quinta-feira, 20 de março de 2025

Vereda da Poesia = 228


Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

O CONJUNTO DA OBRA

Não me verão sacrificar meu texto
somente em prol da rima ou da estrutura.
Nos vincos da melhor literatura 
versejo, sem alarde, sem pretexto.

Há quem compõe de forma audaz, segura,
buscando a perfeição de um anapesto
e ao se perder, contudo, no contexto
destina o seu poema à sepultura.

Há que se ater nas regras alfabéticas
e, salvo engano, as criações poéticas
exigem mais que forma e conteúdo…

Também, não se esquecer que a poesia
há de fluir com pompa e galhardia…
Formalidade é bom, mas não é tudo!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Ao ver-te fico perdido,
mulher – onça desalmada,
sinto dor, fico ferido
vai-se ver – não tenho nada.
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

A saudade
encontra sempre velhos trilhos
e deixa vestígios onde o amor
semeou  a paz das margaridas
a indicar o caminho.
O tempo, impávido matreiro
assistiu ao extinguir da chama
sem manifestar qualquer emoção;
para desespero da palavra 
tremendo na ausência do afago,
de um abraço sentenciado.
Que importa agora
tentar atrasar as horas?
Se os lençóis são testemunho
de que nada devolve a forma original
ao côncavo deixado na partida.
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

E OS TEUS OLHOS FICARAM MAIS DISTANTES
(Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 97)

E os teus olhos ficaram mais distantes
Quando na luz da tarde se perdeu
O aceno da partida que doeu
Como nunca me tinha ferido antes.

Fiquei parado, ali, por uns instantes
Naufragando no mar que, então, desceu
Do meu olhar que a noite ao mundo deu
Habitada por gritos suplicantes.

Tu partiste e eu fiquei de mim ausente
O tempo corre e apenas sei que sinto
Que na terra já nada mais me importa,

Errante vou seguindo inconsciente
Perdido nos sopés de um labirinto
Como se em mim já fosse a vida morta.
= = = = = = = = = 

Poema de
ANDRÉ GRANJA CARNEIRO
Atibaia/SP, 1922 – 2014 , Curitiba/PR

EU ESCAPO

Não tenho gravata,
o último bigode raspei em primeiro de abril
de sessenta e quatro.
Darcy menina, inventora da mini-saia
ficou com as crianças, eu fugi
na subversiva perua Volkswagem.
Tenho pudor de ser poeta,
prefiro escritor, cineasta, hipnotizador emérito,
palavras nem explicam
a economia doméstica,
amordaçam lágrimas ditas femininas,
derramadas pelo sexo másculo.
Há sempre um atrás nos versos
a libertar rostos, mostrar pegadas viscosas
em direção ao seu quarto.
Minhas balas nunca explodiram,
a navalhada espanhola é barbeador elétrico.
Tento ser eclético, abarcar o continente.
Fui Navajo no Arizona,
joguei poquer em cartas marcadas,
dou nó em pespontos,
lavo louça sem nenhum interesse.
De onde surgem estas formigas minúsculas?
Deus displicente, esmago-as sem pena,
almas sem micróbios e baratas são desprezíveis.
Do satélite, só avisto a muralha da China
e a floresta amazônica em chamas.
Meu carro tem pontos de ferrugem,
o aço se transforma em marrons abstratos,
alguns botões da camisa fecham ao contrário,
marca feminina do contraste.
Sigo cego o rumo coletivo deste ônibus.
Passam cenhos cerrados,
proíbem beijar de língua nas bibliotecas,
trocar roupas nos alpendres,
casar filhas com negros,
gargalhar no tribunal togado.
A morte vai batendo de porta em porta,
vendendo bilhetes irrecusáveis
aos guardiães da sociedade.
Eu me escondo no banheiro,
disfarço lendo histórias em quadrinhos
e escapo.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

A JANGADA

Ei-la singrando a imensidão dos mares
tão frágil, tão veloz e independente,
deixando a praia, busca outros lugares
sem medo, sem temor, inconsequente...

Lançada ao mar... As ondas pelos ares...
Vai conquistando o mar azul, fremente,
não há tristezas, dores, nem pesares...
Só a jangada deslizando à frente.

As ondas vêm e vão... E chega a tarde,
aflora um sentimento de saudade
e ela retorna cheia de emoções...

Quantos sonhos viajam na jangada?
mas ao raiar da fresca madrugada
vai para o mar repleta de ilusões!
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA EFIGÊNIA MALLEMONT
Petrópolis/RJ

AMOR EM POESIA

Sobre a mesa,
livros, canções,
odes e sonetos,
onde me debruço,
aconchegando,
meus sonhos.
Na face da noite,
a voz do poeta,
murmurando sonhos
em meu coração deserto!
Aos seus devaneios,
me entrego invisível,
nua, sem resposta.
Deixa-me amar,
do mundo alheia,
nas frágeis torrentes
da tua poesia.
= = = = = = = = =  

Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

RECEITA DE SAÚDE E FELICIDADE

Não antecipe nunca o sofrimento!...
Diga “Bom Dia!” ao sol que lhe saúda.
Seja qual um discípulo de Buda:
- É mister se gozar cada momento.

