sábado, 12 de outubro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Impulso canino)

ARABRUTO ACORDOU eufórico. Estava decidido. Aquele dia iria liberar seu lado cachorro. Desde que Anabela viera trabalhar em seu apartamento, na Belizário Pena, na Ilha do Governador, como secretária do lar, prestando os serviços mais variados, nas quintas e sextas-feiras, Arabruto desembestou, assim do nada, seu lado canino. Pôs na cabeça que dessa sexta-feira não passaria. Assim que a graciosa chegou, como sempre, bem vestida, arrebatada num meio-vestidinho que lhe deixava as pernas bem torneadas à mostra, o desregulado de sua cabeça degringolou de vez. O fato é que todo o conjunto da bela, em sintonia com o pecado carnal, deixava fora de órbita qualquer ser humano que não tivesse um pingo de juízo no cérebro. A musa suscitava uma visão danada para nenhum marmanjo colocar defeito. Arabruto, um desses manés que, desde que a moça aportara em sua casa, vivia engendrando uma maneira de pular em cima dela com a ferocidade devastadora que lhe consumia as entranhas. Seus instintos estavam, realmente, à flor da pele. O presente texto contará tudo como de fato aconteceu, sem tirar nem por.

— É hoje, é hoje que me esbaldo... – teria dito Arabruto pouco antes de partir para o tudo ou nada.  

Como sempre, no horário habitual, a deusa encantada chegou. Antes de se dar em serviço, interfonou da portaria. Arabruto atendeu. Sabia, antecipadamente quem se fazia do outro lado da linha. Se arreganhou em mesuras:

— Minha fofa, nem precisava avisar. Você é parte das boas coisas do meu dia a dia. Tem a chave. Bastava pegar o elevador e se pôr a caminho...

Anabela educadamente deu a resposta:

— Bom dia, seu Arabruto. Sua esposa me ligou e pediu para eu passar aqui na padaria. Falou que a última caixa de leite havia sido aberta. Aproveito e levo uns pães frescos...

— Ótimo, Anabela. Tem dinheiro?

— Quando eu for embora, no final do expediente, o senhor ou dona Isaltina me reembolsam... pode ser?

— Ok. Fechado.

Assim aconteceu. Quando a moça entrou pela única porta existente, ou seja, a da sala, Arabruto a esperava escondido deitado no chão, atrás da geladeira, camuflado de um jeito que ela não o veria, quando ingressasse na peça. Aquela se fazia a primeira vez que o seu chefe agia daquele jeito. Não deu outra. Anabela tomou, pois, em consequência, um susto grandioso. Sua reação, não poderia ser pior. Como nunca antes o desmiolado se escondera, ou brincara de se passar por um cachorro, e pior, latindo, e pegando nas pernas dela, à altura dos joelhos com as mãos à guisa de abocanhada de um totó encarniçado, o desespero da prestadora nota mil se fez pavoroso e inevitável. Anabela, em ato de se precaver, passou a mão no primeiro objeto que encontrou. Uma panela cheia de feijão em cima do fogão. Sem pensar duas vezes, meteu a sua arma de resguardo improvisada em ação e o fez com toda força de suas agilidades, atingindo diretamente os cornos de Arabruto. Em face do intempestivo, a moça deixou cair por terra o saco de pão e a sacola com a caixa de leite que trouxera consigo. 

Por conta dessa brincadeira desastrosa e não programada, e, claro, de estropiado gosto sinistro, Arabruto arranjou uns bons cortes e galos na cabeça, bem ainda nas costa e pernas. Caso passado, susto refeito, o resultado do vexame, atonou:

—  Seu Arabruto, me desculpa. Que baita susto! O que fazia metido aí nos fundilhos da geladeira?

— Esperando você...

— E para quê?

— Você sabe, não é de hoje prometi a mim mesmo lhe daria umas mordidas de brincadeirinha. Olha como você me deixou...

A moça obviamente espiou, mas nada disse a respeito do que presenciava. Aproveitando o ensejo, se defendeu:

— Eu não esperava essa atitude de sua parte. O senhor ficou maluco? Olha como lhe deixei. Meu Deus, vamos para o pronto socorro aqui da Ilha, logo ali na Estrada do Dendê. Está jorrando muito sangue. Rápido, preciso dar conta do serviço ou a sua esposa vai subir nos cascos e me botar de volta para Bonsucesso com passagem só de ida...

