarde é uma variante de alardo e, por extensão, ganhou o sentido de ostentação, aparato.

ALARME
Do italiano all "arme (às armas), que era o grito da sentinela prevenindo a aproximação do inimigo. Hoje é o grito matutino do relógio prevenindo a aproximação do patrão. De alarme formaram-se alarmismo e alarmista.

ALCORÃO
O livro sagrado do islamismo. Do árabe al-kuran, que significa "a leitura por excelência". Diz-se Alcor do ou Corão. Os que preferem a forma Corão sustentam que, como Alcorão já contém al-, que é o artigo "o" em árabe, dizer "o Alcorão" seria uma redundância, por duplicidade de artigos.

ALKA- SELTZER
O nome do remédio da Bayer veio de aikal, redução de alkaline, alcalino, antiácido + seltzer, água mineral gasosa, do ale nã Selterser (wasser), (água) de Selters, redução de Niederselters, cidade alemã de cujas fontes era obtida a água de Seltzer, famosíssima no século XIX.

ALÔ
O telefone foi inventado em 1876 por Alexander Graham Bell, escocês naturalizado norte-americano. Naquele mesmo ano, o norte-americano Thomas Edison - inventor do telégrafo, do fonógrafo e da lâmpada elétrica incandescente - aperfeiçoou o invento de modo que se pudesse falar e ouvir pelo mesmo aparelho. Edison foi o primeiro a usar no telefone a interjeição hallo - a palavra inglesa veio de uma variação da expressão holla, do francês medieval hola, formado da interjeição de chamamento ho + la (lá).
Do inglês hallo vieram o português alô e o francês allô. Para a origem do francês allô, há uma outra versão que alguns etimólogos aceitam, outros consideram fantasiosa. Em 1880, foi instalado em Paris um posto com um telefone Bell. No início, as pessoas, para apressar o interlocutor, usavam a palavra allons (algo como "Vamos!"). Depois, a palavra teria se reduzido para allô.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Trova Ecológica 46 - Wagner Marques Lopes (MG)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 396)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Uma paisagem funesta
será mostrada, por certo,
quando, em lugar da floresta,
houver somente um deserto!...
–RODOLPHO ABBUD/RJ–

Uma Trova Potiguar

Fosse, a seiva, inspiração,
cada árvore, um Trovador,
floresta era a imensidão
de verdes Trovas de amor.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada

2007 - ATRN- Natal/RN
Tema: ECOLOGIA - 4º Lugar.

Pela imagem desolada
que, após o incêndio, nos resta,
as luzes de uma queimada
são as trevas da floresta!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

...E Suas Trovas Ficaram

Nada tem tanta poesia
como este brilho profundo
que a natureza irradia
do pantanal para o mundo!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Simplesmente Poesia

Ridícula
–OLGA AGULHON/PR–
(a Fernando Pessoa)

Quando deixar de escrever cartas de amor,
deixarei de ser ridícula,
serei amarga.

Quando deixar de chorar por amor,
deixarei de ser ridícula,
serei seca.

Quando deixar de pedir seu amor,
deixarei de ser ridícula,
serei outra.

Quando aprender a fazer versos,
deixarei de ser ridícula,
serei Pessoa.

Estrofe do Dia

Troco todo o meu conforto
mesmo que o doutor não goste,
e onde tiver um poste
coloco um angico torto,
no lugar do aeroporto
boto um campo florestal
para pousar só pardal
onde pousava avião;
vou colocar o sertão
no centro da capital.
–ROGÉRIO MENEZES/PB–

Soneto do Dia

Eu Preciso Te Amar...
–JOÃO UDINE/CE–

Eu preciso te amar com todo amor.
Sentir teus lábios o sabor de amora,
sob o sol da manhã, em seu ardor...
Eu preciso abraçar-te a toda hora,

Desde o fluir da noite ao romper da aurora...
Eu preciso do teu oásis em flor;
há sede em mim de ti, amor, agora...
Depois verei colinas e o que for

de apetitoso do teu corpo belo,
que é um mar de amor a que tanto anelo,
com suas ondas mansas e azuladas...

Eu preciso te amar com todo amor.
És minha flor; eu o teu beija-flor,
eu te desejo até nas madrugadas...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes XI)


AURORA

O poeta ia bêbedo no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbedas.

Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada),
que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.

O poeta está bêbedo, mas
escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar
entre o bonde e a árvore?

Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo
com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai, meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.

A VERDADE DIVIDIDA

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
E era preciso optar. Cada um optou
confere seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

COMO ENCARAR A MORTE

De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.

À meia distância

Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranquila.

De lado

Sente-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançando e deixando ver
um certo cógifo de sandálias.

Salvo orsto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.

De dentro

Agora não se esconde mais.
Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.

Sem vista

Singular, sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.

Carlos Drummond de Andrade (Aquele Casal)


Aquele casal, o marido me honra com suas confidências:

- Ultimamente, a Elsa anda um pouco estranha. Não sei o que é, mas não me agrada a sua evolução.

- Como assim?

- Deu para usar estampados berrantes, de mau gosto, ela que era tão discreta no vestir.

- É a moda.

- Pode ser o que você quiser, porém minha mulher jamais se permitiu esses desfrutes.

- Deixe Dona Elsa ser elegante. Não há desfrute em seguir o figurino.

- Se fosse só o figurino. São as maneiras, os gestos.

- Que é que tem as maneiras, os gestos?

- A Elsa parece uma menina de quinze anos. Ficou com os movimentos mais leves, um ar desembaraçado que ela não tinha, e que não vai bem com uma senhora casada.

- Posso dar opinião? As senhoras casadas não perdem a condição feminina, e pode até realçá-la por uma graça experiente.

Fixou-me suspeitoso:

- Que é que está insinuando?

- Nada. A mulher casada desabrochou, não é mais um projeto, pode revelar melhor o encanto natural da personalidade.

- Pois fique com suas teorias, que eu não quero saber de minha mulher revelar seu encanto a ninguém.

- Perdão, eu...

- Já sei. Estava querendo desculpar a Elsa.

- Desculpar de quê?

- De tudo que ela vem fazendo.

- Eu ignoro tudo, e adivinho que não há nada senão...

- Senão o quê?

- Aquilo que o dicionário chama de ente de razão, uma fantasia completamente destituída de razão.

- Acha então que estou maluco?

- Acho que está sonhando coisas.

- E a flor que ela trouxe ontem para a casa é sonho? Me diga: é sonho?

- Que é que tem trazer uma flor para casa?

- Veio do oculista e trouxe uma rosa. Acha direito?

- Por que não?

- Eu apertei, ela me disse que foi o oculista que deu a ela. Estava num vaso, ela achou bonita, ele deu.

- E daí?

- Então uma senhora casada vai ao oculista e o oculista lhe dá uma rosa? Que lhe parece?

- Que ele é gentil, apenas.

- Pois eu não vou nessa gentileza de oculista. Não há rosas nos consultórios de oftalmologia. E que houvesse. Tem propósito uma coisa dessas? Ela acabou chorando, dizendo que eu sou um bruto, um rinoceronte. Engraçado. Minha mulher vem com uma rosa para casa, uma rosa dada por um homem, e eu não devo achar ruim, eu tenho que achar muito natural.

- Desde quando é proibido uma senhora ganhar flor de uma pessoa atenciosa? Que sentido erótico tem isso?

- Tem muito. Principalmente se é rosa. Ora, não tente negar o significado das ordens florais entre dois sexos. O oculista não podia dar essa flor, nem ela podia aceitar. O pior é que não deve ter sido o oculista.

- Quem foi, então?

- Sei lá. Numa cidade do tamanho do Rio, posso saber quem deu uma rosa a minha mulher?

- Vai ver que ela comprou na loja de flores da esquina, e disse aquilo só para fazer charminho.

- Ela nunca fez isso. Se fez agora, foi para preparar terreno, quando chegar aqui uma corbelha de antúrios e hibiscos.

- Não diga uma coisa dessas.

- Digo o que penso. Estou inteiramente lúcido, só me conduzo pelo raciocínio. Repare no encadeamento: os vestidos modernos; os modos (só vendo a maneira dela se sentar no sofá); a rosa, que ela foi correndo levar para a mesinha de cabeceira do quarto. Cada uma dessas coisas é um indício; reunidas, são a evidência.

- Permita que eu discorde.

- Discorda sem argumentos. A Elsa não é mais a Elsa. Demora mais tempo no espelho. Fica olhando um ponto no espaço, abstrata. Depois, sorri. Estou decidido.

- A quê?

- Vou segui-la daqui por diante. Contrato um detetive. E logo que tenha a prova, me desquito.

- Não vai ter prova nenhuma, juro. Ponho a mão no fogo por Dona Elsa.

- Pensei que você fosse meu amigo. Fiz mal em me abrir. Vamos mudar de assunto que ela vem chegando. Mas repare só que os olhos de Capitu que ela tem, eu nunca havia reparado nisso!

Esquecia-me de dizer que meu amigo tem 82 anos, e Dona Elsa, 79.

Paraná em Trovas Collection - 4 - Amália Max (Ponta Grossa/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 3


JUSTIÇA

Ao Ermelino de Leão

Os tempos não são mais de dança nem de lança,
E o mundo vai talvez ainda pior do que eu
Supunha: todos nós perdemos a esperança,
É o naufrágio, e este horror, e tudo pereceu...

Mas através do desespero que não cansa,
Através deste mal duro como um judeu,
Quando corre o teu sangue e bom como criança,
Quando te vejo, assim, mulher que se perdeu...

Ó furor de arrancar trêmulo a minha espada,
De levantar a voz e de chamar a mim
Cegos e surdos que não querem ouvir nada...

Heroísmo, e juventude, e glória, e luz de um dia,
Que bom de ver surgir uma cavalaria,
Que te erguesse do chão, como uma flor, enfim!

1903

Poesias Diversas

IDEAL!

Ao Romário Martins

É frio, frio, como gelo.
Galopo o meu cavalo em pelo.
Uivos roucos de temporal!...
Mas nessa noite de procela,
Lá corre trêmula uma vela
Num mar de sangue! – É o meu Ideal!

Às vezes como um Xá da Pérsia,
Envolto todo em minha inércia,
Eu adormeço num divã...
Mas vem de súbito a Esperança,
Toca-me o braço, dá-me a lança:
“Corre! que vão matar tua irmã!”

Ó meu Senhor, que bom seria,
Na praia. Esplêndido esse dia.
Um velho, e o barco sobre o mar:
“O mar é um túmulo sem fundo,
Mas eu vou dar a volta ao Mundo,
Além! Além!” – Quero embarcar!

A minha vida é uma Doente,
Que ri funambulescamente...
Ri como os sinos: dlem! dlom! dlem!
Olhai! lá vem descendo o serro!
Lá vem! lá vem o meu enterro!
Que dor! que dor! Morri. Por Quem?

E tu, cruel, que assim me perdes,
Ó vício! ó Dama d’olhos verdes!
Torcida como um caracol?
Mas nos teus olhos quando cuido:
Ah! quem me dera ser o fluido,
E ser a estrela, e ser o Sol!

No campo. Um cavaleiro passa.
(Campo de Troia da Desgraça)
“Guarda! – murmura – É de coral,
Diamante, pérolas e ouro,
Estranho, fúlgido tesouro...”
Não lhe roubara nenhum real!

A Dor! (que olhar! e que magreza!)
Quando essa tísica Princesa
Entra de noite o meu solar...
Queima-me um raio de martírio,
Eu resplandeço como um lírio,
Ó Lua Nova! a soluçar!

Ideal! Ideal! que fina salva!
Ideal de prata! Estrela d’Alva!
Torre d’ouro da minha Fé!
Ideal! Ideal! luzente Espada!
Contigo, vê, não temo nada!
Turris eburnea! Arca de Noé!

Ideal! Ideal! que me tortura!
Ó fogo fátuo! ó vã loucura!
Dama d’honor! Lança e Arnês!
Além, além, é um mar de luzes!
No meio d’ossos e de cruzes?
Que importa! Irei sangrando os pés!

***

IGUAÇU

Ao Joaquim de Castro

Ó rio que nasceu onde nasci, ó rio
Calmo da minha infância, ora doce, ora má,
Belo estuário azul, espelhado e sombrio,
Quanto susto me deu, quanto prazer me dá!

Quantas vezes eu só, nessas manhãs d’estio,
Ao vê-lo deslizar, pomposamente, lá,
Pálido não fiquei, tão majestoso vi-o,
Orgulho do Brasil, glória do Paraná!

Companheiro ideal! Durante toda a viagem,
Foi o espelho fiel a refletir a imagem,
Dos montes e dos céus, discorrendo através

Da floresta, ora assim como um cão veadeiro,
A fugir, a fugir alegre e alvissareiro,
Ora deitado aqui quase a lamber-me os pés!

***

CANÇÃO

Pára um negro cavaleiro
Ao pé de antigo solar:
O seu cavalo é de crina
Cor da Lua, cor do luar.

Vem de longe o cavaleiro,
Vem das guerras de Além-mar...
Com a ponta da sua adaga
Bate à porta do solar.

– Quem bate na minha porta,
A esta hora de dormir? –
“É teu esposo, Guiomar,
A porta lhe vem abrir.”

– O meu esposo morreu
Lá nas guerras d’El-rei,
Tenho o punhal que o feriu,
Gravado em ouro de lei. –

Com a ponta da sua adaga
Torna de novo a ferir:
– Quem bate na minha porta,
A esta hora de dormir?

– Se fores meu Dom Rodrigo,
A porta te irei abrir,
Mas se não fores Rodrigo,
Dize: que queres de mim?

“Eu sou Dom Rodrigo, a porta,
A porta me vem abrir”
– Perdão, senhor! piedade!
Tem piedade de mim!

...................................................

Parte um negro cavaleiro
Para as guerras de Além-mar,
O seu cavalo é de crina
Cor de sangue, cor de luar.

1897

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

26ª Feira de Livros de Florianópolis (Convite para Participação)


CONVITE

Convidamos a todos os Escritores, Associações e Academias de Letras para participar da

26ª FEIRA DE LIVROS DE FLORIANÓPOLIS

Realizada pela Câmara Catarinense do Livro - Florianópolis

Data:
08/12 a 23/12/11.

Local: ]
Praça da ALfândega- Centro- Florianópolis/SC

Horário:
das 09:00 H às 20:00 H

INSCRIÇÕES ABERTAS

1 -Exposição de Obras Literárias;

2 - Lançamento de novas Obras ou sessão de Autógrafos (relançamento),
no Estande.

3 - Sarau Literário com livre divulgação de suas Obras;

4 -Palestras relacionadas com a Literatura em Geral;

5 -Mini-Oficinas, não ultrapassando 50 minutos;

I - DAS INSCRIÇÕES:

Inicia em 16/11/11 com término em 05/12/11;

II - VALOR DAS INSCRIÇÕES REFERENTE:

1 - Exposição de Obras: R$ 10,00, no limite de 2 títulos. Se houver interesse de expor mais títulos, entre em contato;

2 - Lançamento ou sessão de Autógrafos, a contribuição é de R$ 10,00, caso a Obra não ficar na Exposição.

3 - Sarau Literário (divulgação de Obras): R$ 10,00;

4 - Palestras: Cada Palestrante do Grupo contribuirá com R$ 10,00;

5 - Mini-Oficina, cada Instrutor contribuirá com R$ 20,00;

III – TAXA DE INSCRIÇÃO

Depositar os valores respectivos no: CEF – Agência: 1877; Conta: 101.607-9; OP: 013.

IV - FICHA DE INSCRIÇÃO

Preencha a Ficha abaixo, o Anexo, devolva junto com o recibo escaneado.

V – VENDA DAS OBRAS

Sobre as Obras vendidas no estande da Feira, será descontado um percentual de 10 % para a Câmara Catarinense do Livro, nos mesmos moldes aplicado anteriormente.

Mara Vianna – Responsável pelo Estande dos Escritores Catarinenses

Fones: (48) 9153-4380 / 3034-0380.
E-mail: rovianhr18@yahoo.com.br ;
maranubiaroloff@hotmail.com

Florianópolis, 11/11/11.

Data: 08/12 a 23/12/11.
Local: Praça da Afândega- Centro- Florianópolis/SC
Horário das 09:00 H às 20:00 H

FICHA DE INSCRIÇÃO

Nome completo: ............................................................................
Endereço: ......................................................................................
Fone: ( ....) .....................................................................................
CI : ........................................... CPF : ...........................................

Marque a opção desejada e descreva, nas linhas pontilhadas.
(1) (2) (3) (3) (5) Ex: 1- Obras: ........................................................................................................
........................................................................................................
........................................................................................................
........................................................................................................
........................................................................................................

INSCRIÇÕES ABERTAS

1 - Exposição de Obras Literárias;
2 - Lançamento de novas Obras ou “Sessão de Autógrafos”
(relançamento), no Estande.
3 - Sarau Literário (os escritores poderão divulgar as suas Obras);
4 - Palestras sobre a Literatura atual;
5 - Mini-Oficinas com tema livre (não ultrapassar 50 minutos);

Florianópolis, 11/11/11.

Ass.: ........................................................

MNR /(48) 9153-4380.

Fonte:
Mara Viana
http://projetoculturalartecriandosempre.blogspot.com/

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 2)


A DAR COM UM PAU
Avoantes são aves que vêm, em grandes bandos, da África para o Brasil e
pousam em algumas regiões do Nordeste para desova. Exaustas e famintas, são mortas, aos milhares, pelos sertanejos, a pauladas. Daí veio a expressão a dar com um pau com o sentido de em grande quantidade.

ADEUS
Adeus em português, adjós em espanhol, adieu em francês,addio em italiano, todas essas palavras têm a mesma origem: é o que restou de uma frase como entrego-te a Deus, recomendo- te a Deus ou algo parecido.
Em inglês, goodbye é a forma reduzida de God be with ye (Deus esteja contigo). God virou good por analogia com as expressões good day e good night.

ADVOGADO DO DIABO
É o encarregado de apresentar objeções e dificuldades a uma tese. A expressão veio do direito eclesiástico: nos processos de canonização, ele é o Promotor da Fé, incumbido de apontar os defeitos e as fraquezas de quem se pretende santificar. Em latim, havia as figuras doadvocatus diaboli e do seu oponente, oadvocatus dei (advogado de Deus). Maledicentes afirmam que a expressão está caindo em desuso porque o profissional e o cliente se confundem cada vez mais.

AGORA INÊS É MORTA
Portugal, 1340. D. Pedro, o filho do rei Afonso IV, se casa, por arranjo político, com D. Constança, uma nobre senhora de Castela. Ao se mudar para a corte portuguesa, a feinha e ingênua D. Constança, coitada, leva consigo uma dama lindíssima, filha de um fidalgo galego, chamada Inês de Castro, por quem, é claro, o infante D. Pedro vai se apaixonar perdidamente. Com a morte prematura de D. Constança, a tolinha, D. Pedro se casa clandestinamente com Inês. O casal tem três filhos. Influenciado por seus conselheiros, o rei D. Afonso IV decide mandar executar Inês de Castro, temeroso de que, uma vez morto, Inês se torne rainha de Portugal e, assim, passe a favorecer seus familiares da fidalguia galega em prejuízo da nobreza lusitana. No dia 7 de janeiro de 1355, no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, num local hoje conhecido como "Quinta das Lágrimas", Inês é degolada.
Quando D. Pedro sobe ao trono português em 1357 como D. Pedro 1, manda executar os assassinos de Inês de Castro. Em 1361, o serem trasladados, de Coimbra para o Mosteiro de Alcobaça, s restos mortais de Inês, D. Pedro 1 coroa o cadáver de Inês como rainha.
Hoje, no transepto desse mosteiro, estão os túmulos dos dois amantes. Na tampa do sepulcro de Inês, vê-se esculpida sua figura angelical, com a coroa de rainha. Muito mais que um fato político, o episódio se celebrizou como uma trágica história de amor, genialmente narrada por Camões em "Os lusíadas". E a expressão agora Inês é morta ficou consagrada para exprimir qualquer ação tardia e de resultado inútil.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Ialmar Pio Schneider (Soneto)


Os versos que escrevi me trazem, hoje,
à lembrança, aventuras que sonhei,
mas vivo a presenciar que o tempo foge
e aquelas metas nunca realizei…

Posso dizer que alguém eu muito amei,
e sem usar a culta metagoge,
deva esquecê-la… como poderei?
para que deste carma me despoje?!

Mas as minhas poesias ´stão aí
e formam os momentos que vivi,
sempre cantando tristes madrigais…

Se algumas penas sofro nesta vida,
são o produto da missão cumprida,
procurando no amor meus ideais !
***

Publicado no Almanaque Gaúcho da Zero Hora de 15 de novembro de 2011 - pág. 38

Fonte:
Soneto enviado pelo autor

Conto Popular Celta (A História da Caveira)


Era uma vez um granjeiro que tinha apenas um filho. Este filho morreu e o pai não quis ir ao enterro porque antes houve uma briga entre eles. Passado um tempo, morreu um vizinho e ele foi ao seu enterro. Depois da cerimônia e ainda estando o granjeiro no cemitério, olhando distraído ao redor viu uma caveira.

Juntou-a e disse, pensativo:

- Gostaria de saber alguma coisa sobre ti...

E a caveira falou:

- Amanhã irei passar a noite contigo, se vieres passar outra noite comigo.

-Assim farei - disse o granjeiro.

No caminho de volta, encontrou um sacerdote e comentou o que tinha ocorrido. O sacerdote lhe disse que deveria ter sonhado, posto que as caveiras não falam.

O granjeiro lhe contou que na noite seguinte seria visitado pela caveira, e o sacerdote concordou em ir.

Assim, na noite seguinte, estavam o granjeiro e o sacerdote conversando quando, em seguida, chamaram à porta e apareceu a caveira. Ela subiu à mesa e comeu tudo que nela havia. Depois, saiu e desapareceu.

- Por que não falaste nada? inquiriu o granjeiro ao sacerdote.

-Por que TU não falaste?. respondeu o outro.

Na noite seguinte, como dia combinado com a caveira, o granjeiro foi até o cemitério e, não vendo nada, desceu os três degraus que estavam junto à Igreja.

De pronto se encontrou no meio de um campo, cheio de homens que lutavam entre si. Ao ver o granjeiro, perguntaram-lhe se procurava o crânio. Ao assentir, eles disseram:

- Acaba de ir para o campo ao lado.

No outro campo viu homens e mulheres que lutavam entre si. - Estás procurando um crânio? - perguntaram. Pois bem, acaba se ir ao campo do lado.

O granjeiro se foi ao campo do lado e viu uma grande casa. Ao entrar viu que era a habitação de uma dama e uma criada. A dama caminhava de um lado a outro da casa, e cada vez que chegava perto do fogo para se aquecer, a criada a empurrava. Também lhe perguntaram se buscava um crânio e que se era isso, que saira pela porta esquerda da casa e por ali saiu o granjeiro.

Ao entrar na casa contígua, encontrou a caveira e esta lhe perguntou se queria cear, com o que assentiu o granjeiro. A caveira o conduziu a cozinha onde estavam três mulheres. A caveira pediu a uma delas que servisse a ceia, e esta serviu pão preto e uma jarra d’água, o que ele não conseguiu comer. Em seguida pediu à segunda mulher que fizesse o mesmo, e ela serviu pior ao granjeiro do que a primeira. Por fim a caveira pediu à terceira mulher, e esta serviu uma deliciosa refeição, com uma profusão de pratos e excelentes vinhos.

Depois de comer, perguntou ao crânio o que tinha sido aquilo.

- Os homens que viste no primeiro campo se dedicavam a lutar entre si enquanto estavam vivos, porque tinham terras próximas e se acostumavam a mover as estacas e agora precisam lutar entre si para sempre. Os homens e mulheres que viste eram casais casados que viviam a brigar e agora devem seguir eternamente em brigas. A senhora que viste na casa e que a criada não deixava se aquecer fez o mesmo com a criada, que um dia chegou molhada e com frio, e agora a criada faz o mesmo com ela, até o dia do Juízo Final. As três mulheres na cozinha foram minhas três esposas. Quando pedia à primeira que me preparasse a ceia, me oferecia pão preto e água, a segunda ainda coisa pior mas a terceira me servia o banquete que ceiaste.

A caveira então olhou lugubremente o lavrador e disse:

-E quanto a ti, foste trazido a este lugar por não querer ir ao funeral do teu filho, apesar de teres ido ao de um vizinho. Assim, sugiro que, se queres te salvar, vá onde enterraram teu filho e pede-lhe perdão e, caso o obtenhas, saiba que desde o dia que saíste de casa até chegar aqui se passaram 700 anos.

O lavrador ficou petrificado e, como despertando de um sonho, se viu caminhando pelos campos, por lugares que antes ele havia passado mas que haviam mudado de forma pelo tempo transcorrido. Ao fim chegou ao cemitério e conseguiu localizar a tumba do filho . Ali se ajoelhou e pediu perdão. O perdão a seu filho.

Por fim surgiu uma mão da tumba, que tomou a sua e ambos, pai e filho, subiram juntos ao céu.

Fonte:
Jô Andrada (seleção). Contos Populares do Mundo.

Virgílio Nascimento das Dores (Vida, Prosa e Versos)

Pintura de J.P. Martins Barata
Quisera eu ser um mero poeta, um romancista,
E descrever a beleza da vida em versos de amor,
Citar a grandeza do universo de forma realista,
Enaltecer em prosa o brilho do sol e teu calor!

Pudera eu fazer da vida uma eterna poesia,
Narrando a arte de viver em estrofe de alegria,
Fazendo de cada frase um momento de fantasia,
Mostrando a paixão, despertando a tua alegria!

Se eu pudesse transformar a vida em um soneto,
Duas quadras de amor e dois tercetos de ilusão,
Realizando um sonho de um mundo de sedução!

E se pudesse eu fazer da vida uma peça teatral,
De um povo feliz vagando em torno do universo,
Uma história lenda contada em prosa e verso!

Fonte:
Soneto enviado pelo autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo XI – A Rainha


Enquanto isso se passava no capoeirão dos Tucanos Vermelhos, lá no palácio das Abelhas a menina dizia ao ouvido da boneca:

— Já reparou, Emília, como é bem arrumado este reino? Uma verdadeira maravilha de ordem, economia e inteligência! Estive no quarto das crianças. Que gracinha! Cada qual no seu berço de cera, com pernas e braços cruzados, todas tão alvas, dormindo aquele sono gostoso... O que admiro é como as abelhas sabem aproveitar tudo de modo que a colméia funcione como se fosse um relógio. Ah, se no nosso reino também fosse assim... Aqui não há pobres nem ricos. Não se vê um aleijado, um cego, um tuberculoso. Todos trabalham, felizes e contentes.

— Isso não! — contestou a boneca. — O besouro é aleijado e pede esmolas.

— Besouro não é abelha, boba. Estou falando das abelhas.

— E quem manda aqui? Quem é o delegado? – perguntou Emília.

— Ninguém manda — e é isso o mais curioso. — Ninguém manda e todos obedecem.

— Não pode ser! — exclamou a boneca. — Quem manda há de ser a rainha. Vou perguntar. e chamou uma abelha que ia passando.

— Faça o favor, senhora abelhinha, de nos dar uma informação. Quem é, afinal de contas, que manda neste reino? A rainha?”

— Não senhora! — respondeu a abelha. — Nós não temos governo, porque não precisamos de governo. Cada qual nasce com o governo dentro de si, sabendo perfeitamente o que deve e o que não deve fazer. Nesse ponto somos perfeitas.

Narizinho ficou admirada daquelas idéias, e viu que era assim mesmo. “Que pena que também não seja assim na humanidade!”

— De manhã saímos todas — continuou a abelha — cada uma para o seu lado, a fim de recolher o mel das flores e o pólen. É disso que nos alimentamos. Depois guardamos o mel nos favos. Se há consertos a fazer, qualquer uma de nós os faz sem que seja preciso ordem. Se a menina passasse uns tempos aqui havia de gostar tanto que depois não mais se ajeitaria no reino dos homens.

— Mas a rainha? — perguntou a menina. — Estou cansada de esperar pela hora de conhecer essa grande dama. Deve ser linda, linda!...

A abelha continuou:

— Pensa que a nossa rainha é alguma dama emproada como as rainhas dos homens? Nada disso. Nem rainha é! Os homens é que lhe chamam assim. Para nós não passa de mãe. Todas somos filhinhas dela — todas, todas! E rodeamo-la de comodidades e carinhos, sem nunca lhe darmos o menor desgosto. Olhe, menina, lá no reino dos homens costumam falar muito em felicidade, mas fique certa de que felicidade só aqui. Cada uma de nós é feliz porque todas somos felizes. Lá não sei como pode alguém ser feliz sabendo que há tantos infelizes em redor de si!

Narizinho e Emília ficaram tristes. Que pena serem gente e não poderem transformar-se em abelhas para morar numa colméia daquelas, toda a vida ocupadas num trabalhão tão lindo como esse de recolher o mel e o pólen das flores...

— Mas a rainha, a rainha! — insistiu a menina. — Quero ser apresentada à rainha!

— Pois vamos lá — respondeu a abelha. — Sigam-me.

Foram. Depois de atravessarem vários compartimentos, chegaram aos cômodos reais. Lá estava Sua Majestade num trono de cera, conversando com vários zangões emproados e orgulhosos (pelo menos assim pareceu à menina).

— Bem-vinda seja! — saudou a rainha numa doce voz maternal. — Tem gostado da nossa colméia?

— Muito, Majestade! É o reino mais bem arrumadinho de quantos vi até agora. Estou positivamente encantada!

— O meu reino é assim — explicou a rainha — porque não é reino nenhum, mas uma grande família onde a boa mãe geral vive rodeada de todos os seus filhos. Já percorreu a colméia inteira?

— Já vi parte e tenho gostado de tudo, menos da cara desses senhores zangões, que me parecem emproados e orgulhosos...

— É que estão a me fazer a corte. Todos os anos escolho um dentre eles para marido, e os outros...

— Já sei! Os outros casam-se com as outras abelhas. A rainha sorriu.

— Não, menina! Os outros são condenados à morte e executados...

— Quê? — exclamou Narizinho horrorizada. — Acho que isso constitui uma crueldade, verdadeira mancha negra na organização das abelhas.

— Parece, menina. Mas é o jeito. Como não sabem trabalhar e a natureza os fez unicamente para serem esposos da rainha, as abelhas não têm a menor consideração com eles depois que a rainha elege um para esposo. Trucidam-nos e lançam os cadáveres para fora da colméia. Estas minhas filhas acham que o sentimentalismo não dá bom resultado em matéria de organização social.

Narizinho, cada vez mais admirada da inteligência da rainha, murmurou ao ouvido da boneca: “Vê, Emília? Isto é que é falar bem! Até parece aquele filósofo que vovó às vezes lê, o tal Rou... Rousseau, creio.”

Nisto um trrriin, trrriin, de esporas ressoou perto. Voltaram-se todos. Era Tom Mix que entrava. O cowboy correu os olhos pela sala. Logo que deu com a menina, dirigiu-se para ela.

— Recebi o recado, princesa, e aqui estou às vossas ordens!

— Que fim levou o marquês? — perguntou a menina com ansiedade, pois nada sabia do que se passara. — Está vivo ainda ou...

— Vivíssimo, senhora princesa! A estas horas já deve de estar atacando a segunda abóbora...

— Muito bem! — exclamou Narizinho, aliviada dum grande peso. — Quero agora, senhor Tom Mix, que me arranje uns burrinhos de carga para levar um pouco de mel e cera para vovó.

Tom Mix retirou-se para cumprir a ordem, enquanto a menina se dirigia de novo à rainha.

— Senhora rainha, poderá Vossa Majestade dar ordem à sua cozinheira para me oferecer um tostão de mel?

— Darei o mel e a cera que quiser — respondeu a rainha sorrindo; — quanto ao tostão, guarde-o para você, que aqui entre nós não tem o menor valor o dinheiro dos homens. Ali, naquela sala dos favos, é o depósito de mel. Vá lá e tire quanto quiser.

A menina agradeceu a gentileza e retirou-se para a tal sala com a boneca.

Tudo tão bem arrumado! Potinhos de cera cheios de mel em quantidade, todos iguais, com tampinhas também de cera.

— Querem mel? — perguntou logo uma abelha de avental muito limpa que tomava conta daquela repartição.

— Queremos, sim, senhora! Mel e cera.

— De que qualidade?

— Há de muitas qualidades?

— Temos aqui mel de flores de laranjeira, mel de flores de jabuticabeira lá do sítio de dona Benta e temos o mel mil-flores, colhido de todas as flores do campo.

— Dê-me de flores de jabuticabeira — resolveu logo Narizinho.

— E também um quilinho de cera bem branca, para tia Nastácia.

— Quem leva é aqui a sua criada? — perguntou a abelha indicando a boneca, enquanto fazia os pacotes.

Emília abespinhou-se toda, já vermelhinha de cólera. Mas a menina salvou a situação.

— Esta senhora não é minha criada e sim a Excelentíssima Senhora Condessa da Perna Vazia, futura Marquesa de Rabicó.

A abelhinha pediu mil desculpas, e ainda estava pedindo desculpas quando a entrada de Tom Mix à frente duma tropa de grilos arreados de cangalhas e ancorotes próprios para conduzir mel a interrompeu. Tom descarregou os ancorotes e esperou que a abelha meleira os enchesse. Depois os colocou de novo sobre as cangalhas e pediu instruções.

— Espere-me no portão do palácio com os cavalinhos prontos que também já vamos — ordenou-lhe a menina.
––––––––
Continua... A Volta

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XVIII


QUANDO ESTÁS DE LAÇAROTES

Quando estás de laçarotes
E de plissês e fichus,
De rendas e de decotes,
Quando estás de laçarotes,
Toilette de chamalotes,
Quanto esplendor, quanta luz,
Quando estás de laçarotes
E de plissês e fichus.

DA IDÉIA NOS MARES JÔNIOS

Da idéia nos mares jônios
A barca das tuas cismas
Soprada por bons favônios
Da idéia nos mares jônios,
A rapariga -- um rainúnculo,
Da bruma pelos países
Da luz e da glória em suma,
Vai livre dos maus demônios,
Batida da luz dos prismas,
Da idéia nos mares jônios
A barca das tuas cismas.

COMO UM ASSOMBRO DE ASSOMBROS

-- Como um assombro de assombros
Da serra pelos escombros
Como um assombro de assombros,
Quando vê de enxada aos ombros
O noivo -- lembra um carbúnculo,
Como um assombro de assombros
A rapariga -- um rainúnculo.

COMO FORTES GARGALHADAS

-- Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal,
Sonoramente vibradas,
Como fortes gargalhadas,
Sinto idéias baralhadas
N’um frágil descomunal
Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal.

PELOS PAÍSES DA BRUMA

Pelos países da bruma,
Longe dos astros felizes,
Da bruma pelos países,
Tu vais perdendo os matizes
Da bruma pelos países,
Pelos países da bruma.

FRÊMITOS

I

Ó pombas luminosas
Que passais neste mundo eternamente
Só a cantar os madrigais de rosas,
Atravessados de um luar veemente,
Inundados de estrelas e esplendores,
De carinhos, de bênçãos e de amores.

II

Ó virgens peregrinas,
De meigo olhar banhado de esperanças,
Que perfumais com lírios e boninas
Que atravessais constantemente a vida
Do sol eterno, da visão florida.

III

Amadas e felizes
Coroadas de flor de laranjeira,
De vós que o sonho eterno dulcifica,
Que vivem, morrem suportando abrolhos,
Oh, sim que a força eterna
Gêmeas da luz das frescas alvoradas,
Vós que trazeis nas almas as raízes
Do que é são, do que é puro -- ó vós amadas
Prendas gentis do paternal tesouro,
Iriados corações de fluidos de ouro.

IV

É para vós que eu quero
Engrinaldar de tropos e de rimas,
Num doce verso artístico e sincero,
Esgrimir com belíssimas esgrimas
A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros
Para que brilhe como uns astros puros.

V

É só a vós, apenas,
Que eu me dirijo, límpidas auroras,
Que pelas tardes plácidas, serenas,
Passais, galantes como ingênuas Floras,
Noivas, sorrindo à mocidade inteira.

VI

Porque é de vós que deve,
Partir o lume quando cai a neve,
Surgir a crença poderosa e rica.
Porque afinal, o que se chama crença,
Senão o amor e a caridade imensa?

VII

Os tristes e os pequenos
Em quem descansam brandamente os olhos,
Esses humildes, rotos Nazarenos
Senão nos grandes entes piedosos
Que dão-lhes força aos transes dolorosos?

VIII

Parte dos corpos rijos da saúde,
Perante a lei da vida que governa,
O nobre, o rei, o proletário rude;
Parte dos seres fartos de carinhos
Como de paz e de alegria os ninhos.

IX

Eu peço para todos
E peço a vós que sois as fortalezas
Da esperança, da fé -- a vós que os lodos
Da miséria, do vício, das baixezas,
Não denegriram essas consciências
Castas e brancas como as inocências.

X

Nem se esperar devia
Que eu tentasse bater a outras portas,
Quando vós sois o exemplo de Maria;
Não andais mudas, regeladas, mortas
Pela noite voraz da sepultura
E escutareis os dramas da amargura.

XI

Não julgueis que eu vos peça,
Uma alvorada feita de um sorriso;
A minh'alma garante e vos confessa
Que se crê nas mansões do Paraíso,
É porque vós reinais por sobre a terra
E o Paraíso dentro em vós se encerra.

XII

A vós, a vós compete
A glória do dever -- porque assim como
A luz do sol na lua se reflete,
Também das aflições no duro assomo,
Da pobreza refletem-se nas almas,
Vossas imagens, como auroras calmas.

XIII

Portanto, a mocidade
Vossa, terá de ser de hoje em diante,
Enquanto a esmagadora atrocidade
Da peste -- nos vorar d’instante a instante,
Quem se há-de encarregar desta manobra
Do galeão da vida que sossobra.

XIV

E para isso, ó rainhas
Da juventude -- tendes as quermesses
Que dão bons frutos assim como as vinhas;
As matinées de cânticos e preces,
Os cintilantes, pródigos bazares
Onde a luz salta extravasando em mares.

XV

Enquanto a mim, na arena
Da heroicidade humana que consola,
Oh, faz-me bem a vibração da pena,
Pelo amor, pelo afago, pela esmola,
Como um radiante e fulgido estilhaço
De sol febril no mármore do Espaço!

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Trova Ecológica 45 - Élbea Priscila de Sousa e Silva (SP)

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes XI)


AULA DE PORTUGUÊS

A linguagem
na ponta da língua
tão fácil de falar
e de entender. A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, equipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.

AOS NAMORADOS DO BRASIL

Dai-me, Senhor, assistência técnica
para eu falar aos namorados do Brasil.
Será que namorado escuta alguém?
Adianta falar a namorados?
E será que tenho coisas a dizer-lhes
que eles não saibam, eles que transformam
a sabedoria universal em divino esquecimento?
Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,
quando perdem os olhos
para toda paisagem,
perdem os ouvidos
para toda melodia
e só vêem, só escutam
melodia e paisagem de sua própria fabricação?
Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados
enquanto namorados. Antes, depois
são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.
Mas quem foi namorado sabe que outra vez
voltará á sublime invalidez
que é signo de perfeição interior.
Namorado é o ser fora do tempo,
fora de obrigação e CPF,
ISS, 1FF, PASEP, INPS.
Os códigos, desarmados, retrocedem
de sua porta, as multas envergonham-se
de alvejá-lo, as guerras, os tratados
internacionais encolhem o rabo
diante dele, em volta dele. O tempo,
afiando sem pausa a sua foice,
espera que o namorado desnamore
para sempre.
Mas nascem todo dia namorados
novos, renovados, inovantes,
e ninguém ganha ou perde esta batalha.
Pois namorar é destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenção:
cumpra sua obrigação de namorar,
sob pena de viver apenas na aparência.
De ser o seu cadáver itinerante.
De não ser. De estar, ou nem estar.
O problema, Senhor, é como aprender, como exercer
a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,
e vai além de toda universidade.
Quem aprendeu não ensina. Quem ensina não sabe.
E o namorado só aprende, sem sentir que aprendeu,
por obra e graça de sua namorada.
A mulher antes e depois da Bíblia
é pois enciclopédia natural
ciência infusa, inconsciente, infensa a testes,
fulgurante no simples manifestar-se, chegado o momento.
Há que aprender com as mulheres
as finezas finíssimas do namoro.
O homem nasce ignorante, vive ignorante, às vezes morre
três vezes ignorante de seu coração
e da maneira de usá-lo.
Só a mulher (como explicar?)
entende certas coisas
que não são para entender. São para aspirar
como essência, ou nem assim. Elas aspiram
o segredo do mundo.
Há homens que se cansam depressa de namorar,
outros que são infiéis à namorada.
Pobre de quem não aprendeu direito,
ai de quem nunca estará maduro para aprender,
triste de quem não merecia, não merece namorar.
Pois namorar não é só juntar duas atrações
no velho estilo ou no moderno estilo,
com arrepios, murmúrios, silêncios,
caminhadas, jantares, gravações,
fins de semana, o carro à toda ou a 80,
lancha, piscina, dia-dos-namorados,
foto colorida, filme adoidado,
rápido motel onde os espelhos não guardam beijo e alma de ninguém.
Namorar é o sentido absoluto
que se esconde no gesto muito simples,
não intencional, nunca previsto,
e dá ao gesto a cor do amanhecer,
para ficar durando, perdurando,
som de cristal na concha
ou no infinito.
Namorar é além do beijo e da sintaxe,
não depende de estado ou condição.
Ser duplicado, ser complexo,
que em si mesmo se mira e se desdobra,
o namorado, a namorada
não são aquelas mesmas criaturas
com que cruzamos na rua.
São outras, são estrelas remotíssimas,
fora de qualquer sistema ou situação.
A limitação terrestre, que os persegue,
tenta cobrar (inveja)
o terrível imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada
na sola dos sapatos..."
Ou senão:
"Desiste! Foge! Esquece! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem
outros namorados para a novidade
da antiga experiência.
E inauguram cada manhã
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.

ANÚNCIO DA ROSA

Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas histórias, todas catárticas, todas patéticas.

Vêde o caule,
traço indeciso.

Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

Vinde, vinde,
olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso,.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.

Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.

Carlos Drummond de Andrade (Procura-se um Pai )


O rapaz dirigia seu carro pela Avenida Brasil, rumo ao aeroporto do Galeão, onde ia receber o pai, que voltava do Chile, e eis senão quando...

O resto, imagina-se. Foi naquela noite de fevereiro em que o Rio, mais uma vez, transbordou de seu nome, e a cidade voltou a padecer os desmoronamentos, os desabrigos, as angústias e as mortes injustas de uma enchente. Na rua congestionada, ninguém avançava. Chuva matraqueando, tempo fugindo, todas aquelas pessoas em prisões de lata e vidro, temendo o pior. E o pai que deveria chegar às 20 horas. O pai chegando. O pai chegou? Ele não está familiarizado com esta bagunça em forma de cidade. É idoso. Mora em outro Estado. Como é que o pai sairá desta?

Inútil pensar nessas coisas, porém elas se pensam por si, na cabeça impotente. Nisto se abre, por milagre, um espaço suficiente para manobra, mas em sentido inverso ao do Galeão. O rapaz, menos por iniciativa própria do que por imposição dos motoristas que vinham atrás, aciona o motor, que pega também por milagre. A duras penas, sem saber como, volta para casa. Madrugada alta quando ele chega, mulher e filhos na maior aflição.

- Meu pai?

- Uê, você não trouxe seu pai? Aqui ele não apareceu.

Nem podia aparecer, claro. O Galeão fora do mapa. Que fazer? Os telefones, naturalmente, mudos. O jeito é esperar que a manhã traga serena tranquilidade, com esperança de aeroporto e salvamento. Sem dormir. Quem dorme numa dessas? O rapaz espera os escritórios se abrirem, na manhã ensopada. Corre ao escritório da companhia de aviação:

- Meu pai, o professor X, chegou?

- Bem, o avião chegou, mas sobre seu pai não podemos informar.
- Como não podem? Então sabem que o avião chegou e não sabem quem veio nele?

- É, não sabemos.

De novo, rumo ao Galeão. O trânsito ainda está difícil, porém não impossível. Pelo caminho, trágicos sinais deixados pelo temporal. No Aeroporto, a pergunta continua sem sorte:

- Não sabemos se ele desembarcou ou não.

- E a lista de passageiros?

Não está conosco.

- Está com quem, então?

- Não sabemos.

Um informante, melhor, um desinformante faz ironia:

- Numa sessão espírita, o senhor encontra seu pai.

- Eu só desejo que um dia o senhor se veja na minha situação, para ouvir isto de alguém, e sentir vontade de fazer com ele o que eu sinto vontade de fazer com o senhor.

- Desculpe, eu...

Mas o filho já demandava outro balcão, fazendo a eterna pergunta, e ninguém sabia dizer-lhe onde estava, se é que estava em algum lugar, o pai vindo do Chile. Chile? A palavra soava diferente, como se contivesse não sei que partícula perigosa. As autoridades sabiam tanto quanto a empresa, isto é, nada.

Classificado no Jornal do Brasil: Perdeu-se um pai na Ilha do Governador. Botar também no rádio. Meu pai, meu pai. Como pôde sumir assim? Aconselham-me a ir à Polícia Marítima e Aérea, na Praça Mauá. Mas daqui não saio sem vasculhar todo o Aeroporto. Ali está uma garota de chapeuzinho verde...

Felizmente para as histórias confusas de hoje, existe moça de chapeuzinho verde, fada ou coisa semelhante, que descobre o perdido e, de bonificação, ainda sorri para a gente. O rapaz expõe-lhe o problema do pai. Pela primeira vez alguém ouvia, considerava e buscava resolver o problema. Ela saiu e voltou, com outro sorriso no rostinho de relações-públicas.

- Seu pai chegou sem novidade. O nome dele está na relação de passageiros desembarcados.

- E para onde o levaram, que não aparece

- Para lugar nenhum. Deve ter dormido por aí, até o temporal passar.

- Mas não apareceu em casa.

- A essa hora já deve estar lá. Volte e há de encontrá-lo.

Não é que estava? Calmo, contando à nora e aos netos uma noite em banco de aeroporto, resignado, à espera de o toró passar.

Meu pai! Que susto! Que desinformação! Que alívio! Etc. O rapaz lembrou-se de Londres, onde perdera duas pastas num táxi, com passaporte e tudo, e na manhã seguinte a polícia o chamava para receber de volta os objetos recolhidos por um serviço policial que só não resolve o caso de quem perdeu a memória. Tivera vontade de telegrafar para Londres: Procurem meu pai na enchente aqui no Brasil. Felizmente, repito, a moça de chapeuzinho verde, sozinha, valia tanto quanto a Metropolitan Police.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 395)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Chega o inverno. Aumenta o frio,
que eu sinto dentro do peito,
e a solidão e o vazio
resistem sós no meu leito!
–DELCY CANALLES/RS–

Uma Trova Potiguar

O imortal desaparece
desta vida transitória,
mas seu verso permanece
nas letras vivas da história.
JOAMIR MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - ATRN-Natal/RN
Tema: VERTENTE - 4º Lugar

Por tantas vezes perdido
Nas vertentes do destino,
segue em busca de um sentido
o meu sonho peregrino...
–RENATA PACCOLA/SP–

...E Suas Trovas Ficaram

Felicidade consiste
às vezes num quase nada:
- O encanto de um verso triste
vibrando na madrugada...
–ENO TEODORO WANKE/PR–

Simplesmente Poesia

MOTE:
Quero que a morte retarde,
Mas, chegando, seja breve.!

GLOSA:
Não sei bem se sou covarde,
ou tenho alguma coragem,
mas minha fatal viagem
quero que a morte retarde;
ela vindo sem alarde,
juro não lhe fazer greve...
Que a terra me seja leve
e que a hora derradeira
não me venha de carreira,
mas, chegando, seja breve!
JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Estrofe do Dia

Numa meia construção
eu fui trabalhar de meia,
com meia lata de areia
a meio metro do chão,
o dono meio enrolão
e eu também meio tolo
ele me deu meio rolo
com meio metro de linha
nesta construção só tinha
meia pedra e “mei” tijolo.
–MANOEL XUDU/PB–

Soneto do Dia

Ser Tão Sertão
–RACHEL RABELO/PE–

No trajeto vislumbro tais belezas
das paisagens de luz deste sertão,
que são típicas desta região
completando meu ser de sutilezas.

O teu povo traduz as realezas
conquistadas nas artes da paixão,
na poesia que vem do coração
retratando histórias e certezas.

Lá teu sol nasce já metrificado
vem na chuva um canto ritimado
entoando os ensaios da natura;

tua noite tem brilho diferente
que envolve num manto transparente
as sementes da arte e da cultura!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Paraná em Trovas Collection - 3 - Adilson de Paula (Joaquim Távora/PR)

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras I)


À BEÇA
GUMERCINDO BESSA (1889-1913), jornalista e jurista alagoano, foi adversário de Rui Barbosa na Questão Acreana, em que o Estado do Amazonas pretendia incorporar o Território do Acre. Bessa venceu a questão em favor do Acre, apresentando argumentos irrefutáveis e numa quantidade impressionante. Posteriormente, mas não muito, Rodrigues Alves (Presidente do Brasil de 1902 a 1906) diria a um cidadão que lhe apresentava um pedido com justificativas infindáveis: "O senhor tem argumentos à Bessa". A partir daí, popularizou-se a expressão à beça com o sentido de em grande quantidade ou intensidade. Por que os dois esses viraram cê-cedilha? Ninguém sabe.

ABLUÇÃO
Do LATIM ABLUTIONE, LAVAGEM, LIMPEZA, PURIFICAÇÃO, derivado do verboabluere (daí o português abluir), formado deab(prefixo significando afastamento) + lavare (lavar), já que a ablutione afastava a sujeira, no sentido físico e moral. Em português, ablução tem os sentidos de lavagem do corpo (rico não toma banho; faz ablução) e de lavagem (purificação) das mãos pelo sacerdote na missa. E, se você conhece alguém cheirosinho, que tem a estranha compulsão de repetidamente lavar as mãos ou banhar-se, trata-se de um legítimo abluciomaníaco. São pessoas facilmente identificáveis: andam sempre com um sabonete no bolso, fazem campanhas contra o uso do guarda-chuva, afirmam que chafariz é aumentativo de bidê e chamam carro de bombeiro de Jacuzzi ambulante.

ACENTOS
FOI ARISTÓFANES DE BIZÂNCIO (257-180 A.C.), o primeiro bibliotecário da biblioteca de Alexandria, que introduziu os sinais de acentuação e de pontuação no grego, com a intenção de evitar confusão na leitura das palavras e dos textos. Os acentos eram três e foram adotados na língua portuguesa com nomes provenientes do latim. O agudo (do latim acutu, agudo, penetrante) os gregos chamavam deoksútono (estridente; daí oxítono); indicava uma elevação da voz. O grave (do latim grave, pesado, grave) era conhecido pelos gregos como barítono (de voz grave; daí barítono); indicava uma elevação da voz menor que a do acento agudo. O circunflexo (do latimcircunflexu, descrito ao redor) era uma palavra linda em grego (e aqui vai uma boa idéia para o nome do seu próximo filho): perispómeno; indicava que a voz se elevava e se abaixava na mesma sílaba, e seu desenho era o resultado da união, na extremidade superior, do acento agudo com o acento grave, pode olhar.
Quanto a outros sinais, o til (do espanhol tilde, til) é um enezinho posto acima do "a" ou do "o" para indicar sua nasalização; o trema vem do grego trêma, furo, cada um dos pontos do dado (trema é sinônimo de diérese ou ápices e já foi chamado de cimalhas).
Provavelmente algum filho perdido do líder negro Malcolm do mesmo sobrenome. O latim não usava os acentos gregos. Tinha dois sinais gráficos que indicavam a quantidade de uma vogal (átofla ou tônica): a braquia para as vogais breves (ã) e o macro para as longas (â).

ACHADOS E PERDIDOS
Achados e perdidos é uma seção num aeroporto, num prédio à qual você deve dirigir-se para recuperar algo que perdeu naquelas dependências. Inexplicável é a ordem das palavras. Primeiro se acha e depois se perde?! Enquanto no inglês a seqüência é lógica - lost and found -, no português a expressão acabou na contramão. Aqui, algum leitor pode empinar o nariz (todos os leitores têm sempre o direito, logicamente inalienável, de empinar o próprio nariz) e argumentar: ó pobre autor, não há uma ordem cronológica nas palavras; ali simplesmente estão coisas que foram achadas e coisas que foram perdidas. Ah, é? Então como é que uma coisa perdida foi parar na seção de achados e perdidos se ninguém achou? A única hipótese é alguém ter perdido algo na própria seção de achados e perdidos. E agora me diga: alguém perde alguma coisa na seção de achados e perdidos? Só se a pessoa foi lá recuperar algo perdido e lá mesmo perdeu uma segunda coisa.
A propósito de perdas, um dos fenômenos mais intrigantes da humanidade são os misteriosos desaparecimentos dos guarda-chuvas perdidos. Certamente o prezado leitor já perdeu um guarda- chuva e muito provavelmente nunca achou um guarda-chuva perdido. Eu mesmo já perdi vários guarda-chuvas e jamais achei algum. Pois esta é a questão que intriga a humanidade: para onde vão os guarda-chuvas perdidos no nosso planeta?

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 2


O ENIGMA

Ao Dr. Clovis Bevilacqua

Cansado de querer decifrar o Mistério,
Cujo limiar tocou, mas sem poder entrar,
Como os sons, como os sons longínquos d’um saltério
Que se fanassem com a Luz crepuscular...

Ei-lo de volta enfim ao seu eremitério,
– Batel que se perdeu um dia pelo mar –
Ei-lo sem o fulgor daquele sonho etéreo,
Que já teve na voz, que já teve no olhar...

Todavia, ele é um deus. Mas, inquieto de tudo,
Que é seu, que ele inventou, do seu esforço mudo,
E da sua altivez estoica de leão,

Anseia para ver no meio da peleja,
Dessa refrega, desse ardor que relampeja,
Se ainda pode iludir a cruel Decepção!...

Dezembro – 1903

SALOMÃO

Ao Adolpho Werneck

Tudo o meu coração tem do rei Salomão,
A glória, e o furor, o orgulho, e a crueldade;
Não ambiciona dez, nem cem, nem um milhão,
Mas a terra, e o mar, o céu, e a infinidade...

Em tudo se parece, em tudo é seu irmão,
O mesmo luxo até, a mesma vaidade,
O mesmo fausto ideal, como asas de pavão,
E esse requinte, enfim, essa ferocidade...

Quando soará, porém, a hora maravilhosa,
Em que do alto de uma torre cor de rosa,
Novo rei Salomão, ele, um dia, verá,

Entre poeira e sol, ao longe, a caravana,
Onde em meio d’um régio esplendor, que se ufana,
Fulge o diadema da rainha de Sabá?

Fevereiro – 1906

NO TRONCO D’UMA ÁRVORE

Ao Mario de Barros

Foi num começo esplêndido d’outono,
Quando cheguei. A mata era um gorjeio,
Era um sussurro, languidez e sono,
E um corpo nu, e um perfumado seio.

E que gesto mais lindo de abandono,
Que abraços loucos, e que doido anseio,
Quando me vi perdido aqui no meio
Desta folhagem alta como um trono!

Hoje, anda em guerra o sol como um deus Marte,
É que eu me vou, é que eu me vou embora...
E que fel tão amargo de deixar-te,

Ó Natureza, ó rústica sonora,
Virgem de pés descalços e sem arte,
Que eu como um fauno deflorei agora!

Sítio dos Pinhais, 11 de dezembro de 1909

VENCIDOS

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?… E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço...
Hão de os grandes rolar dos palácios infectos!
E glória à fome dos vermes concupiscentes!

Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!

OVÍDIO

O exílio foi cruel e aspérrimo, de fome.
Foi o tédio brutal, a miséria. Curtiste
Toda espécie de fel, o horror que não tem nome,
E ninguém acabou mais feio nem mais triste.

Homem algum jamais sentiu, como sentiste,
Ovídio, ó coração que a cólera consome,
Quão perigoso enfim é ter esse renome,
A glória, que é a ilusão mais louca que inda existe.

Mas, que importa afinal! A mocidade toda,
Quando entravas no Circo, ó Mestre, quase doida,
Recitava de cor a tua arte de amor...

E o orgulho de beijar, que nem o exílio doma,
O corpo mais gentil do lupanar de Roma,
Júlia, e basta, Nasão, filha do Imperador!...

1905

VEIO

Di-lo tanto fulgor maravilhoso, di-lo
Este clarim de sol rubro do meu anseio,
Este verde de mar, como um sono tranquilo,
Este límpido céu azul, como um gorjeio,

Alto, bem alto, assim, para que eu possa ouvi-lo,
Que ela, vencendo o mar, transpondo o serro, veio,
Todo cheirando, em flor, o perfumado seio,
Bela, sonora, ideal, como a Vênus de Milo...

Fosse vaidade ou amor, desespero ou ciúme,
Que a trouxessem aqui, como um leve perfume,
Ou fossem, ai de mim! raivas e temporais,

Veio, mas com a graça e a própria luz do dia...
Ó prazer que me faz soluçar de alegria,
E respirar, e crer nos deuses imortais!

DESDE QUE COMECEI...

Desde que comecei a te olhar, de tal modo,
Com tal encanto, com tal êxtase sorri,
Que tudo que eu amei, mas doido, como um doido,
Este Símbolo até por quem me debati,

Versos, orgulhos vãos, lá no alto, com denodo,
Pompas imperiais, (mal os teus olhos vi,)
Como flores, assim, das minhas mãos, eu todo
Enlevado, deixei cair ao pé de Ti!

Mas que esperar enfim? Mais lindo do que um sonho
Tudo que é teu reluz, magnífico, risonho,
Com palmas, com florões, com Torres de Marfim...

És um manto real, o fausto d’um Castelo,
A Ilusão, o Fulgor misterioso e belo...
És tudo, meu amor! E hás de olhar para mim?...

1904

NÃO É SÓ TE QUERER...

Não é só, não é só te querer, porém tudo
Que é teu, ó girassol girando sobre mim,
Com sorrisos onde há seduções de veludo,
Atrações de luar e vozes d’um jardim...

Sonho que me faz mal, tortura onde me iludo,
Cruel inquietação, ânsia que não tem fim,
Ó delírio de ver palácios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim!

Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,
Graça do que findou, essência e flor da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...

Quem me dera beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céu,
Desse Ródano Azul, dessa Floresta Negra!

Novembro – 1903

POSTO QUE JÁ...

Posto que já esse frescor, e esse
Brilho com que uma vez me seduziste,
Não fuljam tanto, a primavera existe,
E inda canta, e inda sonha, e inda floresce...

Tua beleza é um mármor que resiste
À dureza dos anos, e parece
Até que quanto mais ela envelhece,
Mais se enobrece, embora um pouco triste...

Nada perdeste, a palidez que tinhas,
Esse aspecto, e essa graça quase fátua,
E aquele gesto teu que é o de rainhas...

Bela do mesmo modo ainda tu és,
Ó estátua de Milo, antiga estátua,
Que tanto orgulho tens calcado aos pés!

Junho – 1904

DONZELAS

Donzelas que passais com esse gesto ameno,
E a doce palidez enfim d’uma cecém,
Em vão esse ar é grave, e esse aspecto é sereno,
Não me olheis, não me olheis, que não vos quero bem.

Sulamitas gracis e de rosto moreno,
E claras como a luz, e cheias de desdém,
Tendes perfume, sei, mas não tendes veneno,
Sois muito lindas, sois, não vos quero porém...

Lírios do campo com figura de mulher,
A minha decadência é um fruto caprichoso
Desta época sem luz que não sabe o que quer,

Não sabe nada; mas, ó candidez ideal,
Eu não posso querer senão o Monstruoso,
E o bem Maravilhoso, e o bem Fenomenal!

Janeiro – 1904

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011