No “que será...será” que não se muda,
se abrigam primaveras...(mais de um cento!)
os “depois” nem podem ser tormento
se os “agoras” lhe derem boa ajuda.

“Cara feia” - sinal de enfermidade -
com certeza, costuma sobrepor
mais pesos aos obstáculos da idade.

"Alegre-se e sorria, por favor!
Um sorrisinho dá felicidade,
pois contagia e ativa o bom humor"
= = = = = = = = =  

Soneto de
PAULO VINHEIRO
Monteiro Lobato/SP

QUIMERA

Quimera, alguma esperança mantenho
Cantilena, monotônica toada trovoa
Do boi o carro carroçando vai cantando
À vera trocam letras tropeçando pedras
Escrevo sem sentidos, abstraio teus olhos
Perdoe o perverso que rabisco a toa
Enxugo lágrimas que não nasceram
Em vão de página… Quem sabe em vão
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Índios,
Ao longo
Dos séculos
Sambaquis
De almas...
Na natureza,
A vida
Clama
Em silêncio.
= = = = = = = = =  

Humberto de Campos (Melhoramentos...)

A grande preocupação nacional do momento, conforme é notório, é a visita de sua majestade o rei da Bélgica. Da Gávea à Tijuca, do Cais Faroux às águas paludosas do rio Pavuna, reinam uma febre, uma atividade, uma fúria de empreendimentos verdadeiramente assombrosa. Nunca se viu, no Rio, atacados de uma só vez, tão grande número de melhoramentos. A cidade modifica-se, rejuvenesce, transforma-se, das pedras das ruas à crista dos monumentos.

Aí estão, demonstrando a influencia benéfica dessa visita real, as notícias da imprensa, registrando essas alterações. Calça-se uma rua dos subúrbios? Para que? Para o rei Alberto ver... Modifica-se o palácio Guanabara? Reforma-se o jardim da praça Maná? Aumenta-se o edifício da Prefeitura? Com que intuito? Para o rei Alberto ver... Até a pintura das carroças de lixo, ordenada pela Limpeza Publica, já foi atribuída à próxima visita de sua majestade.

Isso, no que está patente, visível, positivo. Os melhoramentos privados, secretos, de iniciativa da população, estes ainda são mais numerosos, mais sérios, mais significativos do nosso entusiasmo. Dezenas de vestidos de baile, "para o rei Alberto ver", já foram encomendados aos grandes costureiros daqui, de Paris e de Londres. Há, mesmo, até, nas rodas elegantes, quem se esteja entregando, pessoalmente, na cidade, com o mesmo fim, a melhoramentos mais interessantes.

Um destes dias, entrava eu no Instituto de Beleza, onde ia comprar um vidro de tintura para o cabelo, quando encontrei, no salão de espera, a minha velha amiga D. Sofia Pedreira, que aguardava, ali, pacientemente, a lindíssima viúva Odete Aires, que se achava, no momento, no gabinete do cabeleireiro. Começávamos nós a conversar sobre coisas sem importância, quando a formosíssima senhora suspendeu o reposteiro, e apareceu à porta, radiando e cheirando, como uma grande rosa que desabrochasse num vaso.

- O senhor por aqui, conselheiro? - gritou a encantadora criatura, com alvoroço, e com todos os dentes, estendendo-me, de longe a sua mão rosada e fina, onde as unhas faiscavam, rubras, como corais.

- É verdade, - expliquei, titubeando.

- Vim comprar uma caixa de pó para dentes... E a senhora?

- Eu? - respondeu, rindo. - Eu... Olhe?

E, espiando para um lado e para outro, a ver se não nos observavam, suspendeu até o ombro deslumbrante a manga curta e larga do finíssimo vestido de seda, mostrando a parte inferior e extrema do lindo braço de mármore, fina, alva, lisa, como de uma criança.

- Veja! - ordenou-me.

E já no primeiro degrau da escada, por trás do leque, piscando-me um olho, com brejeirice:

- Para o rei Alberto ver.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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segunda-feira, 17 de março de 2025

Adega de Versos 137: Juan Ramón Jiménez

 

Figueiredo Pimentel (Os anões mágicos)

I
Custódio era sapateiro-remendão, vivendo exclusivamente do seu ofício.

Todavia, por mais que se esforçasse, por mais que trabalhasse, nunca recebia justa recompensa do seu insano labor. Por isso era pobre, paupérrimo.

Chegou uma ocasião em que se viu quase na miséria. Haviam-lhe encomendado um par de botas de verniz. Com o lucro desse trabalho, que ia ser muito bem pago, desde que ficasse bom e fosse entregue no dia marcado, sem falta, contava comprar mais cabedal, e, assim, aprontar alguns pares de botinas, que tencionava vender vantajosamente.

Contudo, no dia em que ia começar o serviço, adoeceu. Foi uma fatalidade, porque não podia dar as botas no dia designado, e, desse modo, ia perder o verniz, em que empatara o único dinheiro que lhe restava.

