quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Vereda da Poesia = 156 =


Trova de
ANGÉLICA VILLELA SANTOS
Guaratinguetá/SP, 1935 – 2017, Taubaté/SP

A mocinha reclamou
mas o ceguinho, no baile,
passando a mão, explicou:
- A minha dança é em braile!!!
= = = = = =

Folclore Português em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

A Lenda da Moura Encantada

Na fonte serena, um canto a ecoar,
a Moura Encantada, beleza a brilhar,
com cabelos de seda e olhar de luar,
enfeitiça os corações que a vêm admirar.

Prisioneira do tempo, em magia a dançar,
nos braços da noite está sua alma a vagar,
quem a encontra, um destino a selar,
entre amor e encanto, um eterno par.

Mas há um segredo que a faz suspirar,
um amor que a espera, um sonho a flutuar,
na luz da manhã ela anseia por ser

Moura, a lenda, que não quer perecer,
e em cada sussurro, um lamento a ficar,
na bruma do passado, sua dor a guardar.
= = = = = = 

Trova de
PAULO WALBACH PRESTES
Curitiba/PR, 1945 – 2021

Que saudade dos confetes,
serpentinas e pierrôs,
colombinas, marionetes,
das vovós e dos vovôs.
= = = = = = 

Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Sinais invertidos

Olhando a terra acima dos sentidos
um ar tristonho abate-me na entranha:
sermões abaixo aos ares da montanha
e súplicas em motes de alaridos.

Como esperar que rogação tamanha
venha a elevar as almas dos “ungidos”
pelos sinais, nas mentes, invertidos,
se trechos do alfarrábio mal arranha?

Verter em lágrimas na espera, inerte,
(açoite de cilício não reverte)
na frialdade do silêncio atroz...

é malograr-se às vestes endeusadas;
é recorrer às luzes apagadas
se Deus reside aqui... dentro de nós!!
= = = = = = 

Trova de
ROBERTO TCHEPELENTYKY
São Paulo/SP

A vida é “jangada ao vento”...
  Iço a vela, aperto o laço:
  No mar do meu pensamento,
  o vento... sou eu que faço!
= = = = = = 

Poema de
DANTE MILANO
Rio de Janeiro/RJ (1899 -1991) Petrópolis/RJ

O beco
 
No beco escuro e noturno
Vem um gato rente ao muro.
Os passos são de gatuno.
Os olhos são de assassino.

Esgueirando-se, soturno,
Ele me fita no escuro.
Seus passos são de gatuno.
Seus olhos são de assassino.

Afasta-se, taciturno.
Espanta-o meu vulto obscuro.
Meus passos são de gatuno.
Meus olhos são de assassino.
= = = = = = 

Quadra Popular

Jurei não amar ninguém,
mas eu confesso a fraqueza,
não é tanto minha a culpa
como é da natureza.
= = = = = = 

Poema de
MANUEL BANDEIRA
Recife/PE (1886 – 1968) Rio de Janeiro/RJ

O Anel de Vidro

Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, -
Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou

Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

À noite, ó rua, constatas,
em teus silêncios tristonhos,
que, enquanto um cão vira latas,
eu vou virando os meus sonhos!
= = = = = = 

Poema de
DINAIR LEITE
Paranavaí/PR

Acordei

Hoje acordei...
Então vi há quanto tempo dormia
e não via a vida fluir...

Os momentos perdidos de viver
outro amor, outra vida, amores...

Eu me achava condensada
em paixão. Respirando você
que não olha e não vê esse amor
que envolve meu ser
me fazendo sofrer em anseios
de ter o meu corpo em seus braços
e sua boca, a minha, a beijar.

Acordei e deixei você ir.
Esvaziei o meu ser de você.
O meu ventre e o meu coração
nunca mais sofreram a carência
ilusão do sonhar...preencher
um vazio com ar.
= = = = = = = = = 

Trova de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG (1902– 1987) Rio de Janeiro/RJ

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada:
amor é o sumo da vida.
= = = = = = 

Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Agradecimento

Eu agradeço a Deus tanta ventura,
que orna a minha vida, o meu caminho!
Não deixar que em meus pés, um só espinho,
os façam fraquejar pela tortura!