Entretanto, não deu tempo. Dona Isaltina, a mulher de Arabruto, por algum motivo incalculado pintou de volta, dez minutos depois, não comparecendo aquela manhã ao seu local de trabalho. Em face disso, deu com a empregada toda melosa, o vestido curto mostrando o que não devia, socorrendo seu marido, os dois acomodados no chão. 
 
Para engrossar o caldo, na justa hora do assomo na cozinha, Anabela tentava estancar o sangue do cocuruto e também dos olhos e queixo do abestalhado, com ele acomodado tipo uma criancinha desprotegida em seu colo de fundo rosa. E o desgraçado sem vergonha se aproveitando da situação, mantinha os braços envoltos em torno do pescoço da prestimosa. Esse flagra deu um baita “BO,” ou melhor, um tumultuado “BU” (Boletim Unificado), na 37ª DP da Ilha do Governador, na estrada do Galeão, uma vez que a empregada, coitada, precisou explicar, toda confusa, à sua patroa, pormenorizadamente os motivos do marido dela, ensanguentado estar literalmente atarracado em seus braços e nuca. Final da tragédia, prevaleceu a mordida de um cachorro vira-lata e seus latidos invisíveis que sequer existiram. Caso passado, início de noite desse mesmo dia, depois dos curativos no hospital, compra de remédios e mentiras sem pé nem cabeça, o casamento de Arabruto e Isaltina culminou em separação. Sumariamente despejado, o desditoso jogou no ralo um relacionamento de quase trinta anos. Sem saída, as tralhas jogadas no elevador de serviço, o doidivana se aquartelou, às pressas, na casa de uma filha casada (rebento advindo da união dele com a sua adorada Isaltina). Quanto a ela, tão logo recuperada do baque, trocou de empregada e continuou tranquilamente em seu cargo. Isaltina exercia a função de assistente de uma empresa de advogados famosos na Avenida Presidente Vargas, quase às barbas da Igreja da Candelária e realizava as suas habilidades, desde quando ainda nem pensava em se unir ao Arabruto.  

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Estante de Livros ("Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola", de Daniel Munduruku)

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma coletânea de contos do autor e educador Daniel Munduruku, que busca apresentar de maneira acessível e envolvente a cultura, as tradições e as vivências dos povos indígenas do Brasil. O livro é dividido em crônicas que misturam humor, crítica social e reflexões profundas sobre a identidade indígena e suas interações com a sociedade contemporânea.

As crônicas abordam diversas situações do cotidiano indígena, destacando a riqueza das tradições orais, a relação com a natureza e as questões enfrentadas pelos povos indígenas, como preconceito, desinformação e a luta pela preservação de suas culturas. Munduruku utiliza uma linguagem simples e direta, apropriada para o público jovem, enquanto insere elementos de crítica e reflexão sobre a realidade dos indígenas no Brasil.

Cada crônica é uma oportunidade para rir e refletir, instigando os leitores a questionar estereótipos e preconceitos. O autor também enfatiza a importância da educação e do respeito à diversidade cultural, propondo que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo um diálogo entre diferentes saberes.

Munduruku explora a identidade indígena de maneira multifacetada, abordando as diferentes etnias e suas particularidades. Ele destaca a riqueza das tradições, costumes e línguas, reafirmando a diversidade cultural dos povos indígenas. A identidade é apresentada como algo dinâmico e em constante construção, desafiando a visão homogênea que muitas vezes é imposta à cultura indígena.

O autor enfatiza a conexão profunda que os indígenas têm com a natureza, apresentando-a como um elemento central de sua cultura e espiritualidade. As crônicas ressaltam a importância da preservação ambiental e a sabedoria indígena em relação ao uso sustentável dos recursos naturais. Munduruku sugere que essa relação deve ser respeitada e aprendida por todos, promovendo uma reflexão sobre a crise ambiental contemporânea.

Uma das principais críticas do livro é à maneira como os indígenas são frequentemente representados na sociedade. Munduruku utiliza o humor para desmantelar estereótipos e preconceitos, mostrando que os indígenas são seres humanos complexos, com suas próprias histórias e desafios. O autor convida os leitores a refletirem sobre suas próprias percepções e a importância de uma abordagem mais respeitosa e informada sobre as culturas indígenas.

O livro propõe que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo a diversidade cultural como um valor essencial. Munduruku defende que o conhecimento sobre as tradições e modos de vida indígenas deve ser integrado ao currículo escolar, contribuindo para uma educação mais inclusiva e consciente. O autor acredita que a educação é uma ferramenta fundamental para a transformação social e para o combate ao preconceito.