À noite deitou-se, devorado por violentíssima febre.

Pela manhã acordou ainda mais doente. Assim mesmo, febril, tiritando de frio, e com terrível enxaqueca, tentou trabalhar. Foi procurar o verniz, e soltou uma exclamação! Na véspera apenas havia cortado o couro, e, no entanto, já estava feito o par de botas de montar, um trabalho esplêndido, digno, de um hábil artista.

Foi grande a sua surpresa, e nem sabia como explicar fato tão extraordinário.

Apanhou os sapatos, examinado-os atentamente, virando-os de um lado e do outro; estavam muito bem-feitos, e não tinham nem um ponto sequer fechado, sendo obra de causar admiração.

Quando veio buscar a encomenda, o freguês pagou mais do que havia tratado, tão satisfeito ficou.

Com o dinheiro dessa venda, o sapateiro foi comprar couro para fazer dez pares de botinas.

Trouxe-o para casa, e à noite cortou-o, deixando-o para fazer a obra pela manhã.

Mas, ao outro dia, quando se dirigiu para a sua mesa de trabalho, encontrou tudo pronto, como na noite anterior.

Dessa vez também, não faltaram fregueses. Com o dinheiro que produziu a venda, ele pôde comprar couro para outros pares.

No terceiro dia as botinas estavam prontas. E assim sucedeu noites e noites seguidas, durante bastante tempo. Todo o couro que Custódio cortava de noite, aparecia pronto, transformado em pares de botinas, muito bem-feitas, de modo que o sapateiro foi melhorando, a ponto de ficar quase rico.

II
Uma noite, na véspera de Natal, quando acabava de cortar couro, indo deitar-se, voltou-se para Adelina, sua mulher, e disse-lhe:

– E se nós passássemos a noite em claro, para ver quem nos ajuda dessa maneira?

Adelina concordou no que lhe propunha o marido. Deixando uma lamparina acesa, ocultaram-se os dois dentro de um guarda-roupas, por trás da roupa, e esperaram.

Quando o relógio bateu meia-noite, dois anõezinhos, completamente nus, sentaram-se na mesa do sapateiro, e apanhando o couro cortado, com as suas mãozinhas começaram a coser, furar e bater com tanta ligeireza e cuidado que não se ouvia barulho algum.

Trabalharam sem cessar, até que a obra ficou pronta, desaparecendo então subitamente.

No dia seguinte, Adelina disse:

– Aqueles anõezinhos nos têm enriquecido: é preciso que nos mostremos reconhecidos. Eles devem sentir muito frio, andando assim nus, sem nada sobre o corpo. Sabes? Vou coser uma camisa para cada um, um paletó, uma calça e um colete, e lhes fazer um par de meias de tricô, e tu fazes para cada um, um par de botinas.

Custódio aprovou a ideia da mulher e, à noite, quando tudo estava pronto, colocaram os objetos sobre a mesa em vez do couro cortado para os sapatos, e ocultaram-se de novo, para ver de que modo os anões recebiam os presentes.

À meia-noite, os anões chegaram, e iam começar o trabalho, quando em lugar do couro encontraram as roupas. A princípio mostraram grande espanto, que depressa se transformou em grande alegria.

Vestiram imediatamente a roupinha, e começaram a cantar e saltar:

– Nós somos uns lindos rapazes!... Adeus, couro, sapatos e botinas!...

Depois começaram a dançar e saltar por cima das cadeiras e bancos, e sempre dançando, ganharam a porta e desapareceram.

Desde aquele momento ninguém tornou a vê-los. Custódio, porém, continuou a ser feliz o resto de seus dias, e tudo quanto empreendia saía conforme os seus desejos.

III
Havia numa casa uma pobre criada muito trabalhadora, chamada Isabel. Todos os dias ela varria a casa, e depois juntava o cisco, que colocava em frente à porta da rua.

Uma manhã, quando começava o trabalho, achou uma carta no chão. Como não sabia ler, pôs o caixão de cisco no chão, e foi levá-la aos patrões.

Era um convite da parte dos anões mágicos que lhe pediam para ser madrinha de um dos seus filhos.

Isabel não sabia que resolver, mas depois de muitas hesitações, como lhe disseram que era muito perigoso recusar, aceitou.

No dia marcado, três anões vieram buscá-la, e levaram-na para uma caverna, na montanha onde moravam.

A mãe do anãozinho que nascera, estava num leito de ébano incrustado de pérolas, com colchas bordadas a prata. O berço do recém-nascido era de marfim, e a bacia de banho, de ouro maciço.

Depois do batismo, a criada quis voltar imediatamente para casa. Os anões, porém, pediram-lhe muito para ficar mais três dias com eles. Ela anuiu ao pedido, e passou esse tempo em festas, porque os anõezinhos lhe faziam o mais agradável acolhimento.

No fim de três dias, como quisesse absolutamente regressar, os anões encheram-lhe os bolsos de ouro, e conduziram-na até à saída do subterrâneo.