Enfeitar os meus dias, de ternura,
rechear minhas horas de carinho!
Nunca deixar, que ficasse sozinho,
em triste solidão, torpe amargura!

Obrigado meu Deus, pelos amigos,
que me abraçam, me livram dos perigos,
e que por Ti, estão ao meu dispor!

A todos que me dão tanta amizade,
eu desejo a maior felicidade,
muitas graças de Deus, e muito amor!
= = = = = = 

Trova de
PROF. GARCIA
Caicó/RN

Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!
= = = = = = 

Soneto de 
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Policromia

Nesta profusão oculta de sentires
que aconchego e acalento com ardor,
não estranhes quando acaso descobrires,
misturada a tanta cor, a tua cor.

Se entre as ânsias de minha alma um dia ouvires
um som que possa a um lamento enfim se opor,
é tua a voz! E feliz quando me vires,
da alegria que eu sentir serás credor.

No cinzento do meu peito, mil nuanças,
cor de rosa e de esperança, tentas pôr.
Com teus olhos, as tormentas são bonanças;

por tua mão, o agudo espinho é fina flor,
A mistura policroma já não cansa
quando, em meio a tanta cor, há a tua cor…
= = = = = = 

Trova de
DALMIR PENA
Volta Redonda/RJ

Já fui comilão outrora!
Hoje, ao lembrar-me, acho graça:
vontade ainda tenho agora,
mas, como vem, logo passa!!!
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Loucura e Lucidez 

Nuances do tempo 
podem ser carícias, 
matizes do instável 

medo das lamúrias do vento,
ou apenas respostas da vida,
onde a lucidez é insuportável.
Tons do mesmo lado daquela 
moeda, o vil desdém imutável. 
= = = = = = 

Trova de 
RUI CARDOSO NUNES
Porto Alegre/RS

Por berço tive a montanha!
Sou camponês, trovador!
No universo da campanha,
meu estro virou condor!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Sinal de amor

Você é o sinal do amor de Deus por mim!
A pessoa mais doce já nascida!
Sua fragrância excede a do jasmim
e eu amo o seu sorrir, minha querida!

Você é a luz do sol em meu jardim;
a minha paz sonhada e apetecida,
você é a esposa amiga e é tudo, enfim,
que eu desejava ter em minha vida!

Se você sai de perto eu entristeço,
se não me dá notícia, eu desespero,
e até quando se cala, eu endoideço...

Mas quando você volta, eu a venero,
e se me diz “amor”, eu tudo esqueço,
e só me lembro o tanto que eu a quero!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Bem cedinho o galo canta, 
molhado ainda de orvalho. 
A roça, ouvindo-o, levanta, 
e um hino entoa ao trabalho!
= = = = = = 

Poema de
SYLVIA PLATH
Boston/EUA (1932 – 1963) Londres/Grã-Bretanha

Espelho

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.
(Tradução de Vinicius Dantas)
= = = = = = 

Triverso de
CARLOS SEABRA
São Paulo/SP

chuva lá fora –
os pássaros, molhados,
foram embora
= = = = = = 

Poema de
MIFORI
(Maria Inez Fontes Rico)
São José dos Campos/SP

A luz dos olhos seus

Que todas as manhãs, 
por mais frio que se faça, 
nos sejam aquecidas 
por nosso respeito e amor!

Sem deixar lembranças vãs
que toda neblina se desfaça, 
nas carícias despendidas, 
com muito, muito ardor!

Que a confiança que nos enlaça, 
na fé e esperança, mantidas, 
fortaleça nossa auto-estima, 
abençoada pelo nosso amor!

Que cada um de nós veja bem, 
por si próprio, suas atitudes,
mas, saiba enxergar também
com magnitude, 
a luz dos olhos seus...
= = = = = = 

Trova de
NILTON MANOEL TEIXEIRA
Ribeirão Preto/SP, 1945 – 2024

Meu filho só dá trabalho…
diz, na escola, o pai irado!
e o mestre olhando o pirralho…
por isto estou empregado!
= = = = = = 

Soneto de 
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ (1865 – 1918)

Ao Coração que Sofre

Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.

Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;

E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Melhor sorrir na pobreza
que ser rico na apatia,
pois fartura sobre a mesa
não enche a vida vazia!
= = = = = = 

Hino de 
MONTES CLAROS/MG

Nas manhãs gloriosas das Bandeiras,
Nascestes protegida pela Cruz,
Plantada pela fibra de Figueira,
Ao pé dos montes, refletindo luz.
No sertão ressequido das Gerais,
O pranto inaugural dos filhos teus
Rasgou teu solo, para nunca mais
Perderes lutas nem perderes Deus.

Salve, Montes Claros! És nortestrela!
Crescendo arrojada e altaneira,
História vais fluindo de bravuras
Com o orgulho de seres brasileira.

Tu és uma cidade consagrada
Pela vez dos teus bardos e cantores,
Que centelhas de ouro, na alvorada,
Semearam, exaltando os teus primores.
Os dois irmãos alertas, lucilantes
Louvam o teu progresso, tua grandeza,
E em sintonia, nos teus horizontes,
A Liberdade brilha em realeza.

Salve, Montes Claros! És nortestrela!
Crescendo arrojada e altaneira,
Histórias vais fluindo de bravuras
Com o orgulho de seres brasileira.
= = = = = = 

Trova de
LAVÍNIO GOMES DE ALMEIDA
Barra do Piraí/RJ, ?? – 2009

Na inquietação que se aguça,
carrego na alma dorida,
a grande montanha russa
do sobe-e-desce da vida!
= = = = = = 

Poema de
GILSON FAUSTINO MAIA
Petrópolis/RJ

Final de serenata 

Guarda, meu coração, o teu segredo. 
Para que revelá-lo se termina 
a canção que sufoca, que alucina, 
que me lançou, pra sempre, no degredo? 

Ao novo seresteiro, oculte o enredo. 
Não mostre essa verdade cristalina: 
é a lei da paixão quem determina 
o qual será feliz, contado aos dedos. 

Eu cansei de cantar pra minha amada. 
Eu cansei de penar na caminhada… 
A canção foi cruel, incrível, ingrata. 

A riqueza do mundo é um problema, 
a vida, uma canção, o amor o tema, 
o tempo em que vivemos, serenata.
= = = = = =

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Se a porta é larga, desvio,
sem luta não tem vitória.
Porta estreita é o desafio
de quem vence e faz história!
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
CAIXINHA, OBRIGADO 
(samba, 1960) 
Juca Chaves

A mediocridade é um fato consumado
na sociedade onde o ar é depravado
marido rico, burguesão despreocupado
que foi casado com mulher burra mas bela
o filho dela é político ou tarado
Caixinha, obrigado!

A situação do brasil vai muito mal;
Qualquer ladrão é patente nacional;
Um policial, quase sempre, é uma ilusão
E a condução é artigo racionado.
Porém, ladrão... isso tem pra todo o lado!
Caixinha, obrigado!

O rock'n'roll, nesta terra é uma doença,
e o futebol, é o ganha pão da imprensa
vença ou não vença, o Brasil é o maioral
e até da bola, nós já temos general
que hoje é nome de estádio municipal
Caixinha, nacional!

a medicina está desacreditada
penicilina, já é coisa superada
tem curandeiro nesta terra pra chuchu
Rio de Janeiro tá pior que Tambaú
e de outro lado, onde está o delegado
Caixinha, obrigado!

Dramalhão, reunião de deputado
é palavrão que só sai pra todo lado
Se um deputado abre a boca, é um
atentado
E a mãe de alguém é quem sofre toda vez
No fim do mês... cento e vinte de ordenado.
Caixinha, obrigado!
= = = = = = = = = = = = = 

Mensagem na Garrafa = 137 =


ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

CUMPLICIDADE

Pequeno preito de gratidão à lua.

Tu me seduzias com tua inebriante claridade.