O uso do humor nas crônicas é uma estratégia eficaz para atrair o interesse dos jovens leitores. Através do riso, o autor cria um ambiente propício para a reflexão, permitindo que temas sérios sejam abordados de maneira leve e acessível. O riso é apresentado como uma forma de resistência e resiliência dos povos indígenas, que enfrentam desafios cotidianos com uma perspectiva otimista.

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma obra que vai além da simples narrativa; é um convite à reflexão crítica sobre a cultura indígena e seu lugar na sociedade contemporânea. Daniel Munduruku, através de sua escrita envolvente e humorística, desafia os leitores a se desapegarem de preconceitos e a abraçarem a diversidade cultural. O livro é um recurso valioso para educadores e alunos, promovendo um diálogo necessário sobre a identidade indígena, a relação com a natureza, e a importância da educação na construção de uma sociedade mais justa e respeitosa. 

A obra de Munduruku é um chamado à ação, incentivando a valorização das vozes indígenas e a necessidade de um espaço de aprendizagem que respeite e celebre a diversidade cultural do Brasil.

Fonte: José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Recordando Velhas Canções (Rasguei minha fantasia)


(marcha/carnaval, 1935) 

Compositor: Lamartine Babo

Rasguei a minha fantasia
O meu palhaço
Cheio de laço e balão
Rasguei a minha fantasia
Guardei os guizos no meu coração

Fiz palhaçada
O ano inteiro sem parar
Dei gargalhada
Com tristeza no olhar
A vida é assim...
A vida é assim...
O pranto é livre
Eu vou desabafar

Tentei chorar
Ninguém no choro acreditou
Tentei amar
E o amor não chegou
A vida é assim...
A vida é assim...
Comprei uma fantasia de pierrô

A Melancolia por Trás da Fantasia
A música 'Rasguei a Minha Fantasia', de Lamartine Babo, é uma obra que explora a dualidade entre a alegria aparente e a tristeza interior. A letra começa com o eu lírico declarando que rasgou sua fantasia de palhaço, um símbolo de alegria e diversão. No entanto, ao rasgar essa fantasia, ele revela que guardou os 'guiços' (sinos) no coração, sugerindo que a tristeza e a melancolia ainda estão presentes, mesmo que escondidas.

O segundo verso aprofunda essa dualidade ao descrever como o eu lírico fez palhaçadas o ano inteiro, mas com tristeza no olhar. Essa imagem é poderosa, pois mostra como muitas vezes as pessoas escondem suas verdadeiras emoções atrás de uma máscara de felicidade. A frase 'A vida é assim!' é repetida, enfatizando a resignação do eu lírico diante das dificuldades e desilusões da vida. Ele tenta chorar, mas ninguém acredita em seu choro, e tenta amar, mas o amor não chega. Essas tentativas frustradas reforçam a sensação de isolamento e incompreensão.

Por fim, a música termina com o eu lírico comprando uma nova fantasia de pierrô, outra figura tradicionalmente associada à tristeza e à melancolia. Isso sugere que, apesar de tentar se livrar da fantasia de palhaço, ele ainda está preso em um ciclo de tristeza e desilusão. A escolha do pierrô como nova fantasia é significativa, pois essa figura é conhecida por sua expressão de tristeza e solidão, contrastando com a imagem alegre do palhaço. Assim, 'Rasguei a Minha Fantasia' é uma reflexão profunda sobre a complexidade das emoções humanas e a dificuldade de encontrar verdadeira felicidade e compreensão.
Fonte: https://www.letras.mus.br/lamartine-babo/1877876/significado.html

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 3 *

 

A. A. de Assis (Banheiroteratura)

Neste mundo de gente apressada não sobra tempo livre para nada, muito menos para ler. Mal e mal se dá um jeito de olhar por alto alguns jornais e revistas, e só porque estar informado é ainda investimento. Livro quase ninguém mais abre.

Há, porém, dois derradeiros tipos de leitores inveterados: os que não conseguem dormir sem antes folhear um livro e os que fazem do banheiro seu gabinete cultural. Os adeptos da “sonoteratura” passam às vezes um ano com o mesmo volume, lendo duas ou três páginas por noite; os praticantes da “banheiroteratura”, idem.

Reza a medicina das vovós que ler no troninho pode prejudicar a saúde – sei lá se é verdade. Poucos, porém, parecem atentos a tais preocupações. Conheço gente que não entra no banheiro sem algo escrito. No mínimo como garantia para eventual carência de papel.

Um professor me disse que leu e releu a “Ilíada” e a “Odisseia” assim. Durante quase dois anos, dez minutos por dia. Outro aproveitou a ideia e está usando o mesmo processo para ler “Os sertões”, do Euclides. Depois pretende entrar no “Grande sertão – veredas”, do Rosa. Quem sabe algum dia chegue a Virgílio, Camões, Cervantes… 

Antigamente todo mundo curtia leitura. Sem televisão, sem rádio, sem cinema, sem celular, sem barzinho, a noite era vazia. O jeito era ler.

Gordos volumes de romances, contos, poemas. Minha mãe, embora tivesse feito na escola somente as primeiras séries, jamais ficava sem uma pilha de livros ao lado da cama. Leu toda a obra de Machado de Assis, de José de Alencar, e sabia de cor os versos da maioria dos poetas românticos e parnasianos.

Veio depois o que se costuma chamar de progresso, e com ele a necessidade de as pessoas trabalharem mais horas por dia. Veio também a maior variedade de programas.

E a leitura foi ficando de lado.

O jovem moderno lê apostilas e livros didáticos, sem os quais não consegue passar de ano na escola. O adulto lê o que interessa para o exercício de sua profissão. Literatura (arte literária) não tem mais vez. A não ser naqueles dez minutos diários a ela dedicados pelos que cultivam a “sono-“ ou a “banheiroteratura”.

O professor que leu a “Ilíada” e a “Odisseia” na “casinha” explica suas razões: dá aulas de manhã, de tarde e de noite, fica muitas vezes até de madrugada corrigindo trabalhos e provas ou preparando a matéria que ensinará no dia seguinte. Os únicos momentinhos sobrantes são mesmo aqueles em que se tranca para as urgências orgânicas. O bom e sábio Homero, lá do seu nobre assento etéreo, há de generosamente compreender e perdoar a irreverência. Afinal, neste agitado tempo de gente sem tempo, ler no banheiro já é uma grande homenagem prestada a quem escreve…

(Crônica publicada no Jornal do Povo em 10.10.2024)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 130 =


Poema de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Calçadão de Minha Rua…

Alvinegra passarela
em mosaicos definida…
sempre que passo por ela,
a repassar me convida.

Calçadão de minha rua,
a imitar ondas do mar…
à luz do sol ou da lua,
aonde irás me levar?!

Meu destino, irrelevante,
me fez boa caminheira
e assim vou seguindo adiante,
até quando Deus o queira!

Calçadão de minha rua,
talvez que em dia já breve,
minha vida, que se estua,
não te pise… nem de leve!

E, então, guardarás silente,
nos mosaicos desgastados,
passos meus… passos de ausente
… marcas de passos passados..
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

É no rosto da criança
que o sorriso é mais bonito:
- tem a força da Esperança
e o tamanho do Infinito!
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Num simples toque

Tu és pétala de rosa... me maltrata
Maltratar teu coração num simples toque...
Meu amor por teu amor é sem retoque
Como um rosto que o espelho não retrata.

Tens espinhos, mas ferir-me só me mostra
Que no fundo te proteges do que eu sinto;
Meu amor é inevitável, não te minto:
Só de ver-te, aos teus pés ele se prostra...

Se tu partes, teu perfume é que fica
No silêncio, percorrendo os sonhos meus;
É difícil te perder tão sem adeus,
Quando a dor do meu amor te identifica...

Fecho os olhos quando quero te sonhar,
Entretanto, como pétala de flor,
Tu te soltas pela luz do meu olhar
E te perdes numa lágrima... de dor.
= = = = = = 

Trova Humorística Premiada em Irati/PR, 2023
AILTO RODRIGUES 
Nova Friburgo / RJ

Bebum que arma cambalacho,
sem cascalho, apronta tanto,
que bebe pinga em despacho
na conta do pai de santo!
= = = = = = 

Glosa de
FABIANO WANDERLEY
Natal/RN

MOTE
Carrego o carro da sorte,
pelos caminhos da vida

GLOSA
Por onde quer que eu aporte,
não temo adversidades,
pra evitar temeridades,
carrego o carro da sorte.

E por ser o meu suporte,
meu destino consolida,
me protege, dá guarida,
me alerta, em todos momentos,
pra que encontre os acalentos,
pelos caminhos da vida.
= = = = = = 

Trova Popular

Amar e não ter ciúmes,
isso não é querer bem;
quem não zela o bem que ama,
muito pouco amor lhe tem.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Artista

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas cousas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix* inocente:

Fia na primavera, entre as amoras,
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...
= = = = = = 
* Bômbix = bicho-da-seda
= = = = = = = = = = = = = = 

Trova de
OLYMPIO COUTINHO
Belo Horizonte/MG

Creio que quem olha a Terra
sob o azul e branco manto
não acredita que a guerra
possa tingi-la de pranto.
= = = = = = 

Soneto de
HAROLDO LYRA
Fortaleza/CE

Coisificadas

Hoje é comum mulher tirar a roupa
pra revelar nas bancas de jornal,
despudoradamente o colossal
segredo da virtude, já tão pouca.

Desnuda-se, aos apelos do mural;
na crapulosa folha a pose louca
que a revista conduz de boca em boca
e faz dessa mulher coisa venal,

que assim exposta nua à sordidez;
dependurada à espreita do freguês,
nem percebe aonde e como vai chegar.

Mas chega ao pai, os sonhos carcomidos,
por ver da filha os garbos preteridos,
e oferecida a quem puder pagar.
= = = = = = 

Trova de
JANETE DE AZEVEDO GUERRA
Bandeirantes/PR

O cansaço… a consumindo…
numa cadeira, ela escora…
Levanta o guri sorrindo:
- Eu guardei para a Senhora!…
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Ser poeta

Fazer poesia é fácil, meu amigo,
basta um por cento só de inspiração,
e a conclusão do poema está contigo,
é só tirá-la na transpiração.

Isto é assim já desde o tempo antigo,
na liberdade e até na escravidão,
colocada a semente num abrigo,
o restante é cuidar da plantação...

Vale a pena o suor que tu verteres,
por tudo o que requerem os afazeres,
seja no campo, ou com papel e pena.

Seja a poesia, ou mesmo outra arte,
e quem com enxada faz a sua parte,
perante a Pátria jamais se apequena!
= = = = = = 

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Olha! A noite é uma criança,
diz o refrão popular -
que se sacode e balança
presa às tranças do luar.
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Minha mãe, entre seus filhos,
se lembre de mim um dia,
que dos ramos que eles formam
eu sou a flor mais sombria.
= = = = = = 

Soneto de 
THALMA TAVARES
São Simão/SP

A um jovem suicida

Pela porta entreaberta o velho pai assoma.
Olha triste, em silêncio, a família e a casa,
E em soluços explode a dor que ele não doma,
o mal contido pranto, a lágrima que abrasa.

A todos, de um só golpe, o sofrimento arrasa.
Inconsolável mágoa a casa inteira toma.
Parece que a tristeza, enfim, deitou sua asa
sobre um lar onde a paz era único idioma.

Tempos depois passou a dor e o desconforto.
Mas do pai, que abraçou um dia o filho morto,
como eterno castigo a dor não se apartou.

Ficou-lhe na lembrança - e pela vida inteira -
a débil voz do filho e a queixa derradeira:
- Estou morrendo, pai!... A droga me matou!
= = = = = = 

Trova de
ELISABETE AGUIAR
Mangualde/Portugal

Há correntes que escravizam,
– essas é urgente quebrar!
Mas naquelas que humanizam
falta um elo restaurar!
= = = = = = 

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Retrato de Mulher

Pobre mãe-menina, marginalizada!
Sozinha, deu à luz debaixo da ponte
Um ser de paternidade ignorada...
Agora, mãe e filho sem horizonte!

Malvista, miserável e mãe solteira;
Retrato de mulher achado no lixo,
Pelo jeito, vai passar a vida inteira
Enfrentando do destino o seu capricho.

É "Socialite" às avessas no jornal...
Com um filho recém-nascido na vida.
Às vezes sai no noticiário geral:
Retrato de mulher pedindo comida!

Ah, se a cronista da página social
Não se preocupasse só com as madames!...
E mostrasse à sociedade por igual,
Outro retrato de mulher, das infames!...

Somente assim creio que seria possível
À camada rica se dar uma pista
Do tanto que ela se apresenta insensível,
Toda voltada para si, tão egoísta!

Retrato de mulher, foco de beleza!
Impróprio para propagar mendicância.
Não podemos contrariar a Natureza,
Retrato de mulher é só elegância! 
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP


Por xeque-mate, em segundos,
perdeu tudo... e o que ele fez?
Pagou com cheque sem fundos
e foi parar... no “xadrez”!
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Indelével retrato

Quando menino, sensações de vulto
não tive, sensações próprias da idade.
Sempre vivi desconhecido e oculto,
longe do vão bulício da cidade.

Fiz da vida campestre um quase culto,
da natureza, quase divindade.
E trago ainda (que felicidade!)
um coração silvestre em mim sepulto.

Um dia precisei deixar meu ninho
trocar o seu calor e o seu carinho
por outras contingências do viver.

Mas nem belas visões de outra paragem
puderam apagar a sua imagem
gravada tão profunda no meu ser.
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Belo sonho o que aproxima 
estrelas e pirilampos... 
– Elas são eles lá em cima; 
eles são elas nos campos! 
= = = = = = 

Poema de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

Desesperança

A boca vazia
os olhos grandes,
vazios…
O prato vazio,
panelas brilhantes,
vazias…
Menino vazio,
sem graça, sem jeito,
sem nada no mundo,
sem sonho, sem ânsias,
sem nada a esperar,
espera cansado
a vida seguir.
= = = = = = 

Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Sorrateira, foi chegando 
a danada da saudade;
meu coração machucando,
sem dó e sem piedade!
= = = = = = 

Hino de 
Sambaíba/MA

Sambaíba acordaste para a vida.
Do Maranhão a cidade mais querida.
Tua gente alegre, hospitaleira.
Paisagem atraente e brasileira.

És banhada pelo grande Rio Balsas.
Cristalino, deslizando noite e dia.
Suas águas lembram majestosa fita,
Que lhe serve na mais doce harmonia.

Nós te saudamos de coração.
E mais um aperto de mão.

Verdes campos acolhendo os rebanhos.
Teu lindo céu matizado de azul.
O teu povo enobrece os estranhos.
Premiando tanto o Norte como o Sul.

As montanhas dão um grande colorido,
Refletindo um postal, uma pintura.
O que chega sente-se um escolhido.
Dando graças pela feliz aventura.

Nós te saudamos de coração.
E mais um aperto de mão.

Uma prece ao nosso Criador.
Arquiteto desta obra incomparável.
Todos nós lhe queremos com ardor.
Nos deu vida e Pai adorável.

Tua bênção é a nossa esperança.
A bandeira que nos mantém de pé.
Dai-nos paz, com saúde e bonança.
Te pedimos com toda nossa fé.

Nós te saudamos de coração.
E mais um aperto de mão.
= = = = = = 

Trova Humorística de 
MILTON SEBASTIÃO SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

De tão magro ele até poupa:
quando adoece, o infeliz
tira uma foto sem roupa
e usa como Raio X.
= = = = = = 

Poema de 
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964

Lua Adversa 

Tenho fases, como a lua 
Fases de andar escondida, 
fases de vir para a rua... 
Perdição da minha vida !
 Perdição da vida minha !
 Tenho fases de ser tua, 
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
 no secreto calendário
 que um astrólogo arbitrário
 inventou para meu uso. 

E roda a melancolia 
seu interminável fuso ! 

Não me encontro com ninguém 
(tenho fases, como a lua ...) 
No dia de alguém ser meu 
não é dia de eu ser sua ... 
E, quando chega esse dia, 
o outro desapareceu ...
= = = = = = 

Trova de
ROZA DE OLIVEIRA
Curitiba/PR

Pra minha Fé não existe
nem o menor subterfúgio.
Estando eu alegre ou triste
tenho Deus por meu refúgio.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O horóscopo

Dissera um charlatão
Ao pai duma criança que nascia,
Que esta cruenta morte sofreria
Nas garras dum leão.

Cresce, temos rapaz,
E o pai lhe diz: «Não sairás dos lares,
Para uma vez leões não encontrares».
Se bem diz, melhor faz.

Tinha o pai, num painel,
Pintado um leão. Um dia o rapaz brada:
«Por causa desta fera aqui pintada,
Sofro eu sorte cruel!»

Forma um bom murro e — zás!
Investe com o painel, de raiva cego;
Porém a mão lhe rasga oculto prego
Que estava por detrás!
***

Ésquilo ouviu rosnar
Que havia de cair-lhe em cima a casa;
Crê no que ouve, o pateta, vê-se em brasa,
E vai dormir ao ar.

Mas — oh, caso fatal! —
Passa uma águia nas garras empolgando
Enorme tartaruga; e esta largando
Na cabeça do tal,
Um bolo pronto a faz!
***

Um adivinho em méritos realça?
Não, respondo. Sua arte é mais que falsa,
Apesar do que atrás
Acabo de contar.
Crer nessa arte é no juízo haver atraso:
Aqui só vejo acaso — e pode o acaso
Às vezes acertar.