Chegando à casa dos patrões, Isabel recomeçou o trabalho de todo dia, e apanhou o caixão do cisco, o qual ainda estava no mesmo lugar em que deixara, o que a admirou sobremaneira. Estava varrendo, quando saíram da casa uns homens desconhecidos para ela, que lhe perguntaram quem era e o que queria.

Foi só então que a criada soube que não estivera com os anõezinhos apenas três dias, como julgara, mas sete anos inteiros, e que durante esse tempo, seus patrões haviam morrido.

IV
Um dia os anões roubaram de uma mulher o filhinho, que estava no berço, e puseram em seu lugar um pequeno monstro, que tinha uma cabeça muito grande e dois grandes olhos fixos, e era insaciável, esfomeado, querendo comer e beber a todo o momento.

A pobre mãe foi pedir conselho a uma vizinha.

Esta aconselhou-a a levar o monstrengo para a cozinha, e colocá-lo em cima do fogão, acender o fogo ao lado dele, e ferver água em duas cascas de ovo. Isso faria rir o monstro, e se ele se risse uma vez, seria obrigado a partir.

A mulher fez o que a vizinha lhe tinha ensinado. Assim que viu as cascas de ovo cheias de água, sobre o fogo, o monstro exclamou:

– Nunca vi, se bem que não seja novo, ferver água em casca de ovo! 

E soltou uma gargalhada.

Apareceu imediatamente, um bando de anões, que trouxeram o verdadeiro filho, colocando-o no berço, e levando o monstrengo em sua companhia.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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José Feldman (A Colisão da Balbúrdia)

Era um dia com muitas nuvens na cidade, e dois idosos José e Marlene estavam a caminho do mercado. José dirigia seu velho fusquinha, enquanto Marlene estava atrás do volante de seu karmann guia, um carro pequeno e brilhante. Ambos estavam ansiosos para comprar os ingredientes do almoço.

Enquanto se aproximavam de um cruzamento, José, distraído, tentava se lembrar de uma velha receita.

— Ah, eu preciso de batatas! — gritou ele para si mesmo, sem perceber que o semáforo estava vermelho.

Marlene, que estava prestes a virar à direita, viu José avançar. Ela tentou buzinar, mas o som do seu carro era mais como um "bipe" tímido.

— Olha o sinal! — gritou Marlene, mas era tarde demais.

BAM!

Os carros colidiram com um estrondo, e os dois motoristas ficaram paralisados por um momento, olhando um para o outro.

— José! O que foi que você fez? — exclamou Marlene, saindo do carro.

— Eu? Você que não olhou para os lados! — respondeu José, já saindo do fusquinha.

— Eu olhei, seu apressado! Você é que avançou o sinal! — Marlene bateu o pé, enquanto ajeitava o cabelo.

Os dois idosos começaram a discutir, levantando os braços e gesticulando como se estivessem no meio de uma apresentação teatral.

— Você deveria usar menos os ouvidos e mais o cérebro! — gritou José, apontando para Marlene.

— E você deveria usar mais os olhos e menos a boca! — retrucou ela, cruzando os braços.

As pessoas que passavam, começaram a parar para assistir à cena, algumas rindo, outras torcendo para que a discussão não terminasse em algo mais sério.

— Olha, gente! Um show de comédia grátis! — gritou um jovem, fazendo todos rirem.

— Calma, pessoal! Isso não é uma competição de quem grita mais alto! — comentou uma mulher idosa que passava.

Nesse momento, o guarda de trânsito Antunes, apareceu, com um ar de autoridade.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou, olhando para os dois motoristas.

— Esse senhor avançou o sinal! — disse Marlene, apontando para José.

— Eu não avancei nada! A senhora é que estava distraída! — José respondeu, indignado.

O guarda olhou de um para o outro, tentando entender a situação. 

— Então, vamos lá, quem estava certo aqui? — indagou o guarda Antunes, tentando apaziguar a situação com um sorriso.

— Eu estava certa! — gritou Marlene.

— E eu também! — José respondeu, cruzando os braços.

A confusão só aumentava. Os transeuntes começaram a opinar.

— Eu vi tudo! A Dona Marlene estava certa! — disse um homem que estava vendendo frutas.

— Não, não! O José é um bom motorista! — defendeu uma mulher.

— Eu estava lá! A Dona Marlene estava tão distraída com a maquiagem que nem viu o sinal! — gritou um adolescente.

— A maquiagem é essencial para a segurança no trânsito! — Marlene protestou, dando uma piscadela para o guarda.

— Isso é verdade! Um bom batom pode salvar vidas! — disse uma idosa que estava assistindo a cena.

— Espera aí! — disse o guarda, levantando as mãos. — Vamos esclarecer isso. Quem se machucou?

— Ninguém! — disseram os dois em uníssono.

— Então, por que tanta confusão? — perguntou o guarda.

— Porque ele não sabe dirigir! — apontou Marlene novamente.

— E porque ela não sabe parar de falar! — José retrucou.

A situação estava tão engraçada que as pessoas começaram a aplaudir, como se estivessem assistindo a uma peça de teatro.