E eu, cativo, não resistia aos teus insistentes apelos.

Sob o manto da noite, me guiaste, soberana, quando percorri caminhos improváveis e situações inusitadas.

Me ajudaste em paixões, exibindo tuas companheiras estrelas, para que eu as contasse quando estivesse nos braços de alguém.

Sou-lhe grato também pelas inúmeras vezes, que para conter meus excessos, tu me indicavas estar indo embora, e que a intensa luz do dia não mais encobriria minha conduta.

Tu, recatada, por vezes se escondia atrás das nuvens para não presenciar minha desvairada boemia. Fostes testemunha e cúmplice de minhas aventuras em amores proibidos.

Ocultaste-me em tuas sombras quando eu corria perigo em minhas descuidadas andanças.

Certa vez, talvez para exibir-me perante os companheiros de copo, ousei afirmar que tu não passavas de matéria que se deslocara da Terra após o choque com o planeta Theia.

Ao sair, olhei para o céu, e tu, tristonha, estavas minguante. Voltei então à mesa e desdisse tudo o que antes afirmara de ti. Ao sair novamente, tu estavas crescente a sorrir para mim. 

Foi o sinal para nossa eterna cumplicidade.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Nilto Maciel (O desafio de Facundo)


Vicente ria, porque me via apreensivo, toda vez que o bebedor de coca-cola se aproximava de mim.

“Você está com medo desse doido?”

Eu realmente demonstrava inquietação, bastasse ver o maluco da rua.

Meu interesse em conversar com loucos é puramente literário. Prefiro observá-los de longe, descobrir suas manias a luneta.

Com o bebedor de coca-cola afoitei-me.

“Por que você bebe tanto isso?”

 Sua resposta me deixou tonto, perplexo e, ao mesmo tempo, penalizado dele: “É para me lavar por dentro. Ando sujo, como todo mundo. Não bebo cachaça, com medo de perder o juízo.”

Antes de se embriagar e se tornar triste, revoltado, pessimista, Vicente passava por duas fases: na primeira, parecia alegre, contava seu mais recente passado, o dia findo, a semana, no máximo; na segunda, se achegava ao mais presente do presente e até arriscava prever os próximos minutos.

“Eu quero é cegar da gota-serena se o Helvécio não estiver falando mal de mim. Quer apostar?”

Numa dessas olhadas para o seu redor, quis saber minha opinião a respeito do dono do bar.

“Um tipo quase pitoresco, como aquele doido que bebe coca-cola como se bebesse cerveja.”

Gostou do pitoresco e do resto da frase, mas não podia esperar uma resposta como aquela. Porque existem tipos interessantes em demasia. Eu mesmo podia ser tido como um deles. E se perdeu num labirinto de considerações e descrições, esquecido já do próprio Helvécio.

Não sei se antes ou depois disso, Helvécio denegria alguns de nossos conhecidos, entre eles Vicente.

“Um beberrão ignorante. Fala mal de todo mundo e não repara nem as dívidas que faz.”

Não me pediu opinião. Apenas parou de esbravejar e se pôs a olhar para mim, como se me inquirisse: É ou não é?

“Eu não compro fiado, mas também falo mal do governo.”

Achei por bem não me referir diretamente a Vicente, nem tocar em bebida, apesar de as palavras engolidas terem sido: “Beberrão, não, porque, se for assim, seus filhos são beberrões também.” “Não insulte meus filhos, veja como se expressa.”

“É, mas você não fala à toa, sabe distinguir o certo do errado.”

Aquela minha audaz indagação feita ao doido, arranjei-a e aprimorei-a durante mais de um mês. A primeira versão dizia: você gosta dessa porcaria? Talvez ele não a entendesse e até ficasse calado. Podia imaginar que eu me referisse à sua vida. Ou mesmo à cidade, ao bairro, à rua onde morávamos. Modifiquei-a, a seguir, para: você gosta de beber essa porcaria? Se ele bebia, era porque gostava de coca-cola ou porque gostava de bebê-la. Poderia me responder simplesmente: Gosto. E eu não saberia de que gostava.

Fui reconstruindo a pergunta: por que você gosta de beber essa porcaria? por que você gosta tanto de beber essa porcaria? por que você bebe tanto essa porcaria?

O não mencionar o nome da bebida grudou-se-me feito nódoa na camisa. Bastava ver o pobre doido para me sentir alvo de sua loucura. Poderia me rachar a cabeça com uma garrafada. E Vicente fez a pergunta como se me acusasse de um crime. Não olhava para meus olhos ou minha boca, mas fitava meu peito, como se ali estivesse o segredo, a solução. E ria sempre, como se suas palavras ecoassem: medo medo medo.

Ri também e me controlei. Organizei a resposta: a loucura só dá medo ao sistema.

Tencionava discorrer sobre a relação entre poder e anarquia, ordem legal e desordem social. Um discurso violento e radical. E calaria a boca dele. Nenhuma ordem temia o discurso anárquico de qualquer bebedor de cerveja. O álcool dos rebeldes não incomoda a lucidez dos poderosos.

“Andei mexendo com ele.”

"Tirou coca-cola da boca do coitado?”

“Não sou perverso. Seria o mesmo que tomar mamadeira da boquinha de neném.”

Muito mais tarde, compreendi a vulgaridade dessas duas frases e imaginei um diálogo inteligente, a partir da segunda indagação de Vicente, se houvesse respondido assim: o tratamento dado por um homem rico a um pobre, estudado a um rude, de alta estatura a um de baixa, etc., é comumente maléfico, por mais humildes que sejam os primeiros. Há sempre perversidade nessa relação, por mais humanistas que sejam o burguês, o diplomado, o gigante. Porque analisar, estudar, perquirir, tentar conhecer outrem é, em essência, um ato bárbaro, egoísta, desumano.

“Então, o que você fez?”

Se outro o rumo dado por mim à conversa, qual a importância da especificidade de minha ação? O egoísmo existe na mãe ou na babá que corta ao meio o prazer bucal da criança; no burguês que dá uma esmola; no escritor que se compadece da personagem, sua ou de outro, que nunca bebeu champanha; no homem que alisa os cabelos do menino.

Esperei eras pelo momento de ver no bar do Helvécio o Vicente e o doido. Minha intenção: embriagá-los e fazê-los abraçarem-se, ao som de um baião. O cenário: fotos do Padre Cícero, da Seleção Brasileira e aquele imenso cartaz da Coca-Cola. Não seria apenas a encenação. Eu fotografaria o instante para capa de um romance: O Reino do Verbo.

Ao vê-los, não paguei nenhuma bebida. Desafiei-os para uma partida de bilhar. Eu contra os três.

Fontes: Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 01

 

José Feldman (Um dia na academia)


Era uma manhã nublada quando Epitáfio e Etelvina decidiram que era hora de se inscreverem na academia. Depois de uma longa conversa sobre a importância de manter a saúde, ambos concordaram que os exercícios eram uma boa maneira de combater o sedentarismo.

Ao chegarem à academia, Epitáfio, com seu jeito cômico e exagerado, olhou ao redor com um misto de admiração e pânico. 

"Olha, Etelvina! Esse lugar parece um campo de batalha! Olha aquelas máquinas, parecem armas de tortura!"

Etelvina, que sempre foi a mais prática dos dois, respondeu: "Epitáfio, é só uma esteira! Você não precisa entrar em pânico. Vamos apenas caminhar um pouco."

"Eu não sei... Caminhar em uma esteira que se move? Isso não parece um pouco perigoso?" 

Epitáfio fez uma expressão de dúvida, como se estivesse considerando entrar em um filme de ação.

"Se você não conseguir andar em uma esteira, amor, estamos perdidos", disse Etelvina, tentando conter o riso. "Vamos lá, é só subir e começar a andar!"

Depois de alguma hesitação, Epitáfio finalmente subiu na esteira. Assim que começou a andar, ele logo se distraiu olhando para a televisão na frente. 

"Olha, um programa de culinária! Isso parece muito mais interessante do que andar."

"Foca no exercício, Epitáfio!" Etelvina gritou do lado, já na sua própria esteira. “Se você não se concentrar, vai acabar caindo!”

"Eu não vou cair, calma! Eu sou um atleta nato!"

Ele disse isso enquanto tentava aumentar a velocidade da esteira, mas logo percebeu que havia exagerado.

"Atleta nato? Desde quando? Desde a última vez que você correu para pegar um pedaço de bolo na festa do aniversário da sua mãe?" Etelvina resmungou.

Epitáfio, agora lutando para se manter em pé, respondeu: "Era um bolo de chocolate, Etelvina! É uma questão de sobrevivência!"

Finalmente, ele conseguiu desacelerar a esteira e se equilibrar. 

"Pronto! O que fazemos agora?"

"Agora vamos para a bicicleta!" Etelvina sugeriu, já se dirigindo para a máquina.

"Uma bicicleta? Ah, isso é mais fácil. Eu sei andar de bicicleta!" 

Epitáfio disse, já se sentando na bike. Mas, assim que começou a pedalar, percebeu que a resistência estava mais alta do que esperava. 

"Ei! Isso não é uma bicicleta, isso é uma tortura! Eu vou acabar com as minhas pernas!"

"Você também não precisa exagerar, Epitáfio! É só ajustar a resistência!" Etelvina estava rindo cada vez mais da situação.

Epitáfio, tentando ajustar a máquina, acabou apertando todos os botões ao mesmo tempo. 

"Olha, Etelvina, agora estou em uma corrida contra o tempo! Estou em uma competição para ver quem se cansa primeiro!"

"Você e suas competições! O que você vai ganhar? Um troféu de 'Maior Drama na Academia'?" Etelvina respondeu, rindo.

Depois de um tempo, Epitáfio, já cansado, decidiu que era hora de experimentar algo diferente. 

"Vamos fazer um pouco de musculação? Eu sempre quis parecer com aqueles caras de filme de ação!"

"Você? Parecer com um desses? Você precisa de muito mais do que um dia na academia!"

"Desafio aceito!" Epitáfio disse, enquanto se dirigia para os pesos. Pegou um haltere que parecia maior do que ele. "Olha, Etelvina, sou o Hulk!"

"Mais parece um Hulk de pelúcia!" Etelvina não conseguiu conter o riso. "Cuidado para não quebrar o pé!"

Ele levantou o peso, mas ao tentar impressionar, acabou fazendo uma careta tão engraçada que chamou a atenção de outros frequentadores da academia.

"Se você fizer isso, vai acabar viralizando na internet como o 'Homem que quis ser Hulk e não conseguiu ser nem Hulkzinho bebê'!" Etelvina continuou a zombar, enquanto ele lutava para colocar o peso de volta.

"Você está torcendo contra mim, não está?" Epitáfio perguntou, tentando recuperar a compostura.

"Claro que não! Estou apenas te dando um empurrãozinho para você não se levar tão a sério!", respondeu Etelvina, rindo.

Finalmente, após uma série de exercícios que mais pareciam uma comédia, Epitáfio e Etelvina decidiram que era hora de encerrar o "treinamento". Eles se sentaram em um banco, ofegantes.

"Então, o que você achou da nossa experiência na academia?" Epitáfio perguntou.

"Eu acho que precisamos de mais prática... e talvez de um 'personal trainer' só para você!" Etelvina respondeu, piscando.

"Ou talvez só precisemos de um bom café e um pedaço de bolo para comemorar nosso 'sucesso'!" 

Epitáfio sugeriu, fazendo uma expressão de quem já estava pensando no próximo lanche.

"Essa eu topo! Afinal, a vida é curta demais para não ter um pedaço de bolo depois de um dia de exercícios!" Etelvina concordou, levantando-se.

E assim, enquanto deixavam a academia, Epitáfio e Etelvina continuaram com suas brincadeiras e discussões, prontos para enfrentar a próxima aventura juntos, seja na academia ou na cozinha, onde o verdadeiro 'treinamento' aconteceria.

Fontes: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing