terça-feira, 15 de janeiro de 2008

O Que é Poetrix?

Nota Pessoal
Estava eu me dirigindo para São Paulo. Como são 12 horas de viagem desde minha cidade, teria muito tempo para ler. Além dos básicos (jornal e revista veja), alguns livros. O primeiro que me veio a mão foi Minimal, o qual me foi enviado por seu autor Goulart Gomes. Já havia observado superficialmente o conteúdo, naquelas famosas folheadas que se dá em um livro, e a primeira impressão que me passou que eram haikais. Tranquilamente, refastelado numa poltrona de ônibus de viagem (12 horas de viagem - ninguém merece!), comecei a ler este livro. E, de "cabo a rabo" o devorei (sem tempero mesmo). Por isso, faço primeiro uma introdução do Poetrix, para depois passar uma postagem com algumas (senão o Goulart vai querer que eu pague os direitos autorais) que está no livro que me chamaram a atenção.

POETRIX
(JOSÉ DE SOUSA XAVIER)

Para se entender o poetrix, é necessário saber um pouco sobre Goulart Gomes. Ele nasceu em Salvador, Bahia, em 1/5/1965. É graduado em Administração de Empresas e pós-graduado em Literatura Brasileira (UCSAL). Criador da linguagem poética POETRIX e um dos fundadores do Grupo Cultural PÓRTICO. Na homepage: http://www.goulartgomes.tk, apresenta os principais trechos de seus dez livros publicados. Obteve mais de 60 prêmios literários em concursos de poesia, prosa e festivais de música, destacando-se duas Menções pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores (RJ, 2000 e 2001) e o Primeiro Lugar no Prêmio Escribas de Poesia (SP, 2002). Integrou dezenas de antologias no Brasil, Cuba, Espanha, USA, Itália e Coréia do Sul e, ainda, trabalhos divulgados no México, Portugal e França. Tem cinco e-books com milhares de cópias distribuídas gratuitamente (downloads).

Durante a III Feira Internacional do Livro da Bahia, em 1999, Goulart formulou as bases de uma nova linguagem poética, com publicação do Manifesto Poetrix, no seu livro TRIX – POEMETOS TROPI-KAIS. O Movimento se propõe a ser internacional e já possui adeptos em vários países. Trata-se de um poema contemporâneo, em terceto, de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, que possui figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico. O neologismo foi criado a partir de POE, poesias e TRIX, três. Teve como precursores o epigrama (composição poética, breve e satírica, que expressa, de forma incisiva, um pensamento ou um conceito malicioso – segundo Houaiss), o poema-minuto e o hai-kai ( nas pessoas de Guilherme de Almeida, Paulo Leminsky e Millor).

Há quem diga que Leminsky já escrevia poetrix, conforme escreve Alice Ruiz em sua mensagem a Goulart: “•Oi, Goulart, tenho lido animadamente os poetrix que chegam na minha caixa de correio e acho fantástico esse desenvolvimento paralelo do filho rebelde do haikai. Só não entrei ainda, embora possa recolher vários poetrix nos meus livros anteriores e mesmo em alguns inéditos, vou fazer isso e postar pra turma, estou em dívida, só lendo o que chega, é que falta tempo no meu dia. Quanto ao Paulo, sim, é claro que, como eu, ele fez vários poetrix, pena que ainda sem terem sido batizados por você. Sucesso e um beijo carinhoso da Alice. (Dez/2000)”

O haikai (em português: haicai) é uma palavra japonesa usada pela primeira vez pelo poeta japonês Matsuo Basho para definir as estrofes, exceto a primeira, do renga (outro poema japonês). Ele chamou a primeira de hokku. O renga é um poema composto de várias estrofes, sendo a primeira com três versos (5/7/5). O hokku logo ganhou independência, e o poeta Masaoka Shiki lhe deu o nome de haiku pela junção das duas palavras concebidas por Basho.

O poetrix, embora inicialmente proposto como evidente alternativa ao haicai, apresenta características próprias que o faz diferente. O Manifesto Poetrix, inicialmente, foi concebido da seguinte forma:

1. No POETRIX, o título é desejável, mas não exigível. Ele exerceria uma função de complementaridade ao texto, definindo-o ou sendo por ele definido.

2. Não existe rigor quanto ao número de sílabas, métrica ou rimas no POETRIX, mas o uso do ritmo e da similaridade sonora das palavras, sim.

3. O uso de metáforas e outras figuras de linguagem são uma constante no POETRIX, assim como a criação de neologismos.

4. A interação autor/leitor deve ser provocada através da subliminaridade do POETRIX.

5. O POETRIX é necessariamente uma arte minimalista, ou seja, ele procura transmitir a mais completa mensagem com o menor número de palavras.

6. O POETRIX considera Passado, Presente e Futuro como uma só dimensão: TEMPO, podendo ser utilizado indistintamente.

7. No POETRIX o observador (autor), as personagens e o fato observado podem interagir, criando condições suprarreais ou ilógicas ("non sense").

Posteriormente sofreu mudanças, como: exigência do título e ter um máximo de trinta sílabas. No plural a palavra poetrix não se altera, e os praticantes do estilo são chamados de poetrixtas. A partir deste estilo de poesia, no largo intercâmbio praticado pelos autores no grupo virtual POETRIX ( no site http://br.groups.yahoo.com), foram criadas outras variações, e chamadas de “Formas Múltiplas do Poetrix”. As quais temos: duplix, triplix, multiplix (criações coletivas criadas por dois ou mais poetrix, conforme indica as palavras), clonix ( gerado a partir de outro já existente), graftix (ilustrado), concretix ( poetrix concreto) e cirandas ( séries de poetrix temáticos).

Inicialmente, o Movimento Internacional de Poetrix (o MIP) era composto por coordenadores de vários estados do Brasil e de Portugal, Venezuela, Espanha, EUA, Itália, e Colômbia. Atualmente, a pessoa do coordenador inexiste. O MIP constitui-se numa organização responsável pela difusão do poetrix. É responsável pelo site POETRIX – www.poetrix.org - reconhecido pela UNESCO. Vários autores trocam diariamente informações e poetrix no grupo POETRIX, já citado e do qual faço parte.

Sabemos que existem muitos tercetos que se enquadrariam perfeitamente na descrição do poetrix. Por isso, quero terminar com as palavras da escritora e poetisa Leila Miccolis no seu “Curso de Carpintaria Poética – o fazer poético”: “Há muita gente que classifica meus tercetos como Poetrix e eu contesto: não, não são poetrix até porque, na década de 70, o poetrix ainda não havia nascido. Sendo posterior, não posso ter escrito algo que não tinha se constituído como tal. Na atualidade, posso até vir a escrever um Poetrix, é proposta muito interessante, embora ainda não o tenha feito. Com isso, quero dizer que, não é porque se escreve um terceto com no máximo 32 sílabas (observação minha: 30 no caso como preconiza o MIP) que, obrigatoriamente, estamos escrevendo um Poetrix ou entrando para o Movimento. É o autor quem classifica o gênero de seu texto poético, assim como escolhe o gênero de história que vai contar em um filme, por exemplo – comédia romântica, drama social, mistério psicológico, etc. Um drama pode ser parecido com um mistério psicológico, e é o escritor quem, definindo o tipo de gênero adotado, tentará ser o mais convincente dentro do estilo escolhido. De qualquer forma, penso que o leitor, conhecendo um pouco das técnicas da carpintaria poética, acabará percebendo, por ele mesmo, se a intenção do poeta foi escrever um haicai, um poetrix, um terceto clássico, um moderno, ou um poema-minuto.”

Fonte: http://www.movimentopoetrix.com/

Poetrix - uma linguagem para o novo milênio

Autores: Edison Veiga Junior, Marina Torres, Sarah Maldonado Porchia, Rodrigo Gomes Lobo

PARTE I

1. Sobre a vanguarda

"A arte apresenta novas faces. Fala línguas
novas. Cria vozes diferentes e novos gestos.
Está farta de sempre falar a língua de ontem,
do passado." (HESSE, 1971:143)


A palavra vanguarda, de origem francesa, significa "tudo aquilo que precede, anuncia, prepara". Essa atitude abrange toda a atividade humana, encerrando o seu ímpeto, sua ânsia de invenção, de modificação da realidade, o impulso vital de enriquecer e aperfeiçoar seus instrumentos de inteligência e de ação.

"Falar de vanguarda é falar do novo, do que se cria; é falar do que se pesquisa, do que se procura acrescentar ao mundo ou à experiência do homem." (AVILA, 1969:59)

A poesia já é, intrinsecamente, considerada uma atitude inovadora. Isso se dá pelo fato de que é nesse gênero que a língua é testada em seu limite. O poeta apura e concretiza todas as potencialidades e possibilidades expressivas do idioma; cabe à ele a função de caminhar à frente, experimentando, inventando e adicionando formas e estruturas novas à linguagem.

Sempre houve poetas de vanguarda. São homens que tomam para si o papel de conduzir a sua arte para a renovação quando as formas em uso se tornam estanques. Sem eles, a arte ficaria estagnada.

A poesia, aliás a arte em geral, deve ser capaz de exprimir o mundo em evolução, o devir muitas vezes ilógico que nos rodeia, as inquietações de espírito e as transformações materiais.

No entanto, se a vanguarda é o posicionamento do artista perante o fenômeno estético, pode-se dizer que o Brasil ficou muito tempo sem saber o que é isso.

"Conformado por limitações de ordem econômica e social, (...) não passou, durante quatro séculos, de mero diluidor de uma cultura transplantada, quase sempre servida ao gosto duvidoso e ao interesse imediatista de pequenos grupos, que ao lado do controle da agricultura e do comércio, controlavam a vida pública." (AVILA, 1969:61)

É só a partir do Simbolismo que o poeta brasileiro inicia um processo de amadurecimento, culminando com a revolução de valores que foi o Modernismo, no qual a consciência poética consolidou-se como expressão criadora do homem. Os manifestos da época assumem postura tipicamente vanguardista.

Entretanto, à primeira vista, o poema de vanguarda é encarado como absurdo e exótico, por ferir o senso comum estabelecido. Somente após um esforço de atenção é que acaba se convencendo que o mesmo atende às imposições contemporâneas de síntese e concisão, aproveitando os recursos técnicos do atual processo comunicativo. Assim sendo, a poesia de vanguarda propõe, concomitantemente, uma abertura semântica atrelada a novas estruturas e soluções verbais, sempre de acordo com o contexto em que se vive.

Portanto, vanguarda não é a aventura inconseqüente que a muitos parece ser. É um fato real, um fato novo e vivo, sem o qual não se empreenderia a atividade literária.

2. Breve histórico do Movimento Internacional Poetrix (MIP)

O poetrix surgiu em 1999, com a publicação do livro "Trix - Poemetos Tropi-Kais", do baiano Goulart Gomes. Na verdade, esse tipo de terceto foi inspirado na arte milenar japonesa do hai-kai (daí a alusão "tropi-kais") e incorporou características brasileiras, tais como: sensualidade, interação autor/leitor, uso de figuras de linguagem, entre outras.

Por ser uma arte minimalista, é adequada à Internet, seja pela rapidez com que flui pela rede, seja pelo dinamismo exigido pela vida moderna. Isso, somado ao fato de que é através de um grupo de discussão on-line que são traçadas as metas e debatidas as tendências do MIP, rendeu ao poetrix o apelido de "poeminha da Internet".

O movimento já tem adeptos em várias partes do mundo. Atualmente está organizado em coordenadorias: há um responsável em cada região brasileira e diversos espalhados em outros países, entre os quais Colômbia, Venezuela, Argentina, Chile, Uruguai, Estados Unidos, México, Espanha, Portugal e Cuba.

O poetrix representa a vanguarda poética e é reconhecido pela Unesco, além de ter menções especiais outorgadas pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira dos Escritores.

O grande desafio dos poetrixtas é, através de um projeto de divulgação, ultrapassar as barreiras da Internet, para que o MIP seja conhecido também fora da rede.

PARTE II

1. As teorias literárias e o poetrix

Pretendemos expor aqui alguns aspectos teóricos presentes em praticamente todos os poemas analisados a seguir, a fim de evitar a repetição exaustiva dos conceitos.

Para o escritor norte-americano Edgar Allan Poe, um texto deve ser feito para uma leitura rápida, "de uma assentada". "Um poema, só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves". (POE, 1945:63). A preocupação com a originalidade, uma constante nos poetrixtas, também é citada por Poe. Ele alerta, inclusive, acerca da necessidade de provocar a curiosidade do leitor, interatividade esta amplamente explorada pelo poetrix.

Pode-se destacar o caráter minimalista do poetrix, enquadrando-o no pensamento de Anatol Rosenfeld, que afirma como uma das características fundamentais das obras modernas a focalização ampliada, microscópica. O poetrix é como um flash, ou seja, mostra os fatos universais em uma expressão pontual e sucinta. Outra hipótese proposta pelo autor é a da arte sendo influenciada pela realidade, pela "precariedade da situação num mundo caótico, em rápida transformação, abalado por (...) imensos movimentos coletivos, espantosos progressos técnicos". (ROSENFELD, 1969:84). Sendo assim, o poetrix pode ser um representante de uma nova arte, fruto de uma "época com todos os valores em transição e por isso incoerentes, uma realidade que deixou de ser 'um mundo explicado', exige adaptações estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da obra". (ROSENFELD, 1969:84)

Além disso, outro ponto que nos remete à obra de Rosenfeld é o fato de que no MIP, passado, presente e futuro são uma só dimensão: Tempo, podendo ser usado indistintamente. Nas palavras do autor: "na estrutura [da narrativa], os níveis temporais passam a confundir-se, sem demarcação nítida entre passado, presente e futuro". (ROSENFELD, 1969:81)

Quanto às propostas teóricas de Italo Calvino, julgamos desnecessário esmiuçá-las, já que Goulart Gomes o faz de forma clara e coerente em seu artigo "Poetrix: uma proposta para o novo milênio", anexado ao trabalho.

2. Interpretação de alguns poetrix

MORTE
(Regina Benitez)
manhã, tarde, noite
passou o dia, a vida
foice

Fica visível a retomada do valor árcade carpe diem. Aqui, a fugacidade da vida manifesta-se na progressão temporal dos versos: "manhã, tarde, noite / passou o dia...".

A palavra "foice" possui vários sentidos agregados. Pode-se entendê-la como a junção do verbo foi com o pronome se, reforçando o tema da vida efêmera. É possível também depreender a foice como objeto de trabalho, significando a impossibilidade do trabalhador desfrutar dos prazeres da vida, diante de sua alienação, sua necessidade de trabalhar para ganhar sustento. Em última análise, foice pode ser entendida como o símbolo da morte, finalizando o poema com a idéia de que a morte é progressiva: morre-se um pouco a cada dia e não há como fugir disso.

Em relação às propostas de Calvino, o poetrix "Morte" apresenta leveza, pois apesar de tratar de um tema denso e relativamente carregado, o poeta abstrai-lhe seu pesadume e opacidade, abordando-o de maneira sutil, com certo grau de luminosidade e rarefeita consistência, contrapondo-se com a idéia que temos do obscuro e inevitável destino de todos; rapidez, por ser caracterizado pela economia verbal; exatidão, pela escolha da palavra foice, que sintetiza precisamente o pensamento do eu-lírico e por fim visibilidade e multiplicidade, expressas também na imagem da foice, que dá vazão a várias interpretações.

A oposição semântica estabelecida é facilmente reconhecida no par vida vs. morte, passando por um estágio intermediário de não-morte, que é justamente sua latência no cotidiano. É a morte a cada dia. A idéia de que cada dia a mais que se vive é um dia a menos que se tem de vida.

BRAILE
(Gilson Luiz Siqueira)
cego de amor
leio-te
com a ponta dos dedos

O poema apresenta forte dose de erotismo e estabelece uma analogia entre o braile (forma de leitura dos cegos, por meio do tato) e a necessidade do contato físico entre os amantes. A expressão "cego de amor" complementa o sentido do título.

A sutileza com que é tratada a sensualidade nesse poema explicita seu caráter de leveza. Além disso, a visibilidade é perceptível na figura do cego. Sua exatidão manifesta-se na escolha das palavras certas para dar determinado significado. A possibilidade de fazer várias interpretações do tema abordado caracteriza sua multiplicidade.

Existe uma oposição entre não-conhecimento vs. conhecimento: por estar "cego de amor" (não perceber os defeitos da pessoa amada), o amante não consegue "ver" sua parceira, portanto estão em disjunção. O sujeito só se torna eufórico diante do objeto (pessoa amada) a partir do tato, daí a alusão ao braile. A análise tátil pode ser muito mais minuciosa do que a visual.

ASSALARIADO
(Goulart Gomes)
vende a vida inteira
pelo pão de cada dia
a liberdade bóia, fria

O poetrix, por suas características abrangentes, também pode abordar temas de forte cunho social, denunciando as mazelas da realidade, a exemplo do poema acima: um retrato que expõe as agruras da forma de trabalho capitalista.

O embate presente nos versos se expressa na estrutura não-liberdade vs. liberdade. O trabalhador é tratado como mercadoria, torna-se um produto, "vende a vida inteira", coisifica-se, aliena-se de sua condição humana. O assalariado perde sua individualidade, vira somente mais uma força de trabalho, mescla-se a uma categoria abstrata sem perspectiva de futuro a longo prazo, em que o importante é conseguir ganhar o "pão de cada dia".

A leveza com que um tema tão chocante, tão marcadamente pesado é tratado, é explícita na figura da liberdade morta, cadavérica, fria, boiando, o que porém não prejudica a mensagem engajada do texto. Além disso, pode se fazer leituras diversificadas, como no trecho "... bóia, fria" em que transparece a alusão aos trabalhadores bóias-frias.

INUNDAÇÃO
(José Sergival)
Enquanto a chuva não chega,
os olhos do torrão marejam
com os versos do poeta.

A princípio, esses versos parecem transcrever a emoção que a arte do poeta pode causar nos sertanejos. O título "Inundação" pode ser uma alusão ao sofrimento dos flagelados pela seca do nordeste (inundação decorrente de suas lágrimas). Do verso "os olhos do torrão marejam" é possível depreender que, enquanto não há chuva para fertilizar o solo árido, a cultura ("... os versos do poeta") é uma espécie de "adubo" para sua terra, bem como um conforto para o seu povo humilde e castigado.

Há uma oposição entre o tema da aridez do sertão nordestino e a virtual inundação desencadeada pelos versos do poeta (carência vs. abundância), que reforça a idéia que o contexto difícil em que vivem os sertanejos não os impedem de produzir uma cultura que emocione.

A beleza do poetrix reside na sua multiplicidade de interpretações, que só foi efetivada pela visibilidade da palavra "torrão". Além disso, há algo de muito sutil no tratamento dado a um assunto tão preocupante para a sociedade brasileira. A leveza do poema manifesta-se na maneira suave como tal problema é tratado.

CONSEQÜÊNCIA
(Jurandir Argolo)
na barriga
o vazio cria calo
a fome gera presídio

A rapidez e a força do silogismo final "a fome gera presídio" é de uma clareza, de uma evidência incontestável. É pungente a intenção de alertar que o estado de miséria permanente cria a criminalidade; que a fome, na imagem do calo (forma de defesa, de resistência corporal contra a dor cotidiana) que se forma com o tempo, é um incômodo social gerador de atritos desgastantes, de desordem civil.

A multiplicidade de sentidos se revela no título "Conseqüência", irônico por dar a entender uma relação causal determinista e inevitável contra a qual nada se pode fazer. Afinal, não é só a fome dos miseráveis a responsável pela marginalidade. Ao contrário, ela é sintoma de um contexto, de uma conotação mais abrangente que o poema mostra. Na barriga, o vazio cria calo, mas na mente o vazio de idéias, a falta de planos de ação eficazes, gera uma carência na sociedade, uma fome que é "tapeada" com resoluções paliativas, com presídios que trazem a falta de liberdade tanto para os presos quanto para os cidadãos trancafiados em suas casas, com medo.

A crítica social faz, desse modo, o esquema de confronto ação (criar, gerar) vs. não-ação (calo, fome).

NU
(Maristela Straccia)
temo o silêncio
quando ouço a nudez
de meu pensamento

A imagem construída pelas palavras "... nudez / de meu pensamento" caracteriza um estado de total desproteção do fluxo de idéias do eu-lírico, ou seja, sua mente está desprovida de qualquer carapaça que a possa disfarçar e, por isso, o temor do silêncio ao ficar sozinho, introspectivo, consiste no receio de constatar o "nada" em sua consciência, de descobrir-se uma pessoa vazia de conteúdo.

É possível fazer outra leitura à medida que se considera o pensamento como algo que agride a voz poética, e o temor do silêncio procede porque é nesse momento em que se está em contato com o próprio fluxo psíquico, o que se constitui um processo doloroso para o eu-lírico.

O embate semântico reside no par de antíteses superficialidade vs. conteúdo, que caracteriza o conflito pessoal de achar-se entre essas classificações.

A visibilidade do poema está manifestada na imagem da nudez do pensamento, que dá margem a uma multiplicidade de sentidos. A seleção das palavras, para construir um jogo de significados, comprova a exatidão do poetrix.

SONSAS
(Lilian Maial)
Estrelas
não dizem a verdade;
Elas piscam.

O poema nos leva a contemplação das estrelas e conseqüente conclusão de que somos apenas um ponto ínfimo no Universo. No entanto, a voz poética nos conforta, alegando que estrelas mentem, são sonsas, dissimuladas; talvez ainda sejamos importantes e a vida valha a pena.

Pode ser abordada de outra forma a questão da mentira. As estrelas iludem quem as vê, seja na dimensão, seja no tempo. Primeiro porque, devido à distância, somos incapazes de ter a noção do tamanho real delas; segundo, que olhar para o céu, é como observar o passado: muitas estrelas já se extinguiram há séculos, milênios, e sua luz ainda nos chega.

O último verso é uma evidência que comprova o "caráter" das estrelas. Afinal, fisicamente, o movimento do ar na atmosfera faz com que tenhamos a ilusão de ótica de que tais astros piscam. Ora, isso nos leva a conclusão popular de que "quem pisca, mente".

Há uma oposição semântica verdade vs. mentira presente no texto. A visibilidade nos é evocada pela própria imagem da piscadela e a multiplicidade é a possibilidade de várias interpretações.

SOS
(Pedro Cardoso)
em mim,
explodem os canhões.
sem motivos, estendo as mãos.

O poetrix retrata o conflito interior enfrentado pelo eu-lírico: é como uma guerra, onde canhões explodem, fazendo com que ele se veja na necessidade de pedir socorro. Essa mensagem está sintetizada no título "S O S".

Percebe-se a oposição semântica guerra interior vs. paz interior, sendo que a paz só será obtida com a ajuda de um ente externo. Por isso, o último verso diz: "... estendo as mãos".

Aliás, o ato de estender as mãos pode ser tanto um pedido de socorro como um gesto simbolizando a trégua. E é essa a grande imagem do poema.

A expressão "sem motivos..." também dá margem a uma ambigüidade. Ele está sem motivos aparentes para estender as mãos ou sem motivação alguma?

SÍSIFO
(Aila Magalhães)
gravidade e esperança
na pedra que não se contenta
com o meio do caminho apenas!

A evocação do mito grego Sísifo, logo no título, já sugere um certo cuidado com acréscimos interpretativos externos. Segundo CALVINO

"... toda interpretação empobrece o mito e o sufoca: não devemos ser apressados com os mitos; é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de uma linguagem imagística. A lição que se pode tirar de um mito reside na literalidade da narrativa, não nos acréscimos que lhe impomos do exterior." (1990:16-17)

O mito, na potência de sua imagem significativa, explora diversas interpretações. Sísifo, em sua eterna tarefa de rolar a pedra até o cume de um monte para que após isso a rocha deslize novamente e o trabalho recomece infinitamente, nos retrata a própria condição humana. Por outro lado "com o meio do caminho apenas!" remete-nos ao célebre poema de Carlos Drummond de Andrade.

O conflito se instaura de forma abrangente, segundo o esquema alto (esperança) vs. baixo (gravidade). O texto flui entre as oposições, entre a imagem da pedra, pesada, estorvo, e a leveza da esperança que não se contenta com os obstáculos, com o meio do caminho, com a força da gravidade agindo sobre os corpos, trazendo-os para o chão. O poema ganha vida, oscila, desliza, como a pedra em seu eterno trajeto, ora no alto, ora nas profundezas, num movimento dinâmico e ininterrupto.

SEMIÓTICOS
(Aníbal Beça)
A pá lavra
para a semeadura
A colheita se escolhe.

O tema desse poetrix já se manifesta no título "Semióticos". Fica clara a intenção de lidar com o sentido do texto, tanto em seu significante, no jogo "pá lavra", quanto no seu significado como um todo, aberto a múltiplas interpretações, porém com a ressalva de que a analogia cultivo/colheita com escrever/ler é propícia. O autor que "planta" um texto não sabe o que o leitor vai "colher". Cria-se então um conflito que pode ser expresso desta maneira: autor (plantar) vs. leitor (colher).

A visibilidade, a imagem fixada no poema é a palavra tornada semente, unidade que pode se potencializar de forma fecunda, dando frutos inesperados, dependendo de quem "escolhe o que vai colher", alimentando o espírito. Trata-se mesmo de um exercício semiótico, de construção de significados, de decifrar os diversos frutos que podem ser extraídos da terra lavrada pelo autor: o texto, com toda a sua multiplicidade latente, esperando pelo leitor coletor atento.

APÊNDICE: Entrevista com Goulart Gomes

O fundador do Movimento Internacional Poetrix, poeta Goulart Gomes, concedeu-nos uma breve entrevista. A seguir, os principais trechos.

1) De onde veio a idéia do poetrix? Como tudo começou?

R: Eu, como muitos outros poetas, escrevia tercetos acreditando que eram hai-kais. A maioria dos escritores não procura conhecer a essência do hai-kai antes de escrevê-lo ou, quando a conhecem, simplesmente passam por cima. Não concordo com isto, acredito que o hai-kai deva ser preservado como ele é desde há mil anos. Quando descobri que eu fazia algo diferente veio a necessidade de dar um nome diferente a isso. Em 1999, na Feira Internacional do Livro da Bahia (hoje, Bienal) lancei meu livro TRIX POEMETOS TROPI-KAIS - que foi premiado pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores - RJ, em 2000 - no qual coloquei o MANIFESTO POETRIX, propondo a nova linguagem.

2) Notamos certa resistência, sobretudo do meio acadêmico, frente ao poetrix. Por que o movimento não é tão conhecido? Há a idéia de intensificar a divulgação do projeto? Como?

R: Não diria que haja resistência ao poetrix no meio acadêmico. Talvez, pouco conhecimento. Como eu disse, meu livro de poetrix foi premiado pela Academia Carioca de Letras; nossa homepage está listada no site da UNESCO; professores da Faculdade Jorge Amado (Bahia) o tem disseminado; no curso de pós-graduação em Literatura Brasileira da Universidade Católica de Salvador, onde sou aluno, o poetrix também tem sido muito bem recebido. Vários críticos têm elogiado nossa proposta. Não temos do que reclamar. É verdade que o poetrix é pouco conhecido fora da Internet. Dentre outras ações para popularizá-lo estamos organizando, agora, uma antologia luso-brasileira que será distribuída aos "protocolos de consagração".

3) Quais as metas para o MIP num futuro próximo?

R: A única meta do MIP a curto, médio e longo prazo é continuar divulgando o Poetrix e os poetrixtas, nacional e internacionalmente.

4) Já que a principal mídia utilizada pelo movimento é a Internet, como você encara a questão dos direitos autorais?

R: É uma questão polêmica, sobre a qual nem mesmo a Justiça chegou a um consenso. O plágio sempre existiu e sempre existirá, seja lá qual for a mídia. Se plagiam obras impressas, com seus direitos autorais registrados, quanto mais o que é divulgado virtualmente! Sempre recomendo aos autores que registrem seus trabalhos que julgarem mais importantes, antes de divulgá-los.

5) Qual a relação entre Poetrix e Internet? O Poetrix é a poesia da Era Digital?

R: Uma das características da Era Digital é a velocidade. Velocidade na transmissão das informações, velocidade de consumo, velocidade na interatividade. Por ser breve, o poetrix guarda grande afinidade com esta característica. Além disso, ele se afina muito bem com os novos recursos tecnológicos, como apresentações em Power Point, Flash, etc. Há quem chame o Poetrix de "poeminha da internet", sem nenhum caráter pejorativo.

6) Você acredita que o Poetrix, por ser mais dinâmico, mais "rápido", é mais acessível para o público? Como tem sido a receptividade?

R: As pessoas dispõem de cada vez menos tempo para ler as tantas mensagens que lhes chegam. Talvez, por isso, o poetrix seja tão bem aceito. Ele é breve (apesar de que nem sempre deva ser lido com brevidade), busca a síntese e, ao mesmo tempo, com sua subjetividade, deixa uma grande margem para interação com o leitor. Geralmente quem lê um bom poetrix, duplix, triplix ou multiplix, gosta

7) Quais são as suas influências literárias? Quais poetas você lê dos "clássicos"? E dos contemporâneos?

R: Dos clássicos, Machado de Assis, Fernando Pessoa e Guimarães Rosa são minhas leituras preferidas. Dos contemporâneos gosto muito de João Cabral, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e Affonso Romano (citando apenas os de língua portuguesa).

8) Como você vê a qualidade, no geral, da literatura contemporânea?

R: Em todas as épocas coisas boas e ruins foram escritas. Os autores contemporâneos têm, a seu favor, um vastíssimo acervo cultural herdado. É preciso conhecê-lo bastante, estudá-lo, antes de se ter a pretensão de escrever.

9) Você acredita que o MIP pode entrar para a história da literatura brasileira, como os movimentos que costumamos estudar?

R: Estamos trabalhando para que isso aconteça. "É a parte que nos cabe neste latifúndio". Mas, não depende apenas de nós. Como diria o Ariano Suassuna, pode ser que sejamos vanguarda hoje e, amanhã, retaguarda. Só o tempo dirá.

10) Com a Internet, você acha que o brasileiro está lendo mais?

R: A Internet ainda não faz parte da realidade de milhões de brasileiros, que não tem nem o que comer, dependendo de esmolas públicas e privadas para sobreviver. São milhões de Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Saúde, Sem-Trabalho, Sem-Educação. Acho, sim, que a Internet propicia um incremento na leitura, apesar de que nem sempre a leitura certa. Sete dos dez sites mais visitados na Internet são de pornografia! Mas tenho certeza que se lê cada vez mais. Meus e-books gratuitos têm sido bastante lidos, assim como textos que tenho disponibilizado na Usina de Letras. Gostaria de convidá-los a conhecer os sites www.poetrix.org e www.goulartgomes.tk.

Fonte: http://www.movimentopoetrix.com/

Poetrix: Uma Proposta para o Novo Milênio (Goulart Gomes)

Em 1984 a Universidade de Harvard (USA), solicitou ao escritor e crítico Italo Calvino que elaborasse uma série de palestras a respeito das qualidades da escritura. Ao todo seriam seis palestras. Contudo, em 1985, este escritor nascido em Cuba, mas radicado na Itália, viria a falecer, deixando prontas apenas cinco palestras. Estas palestras foram reunidas em um livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras, sob o título “Seis Propostas Para o Próximo Milênio”.

Com sua vasta cultura, Calvino discorre com bastante elegância e propriedade acerca destas “qualidades” - Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade - fazendo um rico passeio pela literatura universal, desde os clássicos até os escritores contemporâneos.

Quinze anos depois, em 1999, durante a Feira Internacional do Livro da Bahia, eu viria a publicar o Manifesto Poetrix, que serve como introdução ao meu livro TRIX – POEMETOS TROPI-KAIS, premiado em 2000 pela União Brasileira de Escritores (RJ) e Academia Carioca de Letras. Naquele manifesto estão propostas as bases de uma nova linguagem poética, o POETRIX, que neste ano foi definido por um grupo de poetrixtas, reunidos na internet, como “terceto contemporâneo de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, possuindo figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico”.

Não pretendemos, neste texto, equiparar o poetrix aos demais subgêneros literários seculares existentes – a poesia, o romance, o conto etc – tão bem apresentados através da vasta erudição de Calvino em sua obra magistral, mas apenas demonstrar como as qualidades destacadas por ele também são pertinentes a este “caçula” do universo literário.

Logo na sua primeira palestra fui surpreendido com a seguinte afirmação de Calvino:

“No universo da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo...”

O poetrix surgiu justamente desta necessidade de renovação literária. Ele resgata e renova a poesia em tercetos, agregando-lhe uma profundidade e uma beleza metafórica sem precedentes.

GRAVIDEZ
(Goulart Gomes)
pingos pousam no brilho
a mulher cresce
nasce o filho

HEROESIA
(Sara Fazib)
de joelhos, reverente
provo a Tua presença
sarça ardente

Novas propostas requerem novos nomes. Poetrix (de Poe=poesia e trix=três), nascido nos estertores do milênio passado, propagado e multiplicado pelo “efeito internet”, representa muito bem esta união entre o clássico e o moderno, abrindo uma infinidade de caminhos e atalhos que podem ser trilhados pela nossa criatividade.