— Olha, gente! A disputa dos campeões de trânsito! — gritou o vendedor de frutas, fazendo todo mundo rir mais.

O guarda, percebendo que a situação havia tomado um rumo cômico, decidiu intervir para encerrar a confusão.

— Vamos lá, pessoal. Que tal um acordo? — sugeriu. — Vocês dois vão para o mercado, compram suas comidas e depois se encontram para um café. Assim, resolvem tudo de forma civilizada.

Marlene e José se olharam, ainda um pouco irritados, mas a ideia começou a fazer sentido.

— O que você acha, José? — perguntou Marlene, suavizando o tom.

— Eu acho que um café não seria tão ruim assim... desde que você não fique falando do meu jeito de dirigir! — disse José, já se rendendo.

— E eu prometo não olhar para o lado enquanto você toma café! — riu Marlene.

Assim, os dois motoristas se dirigiram para seus carros, deixando o guarda e os espectadores aliviados e felizes com a resolução da confusão.

— Até a próxima trombada, amigos! — gritou um jovem, enquanto todos riam novamente.

E assim, José e Dona partiram, prometendo que a próxima vez que se encontrassem, seria em um lugar onde não houvesse semáforos, apenas café e boas risadas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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domingo, 16 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 26 *

 

Coelho Netto ( O “Rato”)

Vivia de esmolas num estreito e úmido quarto de estalagem, onde mal cabiam os móveis: a cama onde jazia prostrada a moléstia, uma pequena mesa, duas velhas cadeiras e uma arca. Acompanhava-a o filho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal vivacidade que todos na estalagem não o conheciam senão pela alcunha: o Rato.

Era um dos primeiros que acordavam e, ainda escuro, fazia toda a limpeza do aposento, mudava a água nas bilhas, deixava ao alcance da mão da paralítica a cafeteira e o pão, e saía cantarolando. Saía, porque a mãe, julgando-o ainda tenro e fraco para o trabalho e não dispondo de recursos para manter-se, pedira um atestado ao médico que, por misericórdia a tratava e, entregando-o ao pequeno, dissera: — Vai e fica à porta das igrejas: e aos que passarem mostra esse papel e pede uma esmola para tua mãe.

O pequeno saiu, e, à noite, tornando à casa com algumas moedas, entregou-as à mãe; mas, no mesmo momento, rompeu em pranto, atirando-se, soluçante, sobre a velha arca.

A paralítica, atribuindo a angústia da criança à quantia escassa que trouxera, procurou palavras de consolo: — Não chores, meu filho. Hás de ser mais feliz amanhã; o que trouxeste basta para passarmos o dia. Deus velará por nós. Não chores.

O pequeno, porém, longe de consolar-se, afligiu-se ainda mais e, à noite, a paralítica que velava ouviu ainda durante algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo, como de costume, levantou-se, e, depois do serviço, foi beijar a mão à velha enferma, e partiu.

Era tarde, quase dez horas da noite, quando o Rato apareceu na estalagem cantarolando. A mãe, que passara o dia cheia de cuidados, mal o viu entrar falou com certa severidade:

— Ah! Meu filho, a que horas vens? Muito deves ter esmolado para que só às dez horas da noite voltes a casa!

O Rato, porém, risonho, beijou a mão da enferma, e logo, metendo as mãos nos bolsos, pôs-se a tirar moedas e notas atirando tudo para cima da cama. A paralítica, sorrindo, disse:

— Então, bem te disse eu que hoje havias de ser mais feliz, meu filho...

— Sim, minha mãe, fui muito mais feliz, principalmente porque ninguém me injuriou.

— Como? Pois houve alguém que te injuriasse, filho?

— Sim, minha mãe, ontem. Como a senhora me havia ordenado, fui ficar à porta da igreja. Quando cheguei, já havia lá muitos pobres, uns cegos, outros aleijados; meti-me entre eles e logo começaram as injúrias, porque eu era uma criança sadia e forte que ia para ali vadiar, quando podia estar empregando o meu tempo em alguma coisa útil. Uns mandavam-me para a escola, outros para a oficina e, se aparecia alguém, vendo-me avançar com o papel na mão para pedir, empurravam-me, davam-me beliscões, e um atirou-me uma bordoada às pernas com a muleta.

“Tudo isso, porém, fazia-me rir; o que me fez chorar foi o que me disse um velho que levava um pequeno pela mão, um pequeno do meu tamanho.”

“Quando eu lhe pedi esmola, ele olhou-me carrancudo, meteu os dedos no bolso do paletó, tirou um níquel e ficou algum tempo a olhar-me; depois vagarosamente guardou a moeda e, puxando o menino, disse baixinho: — Verás, vai daqui direto para a taverna... — O pequeno, mamãe, olhou-me de tal modo, que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as lágrimas saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, o pequeno teve pena de mim e falou ao pai. Pararam, e eu enxugava os olhos, quando ouvi a voz do menino: — Toma! — Olhei, e vi que ele me estendia a moeda. Estive para recusar, mas olhava-me com tanta meiguice que não tive ânimo. Recebi-a, agradeci e guardei. Logo, porém, que os vi entrar na igreja, tirei-a do bolso, dei-a a um velho cego que estava sentado perto de mim, e desci. Desci os degraus, disposto a voltar para casa, mamãe, mas lembrei-me de ti, lembrei-me que nada havia em casa e pensei em pedir trabalho em algum lugar...”

“Foi então que encontrei o Vicente com um maço de jornais, apregoando. Pedi-lhe alguns e, fazendo como ele, fui vendendo, e com tanta facilidade, que não me ficou um só. Ele, então, ficou de arranjar-me maior quantidade para hoje e não mentiu.”

“Passei o dia todo vendendo jornais, primeiro os da manhã, depois os da tarde; e à noite o Vicente convidou-me para acompanhá-lo até a porta do Liceu, onde aprende, e onde quero que mamãe me faça entrar, para que eu não ande a pedir aos outros que me ensinem a apregoar as notícias dos jornais. Hoje ganhei mais do que ontem: e estou contente, mamãe, porque ninguém me tomou por vadio.” “Quando eu for mais forte, irei para uma fábrica, e tu não terás necessidades, nem ninguém me falará mais com o desprezo com que me falou o velho que me julgou tão mal...”

A paralítica, com os olhos rasos d’água, tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo, e, beijando-a, disse comovidamente:

— Fizeste bem, meu filho; fizeste bem: a humilhação é a pior das afrontas. Fizeste bem, meu filho, e eu te abençoo.
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Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Netto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Zitkala-Ša (O texugo e o urso)

À beira de uma floresta vivia uma grande família de texugos. Na terra sua moradia foi feita. Suas paredes e telhado estavam cobertos de pedras e palha.

O velho pai texugo era um grande caçador. Ele sabia bem como rastrear o cervo e o búfalo. Todos os dias ele voltava para casa carregando nas costas alguma caça selvagem. Isso manteve a mãe texugo muito ocupada e os texugos bebês muito gordinhos. Enquanto as crianças bem alimentadas brincavam, cavando pequenas habitações de faz de conta, sua mãe pendurava carnes finas em fatias em longas prateleiras de salgueiro. Tão rápido quanto as carnes eram secas e temperadas pelo sol e pelo vento, ela as embalava com cuidado em um saco grande e grosso.

Esta bolsa era como um enorme envelope rígido, mas muito mais bonita de se ver, pois estava todo pintado com muitas cores brilhantes. Estes firmemente amarrados em sacos de carne seca foram colocados sobre as rochas nas paredes da habitação. Desta forma, eles eram úteis e decorativos.

Um dia, o pai texugo não saiu para caçar. Ele ficou em casa, fazendo novas flechas. Seus filhos sentaram-se ao seu redor no andar térreo. Seus pequenos olhos negros dançavam de prazer enquanto observavam as cores alegres pintadas em cima as flechas.

De repente, ouviu-se um forte passo perto da entrada. A moldura da porta oval foi empurrada para o lado. Entrou um grande pé preto com grandes garras. Então o outro pé desajeitado veio em seguida. O tempo todo os texugos bebês olharam fixamente para o recém-chegado. Após o segundo pé, surgiu a cabeça de um grande urso preto! Seu nariz preto estava seco e ressequido. Silenciosamente, ele entrou na habitação e sentou-se no chão ao lado de a porta. Seus olhos negros nunca viram as bolsas pintadas nas paredes rochosas. Ele adivinhou o que havia neles. Ele era um urso muito faminto. Vendo as prateleiras de carne vermelha penduradas no quintal, ele veio visitar a família texugo.

Embora ele fosse um estranho e suas patas e mandíbulas fortes assustassem os pequeno texugos, o pai disse: "Caro amigo! Seus lábios e nariz parecem febril e famintos. Você vai comer conosco?"

"Hau, meu amigo", disse o urso. "Estou morrendo de fome. Eu vi suas prateleiras carne fresca vermelha, e sabendo que seu coração é bondoso, eu vim aqui. Dê-me carne para comer, meu amigo."

Em seguida, a mãe texugo deu longos passos pela sala e, enquanto ela teve que passar na frente do estranho visitante, ela disse: "Ah han! Permita-me passar!" que foi um pedido de desculpas.

“Han!” respondeu o urso, aproximando-se da parede e cruzando as canelas.

A mãe texugo escolheu a carne vermelha mais macia e logo sobre uma cama de brasas ela assou a carne de veado.

Naquele dia, o urso tinha tudo o que podia comer. Ao cair da noite, ele se levantou e bateu seus lábios juntos - essa é a maneira barulhenta de dizer "a comida estava muito boa!" - ele deixou a casa do texugo. Os texugos bebês, espiando através da aba da porta atrás do urso peludo, viu-o desaparecer no bosques próximos.

Dia após dia, o crepitar dos galhos na floresta falava de pesados passos. Era o mesmo urso preto. Ele nunca levantou a aba da porta, mas empurrando-a para o lado entrou lentamente. Sempre no mesmo lugar na entrada, ele se sentou com as canelas cruzadas.

Suas visitas diárias eram tão regulares que a mãe texugo colocava um tapete de pele em seu lugar. Ela não queria que um hóspede em sua casa se sentasse no solo duro.

Por fim, uma vez, quando o urso voltou, seu nariz estava brilhante e preto. Seu casaco era brilhante. Ele engordou com a hospitalidade do texugo.

Quando ele entrou na habitação, um par de brilhos perversos disparou de sua desgrenhada cabeça. Surpreso com o comportamento estranho do hóspede que permaneceu de pé sobre o tapete, encostando as costas na parede, o texugo pai perguntou: "Hau, meu amigo! O quê?"

O urso deu um passo à frente e balançou a pata no rosto do texugo. Ele disse: "Eu sou forte, muito forte!"

"Sim, sim, então você é", respondeu o texugo. Do outro lado da sala, a mãe texugo murmurou sobre seu trabalho de contas: "Sim, você ficou forte com nossas tigelas bem cheias."

O urso sorriu, mostrando uma fileira de dentes grandes e afiados.

"Eu não tenho moradia. Não tenho sacos de carne seca. Eu não tenho flechas. Todo estes eu encontrei aqui neste local", disse ele, batendo o pé pesado. "Eu os quero! Ver! Eu sou forte!" repetiu ele, levantando suas terríveis patas.

Baixinho, o pai texugo falou: "Eu te alimentei. Eu te chamei de amigo, no entanto você veio aqui um estranho e um mendigo. Pelo bem dos meus pequeninos deixe-nos em paz."

A mãe texugo, em seu jeito excitado, perfurou com força a pele de gamo e enfiou os dedos repetidamente com seu furador afiado até que ela deixou seu trabalho de lado. Agora, enquanto seu marido conversava com o urso, ela gesticulou com as mãos para as crianças. Na ponta dos pés, eles correram para o lado dela.

Como resposta, veio um rosnado baixo. Ficou mais alto e mais feroz. "Wa-ough!" ele rugiu e, à força, expulsou os texugos. Primeiro o pai texugo; então a mãe. Os pequenos texugos ele jogou aos pares. Ele os jogou com força o chão. De pé na entrada e mostrando seus dentes feios, ele rosnou: "Vá embora!"

O pai e a mãe texugo, tendo se levantado, pegaram seus bebês e, gemendo alto, puxou o ar para dentro de seus pulmões achatados até que pudessem ficar sozinhos em seus pés. Assim que os texugos bebês recuperaram o fôlego, uivaram e gritaram com dor e medo. Ah! Que grito sombrio foi o deles, como a família inteira de texugo saiu chorando de sua própria habitação! Um pouco de distância, longe de sua casa roubada, o pai texugo construiu uma pequena cabana redonda. Ele fez de salgueiros dobrados e cobriu-o com grama seca e galhos.

Este foi o abrigo para a noite; mas, infelizmente! estava vazio de comida e flechas. Durante todo o dia, o pai texugo rondou a floresta, mas sem suas flechas ele não conseguia comida para seus filhos. Ao retornar, o grito do pequeninos pela carne, o silêncio triste da mãe com a cabeça baixa, ferido como uma flecha envenenada.

"Vou implorar carne por você!" disse ele com uma voz instável. Cobrindo a cabeça e todo o corpo em um manto longo e solto ele foi ao lado do grande urso preto. O urso estava cortando carne vermelha para pendurar na prateleira. Ele não parou por uma olhada no canto. Enquanto o texugo estava ali sem ser reconhecido, ele viu que o urso trouxe consigo toda a sua família. Filhotes brincavam sob as novas carnes penduradas. Eles riram e apontaram com seus narizes pequeninos para cima nas carnes finas cortadas sobre os postes.

"Você não tem coração, Urso Negro? Meus filhos estão morrendo de fome. Dê-me um pequeno pedaço de carne para eles", implorou o texugo.

"Wa-ough!" rosnou o urso furioso e atacou o texugo. "Vá embora!" disse ele, e com sua grande pata traseira ele jogou o pai texugo, esparramando no chão.

Todos os pequenos ursos rufiões piaram e gritaram "ha-ha!" para ver o mendigo cair sobre seu rosto. Houve um, no entanto, que nem mesmo sorriu. Ele era o filhote mais novo. Seu casaco de pele não era tão preto e brilhante quanto os que os mais velhos usavam. O cabelo estava seco e sujo. Parecia muito mais uma lã excêntrica. Ele era o filhote feio. Pobre bebê urso! ele sempre foi ridicularizado por seus irmãos mais velhos. Ele não podia deixar de ser ele mesmo. Ele não podia mudar as diferenças entre ele e seus irmãos. Assim mais uma vez, embora o resto tenha rido alto da queda do texugo, ele não viu a piada. Seu rosto era comprido e sério. Em seu coração, ele estava triste ao ver os texugos chorando e morrendo de fome. Em seu peito espalhou-se um desejo ardente de compartilhar sua comida com eles.