Mas, vamos aos conceitos desenvolvidos nas palestras. Na primeira delas, intitulada LEVEZA, ele nos diz:

“Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza”.

FLOR SECA
(Enrique Anderson - Argentina)
flor seca
entre páginas de poesias
ya es también poema

Curiosamente, a poetrixta Sara Fazib (SP) em carta aberta intitulada “Como Fazer Poetrix” à também poetrixta Andréa Abdala, em 23/05/2001, comenta:

“...penso no poetrix perfeito como um pequeno projétil que nos atinge direto
num órgão vital; um detonador de emoções; algo que nos dispara o coração,
o tesão; que atinge como um raio a nossa cabeça... o inesperado, a surpresa, caem muito bem no poetrix... O poetrix parece coisa fácil. Três versinhos. Mas vejo assim, não. Antes eu o considero um desafio de síntese, sensibilidade e criatividade. E concordo com o poeta Antonio Augusto de Assis, quando diz "que o micropoema será a poesia do novo milênio: diz o máximo no mínimo de tempo e espaço".

PESSOIX
(Goulart Gomes)
um terço de mim delira
um terço de mim pondera
outro terço, ah!, quem dera!

É justamente esta “surpresa” do poetrix que torna a mais densa, mais vasta, mais profunda mensagem em um texto leve, breve, na exigüidade das suas três linhas. O poder de síntese do poetrix faz levitar as idéias, sem retirar-lhes a profundidade.

Já em sua palestra sobre o tema RAPIDEZ, Calvino afirma:

“Nos tempos cada vez mais congestionados que nos esperam, a necessidade de literatura deverá focalizar-se na máxima concentração da poesia e do pensamento... A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer antes de mais nada agilidade, mobilidade, desenvoltura”

E noutro parágrafo conclui:

“O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do mot juste, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado.”

Os tempos “congestionados” preconizados por Calvino chegaram. São milhares as informações que nos chegam diariamente, desde o banner automático que se abre na tela do computador até o panfleto distribuído nos semáforos. É fácil constatar que o tempo fica cada vez mais escasso, principalmente tempo para ler, sempre preterido. Agilidade, mobilidade e desenvoltura são, assim, características naturais do poetrix.

DEMASIADUMANO
(Murillo Falangola)
eu genomo
tu genomas
nós tememos

NOVA EDIÇÃO
(Andréa Abdala)
Conto da carochinha,
mulher de verdade
não goza de mentirinha.

A fulguração repentina, a frase perfeita é a busca incessante do poetrixta, levado a representar o universo na brevidade das três linhas. Certamente aí está o segredo do seu sucesso no mundo virtual, onde tudo se move à velocidade do pensamento... ou dos modens.

APAGÃO, GÊNERO FEMININO
(Andréa Abdala)
Na rua escura
enxergo-me
light.

POETRIX MARINHO
(Fred Matos)
o mar o olhar abarca
o olhar o barco arca
o barco marca o mar

A terceira palestra de Calvino versa sobre EXATIDÃO. Em um determinado ponto ele nos diz que requer:

“... uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação... O poeta do vago só pode ser o poeta da precisão, que sabe colher a sensação mais sutil com olhos, ouvidos e mãos prontos e seguros”

ALCÓOLATRA
(Pedro Cardoso)
desaba
aos bafos
o bêbado

Quando o poetrixta dá um título – elemento fundamental - ao seu poetrix ele transforma o seu texto na sua tradução pessoal daquele conceito a partir do seu universo. A precisão com que ele tratará a sua abordagem fará toda a diferença, pois são o seu pensamento e a sua imaginação, únicos no mundo, que estarão ali representados. Tanto melhor o poetrix quanto com maior exatidão ele trate o seu tema:

BRAILE
(Gilson Luiz Siqueira)
cego de amor
leio-te
com a ponta dos dedos

FEROHORMÔNIO
(Sávio Drummond)
Pressinto-te no ar,
Farejo-te no vento.
Qual bicho ao relento.

Quando, na palestra seguinte, Calvino trata da VISIBILIDADE, ele nos traz uma série de correlações ente palavra e imagem. É como se além da palavra falada, escrita e cantada, ele quisesse nos falar da “palavra em movimento”:

“... a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens”

“O escritor – falo do escritor de ambições infinitas, como Balzac – realiza operações que envolvem o infinito de sua imaginação ou o infinito da contingência experimentável, ou de ambos, com o infinito das possibilidades lingüísticas da escrita... Seja como for, todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através da escrita”

É esta necessidade de traduzir, transcrever ou recriar o mundo através das palavras, tão típica do escritor, que ganha nova vida com o poetrix. O poetrix já nasceu imagético. No já citado livro que publiquei em 1999, há em anexo um disquete com apresentações animadas de alguns poetrix. Neste ano de 2001 nasceu o grafitrix, uma proposta do poetrixta Murillo Falangola (BA), que une o poetrix a imagens ou desenhos, permitindo uma maior diversidade na sua leitura.

Na última das palestras escritas, Calvino fala sobre MULTIPLICIDADE:

“Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função.”

E mais adiante:

“Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão”.

Em uma determinada data dois poetrixtas de Brasília, Tê Soares e Pedro Cardoso, tiveram a feliz idéia de juntar dois de seus poetrix formando um novo texto: estava criado o duplix. Esta idéia cresceu e surgiram o triplix e o multiplix, criações coletivas, permitindo uma série de possibilidades de (re)leituras do poetrix. Ousadia, coragem de navegar por novos mares. irrompendo fronteiras, derrubando barreiras, renovando a literatura.

JANTAR A DOIS // OLHOS NOS OLHOS
(Judith de Souza // Martinho Branco - Portugal)
O lume da vela//Na mesa da sala
o amor revela//o olhar embala
e vela//e fala

MARIPOSAS // BORBOLETAS
(Judith de Souza // Rodrigo M. de Avellar)
Em volta da lâmpada, // Aguardando a alvorada
a dança mortal e pagã // Falecendo a lagarta
ignora o amanhã. // Ressuscitará alada.

Para finalizar este trabalho, gostaria de transcrever uma outra citação de Calvino, que nos faz refletir sobre o poder que possuímos de modificar o mundo à nossa volta, de fazer com que concretizemos nossos sonhos, a partir da riqueza que todos nós possuímos em nosso universo de imagens e conhecimentos:

“Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”.

LA LUNA
(Everardo Torres - México)
Moría la luna
en el obscuro cielo
de unos ojos entrecerrados.

ÁGUA
(Goulart Gomes)
a água furou a pedra
moinhos de amsterdã
a manhã será mais bela...

Fonte: http://www.movimentopoetrix.com/

Entrevista com Goulart Gomes

Entrevista concedida a Ivan Cavalcanti Proença por Goulart Gomes

Entrevista concedida por Goulart Gomes, criador e coordenador geral do Movimento Internacional Poetrix a Ivan Cavalcanti Proença, Professor, Mestre e Doutor em Literatura. Autor de inúmeros livros/Ensaios de Literatura e Diretor/Professor da Oficina Literária mais antiga do Brasil.

Qual a inspiração mais atuante? Os micropoemas, poemas-minuto do Modernismo ou os tercetos orientais? Ou nenhum deles? Nesse caso, revelar a (s) fonte (s).

Eu diria que ambas. Rilke (1) afirmava que um poema é bom se nasceu pela necessidade. O POETRIX nasceu pela necessidade. Transmitir uma mensagem poética em apenas uma estrofe de três versos já impõe uma grande limitação; se, aliado a isto, temos ainda limitações temáticas ou estilísticas, a dificuldade torna-se ainda maior. Mas este não é o único entrave: perde-se em criatividade, perde-se a possibilidade de alçarmos maiores vôos. O POETRIX em sido chamado de "anti-haicai" ou "filho rebelde do haicai". Eu diria que ele é um 'herdeiro" do haicai, pela sua forma e um "herdeiro" dos micropoemas e poemas-minuto, pelo seu conteúdo. Mas, não esqueçamos que o terceto também tem uma tradição ocidental, oriunda dos terzettos italianos, praticados por Dante Alighieri.

O movimento literário Poetrix se vale de liberdades métrica e rímica, mas padrão estrófico. Como se explica, diante da, hoje, aceita conceituação de que Conteúdo é forma que vem à tona?

Conceitos são bons até que surjam outros, melhores, que os substituam. Qualquer paradigma só aguarda o momento de ser quebrado. O POETRIX preza a similicadência (frases com um mesmo ritmo ou cadência) ou, ao menos, o isocronismo (mais ou menos o mesmo número de sílabas) (2). Mas isto não é uma regra. Aliás, é sempre bom relembrar: não existem regras no POETRIX. No Manifesto Poetrix (3) apenas identificamos algumas características principais, que viriam a contribuir para a formulação da definição (ainda não definitiva) à qual chegaram os integrantes do Movimento Internacional Poetrix: um terceto contemporâneo, de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, possuindo figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico. Alguns teóricos defendem a opinião segundo a qual o que diferencia a poesia da prosa é o ritmo. Ainda assim, a poesia concreta despreza o ritmo; não seria ela, então, nem prosa nem poesia? O POETRIX insere-se no universo dos tercetos, possui padrão estrófico e rítmico mas, ao mesmo tempo, temos visto surgirem POETRIX CONCRETOS, no espaço das três linhas. O que vem à tona sempre é o conteúdo, na forma que melhor se adeque.

Os não-ditos e o jogo imagístico constituem a força, a essência dos poemas?

Em grande parte, sim. A nossa linguagem, ocidental, não tem o recurso "paisagístico" dos ideogramas japoneses. O grande haijin Masuda Goga (4) cita, em um dos seus livros, o escritor nipônico Ikutarô Nishida: "penso que uma forma poética como o haiku não poderá ser, absolutamente, traduzida para idioma estrangeiro... [ele]... mostra a atitude peculiar dos japoneses em relação à vida e ao mundo" . As mais bem intencionadas tentativas ocidentais (e principalmente brasileira, como a de Guilherme de Almeida) de prática do haiku - e sua adaptação, transformando-o em haicai - não passam de pálidos reflexos, sem a riqueza dos originais. Então, parodiando Caetano Veloso ("só é possível filosofar em alemão"): só é possível fazer haiku em japonês. Por aqui, "atropelamos" o haicai. A maioria dos poetas, por absoluto desconhecimento, acredita que está fazendo haicai, mas não. Ignoram o kigo (emoções vinculadas a estações do ano), o haimi (sabor, essência), o kireji (cadência). Para compensar esta nossa "desvantagem" visual, o POETRIX traz a imagética para o texto. O não-dito, por vezes, fala mais. Reconstruímos as imagens com o que nos permitem as palavras, incorporando figuras de linguagem, o non-sense, o humor. Acredito que, principalmente por isso, o POETRIX esteja sendo tão bem aceito por poetas do México, Argentina, Espanha e Portugal, dentre outros. Ele já "nasceu" ocidental, adequado à nossa escrita e facilmente assimilável pelas mais diferentes culturas.

Poetrix resulta do experimentalismo de vanguarda, da exaustão do Modernismo, ou de uma retomada da idéia de que "não sabemos o que queremos, mas sabemos o que não queremos!"

O POETRIX sabe o quer: tornar-se uma nova linguagem poética, que permita ao autor realizar altos vôos num curto espaço, "desengessar" o terceto, retirar-lhe as amarras, torná-lo contemporâneo. O POETRIX surge no "rastro" de poetas como Leminsky, Millor e Cacaso e totalmente adequada à dinâmica e à velocidade da informação no cibermundo em que vivemos. Mas o enigma da literatura brasileira hoje é: Onde termina (ou terminou) o Modernismo? Esse movimento quase octogenário é um divisor de águas. O recente e polêmico livro Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizado por José Nêumanne Pinto, tem a sua primeira parte intitulada "Pré-Modernismo", adotando o conceito de Alceu Amoroso Lima: "o que concede ao prefixo pré uma conotação meramente temporal de anterioridade". Nela estão elencados poetas tão distintos quanto Augusto dos Anjos e Machado de Assis! E o que aconteceu após a Semana de 22 que realmente se diferenciasse da proposta modernista? Talvez, apenas, o Concretismo e o Poema-Processo, que tem um apelo muito mais visual, gráfico, do que semântico. Hoje, temos bons poetas românticos, simbolistas, parnasianos, modernos; sonetistas, cordelistas, trovadores, de visuais, de versos livres. Vivemos uma agradável "babel", onde todos se entendem. Neste ponto, sim, o conteúdo é forma que vem à tona... de qualquer forma! O Modernismo deu um tiro de misericórdia nas "escolas literárias" ou, como diria Raul Seixas, "faça o que tu queres pois é tudo da Lei". Melhor seria considerar o POETRIX como resultante do experimentalismo de vanguarda, da busca por novas formas de expressão da nossa criatividade ou, apenas um exercício do que preconiza o mestre Ferreira Gullar: é preciso, ao poeta, elaborar a sua linguage,.

Agradeço à Amélia Alves pela oportunidade de conceder esta entrevista, ao mestre Ivan C. Proença pelo brilhantismo das questões levantadas e convido todos os leitores a conhecerem mais o POETRIX visitando: http://www.movimentopoetrix.com

______________________________________________________________

Rilke, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta.
Garcia, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna.
Gomes, Goulart. Trix Poemetos Tropi-kais.
Goga, H. Masuda. O haicai no Brasil.
Pinto, José Nêumanne, Os cem melhores poetas brasileiros do século.

Fonte: www.movimentopoetrix.com

domingo, 6 de janeiro de 2008

Trovas Humorísticas

PEDRO ORNELLAS

A situação tá tão feia,
minha grana tão escassa,
que o vizinho churrasqueia
e eu passo o pão na fumaça!
**********
Um pé de vento traquinas
vez em quando me tapeia,
ergue a saia das meninas
e enche meus olhos de areia!
**********
No perigo, fico esperto;
quando é briga, mato ou morro!
Se não tiver morro perto
é para o mato que eu corro!
**********
-Tem café? Pergunta a esmo
o louco ao dono do bar.
-Saiu agorinha mesmo!
-E demora pra voltar???
**********
“Vá lá ver se chove ou não”
E o filho (também deitado):
“Ir lá, prá que? Chame o cão,
e vê se ele tá molhado!”
**********
Chegou tarde, a vista torta
do boteco, o Zé Morais...
viu DUAS SOGRAS na porta
- e não bebeu nunca mais!
**********
Fazendo pose de nobre
passa o rico num carrão...
Mas, carro levando pobre,
é ambulância ou camburão!
**********
“PRESERVE O MEIO AMBIENTE”
E o luso, junto ao letreiro:
“Mas por que meio somente
e não o ambiente inteiro?”
**********
Passa talquinho a vovó
na assadura do vovô...
Diz a velha: “Pó pô pó?”
e ele, à vontade: “Pó pô!”


MARIA NASCIMENTO

A moça perdeu o rumo
quando o namoro esquentou...
E atrás da moita de fumo
quase que a cobra fumou...
**********
Comeu goiaba exultando,
mas quase esvaiu-se em baba,
quando viu se estrebuchando
meio bicho na goiaba...
**********
"A bruxa anda solta" aqui...
disse o meu genro e correu
quando entendeu que entendi
que a tal da bruxa era eu...
**********
A guiar num caminhão,
"barbeiro "como ninguém,
entrou mal na contramão,
mas veio o Guarda, e entrou bem!
**********
No documento é solteira,
mas vendo a idade da dona,
diz a patroa encrenqueira:
solteira, não, solteirona...
**********
Minha sogra, honrando bem
seu conhecido conceito,
diz que genro sempre tem
abundância... de defeito.
**********
Perto de oitenta e donzela
Ainda pede a Santo Antônio
pra que interceda por ela
nas tentações do Demônio...
**********
O chofer ficou "por conta"
ao ser fechado na rua
por uma perua tonta
que guiava outra perua...
**********
Acusando a carestia,
sai quase nua , a vizinha,
e diz que é uma fantasia
boa, barata e fresquinha...
**********
Tem muitos "anos de estrada",
mas se fingindo inibida,
já foi muito mais testada
do que pista de corrida...
**********
O doutor ao ancião :
- mulherzinha lhe faz mal ?
- Doutor, se eu não sou anão,
por que não mulher normal ?
**********
Pão-duro, morto-de-fome,
o meu vizinho Gastão
diz a todos que não come
com medo de indigestão ...
**********
Incurso em poligamia,
depois que foi condenado,
disse : - Credo! eu nem sabia
que já tinham me casado !
**********
O frango já não esquenta
quando a franga sai da linha...
afinal ele "comenta":
- galinha é sempre galinha...
**********
O vizinho tem mania
de não pegar no pesado,
pois, quando chegar seu dia,
quer morrer bem descansado
**********
Fungava a sogra com asma
e o genro dela já farto,
gritou: - socorro! Um fantasma
está rondando o meu quarto...
**********
Velava o esposo ainda quente
mas sendo boa, a viuvinha,
convocou seu pretendente
para não chorar sozinha!...
**********
Com cara aportuguesada,
no Cartório: É brasileira?
E a mulher, muito invocada :
- uai moço, eu não: sou mineira!
**********
Seu "hobby" era trabalhar,
mas tinha tanta preguiça
que, até pra se espreguiçar
ficava "enchendo lingüiça"...
**********
Na cama é amante perfeito,
já fora de garantia,
porque apresenta um defeito
só dorme, ronca e assobia...
**********
Quando a Sara viu o custo
do tratamento que fez,
foi tão violento o susto
que adoeceu outra vez !
**********
Ele ronca e não desperta
e a mulher por previdência,
deixa a porta sempre aberta,
para "casos" de emergência...
**********
A donzela em confissão,
diz que é moça inconformada,
porque fez muito arrastão,
mas nunca foi arrastada...
**********
Um gaiato de mau gosto,
vendo um gordo esbaforido,
disse: é suor no teu rosto
ou toicinho derretido! ?
**********
Foi pescar, mas preferiu
Por viagra, na isca, o ZÉ :
- no rio, nunca se viu
tanta manjuba de pé...
**********
Mostrando o corpo bem feito,
protestou em altos brados,
sentindo as mãos de um sujeito
testando os seus predicados...
**********
A coroa quis casar
com um garoto glutão
e agora tem que provar
que entende bem... de fogão...

sábado, 5 de janeiro de 2008

H. P. Lovecraft (1890 - 1937)

H. P. Lovecraft é um exemplo extraordinário da literatura moderna. Não pode ser considerado apenas um escritor de histórias de terror. Seus livros e contos carregam uma carga fortíssima de fantasia e imaginação. Suas principais influências são os gênios Edgar Allan Poe, Hoffmann e Arthur Machen.

Lovercraft foi em vida, um homem realmente estranho. Quase não tinha amigos e se comportava como um misantropo. Foi um escritor compulsivo de cartas, com mais de 100 mil registradas durante sua vida. Comparado ao talento imaginativo de Lewis Carrol e J.R.R. Tolkein, Lovecraft morreu praticamente desconhecido do público e crítica.

Howard Phillips Lovecraft (Providence, Rhode Island, 20 de Agosto de 1890 – 15 de Março de 1937) foi um escritor norte-americano celebrizado pelos seus livros de fantasia e terror, marcadamente gótico, enquadrados por uma estrutura semelhante à da ficção científica.

Durante a sua vida teve um número relativamente pequeno de leitores, mas a sua obra veio a tornar-se uma forte influência e referência em escritores de horror. Era assumidamente conservador e anglófilo, sendo por isso habituais no seu estilo os arcaísmos e a utilização de vocabulário e ortografia marcadamente britânicos.

Biografia
Lovecraft foi o único filho de Winfield Scott Lovecraft, negociante de jóias e metais preciosos, e Sarah Susan Phillips, vinda de uma família notória que podia traçar suas origens diretamente aos primeiros colonizadores americanos, casados numa idade relativamente avançada para a época. Quando contava três anos, seu pai sofreu uma aguda crise nervosa que deixou sequelas profundas, obrigando-o a passar o resto de sua vida em clínicas de repouso.

Assim, ele foi criado pela mãe Sarah, por duas tias, e por seu avô, Whipple van Buren Phillips. Lovecraft era um jovem prodígio que recitava poesia aos dois anos e já escrevia seus próprios poemas aos seis. Seu avô encorajou os hábitos de leitura, tendo arranjado para ele versões infantis da Ilíada e da Odisséia, de Homero, e introduzindo-o à literatura de terror, ao apresentar-lhe clássicas histórias de terror gótico.

Lovecraft era uma criança constantemente doente. Seu biógrafo, L. Sprague de Camp, afirmou que o jovem Howard sofria de poiquilotermia, uma raríssima doença que fazia com que sua pele fosse sempre gelada ao toque. Devido aos seus problemas de saúde, ele frequentou a escola apenas esporadicamente mas lia bastante.

Seu avô morreu em 1904, o que levou a família a um estado de pobreza, em decorrência da incapacidade das filhas de gerenciar os bens deste. Foram obrigados a se mudar para acomodações muito menores e insalubres, o que prejudicou ainda mais a já débil saúde de Lovecraft. Em 1908, ele sofreu um colapso nervoso, acontecimento que impediu-o de receber seu diploma de graduação no ensino médio e, consequentemente, complicou sua entrada em uma universidade. Esse fracasso pessoal marcaria Lovecraft pelo resto de seus dias.

Em seus dias de juventude, Lovecraft se dedicou a escrever poesia, mergulhando na ficção de terror apenas a partir de 1917. Em 1923, ele publicou seu primeiro trabalho profissional, Dagon, na revista Weird Tales. Sua mãe nunca chegou a ver nenhum trabalho do filho publicado, tendo morrido em 1921, após complicações em uma cirurgia.

Lovecraft trabalhou como jornalista por um curto período de tempo, durante o qual conheceu Sonia Greene, com quem viria a casar. Ela era judia natural da Ucrânia, oito anos mais velha que ele, o que fez com que sua tias protestassem contra o casamento. O casal mudou-se para o Brooklyn, na cidade de Nova Iorque, cidade que Lovecraft nunca gostou. O casamento durou poucos anos e, após o divórcio amigável, Lovecraft regressou a Providence, onde moraria até morrer.

O período imediatamente após seu divórcio foi o mais prolífico de Lovecraft, no qual ele se correspondia com vários escritores estreantes de horror, ficção e aventura. Entre eles, seu mais ávido correspondente era Robert E. Howard, criador de Conan o Bárbaro. Algumas das suas mais extensas obras, Nas Montanhas da Loucura e O Caso de Charles Dexter Ward, foram escritas nessa época.

Seus últimos anos de vida foram bastante difíceis. Em 1932, sua amada tia Lillian Clark, com quem ele vivia, faleceu. Lovecraft mudou-se para uma pequena casa alugada com sua tia e companhia remanescente, Annie Gamwell, situada bem atrás da biblioteca John Hay. Para sobreviver, considerando-se que seus próprios textos aumentavam em complexidade e número de palavras (dificultando vendas), Lovecraft apoiava-se como podia em revisões e "ghost-writing" de textos assinados por outros, inclusive poemas e não-ficção. Em 1936, a notícia do suicídio de seu amigo Robert E. Howard deixou-o profundamente entristecido e abalado. Nesse ano, a doença que o mataria (câncer no intestino) já avançara o bastante para que pouco se pudesse fazer contra ela. Lovecraft suportou dores sempre crescentes pelos meses seguintes, até que em 10 de março de 1937 viu-se obrigado a se internar no Hospital Memorial Jane Brown.

Ali morreria cinco dias depois. Contava então 46 anos de idade.

Howard Phillips Lovecraft foi enterrado no dia 18 de março de 1937, no cemitério Swan Point, em Providence, no jazigo da família Phillips. Seu túmulo é o mais visitado do local, mas passaram-se décadas sem que seu túmulo fosse demarcado de forma exclusiva. No centenário de seu nascimento, fãs norte-americanos se cotizaram para inaugurar uma lápide definitiva, que exibe a frase "Eu sou Providence", extraída de uma de suas cartas.

Obras

Muitos dos trabalhos de Lovecraft foram diretamente inspirados por seus constantes pesadelos, o que contribuiu para a criação de uma obra marcada pelo subconsciente e pelo simbolismo. As suas maiores influências foram Edgar Allan Poe, por quem Lovecraft nutria profunda afeição, e Lord Dunsany, cujas narrativas de fantasia inpiraram as suas histórias em terras de sonho. Suas constantes referências, em seus textos, a horrores antigos e a monstros e divindades ancestrais acabaram por gerar algo análogo a uma mitologia, hoje vulgarmente chamada Cthulhu Mythos, contendo vários panteões de seres extradimensionais tão poderosos que eram ou podiam ser considerados deuses, e que reinaram sobre a Terra milhões de anos atrás. Entre outras coisas, alguns dos seres teriam sido os responsáveis pela criação da raça humana e teriam uma intervenção directa em toda a história do universo.

A expressão Cthulhu Mythos foi criada, após a morte de Lovecraft, pelo escritor August Derleth, um dos muitos escritores a basearem suas histórias nos mitos deste. Lovecraft criou também um dos mais famosos e explorados artefactos das histórias de terror, o Necronomicon, um fictício livro de invocação de demônios escrito pelo, também fictício, Abdul Alhazred, sendo até hoje popular o mito da existência real deste livro, fomentado especialmente pela publicação de vários falsos Necronomicons e por um texto, da autoria do próprio Lovecraft, explicando a sua origem e percurso histórico.

Fontes:
http://www.virtualbooks.com.br/ (in CD-ROM Biblioteca Eletrônica vol. III. Magister)
pt.wikipedia.com

H. P. Lovecraft (Conto: Vento Frio)

Vento Frio

Indagas-me por que receio as rajadas de vento frio; por que tremo mais que as pessoas comuns ao entrar num aposento gélido e sinto náusea e repulsa quando a friagem da noite se insinua, furtiva, pelo calor de um suave dia de outono. Há quem diga que eu reajo ao frio de modo semelhante ao que outros reagem ao fedor, e serei o último a desmentir essa impressão. O que farei será relatar a situação mais horripilante em que já me encontrei e deixar a ti a tarefa de julgar se ela representa ou não urna explicação satisfatória para essa minha esquisitice.

É falso imaginar que o horror esteja associado indissoluvelmente com o negrume, o silêncio, a solidão. Eu o conheci no esplendor fulgurante de urna tarde de sol, em meio ao clangor da metrópole e no ambiente apinhado de uma pobre e comuníssima casa de pensão, tendo a meu lado uma senhoria prosaica e dois homens robustos. Em meados de 1923, eu conseguira um emprego enfadonho e pouco rendoso numa revista, em Nova Iorque; e na impossibilidade de pagar o aluguel de uma moradia decente, comecei a vagar de uma pensão barata para outra, em busca de um quarto que combinasse as qualidades de limpeza adequada, mobiliário tolerável e preço bastante módico. Constatei, antes que passasse muito tempo, que só me restava optar entre diferentes males; entretanto, pouco depois dei com uma casa na Rua 14 Oeste que me repugnava muito menos do que as outras que eu havia experimentado.

Era uma mansão de grés pardo, com quatro pavimentos, que datava aparentemente de fins da década de 1840, com mármores e madeirames cuja magnificência enodoada e manchada lembrava que no passado o prédio conhecera altos níveis de elegante opulência. Os quartos, amplos e de enorme pé-direito, decorados com um papel de parede inacreditável e com cornijas ridiculamente complicadas, tinham um deprimente bafo de bolor, bem corno um vago cheiro de cozinha; entretanto, o chão era limpo, a roupa de cama bastante aceitável e a água quente nem sempre estava fria ou desligada, de modo que vim considerar a casa como um lugar pelo menos suportável para hibernar até poder realmente voltar a viver. A senhoria, uma espanhola desmazelada e quase barbada, chamada Herrero, não me amolava com mexericos ou reclamações a respeito da luz que eu deixava acesa até tarde em meu quarto, no terceiro andar, dando para a rua; e os demais pensionistas eram tão sossegados e calados quanto se poderia desejar. Eram na maioria espanhóis, só um pouco acima do nível mais grosseiro e ínfimo. O único motivo realmente sério de aborrecimento era o ruído dos bondes na rua.

Eu já estava residindo ali bem umas três semanas quando ocorreu o primeiro incidente insólito. Certa noite, por volta das oito horas, escutei um barulho como que de líquido que caísse no chão, e de repente me dei conta que já fazia algum tempo que o ar estava impregnado de um penetrante odor de amônia. Olhando em torno, vi que o teto estava molhado e gotejante; parecia que a infiltração provinha de um canto do lado que dava para a rua. Ansioso por cortar o mal pela raiz, desci depressa para falar à senhoria, que me garantiu que o problema seria logo resolvido.

- El doctor Muñoz -comentou ela, subindo as escadas correndo, em minha frente - deve ter derramado seus produtos químicos. Está fraco demais para cuidar de si próprio... cada vez mais fraco... pero no tiene nadie que pueda ayudarlo. E muito esquisito com essa doença dele... toma banhos de cheiros estranhos o dia inteiro, nem pode ficar nervoso ou sentir calor. Ele mesmo arruma o quarto... o quartinho dele vive cheio de garrafas e máquinas e ele não pratica mais a medicina. Mas antigamente ele foi famoso... mi padre ouviu falar dele em Barcelona... e há poco tiempo tratou o braço do bombeiro que cuida do encanamento e que começou a doer de repente. Ele nunca sai, só vai até o terraço, e mi hijo, Esteban, traz, para ele comida, roupa limpa, remédios e produtos químicos. Diós, a quantidade de sal amoníaco que esse hombre usa para se refrescar!

A Sra. Herrero desapareceu pela escada do quarto andar e eu voltei para meu quarto. A amônia parou de pingar e eu sequei a que havia caído. Enquanto abria a janela para arejar o cômodo, ouvi os passos pesados da senhoria no andar de cima. Quanto ao Dr. Muñoz, eu nunca havia escutado seus passos, lentos e macios. Só havia escutado um ruído que parecia ser o de um mecanismo com motor a gasolina. Fiquei a imaginar, por um momento, qual poderia ser a estranha enfermidade desse homem e se sua recusa obstinada em aceitar auxílio não resultaria de uma excentricidade infundada. Lembro-me de ter tido um pensamento banal, o de quanto é patética a situação de urna pessoa eminente que decaiu socialmente.

Talvez eu jamais viesse a conhecer o Dr. Muñoz se não fosse o ataque cardíaco que de repente me acometeu numa tarde em que eu estava escrevendo em meu quarto. Médicos haviam-me falado do perigo que representam tais crises, e eu sabia que não havia tempo a perder; por isso, ao me recordar do que a senhoria tinha dito sobre a ajuda que o inválido prestara ao bombeiro, arrastei-me pela escada e bati debilmente à porta do quarto que ficava em cima do meu. Minha batida foi respondida em bom inglês por uma voz curiosa, mais ou menos à direita, que me indagou o nome e profissão. Uma vez respondidas as perguntas, abriu-se um pouco a porta ao lado daquela em que eu batera.

Recebeu-me uma lufada de ar frio; e embora o dia fosse um dos mais tórridos do fim de junho, tive um estremecimento ao transpor a porta e entrar num espaçoso apartamento, cuja decoração suntuosa e de bom gosto constituiu uma surpresa naquele ninho de penúria e miséria. Um sofá dobrável atendia, agora de dia, à sua função de sofá, e o mobiliário de mogno, o magnífico papel de parede, as pinturas antigas e as esplêndidas estantes de livros indicavam antes o estúdio de um fidalgo que um quarto de pensão. Percebi então que o quarto que ficava sobre o meu - o quartinho com garrafas e máquinas, mencionado pela Sra. Herrero - era simplesmente o laboratório do doutor e que seus aposentos principais ficavam naquele amplo apartamento adjacente, cujas alcovas corretas e o grande quarto de banho lhe permitia ocultar toda roupa e objetos gritantemente utilitários. O Dr. Muñoz, evidentemente, era um homem com berço, cultura e excelente gosto.

A figura que eu tinha diante de mim era a de um homem baixo, mas muito bem proporcionado, trajado numa indumentária um tanto formal, de corte e feitio perfeitos. Um rosto bem-feito, de expressão senhoril, mas em nada arrogante, tinha a orná-lo uma barba aparada e um pouco grisalha, enquanto um pincenê antiquado se antepunha a olhos grandes escuros, equilibrando-se num nariz aquilino que dava um toque mourisco a urna fisionomia em tudo mais marcadamente celtibérica. Uma cabeleira basta e bem-tratada, que indicava visitas regulares de um barbeiro, partia-se com muita elegância sobre a testa alta. E toda a impressão que aquele vulto transmitia era de acentuada inteligência, origens nobres e excelente educação.

Não obstante, ao contemplar o Dr. Muñoz naquela lufada de ar frio, fui tomado de uma repugnância que nada em seu aspecto poderia justificar. Somente sua tez, que se inclinava à palidez e a frieza do toque de sua mão poderiam ter dado uma base física a essa sensação, porém mesmo essas coisas teriam de ser relevadas, dada a notória invalidez do homem. É ainda possível que tenha sido aquele frio singular que me indispôs, pois tamanha gelidez era anormal num dia tão quente, e o anormal sempre desperta aversão, suspeita e temor.

........No entanto, a repulsa logo cedeu lugar à admiração, uma vez que a extrema perícia daquele estranho médico se manifestou incontinenti, a despeito da algidez e do tremor de suas mãos exangues. A um olhar ele compreendeu minhas necessidades, atendendo-as com habilidade de mestre; enquanto me assistia, consolava-me com voz harmoniosamente modulada, embora inusitadamente oca e sern timbre, assegurando-me ser o mais implacável dos inimigos da morte, e que havia dissipado sua fortuna e perdido todos os amigos numa vida inteira de experiêcias extravagantes, dedicadas à repressão e extirpação de tamanho flagelo. Parecia haver nele um certo fanatismo benevolente, e ele não cessava de divagar, quase garrularnente, enquanto me auscultava o peito e preparava uma beberagem de drogas trazidas de seu pequeno laboratório. Era evidente que a companhia de uma pessoa bem-nascida representava para ele uma rara novidade naquele ambiente de indigência e o levava a uma desusada loquacidade, ao ser empolgado por recordações de dias melhores.

Sua voz, embora estranha, era ao menos apaziguadora; e eu não percebia sequer o som de sua respiração enquanto ele pronunciava aqueles longos períodos, tão cheios de lhaneza. O doutor procurava afastar meus pensamentos da crise cardíaca, discorrendo sobre suas teorias e experiências. Lembro-me bem do tato com que ele procurou consolar-me da debilidade de meu coração, insistindo em que a vontade e a consciência são mais fortes do que a própria vida orgânica, de forma que se urna organização física for originalmente saudável e preservada com cuidado pode, mediante um realce cientifico dessas qualidades, reter uma espécie de animação nervosa, apesar das mais sérias lesões, defeitos ou mesmo ausências no conjunto de órgãos específicos. Algum dia, dis-se-me ele meio a brincar, poderia me ensinar a viver (ou ao menos manter alguma espécie de existência consciente) até mesmo sem coração! Quanto a si, afligia-o uma série de enfermidades que exigiam um regime rigorosíssimo, que incluía o frio constante. Qualquer elevação marcada da temperatura poderia, caso se prolongasse, afetá-lo de maneira fatal; e a frialdade de sua moradia, cerca de 13º centígrados, era mantida por um sistema absorvente de arrefecimento a amônia. As bombas do sistema eram impulsionadas pelo motor a gasolina que eu já escutara de meu quarto.

Aliviado de minha crise num tempo maravilhosamente breve, deixei aqueles aposentos frígidos como discípulo e servidor do talentoso recluso. Depois disso, fiz-lhe várias visitas, devidamente agasalhado. Ouvia-lhe o relato de pesquisas secretas e resultados quase espantosos, e estremecia um pouco ao examinar os volumes incomuns e inacreditavelmente antigos em suas estantes. Por fim, convém acrescentar, fiquei quase curado para sempre de minha doença, devido à sua terapia tão efetiva. Ao que parece, ele não desdenhava os encantamentos dos medievalistas, porquanto acreditava que essas fórmulas crípticas contivessem raros estímulos psicológicos, que poderiam, concebivelmente, exercer efeitos singulares na substância de um sistema nervoso que tivesse sido abandonado pelas pulsações orgânicas. Comoveu-me o que ele contou sobre o idoso Dr. Torres, de Valência, que compartilhara com ele suas primeiras experiêcias, e que cuidara dele por ocasião da grave enfermidade que o acometera dezoito anos antes, e da qual procedia sua atual debilitação. Pouco depois de haver o venerando facultativo salvo o colega, ele próprio sucumbira ao horrendo inimigo que combatera. Possivelmente o esforço tivesse sido excessivo; o Dr. Muñoz deixou claro, em sussurros (conquanto não descesse a minúcias), que os métodos de cura haviam sido excepcionalíssimos, envolvendo cenas e processos desaprovados por galenos idosos e conservadores.

Com o passar das semanas, observei com pesar que, com efeito, meu novo amigo estava, lenta mas inequivocamente, perdendo suas forças, tal como sugerira a Sra. Herrero. O aspecto lívido de sua fisionomia se intensificava, a voz se fazia mais vazia e indistinta, seus movimentos musculares mostravam menor coordenação, seu espírito e sua força de vontade revelavam menos
fortaleza e iniciativa. Não parecia ele de modo algum desatento a essa triste transformação, e pouco a pouco tanto sua expressão quanto sua conversa foram adquirindo uma ironia desagradável que restaurou em mim a repulsa sutil que eu havia sentido de início.

Ele foi cultivando caprichos esquisitos, afeiçoando-se a especiarias exóticas e incenso egípcio até que seu quarto recendia como a tumba de um faraó no Vale dos Reis. Ao mesmo tempo, aumentava seu desejo de ar frio, e com minha ajuda ele ampliou a tubulação de amônia de seu quarto e modificou o sistema de bombas e a alimentação de sua máquina de refrigeração, até conseguir manter a temperatura entre 1º e 4,5º centígrados e, finalmente, na casa de 2º centígrados negativos. O banheiro e o laboratório, naturalmente, eram menos frios, para que a água não se congelasse no encanamento e os processos químicos não se vissem prejudicados. O inquilino do cômodo ao lado do dele queixou-se do ar gélido que entrava pela porta de ligação; por isso, ajudei o doutor a instalar re-posteiros pesados, que mitigassem o problema. Uma espécie de horror crescente, de feitio bizarro e mórbido, parecia possuí-lo. Ele falava da morte sem cessar, mas ria cavamente quando coisas como providências fúnebres ou de sepultamento eram obliquamente sugeridas.

De maneira geral, ele se converteu em companhia desconcertante e até repelente. Contudo, por gratidão ao modo como ele me curara, eu não me dispunha a abandoná-lo aos estranhos que o cercavam, e tinha o cuidado de espanar-lhe o quarto e atender às suas necessidades de cada dia, metido num sobretudo pesado que eu havia comprado especialmente para esse fim. Da mesma forma, eu fazia grande parte de suas compras e observava com assombro alguns dos produtos químicos que ele encomendava a farmacêuticos e fornecedores de laboratórios.

Uma crescente e inexplicada atmosfera de pânico parecia avolumar-se em seu apartamento. Toda a casa, como já foi dito, recendia a bolor; entretanto, o odor em seu apartamento era pior e, apesar de todas as especiarias e do incenso, bem como dos acres produtos químicos dos banhos (agora contínuos) que ele insistia em tomar sem ajuda, percebi que o cheiro deveria estar ligado à sua enfermidade, e tive um calafrio ao refletir sobre qual poderia ser. A Sra. Herrero persignava-se ao olho e deixou-o de bom grado aos meus cuidados, sem nem mesmo permitir que o filho, Esteban, continuasse a lhe prestar serviços. Quando eu sugeria que ele buscasse o auxílio de outros médicos, o inválido revelava fúria, tão grande quanto ele parecia atrever-se a demonstrar. Era evidente que ele receava o efeito físico da emoção violenta, e no entanto sua força de vontade e seus ímpetos antes se fortaleciam que minguavam, e ele se recusava a guardar o leito. A lassidão dos primeiros tempos de sua enfermidade deu lugar a um retorno de sua disposição fogosa, de modo que ele parecia arremessar reptos ao rosto do demônio da morte no momento mesmo em que esse antigo inimigo se apossava dele. A simulação do comer, que sempre fora, curiosamente, quase um formalismo, foi praticamente abandonada; e somente a força mental parecia protegê-lo do colapso total.

Adquiriu ele o hábito de redigir longos documentos que cuidadosamente lacrava e cercava de recomendações para que eu os transmitisse, após sua morte, a certas pessoas por ele nomeadas -na maioria letrados das Índias Orientais, mas entre as quais havia um outrora famoso médico francês, hoje em geral tido como morto, e a respeito de quem as coisas mais inconcebíveis haviam sido murmuradas. Quero dizer desde logo que queimei todos esses papéis, sem entregá-los nem abrí-los. Seu aspecto e sua voz se tomaram assustadores ao extremo, e sua presença quase insuportável. Num certo dia de setembro, ao vê-lo de relance, um homem que tinha vindo consertar sua lâmpada elétrica de mesa foi tornado de uma crise epiléptica, crise essa para a qual o doutor prescreveu remédios eficientes, enquanto se mantinha longe da vista. Aquele homem, é bom que se diga, havia passado pelos horrores da grande guerra sem haver sucumbido a um susto tão medonho.

Foi então que, em meados de outubro, sobreveio, com subitaneidade estarrecedora, o horror dos horrores. Numa noite, mais ou menos às onze horas, a bomba da máquina refrigeradora quebrou-se, de forma que dentro de três horas o processo de resfriamento amoniacal se tornou impossível. O Dr. Muñoz chamou-me, batendo com os pés no chão, e pus-me a trabalhar desesperadamente para reparar o dano, enquanto meu anfitrião praguejava num tom cuja cavidade inerte e impetuosa foge a qualquer descrição. Não obstante, meus esforços amadorísticos foram baldados; tendo ido buscar um mecânico de uma garagem vizinha, que ficava aberta a noite toda, ficamos sabendo que nada poderia ser feito até de manhã, quando um novo pistão teria de ser adquirido. A indignação e o medo do ermitão moribundo, elevando-se a proporções grotescas, parecia ser de molde a destruir o que restava de seu físico fraquejante; e em certo momento um espasmo fez com que ele levasse as mãos aos olhos e corresse ao banheiro. Saiu dali tateando o caminho, com o rosto envolvido em bandagens, e nunca mais lhe vi os olhos.

O frio do apartamento diminuía agora sensivelmente, e ao dar as cinco da manhã o médico retirou-se para o banheiro, ordenando-me que o mantivesse abastecido com todo o gelo que eu pudesse obter em farmácias e bares. Ao voltar de minhas excursões, às vezes desencorajadoras, e
deitar o que havia conseguido junto à porta do banheiro, eu escutava um contínuo espadanar de água lá dentro, enquanto uma voz grossa pedia "Mais... mais!" Por fim, raiou um dia quente, e uma a uma as lojas se abriram. Pedi a Esteban que ajudasse com o provisionamento de gelo enquanto eu ia adquirir o pistão da bomba, ou que encomendasse o pistão enquanto eu continuava a buscar gelo; no entanto, instruído pela mãe, ele se recusou peremptoriamente a ajudar.

Por fim, contratei um vadio de aspecto miserável que encontrei na esquina da Oitava Avenida para manter o paciente abastecido de gelo, trazido de uma lojinha onde o apresentei, e me entreguei, diligente, à tarefa de localizar um pistão de bomba e de contratar operários que soubessem instalá-lo. A tarefa parecia quase interminável, e fui tomado de ira quase tão violenta quanto a do ermitão ao ver as horas se escoando num ciclo infatigável de telefonemas infrutíferos, de correrias de um lado para outro, indo ali e acolá' de metrô e transporte de superfície. Mais ou menos ao meio-dia encontrei um fornecedor satisfatório numa rua remota do centro da cidade, e aproximadamente à 1:30 da tarde cheguei à pensão com as peças necessárias e dois mecânicos fortes e inteligentes. Eu havia feito tudo quanto me fora possível e esperava chegar em tempo.

O negro terror, no entanto, me precedera. A pensão se transformara numa casa de orates, e sobre as vozes aterradas escutei um homem rezando com voz gravíssima. Havia pelo ar um quê de diabólico e os inquilinos rezavam

o rosário com maior vigor ao sentirem o cheiro que exalava por baixo da porta fechada do médico. O vagabundo que eu contratara, ao que parece, havia fugido aos gritos e de olhos esbugalhados pouco depois de haver feito sua segunda entrega de gelo, talvez corno resultado de
excessiva curiosidade. Não podia, está claro, trancar a porta ao sair; no entanto, agora ela estava fechada, presumivelmente por dentro. Não se ouvia som algum, com exceção de uma espécie indefinível de vagaroso e denso gotejar.

Depois de consultar a Sra. Herrero e os trabalhadores, e apesar do medo que me corroía a alma, opinei que deveríamos arrombar a porta; todavia, a senhoria descobriu uma maneira de virar a chave pelo lado de fora, com auxílio de um arame. Havíamos previamente aberto as portas de todos os outros quartos naquele corredor, além de descerrado as janelas até em cima. Agora, protegendo os narizes com lenços, invadimos, trêmulos, o amaldiçoado quarto, que resplendia com o sol quente do começo da tarde.

Uma espécie de trilha escura e lodosa levava da porta aberta do banheiro até a porta do corredor, e dali à escrivaninha, onde uma pocinha horrorosa se acumulara. Havia ali alguma coisa rabiscada a lápis, como que por um cego trêmulo, num pedaço de papel nojentamente manchado, ao que parecia pelas próprias garras que haviam traçado as apressadas palavras finais. Depois a trilha conduzia ao sofá e terminava de um modo que não pode ser descrito.

O que estava, ou tinha estado, no sofa não posso nem ouso dizer aqui. Mas eis o que decifrei no papel pegajosamente manchado, antes de riscar um fósforo e reduzí-lo a cinzas; o que decifrei tornado de pânico, enquanto a senhoria e os dois mecânicos saíam em disparada daquele lugar infernal para ir relatar suas histórias incoerentes na delegacia de polícia mais próxima. As palavras nauseantes pareciam quase inacreditáveis naquele fulgor amarelo de sol, com o matraquear de automóveis e caminhões que vinham subindo ruidosamente a Rua 14, mas, no entanto, confesso que acreditei nelas naquele momento. Se acredito agora naquelas palavras, honestamente não sei dizer. Existem coisas a respeito das quais é melhor não especular, e tudo quanto posso dizer é que detesto o cheiro de amônia e sinto-me desfalecer ante uma lufada de ar inusitadamente frio.

"O fim chegou", dizia o rabisco pestilencial. "Não haverá mais gelo... o homem olhou e correu. Fica cada vez mais quente e os tecidos não poderão durar mais. Imagino que saibas... o que eu disse sobre a vontade, os nervos e o corpo preservado depois que os órgãos cessassem de funcionar. Era uma boa teoria, mas não podia ser mantida indefinidamente. Houve uma deterioração gradual que eu não previra. O Dr. Torres sabia, mas o choque o matou. Não pôde suportar o que teria de fazer; tinha de me meter num lugar estranho e escuro, mas atentou à minha carta e me fez voltar, com seus cuidados. E os órgãos jamais voltariam a funcionar novamente. Tinha de ser feito à minha maneira (preservação artificial), pois vês: eu morri naquela época, há dezoito anos."

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Fonte:
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Copyright© 2000/2003
(in CD ROM Biblioteca Eletrônica vol. III. Magister)

Artur de Azevedo (1855 - 1908)


Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo, jornalista, poeta, contista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio de Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a Cadeira n. 29, que tem como patrono Martins Pena.

Foram seus pais David Gonçalves de Azevedo, vice-cônsul de Portugal em São Luís, e Emília Amália Pinto de Magalhães, corajosa mulher que, separada de um comerciante, com quem casara a contragosto, já vivia maritalmente com o funcionário consular português à época do nascimento dos filhos: três meninos e duas meninas. Casaram-se posteriormente, após a morte na Corte, de febre amarela, do primeiro marido. Aos oito anos Artur já demonstrava pendor para o teatro, brincando com adaptações de textos de autores como Joaquim Manuel de Macedo, e pouco depois passou a escrever, ele próprio, as peças que representava. Muito cedo começou a trabalhar no comércio. Depois foi empregado na administração provincial, de onde foi demitido por ter publicado sátiras contra autoridades do governo. Ao mesmo tempo lançava as primeiras comédias nos teatros de São Luís. Aos quinze anos escreveu a peça Amor por anexins, que teve grande êxito, com mais de mil representações no século passado. Ao incompatibilizar-se com a administração provincial, concorreu a um concurso aberto, em São Luís, para o preenchimento de vagas de amanuense da Fazenda. Obtida a classificação, transferiu-se para o Rio de Janeiro, no ano de 1873, e logo obteve emprego no Ministério da Agricultura.

A princípio, dedicou-se também ao magistério, ensinando Português no Colégio Pinheiro. Mas foi no jornalismo que ele pôde desenvolver atividades que o projetaram como um dos maiores contistas e teatrólogos brasileiros. Fundou publicações literárias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum. Colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis, e no jornal Novidades, onde seus companheiros eram Alcindo Guanabara, Moreira Sampaio, Olavo Bilac e Coelho Neto. Foi um dos grandes defensores da abolição da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de revistas dramáticas e em peças dramáticas, como O Liberato e A família Salazar, esta escrita em colaboração com Urbano Duarte, proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o título de O escravocrata.

Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artísticos, principalmente sobre teatro, nas seções que manteve, sucessivamente, em O País ("A Palestra"), no Diário de Notícias ("De Palanque"), em A Notícia (o folhetim "O Teatro"). Multiplicava-se em pseudônimos: Elói o herói, Gavroche, Petrônio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e outros. A partir de 1879 dirigiu, com Lopes Cardoso, a Revista do Teatro. Por cerca de três décadas sustentou a campanha vitoriosa para a construção do Teatro Municipal, a cuja inauguração não pôde assistir.

Embora escrevendo contos desde 1871, só em 1889 animou-se a reunir alguns deles no volume Contos possíveis, dedicado pelo autor a Machado de Assis, que então era seu companheiro na secretaria da Viação e um de seus mais severos críticos. Em 1894, publicou o segundo livro de histórias curtas, Contos fora de moda, e mais dois volumes, Contos cariocas e Vida alheia, constituídos de histórias deixadas por Artur de Azevedo nos vários jornais em que colaborara.
No conto e no teatro, Artur Azevedo foi um descobridor de assuntos do cotidiano da vida carioca, e observador dos hábitos da capital. Os namoros, as infidelidades conjugais, as relações de família ou de amizade, as cerimônias festivas ou fúnebres, tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias. No teatro foi o continuador de Martins Pena e de França Júnior. Suas comédias fixaram aspectos da vida e da sociedade carioca. Nelas teremos sempre um documentário sobre a evolução da então capital brasileira. Teve em vida cerca de uma centena de peças de vários gêneros e extensão (e mais trinta traduções e adaptações livres de peças francesas) encenadas em palcos nacionais e portugueses. Ainda hoje continua vivo como a mais permanente e expressiva vocação teatral brasileira de todos os tempos, através de peças como A jóia, A capital federal, A almanarra, O mambembe, e outras.

Outra atividade a que se dedicou foi a poesia. Foi um dos representantes do Parnasianismo, e isso meramente por uma questão de cronologia, porque pertenceu à geração de Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, todos sofrendo a influência de poetas franceses como Leconte de Lisle, Banville, Coppée, Heredia. Mas Artur Azevedo, pelo temperamento alegre e expansivo, não tinha nada que o filiasse àquela escola. É um poeta lírico, sentimental, e seus sonetos estão perfeitamente dentro da tradição amorosa dos sonetos brasileiros.

OBRAS: Carapuças, poesia (1871); Sonetos (1876); Um dia de finados, sátira (1877); Contos possíveis (1889); Contos fora da moda (1894); Contos efêmeros (1897); Contos em verso (1898); Rimas, poesia (1909); Contos cariocas (1928); Vida alheia (1929); Histórias brejeiras, seleção e prefácio de R. Magalhães Júnior (1962); Contos (1973).

TEATRO: Amor por anexins (1872); A filha de Maria Angu (1876); Uma véspera de reis (1876); Jóia (1879); O escravocrata, em colaboração com Urbano Duarte (1884); A almanarra (1888); A capital federal (1897); O retrato a óleo (1902); O dote (1907); O oráculo (1956); Teatro (1983).

REVISTAS: O Rio de Janeiro em 1877 (com Lino d'Assumpção - 1877); Tal Qual Como Lá (com França Júnior - 1879, não encenada), O Mandarim (com Moreira Sampaio - 1883); Cocota (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Bilontra (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Carioca (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Mercúrio e o Homem (com Moreira Sampaio - 1884/1887); Fritzmac (com Aluísio de Azevedo - 1888); A República (com Aluísio de Azevedo - 1889), proibida pela censura; Viagem ao Parnaso (1890); O Tribofe (1891); O Major (1894); A Fantasia (1895); O Jagunço (1897); Gavroche (1898); Comeu! (1901); Guanabara (com Gastão Bousquet - 1905) e O Ano Que Passa (1907) não encenada, publicada como folhetim.

Fonte: Academia Brasileira de letras
http://www.academia.org.br/

Artur Azevedo (Conto: O Gramático)

O GRAMÁTICO

Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas.

Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.

Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, -sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.

E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical?

Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:

-Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?

-Venha cá, respondia ele agarrando o pequeno por um botão d0 casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" - que oração é esta?
-Mas... é que estou com muita pressa...
-Diga!
-É uma oração interrogativa.
-Sujeito?
-Sr. Dr. Praxedes.
-Verbo?
-Ter.
-Atributo?
-Passado.
-Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.

E, com uma idéia súbita, parando:
-Ah! venha cá! venha cá! Lembranças a seu pai - que oração é esta?
-É uma oração... uma oração imperativa.
-Bravo! - Sujeito?
-Está oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.
-Muito bem. Verbo?
-Dar.
-Atributo?
-Dador.
-Lembranças é um complemento...?
-Objetivo.
-A seu pai...?
-Terminativo.
-Muito bem. Pode ir. Adeus.

* * *
Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.

Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo ás numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.

* * *
A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma falha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador.

Ninguém se admire disso, porque o Barreto -justiça se lhe faça -dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.

Entretanto, se no escritório do Progresso a goma-arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.

Por exemplo.

"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da referida Corte.

"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que fundou-se a nossa falha."

* * *
Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.

O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:
-Diabo! não tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!

Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Víctor Hugo.

Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...

* * *
Mas, oh! Providência! nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma idéia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.

-Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! exclamou ele. Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.

O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia.

-Que deseja?

O redator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.

Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se a mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu:

"Falecimento. -Consta, por pessoa vinda de ~ ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris)
"O ilustre finado era conde e viuvo.
"O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.
"Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família."

* * *
O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes.

Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Víctor Hugo quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.

O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:

-Nem uma emenda!

Fonte:
AZEVEDO, Artur de. Contos Possiveis. (CD ROM Biblioteca Eletrônica vol. III. Magister).