"Não vou pedir carne ao meu pai para dar. Ele diria 'Não!' Então Meus irmãos ririam de mim", disse o urso bebê feio para si mesmo.

Em um instante, como se sua boa intenção tivesse passado, ele estava cantando alegremente e pulando em torno de seu pai no trabalho. Cantando em voz baixa e alta e arrastando os pés em longos passos atrás dele, como se um espírito brincalhão escorria de seus calcanhares, ele se desviou pela grama alta. Ele estava caminhando em direção à pequena cabana redonda. Quando diretamente na frente da entrada, ele deu um chute lateral rápido com a pata traseira esquerda. caiu na cabana do texugo um pedaço de carne fresca. Era carne dura, cheio de tendões, mas era a única peça que ele poderia pegar sem avisar o pai.

Assim, tendo dado carne aos texugos famintos, o feio bebê urso correu rapidamente para seu pai novamente.

No dia seguinte, o pai texugo voltou mais uma vez. Ele se levantou observando o grande urso cortando fatias finas de carne.

"Dê" ele começou, quando o urso se virou para ele com um rosnado, empurrou-o cruelmente para o lado. O texugo caiu por suas mãos. Ele caiu onde o a grama estava molhada com o sangue do búfalo recém-esculpido. Seu afiado olhos famintos avistaram um pequeno coágulo vermelho brilhante sobre o verde. Olhando com medo para o urso e vendo sua cabeça estava virada longe, ele pegou o pequeno sangue grosso. Debaixo de seu cobertor cingido ele o escondeu na mão.

Ao voltar para sua família, ele disse consigo mesmo: "Vou rezar para o Grande Espírito para abençoá-lo." Assim, ele construiu uma pequena cabana redonda. Aspergiu água sobre a pilha aquecida de pedras sagradas dentro, ele se preparou para purgar seu corpo. "O sangue de búfalo também deve ser purificado antes que eu peça uma bênção sobre ele", pensou o texugo. 

Ele o carregou para o vapor sagrado. Depois de colocá-lo perto das pedras sagradas, ele se sentou ao lado dele. Depois de um longo silêncio, ele murmurou: "Grande Espírito, abençoe este pequeno sangue de búfalo." Então ele se levantou e, com uma dignidade silenciosa, saiu da cabana. Logo atrás dele, alguém o seguiu. O texugo se virou para olhar por cima de seu ombro e para sua grande alegria, ele viu um Dakota corajoso em camurças bonitas. Na mão, ele carregava uma flecha mágica. Nas costas balançava um aljava com franjas longas. Em resposta à oração do texugo, o vingador surgiu dos glóbulos vermelhos.

"Meu filho!" exclamou o texugo com a mão direita estendida.

"Hau, pai", respondeu o bravo; "Eu sou seu vingador!"

Imediatamente o texugo contou a triste história de seus pequeninos famintos e o urso mesquinho.

Ouvindo atentamente, o jovem ficou olhando fixamente para o chão.

Por fim, o texugo pai se afastou.

"Onde?" perguntou o vingador.

"Meu filho, não temos comida. Vou novamente implorar por carne", respondeu o texugo.

"Então eu vou com você", respondeu o jovem corajoso. Isso fez o velho texugo feliz. Ele estava orgulhoso de seu filho. Ele ficou encantado em ser chamado de "pai" pela primeira criatura humana.

O urso viu o texugo vindo à distância. Ele estreitou os olhos para o estranho alto caminhando ao lado dele. Ele avistou a flecha. Imediatamente ele adivinhou que era o vingador de quem ele tinha ouvido falar há muito, muito tempo. Quando eles aproximaram-se, o urso ficou ereto com a mão na coxa. Ele sorriu para eles.

"Hau, texugo, meu amigo! Aqui está minha faca. Corte suas peças favoritas de o cervo", disse ele, segurando uma lâmina longa e fina.

"Hau!" disse o texugo ansiosamente. Ele se perguntou o que havia inspirado o grande urso a uma ação tão generosa. O jovem vingador esperou até que o texugo levasse o faca longa na mão.

Olhando fixamente para o rosto do urso negro, ele disse: "Venho fazer justiça. Você devolveu apenas uma faca ao meu pobre pai. Agora devolva a ele seu habitação." Sua voz era profunda e poderosa. Em seus olhos negros ardia um fogo constante.

Os dentes longos e fortes do urso chacoalharam um contra o outro, e seu corpo desgrenhado tremia de medo. "Ahow!" gritou ele, como se tivesse sido baleado. Correndo para dentro da habitação, ele engasgou, sem fôlego e tremendo, "Saiam todos vocês! Esta é a morada do texugo. Devemos fugir para a floresta por medo do vingador que carrega a flecha mágica."

Eles correram para fora, e todos os ursos desapareceram na floresta.

Cantando e rindo, os texugos voltaram para sua própria habitação.

Então o vingador os deixou.

"Eu vou", disse ele ao se despedir, "sobre a terra".

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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fonte:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. Disponível em Domínio Público. (tradução do inglês para o português por Jfeldman)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing