sexta-feira, 18 de abril de 2008

Artur de Carvalho (Rindo pra não chorar)

Todos os dias eu chego em casa e me sento na frente da TV, ansioso, esperando começar o horário eleitoral. Para dar umas risadas, sabe? São tão poucos os motivos para se rir hoje em dia que a gente não pode perder a oportunidade de ver um louco de pedra gritando de punhos fechados que a solução para São Paulo é um trem bala. Eu simplesmente rolo de rir. E o mais engraçado é quando o candidato a governador (é, o cara é candidato a governador) obriga seus partidários (sim, o maluco tem partidários) a vestirem uma camisa da seleção brasileira e gritarem juntos “rumo à vitória”, todos dando um soco no ar, de punhos fechados, como se tivessem feito um gol. Mas o que é isso, meu Deus? Alguém tem de internar aqueles caras imediatamente num sanatório antes que eles cometam algum ato mais violento, ou até mesmo alguma perversidade.

E falando em Deus, tem um outro que diz que vai entregar São Paulo nas Mãos de Deus. Pelo menos esse aí tem lá uma certa dose de razão e de sinceridade. Ninguém dá conta mesmo de arrumar essa bagunça, melhor entregar logo nas mãos de Deus e acabar de vez com toda essa anarquia.

E aí, entra o Enéas.

Bem, a gente pode falar qualquer coisa do Enéas, menos que ele não seja uma figuraça. Tirando aquelas encanações dele com a bomba atômica, daria para confundi-lo com aqueles loucos mansos de cidade do interior, sabe? As crianças assobiam e os malucos saem correndo e babando atrás das crianças, mas quando alcançam não fazem nada e todo mundo acaba dando risada. Eu sou fã do Enéas. Se eu fosse ele, nas próximas eleições me candidatava a uma vaga na “A Praça é Nossa”.

Mas o mais engraçado mesmo são aqueles candidatos que ficam com os olhinhos mexendo, tentando ler o texto que está escondido atrás das câmeras. Normalmente o texto se resume a algo assim: “Eu sou Fulano de Tal, apóio Sicrano de Tal, o meu número é tal”. São apenas três frases, e o pobre coitado não consegue decorar! O que é que ele vai querer fazer lá na assembléia legislativa se ele não consegue decorar nem três frases seguidas, puxa vida?

Sei que, desde que o horário eleitoral começou, eu venho me esbaldando de tanto rir. Toda noite eu estouro umas pipocas, ligo a televisão e quando o programa acaba eu estou com o fígado completamente desopilado. Parei até de tomar uns comprimidos para os nervos que o médico tinha me receitado.

Eu só fico bravo mesmo quando aparecem uns estraga-prazeres que resolvem baixar o astral do programa. Tá todo mundo dando risada e se divertindo, e de repente aparecem esses sujeitos de cara fechada e voz embargada. Eles abrem uns papéis e começam a expor uns tais planos de governo. E ficam falando dos problemas da educação. Mostram favelas e criancinhas com fome. Falam que não sei quantos seqüestros estão acontecendo por semana. Do crime organizado. Que a dívida no exterior não sei o quê. Que os juros brasileiros são os mais altos do mundo. Esse tipo de coisa que não leva a lugar algum.

Será que ninguém vê que desse jeito o programa vai acabar perdendo totalmente a graça?

Fonte:
http://www.releituras.com

Artur de Carvalho (Marcelo, Marmelo, Martelo)

Ao Marcelo Andrade e ao Marcelo Martinez. Dois amigos.

Não tem erro pior no mundo que trocar o nome de alguém. Ainda mais quando são pessoas mais ou menos chegadas. E não sei se é problema de idade, ou o quê, mas ultimamente está acontecendo comigo com mais freqüência do que meu estoque de desculpas esfarrapadas permite. É, porque a gente sempre arruma uma desculpa:

- E aí, Marcelo?

- Marcelo? Que Marcelo?

- Você... quer dizer...

- Meu nome é Hélio, Artur.

- Ah, é... Hélio... Mas onde é que estava com a cabeça? Sabe o que é, Hélio? É que eu estava aqui, pensando num quadro que tenho de pendurar na parede... E não conseguia encontrar o martelo...

- E o que é que tem?

- Você entende, né? Martelo... Marcelo... Me atrapalhei... Desculpa aí...

A sorte é que existem pessoas que entendem o nosso constrangimento. Outro dia desses, eu precisava falar com o diretor da escola da minha filha, o seu Agenor. Entrei na sala dele, minha filha ficou esperando do lado de fora.

- Bom dia, seu Agenor? Como vão as coisas?

- Tudo bem, Artur... Sente-se.

- E a família? Como vai a dona Estela?

- Tudo bem também...

Conversamos mais ou menos uns dez minutos. Ele, um homem super educado. Na hora da saída, ainda se lembrou da minha esposa.

- Manda um abraço para a dona Telma, Artur...

- Pode deixar, seu Agenor. Eu mando.

Saí da sala dele. Chamei minha filha e fomos embora. No caminho, a minha filha perguntou:

- E aí, pai? O que é que o seu Angelo queria?

- Angelo? Que Angelo?

- O diretor da escola, uai...

- Angelo, é? Mas não é Agenor?

- Não. É Angelo.

- E... Vem cá, filha... Por um acaso você sabe se a mulher dele se chama Estela?

- Não sei, por que?

- Nada não. Deixa pra lá...

Mas o que me deixa razoavelmente tranqüilo é que essas coisas não acontecem só comigo. As outras pessoas também, volta e meia, trocam o meu nome... Não sei porque cargas d'água, sempre aparece um que me chama de Raul... Olha que de Artur para Raul tem uma diferença e tanto. Mas não adianta. Outro dia desses, por exemplo, eu estava num evento aqui em Votuporanga, fazendo uma noite de autógrafos para o meu livro recém lançado. Chegaram uma mãe e sua filha de uns doze anos. A mãe veio logo se chegando, e dizendo que eu era o ídolo da filha dela. E cutucava a garota com o cotovelo:

- Fala pra ele, filha...- e a filha não falava nada.

E ela continuava:

- Porque a minha filha não perde uma crônica sua no jornal... não é filha? - e cutucava a filha. E a filha nada. Aí a mulher comprou um livro e pediu um autógrafo. Para a filha, é claro. Eu perguntei como era o nome da menina. E a mãe:

- Silvia. Silvinha.

E eu, todo orgulhoso, peguei a caneta e escrevi ali, na contracapa "para a silvinha, com um beijão".

Assinei e entreguei o livro para a garota. Ela se encolheu. Ficou vermelha. Não sabia onde colocar as mãos. Aí a mãe deu outro cutucão.

- Agradece o seu ídolo, filha!

E a garota:

- Muito obrigado, seu Raul.

Eu fico pensando. Será que alguém erra o nome do Michael Jackson?

Fonte:
http://www.releituras.com

Artur de Carvalho (Fábrica de Casamento)

Chegamos correndo. O casamento estava marcado para as sete horas. Já era sete e meia.

Apressamos o passo até onde permitia o salto alto da minha mulher.

— Calma, querido...

— Olha lá... já começou...

— Eu vou acabar quebrando o salto...

Entramos. Os noivos já estavam no altar.

— Tá vendo? Nem vimos a noiva entrando.

Os noivos lá, de costas. Eu conhecia um ou outro padrinho.

— Você sabia que o Almeida era padrinho?

— O Almeida?

— É... Olha ele lá.

— Puxa vida. Eu nem sabia que o Almeida conhecia os noivos...

O casal na frente da gente, além de ser o mais alto da igreja, não sentava nas horas que a cerimônia exigia.

Minha esposa e eu ficávamos olhando por entre os ombros deles.

— Quem é aquela, com o Ubiratam?

— O Ubiratam também é padrinho?

— Não. Olha ele ali, no terceiro banco. Quem é aquela com ele?

— Sei lá. Não é a esposa?

— Não. Deve ter separado.

— Separado? O Ubiratam?

As luzes das câmeras de vídeo atrapalhavam a visão. Ficavam atrás dos noivos, e não dava pra ver nada. O casal na nossa frente se abraçava. A gente tentava olhar em volta.

— Você viu o vestido da noiva?

— É. Eu sempre gostei de vestidos beges.

— Quem é que disse que é bege? É branco.

— Branco nada. Não tá vendo?

Os alto-falantes estavam com um pouco de microfonia, mas deu pra ouvir o sim dos dois.

— Você ouviu a voz dela? Deve estar chorando.

— É. Ela sempre fica emocionada nessas ocasiões. Imagine agora, no casamento...

— Olha lá... Aquela é a mãe dela?

— Sei lá... Eu não conheço... Mas deve ser...

— Nova, né?

As luzes das câmeras estavam mesmo insuportáveis. Ofuscavam tudo. Mas deu pra perceber que a cerimônia já estava acabando. Os padrinhos fizeram um círculo em torno dos noivos. Estavam descendo do altar.

— Vem cá. Vamos tentar ficar aqui perto, pra ela ver que a gente veio.

— Mas tem muita gente.

— Vem cá!

Os noivos desceram do altar. Todo mundo se aglomerou ao lado do corredor central, ornado com um tapete vermelho. Um homem me deu uma cotovelada, quando tentei passar à sua frente. Ficamos, minha mulher e eu, cercados por uma pequena multidão.

— Ela está passando! Ela está passando!

— Você viu o vestido? Eu falei que era bege!

— É branco. Não tá vendo?

Os noivos passaram. Atrás, os padrinhos. Deu pra ver o Almeida. Ele sorriu e fez um meneio com a cabeça. Eu sorri pra ele. Os ocupantes dos bancos foram se dispersando pela igreja. Começaram a chegar os convidados para o outro casamento. A coisa ficou meio tumultuada.

— Vamos embora, querida?

— Mas nós não vamos cumprimentar os noivos?

— Não. Vamos embora.

— Mas a gente precisa ver os noivos. Quer dizer, os noivos precisam ver a gente. Depois vão falar que a gente não veio.

— O Almeida me viu.

— Viu nada.

Saímos da igreja e fomos cumprimentar os noivos. Tinha fila. Uma confusão na frente da igreja. O outro casamento já ia começar. Ouvimos um sino. A nova noiva já estava entrando.

— Nossa.. Mas é um atrás do outro, hem?

— É. Parece fábrica.

Finalmente, chegou a nossa vez. A noiva estava de costas, cumprimentando o Ubiratam. Ela estava de branco, afinal de contas. Aí, a noiva se virou. Minha mulher arregalou os olhos. Eu disfarcei. Dei um beijo, desejei felicidades. Minha mulher fez o mesmo.

Saímos da fila e voltamos correndo para dentro da igreja. Minha mulher reclamou.

— Calma... Cuidado com o salto.

Entramos e olhamos para o altar. Os noivos já estavam lá, de costas.

— Caramba... Será que agora são eles?

Fonte:
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segunda-feira, 14 de abril de 2008

Rubem Fonseca (1925 - )

"Neste momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Tenho, agora, o começo, tenho o meio e o fim." (Pequenas criaturas - "Começo")

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca é formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia, como comissário, no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros. Aluno brilhante da Escola de Polícia, não demonstrava, então, pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas.

Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958, um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia. Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio.

Na Escola de Polícia destacou-se em Psicologia. Contemporâneos de Rubem Fonseca dizem que, naquela época, os policiais eram mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, afirmam, ele era admirável. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.

Reconhecidamente uma pessoa que, como Dalton Trevisan, adora o anonimato (o único registro fotográfico que conseguimos foi feito há muitos anos), é descrito por amigos como pessoa simples, afável e de ótimo humor.

Foi, ao longo de sua carreira, agraciado com inúmeros prêmios literários, abaixo descritos.

Sendo profundamente interessado na arte cinematográfica, escreve também roteiros para filmes, muitos deles premiados:
- Coruja de ouro, roteiro Relatório de um homem casado, filme dirigido por Flávio Tambelini.
- Kikito de ouro do Festival de Gramado, roteiro de Stelinha, dirigido por Miguel Faria.
- Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, roteiro de A grande arte, filme dirigido por Walter Salles Jr.
Seus livros são publicado no Brasil e no exterior, com grande sucesso de crítica e de público:

LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL:
Os prisioneiros (contos, 1963),
A coleira do cão (contos, 1965)
Lúcia McCartney (contos, 1967)
O caso Morel (romance, 1973)
Feliz Ano Novo (contos, 1975)
O homem de fevereiro ou março (antologia, 1973)
O cobrador (contos, 1979)
A grande arte (romance, 1983)
Bufo & Spallanzani (romance, 1986)
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)
Agosto (romance, 1990)
Romance negro e outras histórias (contos, 1992)
O selvagem da ópera (romance, 1994)
Contos reunidos (contos, 1994)
O Buraco na parede (contos, 1995)
Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996.
Histórias de Amor (contos, 1997)
Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)
Confraria dos Espadas (contos, 1998)
O doente Molière (novela, 2000)
Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)
Pequenas criaturas (contos, 2002)
Diário de um Fescenino (contos, 2003)
64 Contos de Rubem Fonseca (contos, 2004)
Ela e outras mulheres (contos, 2006)
O romance morreu (crônicas, 2007)

Todos estes livros, com exceção de O homem de fevereiro ou março (editora Artenova), foram editados ou reeditados pela Companhia das Letras. Os romances O caso Morel e A grande arte foram publicados (em 1998) pela Record/Altaya, na coleção “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa”, para venda em bancas. O romance Agosto está na coleção “Mestres da Literatura Contemporânea” (1995) editora Record/Altaya, também para venda em bancas. Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, foi publicado pela Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996. Na antologia Onze em campo e um banco de primeira, da Editora Relume Dumará, Rio, 1998, foi inserido o conto Abril, no Rio, em 1970, originalmente editado no livro Feliz ano novo. Na antologia Trabalhadores do Brasil, da editora Geração Editorial, Rio, 1998, foi incluído o conto O agente, originalmente editado no livro Os prisioneiros. Na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, editora Objetiva, Rio, 2000, foram publicados os contos A força humana, Passeio noturno I, Passeio noturno II, Feliz ano novo e A confraria dos espadas. A antologia Contos para um Natal brasileiro, da Editora Relume Dumará, Rio, 2001, em companhia de C. D. Andrade, João Ubaldo Ribeiro, Lygia F. Telles e outros, traz conto sobre a data.

PRÊMIOS LITERÁRIOS:
- Pen Club do Brasil, A coleira do cão.
- Fundação Cultural do Paraná, Lucia McCartney
- Fundação Cultural de Brasília, Lucia McCartney
- Jabuti (Conto), da Câmara do Livro de São Paulo, A coleira do cão
- Associação Paulista de Críticos de Arte, O cobrador
- Prêmio Estácio de Sá, O cobrador
- Prêmio Goethe (Brasil), A grande arte
- Jabuti (Romance) A grande arte
- Prêmio Pedro Nava do Museu de Literatura, Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
- Prêmio Giuseppe Acerbi (Mantova, Itália), Vaste emozione e pensie imperfeti
- Jabuti (Conto) O buraco na parede
- Prêmio Machado de Assis (Biblioteca Nacional), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto
- Prêmio Eça de Queiroz (contos) da União Brasileira de Escritores, A confraria dos Espadas
- Prêmio de melhor romance do ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), para O doente Molière (2000)
- Prêmio Luis de Camões, considerado o "Nobel" da língua portuguesa, concedido pelos governos do Brasil e Portugal, pelo conjunto da obra, anunciado em 13/05/2003.
- 14º Prêmio de Literatura Latinoamericana e Caribe Juan Rulfo, concedido durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara - México, em 2003.

OBRAS PUBLICADAS NO EXTERIOR:

1 - ROMANCES
O caso Morel
A grande arte
Bufo & Spallanzani
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos
Agosto
O selvagem da ópera
E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto

2 - CONTOS
Os prisioneiros
A coleira do cão
Lúcia McCartney
Feliz ano novo
O cobrador
Romance negro
O buraco na parede
Histórias de amor
A confraria dos espadas
Secreções, excreções e desatinos
Coletâneas de contos

ADAPTAÇÕES POR TERCEIROS DE OBRAS DE RUBEM FONSECA:

PARA TEATRO
*O gravador (1977), adaptação e direção de Roberto Vignatti
*Os cavalos (1979), direção coletiva e adaptação Grupo Panapaná
* Lúcia McCartney (1987), adaptação de Geraldo Carneiro, direção de Miguel Falabella
*O cobrador (1990), adaptação coletiva, direção de Bete Lopes
*Idiotas que falam outra língua(1999), adaptação e direção de Fernando Guerreiro
*Agosto (2000), “construção de uma trama entre dança, música e cenografia”. Adaptação e direção de Eliana e Sofia Cavalcante

PARA TELEVISÃO
*Nau Catarineta,(1978) adaptação e direção de Antunes Filho, TV Cultura.
*Mandrake (1983) adaptação de Euclides Marinho, direção de Roberto Farias, TV Globo.
* Agosto (1993) adaptação de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, direção de Paulo José, Denise Sarraceni e José Henrique Fonseca, TV Globo
*Lúcia McCartney (1994) adaptação de Geraldo Carneiro, direção Roberto Talma, TV Globo
*A coleira do cão (2001), adaptação de Antonio Calmon, direção de Roberto Farias, TV Globo

Fonte:
www.releituras.com

Rubem Fonseca (O Vendedor de Seguros)

Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

- Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.
- Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?
- Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.
- Você não tem ganho muito ultimamente.
- A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.
- Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.

Quando eu estava na porta Renata disse, - as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?
- Ainda não vi isso.
- Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?
- Só você.
- Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.

Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.
- É você?
- Quem podia ser?, eu disse.
- Diz a senha.
- Cara, você anda vendo filmes demais.
- É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.
- Foz do Iguaçu.
- Tenho um seguro para você.
- Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.
- Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?
- Isso não interessa.
- Quando acaba?
- Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.
- Acho que você anda meio promíscuo.
- Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.
- Que ruído é esse?
- Não ouvi nenhum ruído.
- Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.
- Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.
- Troca de celular.
- Estou com ele há menos de dois meses.
- É muito tempo. Eu troco todos os meses.
- Você é um corretor.
- O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.
- Acabou?
- Te ligo daqui a dois dias.

Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.

Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.

- Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?
- Está bem.
- Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.
- Confesso que não gosto de comida chinesa.
- Você só gosta de bacalhau.
- Está tirando sarro comigo?
- Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?
- Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?
- Não conheço mulheres elegantes.
- Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.
- Onde que isso acontece?
- Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.
- Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?
- Se aparecer, o que você faz?
- Não sei. Isso ainda não aconteceu.
- E você foi vender seguro numa joalheria hoje?
- Não.
- Mas levou o revólver.
- Virou hábito. É pistola.
- Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.

Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.

O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.

Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.

Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.

Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.

- Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.
- Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.

Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.

- Me mostra o outro braço, pedi.

Também tinha o pulso cortado.

Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.

Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.

Ele viu quando entrei no banheiro.

- Voltou?
- Quanto tempo demora isso?, perguntei.
- Não sei. Mas não dói.

Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.

- Não olha para mim, eu disse.

O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.

Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.

Liguei do carro para o corretor.

Fiz o serviço.

- Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.

Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.

Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.
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"A melhor coisa na obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Toda vez que começo um livro dele é como se atendesse um telefonema no meio da noite: "Oi, sou eu. Você não vai acreditar no que está acontecendo." Bem, talvez não no começo, mas logo já estou acreditando em tudo. Sua escrita faz milagre, é misteriosa. Cada livro dele não é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária."
Esta é a opinião de Thomas Pynchon, um dos maiores mitos contemporâneos da literatura americana. Ele, como o autor, alcançou tal condição não à custa de uma sobreposição da imagem, mas exatamente pelo processo oposto, ou seja, o anonimato.
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Fonte:
FONSECA, Rubem. A Confraria dos Espadas. SP: Companhia das Letras , 1998.
http://www.releituras.com/

Rubem Fonseca (Família)

Ernestino e Dora se casaram dispostos a dar ao mundo muitos filhos. Planejavam ter três meninos e duas meninas, mas não se incomodariam se fossem quatro meninas e um menino, desde que o primeiro a nascer fosse do sexo, masculino.

Dora morreu ao dar à luz uma menina, cujo nome veio a ser também Dora. Todos pensavam que Ernestino se casaria novamente, ele era um homem bonito, herdara do pai uma empresa e ampliara os negócios, um bom partido para qualquer mulher, mesmo tendo uma filha pequena para criar. Agindo como bons alcoviteiros, os casais amigos, convictos de que Ernestino devia se casar novamente, afinal a pequena Dora precisava de uma mãe e ele, cedo ou tarde, necessitaria do carinho de uma mulher, se revezavam apresentando ao viúvo jovens mulheres prendadas e virtuosas. Mas Ernestino não se interessava por nenhuma delas e o tempo foi passando até que os amigos, percebendo que Ernestino jamais se casaria novamente, desistiram de seus propósitos casamenteiros.

Quando Dora fez seis anos, Ernestino, assoberbado pelos seus negócios que não paravam de crescer, matriculou a menina num colégio interno de freiras. Dora se lembra do primeiro dia em que foi para o colégio. Eles subiram a serra de carro num dia de forte neblina, que escondia os morros e até mesmo as ruas por onde trafegavam. O pai comprara vários sacos de balas para ela e Dora fizera a viagem se deliciando com aquelas guloseimas. No carro o pai lhe mostrara uma pequena mala, dizendo que ali estava o seu enxoval, as roupas que usaria no colégio. Ernestino, apesar de fazer a viagem mais calado do que o seu normal, parou duas vezes no acostamento da estrada para abraçar e beijar a filha. Tudo isso a deixara muito feliz.

Quando chegaram, depois de uma hora e meia de viagem, Dora já havia chupado todas as balas. O colégio era um edifício, que lhe pareceu imenso, bonito e um pouco assustador. Foram recebidos por duas freiras uma a madre superiora, velha e de aspecto majestoso, e outra, mais jovem, que seria a orientadora e mestra de classe de Dora. A freira mais jovem convidou Dora para ir até a janela ver as arvores e os jardins. Enquanto ela contemplava o arvoredo coberto de neblina, o pai e as freiras conversaram em voz baixa. Em seguida, o pai depois de abraçá-la com tanta força que a deixou sem fôlego, disse que ia comprar mais balas, foi embora e não voltou. Era um domingo e Dora só o veria novamente no domingo seguinte.

Os primeiros dias foram terríveis. Dora se sentia abandonada e chorava sem parar. Ela dormia num grande salão com outras meninas da sua idade. Sua roupa intima — calcinhas largas de algodão, que com o tempo alargavam ainda mais, e camisolões de manga comprida fechados no pescoço (ela só usaria sutiã, também de algodão, anos depois) — era guardada numa mesinha alta de cabeceira, e os uniformes ficavam dependurados num cabide comprido numa das paredes. A freira orientadora reunia diariamente as meninas para uma preleção em que falava em Deus e na Caridade. Ela tratava Dora com muito carinho, ainda mais porque a menina sofria de asma, agravada pelo clima úmido da cidade. Depois de algum tempo, Dora parou de chorar diariamente. Chorava apenas aos domingos, quando o pai ia vê-la.

Mas ela não demorou muito a gostar do colégio. Na hora de dormir, sob os cobertores de lã que a aqueciam, Dona criava uma vida só dela, feita de fantasias inocentes. Até mesmo o carrilhão da torre da igreja, que soava a cada quinze minutos, era ouvido com prazer. Às quinze para as seis da manhã, a freira que pernoitava com elas no dormitório caminhava entre as camas tocando uma sineta de mão e dizendo, sursum corda e as meninas acordavam murmurando, habemus ad dominum. Dora, que fora criada sem qualquer disciplina por um pai ausente e babás displicentes, apreciava os cerimoniais do colégio. Vestidas em seus uniformes de saia azul-marinho presa por tiras largas cruzadas no, peito e nas costas, blusa azul-clara, sapatos pretos e meias brancas, as meninas, quando encontravam uma freira nos corredores, tinham que parar de pés juntos, unir as duas mãos e cumprimentar com a cabeça. Caso fosse a madre superiora ou a diretora do colégio deviam parar, se estivessem andando, ou levantar-se, se estivessem sentadas, e fazer uma reverência, que consistia em juntar os dois pés, encostar o calcanhar do pé direito no pé esquerdo, girar a ponta do pé direito, para o lado e. após colocar horizontalmente a palma da mão, direita sobre a palma da mão esquerda, flexionar ligeiramente os joelhos. Dora sentia-se bem fazendo essa mesura e ficava feliz quando, por qualquer motivo, encontrava uma dessas freiras graduadas. Os rituais do colégio — notadamente as orações em latim ou em francês, e os cantos gregorianos acompanhados pelo órgão, dos quais todas as alunas participavam nas missas dos domingos — possuíam um esplendor que deixava Dora encantada e fascinada. Mas sempre que pensava no pai, ela sentia muita saudade e ficava triste.

As alunas tomavam banho em boxes abertos, vestidas com uma camisola de algodão sem mangas e sem gola. Quando terminavam, uma freira colocava uma toalha aberta na frente do boxe para a aluna poder tirar a camisola e se enxugar sem que a sua nudez fosse vista; depois a aluna punha um roupão e subia para o dormitório, se curvava ao lado da sua cama e vestia meio escondida o uniforme. Era um procedimento trabalhoso e desconfortável que Dora e muitas meninas realizavam, porém, com boa vontade. Uma vez por semana, no dormitório, toda menina sentava-se num banco à frente de uma freira, que lhe passava meticulosamente pela cabeça um pente fino. Não havia piolhos naquele internato.

No colégio Dora conheceu Eunice, que se tornou a sua melhor amiga. E à medida que cresciam — as duas ficaram todo o primário e o ginásio no mesmo colégio interno — se tomaram mais íntimas. Sempre que possível ficavam de mãos dadas, cochichando e rindo. As freiras chamavam tal comportamento de bêtise e procuravam contê-las, mas sem recriminá-las por isso. Eunice era órfã, e quem a visitava nos domingos era um guardião que a tratava com um carinho artificial. Eunice e o seu guardião se agrupavam com Dora e o pai, nos domingos e também nos dias em que as alunas tinham permissão para sair do colégio, em companhia dos responsáveis, para passear em Petrópolis. Quando o curso ginasial terminou elas se abraçaram chorando e disseram que nunca deixariam de se amar.

Dora e Eunice cursaram o colegial em estabelecimentos de ensino diferentes. Vieram a se reencontrar na faculdade de direito, anos depois, e reataram com o mesmo vigor a amizade de antes. Abriram um escritório e advogavam juntas causas pertinentes ao direito da família. Dora às vezes ia dormir na casa de Eunice, ainda que Ernestino reclamasse carinhosamente do fato de a filha deixá-lo sozinho com a empregada. Ele sentia-se doente e planejava se afastar dos negócios. O seu sonho era ver a filha casar e lhe dar um neto homem, que com o tempo assumisse os negócios e continuasse a tradição da família.

Mas Dora, que se tornara uma mulher de grande beleza, recusava todos os seus pretendentes, que eram muitos. Saía com eles, ia jantar fora, ia ao cinema, mas, muito recatada, evitava qualquer intimidade com esses homens, nem mesmo permitia que a beijassem. Um dia o pai a chamou para ter com ela o que chamou de uma longa conversa. Ernestino disse à filha que estava indicando um dos seus antigos funcionários para assumir o comando dos negócios, pois estava se sentindo cada vez mais fraco e o seu médico, depois de um rigoroso exame, diagnosticara uma doença neurológica progressiva que dentro de alguns anos, não sabia quantos, o levaria à morte. E ele não queria morrer sem ver a sua filha casada e sem ter a suprema alegria de ter um neto. Ernestino disse isso com voz emocionada, segurando na mão da filha. Me promete, ele pediu, assim eu morrerei em paz. Dora prometeu, mas pediu algum tempo para realizar o desejo do pai.

Nesse dia Dora foi dormir com Eunice. A amiga mandara fazer calças largas de algodão iguais às que usavam no colégio de freiras, e que não existiam para ser compradas nas lojas. Vestidas apenas com essas calças, que apesar de toscas, ou talvez por isso, tornavam ainda mais atraentes os seus corpos delgados, as duas fizeram amor com um ardor muito intenso. Isso sim, é bêtise, disse Eunice, e as duas riram muito. Depois, Dora contou a Eunice a conversa que tivera com o pai, acrescentando que ele estava cada vez mais obstinado em seu desejo de vê-la casada e ter um neto. As duas permaneceram o resto da noite tomando vinho branco e falando desse assunto, e da frustração de não poder morar na mesma casa, acordar juntas, cozinhar, viajar, viver juntas o tempo todo das suas vidas, serem as duas uma família.

Ernestino agora precisava de uma cadeira de rodas para se locomover e um enfermeiro foi contratado para tomar conta dele. O médico disse que com cuidados adequados Ernestino poderia viver alguns anos, mas que a sua doença infelizmente não tinha cura, o que Dora podia fazer era lhe propiciar a melhor qualidade de vida possível, num ambiente tranqüilo de amor. O passatempo preferido de Ernestino, em casa ou quando ele saia com Dora em sua cadeira de rodas para passear na praça, era interrogar a filha sobre os seus pretendentes e escolher o nome que o neto teria. Dora participava dessas conversas tentando, manter a mesma paciência dos seus tempos de colégio interno, mas não conseguia deixar de se sentir exausta e infeliz, pois o pai sempre terminava a conversa dizendo que apenas esperava ela se casar e ter um filho para morrer em paz.

Após cada uma das suas cada vez mais raras noites de bêtise as duas amantes sempre voltavam a esse tema, como conseguir que Ernestino morresse em paz. E a maneira de resolver esse delicado e angustiante problema era sempre a mesma, uma solução final, por elas considerada um gesto de amor absoluto. A morte era sempre uma bênção para os doentes desenganados.

O enfermeiro, precisava tirar umas férias e em vez de contratar um outro Dora disse que ela mesma cuidaria do pai. Ernestino se emocionou com o desvelo da filha, que passava os dias e as noites ao seu lado. E também estava muito feliz, pois Dora prometera que assim que o pai melhorasse um pouco ela se casaria e teria um filho.

Transcorrido um mês, Ernestino morreu de uma súbita insuficiência respiratória. O médico confirmou que aquela era mesmo uma doença insidiosa de difícil prognóstico. No enterro Dora e Eunice choraram muito. O sofrimento de Dora foi tão grande que ela teve que ser internada num hospital para se recuperar.

Depois, Dora e Eunice foram morar juntas e adotaram um menino a quem deram o nome de Ernestino. O menino cresceu e as pessoas, os novos amigos que elas fizeram, diziam que ele era a cara da mãe.

Fonte:
FONSECA, Rubem. Histórias de Amor. SP: Cia. das Letras, 1997.
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Rubem Braga (1913 - 1990)

"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa: "Eu sou lá de Cachoeiro..."

Na noite de segunda-feira, 17 de dezembro de 1990, o escritor Rubem Braga reuniu um pequeno grupo de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema. Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30 da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.

A causa da morte foi uma parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente.

Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913. Iniciou seus estudos naquela cidade, porém, quando fazia o ginásio, revoltou-se com um professor de matemática que o chamou de burro e pediu ao pai para sair da escola. Sua família o enviou para Niterói, onde moravam alguns parentes, para estudar no Colégio Salesiano. Iniciou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, mas se formou em Belo Horizonte, MG, em 1932, depois de ter participado, como repórter dos Diários Associados, da cobertura da Revolução Constitucionalista, em Minas Gerais — no front da Mantiqueira conheceu Juscelino Kubitschek de Oliveira e Adhemar de Barros.

Na capital mineira se casou, em 1936, com Zora Seljan Braga, de quem posteriormente se desquitou, mãe de seu único filho Roberto Braga.

Foi correspondente de guerra do Diário Carioca na Itália, onde escreveu o livro "Com a FEB na Itália", em 1945, sendo que lá fez amizade com Joel Silveira. De volta ao Brasil morou em Recife, Porto Alegre e São Paulo, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, primeiro numa pensão do Catete, onde foi companheiro de Graciliano Ramos; depois, numa casa no Posto Seis, em Copacabana, e por fim num apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema.

Sua vida no Brasil, no Estado Novo, não foi mais fácil do que a dos tempos de guerra. Foi preso algumas vezes, e em diversas ocasiões andou se escondendo da repressão.

Seu primeiro livro, "O Conde e o Passarinho", foi publicado em 1936, quando o autor tinha 22 anos, pela Editora José Olympio. Na crônica-título, escreveu: "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde." De fato, quase tanto como pelos seus livros, o cronista ficou famoso pelo seu temperamento introspectivo e por gostar da solidão. Como escritor, Rubem Braga teve a característica singular de ser o único autor nacional de primeira linha a se tornar célebre exclusivamente através da crônica, um gênero que não é recomendável a quem almeja a posteridade. Certa vez, solicitado pelo amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si mesmo, declarou: "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento."

Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em 1968, a editora Sabiá, responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.

Segundo o crítico Afrânio Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga é a "crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza."

A chave para entendermos a popularidade de sua obra, toda ela composta de volumes de crônicas sucessivamente esgotados, foi dada pelo próprio escritor: ele gostava de declarar que um dos versos mais bonitos de Camões ("A grande dor das coisas que passaram") fora escrito apenas com palavras corriqueiras do idioma. Da mesma forma, suas crônicas eram marcadas pela linguagem coloquial e pelas temáticas simples.

Como jornalista, Braga exerceu as funções de repórter, redator, editorialista e cronista em jornais e revistas do Rio, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foi correspondente de "O Globo" em Paris, em 1947, e do "Correio da Manhã" em 1950. Amigo de Café Filho (vice-presidente e depois presidente do Brasil) foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953. Em 1961, com os amigos Jânio Quadros na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos. Mas Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens sobre assuntos culturais, econômicos e políticos na Argentina, nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países.
Quando faleceu, era funcionário da TV Globo. Seu amigo Edvaldo Pacote, que o levou para lá, disse: "O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Era preciso ser muito seu amigo para que ele entreabrisse uma porta de sua alma. Ele só era menos contido com as mulheres. Quando não estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas. Eu o levei para a Globo... Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular."

Bibliografia:
CRÔNICAS:
- O Conde e o Passarinho, 1936
- O Morro do Isolamento, 1944
- Com a FEB na Itália, 1945
- Um Pé de Milho, 1948
- O Homem Rouco, 1949
- 50 Crônicas Escolhidas, 1951
- Três Primitivos, 1954
- A Borboleta Amarela, 1955
- A Cidade e a Roça, 1957
- 100 Crônicas Escolhidas, 1958
- Ai de ti, Copacabana, 1960
- O Conde e o Passarinho e O Morro do Isolamento, 1961
- Crônicas de Guerra - Com a FEB na Itália, 1964
- A Cidade e a Roça e Três Primitivos, 1964
- A Traição das Elegantes, 1967
- As Boas Coisas da Vida, 1988
- O Verão e as Mulheres, 1990
- 200 Crônicas Escolhidas
- Casa dos Braga: Memória de Infância (destinado ao público juvenil)
- Uma fada no front
- Histórias do Homem Rouco
- Os melhores contos de Rubem Braga (seleção Davi Arrigucci)
- O Menino e o Tuim
- Recado de Primavera
- Um Cartão de Paris
- Pequena Antologia do Braga

ROMANCES:
- Casa do Braga

No volume publicado, também de crônicas, "As Coisas Boas da Vida", em 1988, Rubem Braga enumera, no texto que dá título ao livro "as dez coisas que fazem a vida valer a pena". A última delas: "Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte — o assim chamado descanso eterno".

Fonte:
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Rubem Braga (Aula de Inglês)

— Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

— No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

— Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

— No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

— Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

— No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

— Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

— Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

— Very well! Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

-- It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945

Fonte:
BRAGA, Rubem. Um pé de milho. RJ: Editora do Autor, 1964.
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Rubem Braga (A Viajante)

Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.

Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.

Apenas quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua.

Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde - torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente, as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um tédio cruel.

Boa viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado, acompanha, pode estar certa, você.
Rio, abril de 1952.

Fonte:
"A Borboleta Amarela", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 145.
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Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense – Parte I)

1 – INTRODUÇÃO

É do conhecimento de estudiosos de Literatura, escritores, professores, estudantes, e quem quer que se interesse por livros, a existência de uma quantidade razoável de obras para pesquisa relativas à Literatura Cearense, de historiadores e críticos, como as de Araripe Júnior, Dolor Barreira, Mário Linhares, Abelardo Montenegro, Antônio Sales, Guilherme Studart, Otacílio Colares, Raimundo Girão, Braga Montenegro, Sânzio de Azevedo. Muitas delas escritas na primeira metade do século XX e nenhuma voltada exclusivamente para o conto. Já em 1947, na “Explicação Necessária” da História da Literatura Cearense, Dolor Barreira constatava que “os materiais para uma história das letras do Ceará foram sempre e continuam a ser lastimavelmente exíguos. Não só exíguos, mas – o que é pior – esparsos e desconjuntos, disseminados que estão, irregularmente, por folhetos, almanaques, revistas e jornais”.

Outros, como F. S. Nascimento, Francisco Carvalho, José Alcides Pinto, Dias da Silva, José Lemos Monteiro, Paulo de Tarso Pardal, Dimas Macedo, Batista de Lima, para citar uns poucos, têm divulgado livros de história e crítica literária da maior importância, porém voltados para a Literatura em geral. Nada específico sobre o conto, embora dediquem partes de seus livros a este gênero ou aos seus cultores. Sendo assim, nada mais necessário do que uma História do Conto Cearense, mesmo breve, ou, se não for História propriamente dita, um catálogo, um panorama.

Objetiva-se, pois, neste ensaio reunir o maior número possível de informações relativas aos contistas cearenses, partindo-se das primeiras publicações de narrativa curta, de autor do Ceará, até hoje. No entanto, como há inúmeros compêndios de História, dicionários e enciclopédias, onde se encontram biografias de escritores, as informações biográficas aqui dadas serão sucintas, dando-se ênfase, neste caso, aos anos de nascimento e morte, à naturalidade (como quase todos nasceram no Ceará, serão anotados somente os nomes das cidades ou dos municípios) e aos títulos dos livros de contos publicados e o ano da primeira edição de cada um. O mais importante, porém, será situar cada contista na época em que escreveu, dando-lhe relevância ou não, dependendo do grau de sua importância enquanto vivo e após a morte. Essa relevância será objetivada na apreciação crítica de suas obras e na transcrição de trechos de artigos e ensaios críticos de alguns estudiosos ou simples articulistas. No entanto, como os contistas do século 19 e começos do XX já constam de todas as obras de História e Crítica, até mesmo de abrangência nacional, dar-se-á mais atenção aos principais contistas surgidos com o Grupo Clã, os que surgiram logo depois, especialmente quando da criação da revista O Saco e do Grupo Siriará, e aqueles que despontaram no final do século XX. Considera-se aqui “contista cearense” o natural do Ceará ou aquele que, mesmo tendo nascido em outro Estado ou País, tenha vivido e escrito conto no Ceará e cujas narrativas apresentem como cenário a paisagem cearense. Da mesma forma, aquele que cedo se mudou do Estado e escreveu e publicou história curta onde fixou residência.

Para facilitar a leitura do estudo, as obras de referência mais citadas terão seus títulos abreviados (primeiras letras), no decorrer das páginas. Assim, Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Estudos, de F.S. Nascimento, a partir da segunda citação aparecerá apenas como (AAA), seguido dos números das páginas onde se acha o ensaio específico. E assim por diante. E também quanto a jornais, como Diário do Nordeste, que terá apenas as inicias DN. Nomes de concursos literários serão abreviados, como Festival Universitário de Cultura, reduzido para FUC. Nas referências à classificação de peças ficcionais breves em concursos (1º lugar, 2º lugar, etc), especialmente no capítulo dedicado aos novos contistas, constará apenas o número ordinal, para se evitar a repetição do vocábulo “lugar”.

2 – RETROSPECTO CONCISO

Um dos mais completos e, ao mesmo tempo, sintéticos estudos da narrativa breve no Ceará intitula-se “Evolução e natureza do conto cearense”, de Braga Montenegro, incluído na revista Clã n.º 12, de 1952, e reeditado como apresentação de Uma Antologia do Conto Cearense, em 1965. O ensaio contém 35 páginas e é composto de oito partes. Inicia-se assim: “A evolução do conto cearense, durante a fase romântica e naturalista, se processou com bastante lentidão. Poder-se-ia mesmo afirmar que nada realizamos, no curso desse longo período, relativamente à arte de contar, não fosse uma que outra manifestação de talento logo sepultada na poeira do tempo”.

Outro estudo valioso se intitula “O Conto Cearense, de Galeno ao Grupo Clã”, de Sânzio de Azevedo, do livro Dez Ensaios de Literatura Cearense, de 1985. Contido em 31 páginas, este ensaio se originou de uma aula proferida em 3 de junho de 1983, na Universidade de Fortaleza, no curso de análise literária “Panorama do Conto Brasileiro”.

O ensaio de Braga e o de Sânzio servirão de roteiro ou guia para a elaboração deste estudo histórico-crítico do conto cearense, especialmente até o período do Grupo Clã.

Os escritores cearenses se iniciaram na prática da história curta e da literatura em geral muito tardiamente, em relação aos escritores dos centros culturais mais importantes. Antônio Sales escreveu uma sintética “História da Literatura Cearense” (divulgada nas edições de 1939, 1945 e 1966 de O Ceará, de Raimundo Girão e Martins Filho, e depois no Dicionário da Literatura Cearense, de Raimundo Girão e Maria da Conceição Sousa), subdivida em cinco partes: 1 – De 1824 a 1869; 2 – De 1870 a 1896; 3 – De 1897 a 1920; 4 – Mulheres Escritoras; 5 – Poesia. Segundo o romancista de Aves de Arribação, o primeiro jornalista cearense teria sido o padre Mororó ou Gonçalo Inácio de Loiola de Albuquerque Melo, também “poeta, pregador, latinista, jurisconsulto, botânico e estilista brilhante”, fuzilado em 1825. Seguiram-se outros periódicos. No entanto, o primeiro estabelecimento de instrução secundária, o Liceu Cearense, somente se instalou em 1845. “Todos os estudos de humanidades se faziam antes disto nas capitais onde havia faculdades, e bem se pode avaliar que poucos pais de família podiam com tais dispêndios”, observa Antônio Sales. Como se vê, apenas a elite da elite conseguia alcançar o ensino superior. Ora, muito antes daqueles anos, na Bahia despontara Gregório de Matos, no Rio de Janeiro surgira Antônio José da Silva, em Minas Gerais a Escola Mineira (Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga) e muitos outros poetas em diversos Estados da Federação. Como anotou Antônio Sales, naquela época “a vida literária propriamente dita continuava, porém, em estado de nebulosa no espírito cearense”. Dolor Barreira acrescenta: “Cruz Filho é mais rigoroso quando afirma que só em 1872 é que se iniciou na Província a vida propriamente literária”.

Provavelmente muitos e muitos contos foram escritos e publicados em jornais durante o século 19 no Ceará. Como não se deve escrever História a partir de suposições, pode-se afirmar que o primeiro contista cearense é Juvenal Galeno.

Poeta antes de tudo, especialmente com Lendas e Canções Populares, Juvenal Galeno (Fortaleza, 1836-1931), com suas Cenas Populares, de 1871, é um dos primeiros cultores da narrativa curta no Ceará. Este livro deve figurar, segundo Sânzio, “como precursor, ou mesmo como iniciador do conto em nossa terra”. Mais adiante é categórico: “Com suas qualidades e defeitos, são as Cenas Populares o marco inicial do conto cearense, em pleno Romantismo”. E assinala, no ensaio mencionado linhas atrás: “Composto de oito narrativas, todas focalizando o povo simples das praias ou dos sertões, esse livro vem confirmar uma impressão que sentimos ao ler os poemas do autor: a presença de um escritor inegavelmente romântico, com fortes notas de sentimentalismo, usando o vocabulário típico da corrente, mas ao mesmo tempo um agudo observador da realidade circundante, a ponto de seus contos, como alguns poemas de seu livro máximo, poderem servir de segura fonte para o estudo dos costumes do povo ali retratado”.

Braga Montenegro acrescenta: “a despeito de sua profunda identificação com os mitos da terra, simplesmente concluiria uma obra subordinada às particularidades e assuntos do regionalismo anedótico”.

O segundo nome da história curta cearense, na ordem cronológica, é o de Araripe Júnior. Nascido em Fortaleza, em 1848, faleceu no Rio de Janeiro, em 1911. Sânzio assinala: “escreveu obras de ficção romântica, como os romances O Ninho do Beija-Flor (1874), Jacina, a Marabá (1875), Luizinha (1878)”. No entanto, sua vocação era a crítica literária. Teve editado Contos Brasileiros, em 1868. Sânzio acha “pouco provável que o indianismo desses textos tenha como cenário a paisagem cearense” e, assim, o exclui do rol dos primeiros contistas do Ceará.

Braga Montenegro dá a José de Alencar (1829-1877) o título de primeiro contista cearense: “O ponto inicial da evolução do conto cearense retrai a meados do século 19, se incluirmos os Cinco Minutos e A Viuvinha, reunidos num só volume em 1860 (o primeiro em plaqueta, fora do mercado, em 1856), a despeito da intenção do autor que os denomina romances, na categoria de contos; verdadeiros contos ou novelas que são pelo conteúdo estético, pela duração, pelo grau de poesia e símbolo que encerram”. Sânzio ensina: As duas narrativas de Alencar “nada têm a ver com as letras cearenses”, eis que o cenário de ambas é a então Capital do Império.

Montenegro considera como sendo o segundo contista cearense, na ordem cronológica, Franklin Távora (Baturité, 1842-1888). Autor de alguns romances, em 1861 deu a lume o livro Trindade Maldita, subintitulado “Contos no Botequim”. Sânzio não o considera escritor cearense, mas “nacional ou, quando muito, pernambucano”.

Já no final da penúltima década do século 19 surgem os verdadeiros primeiros cultores da história breve no Ceará, ligados ao Clube Literário (1887-1888): Oliveira Paiva, Francisca Clotilde, José Carlos Júnior e Rodolfo Teófilo. Divulgaram suas peças ficcionais no jornal A Quinzena, daquela agremiação.
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Oliveira Paiva (Manuel de) nasceu em Fortaleza, em 12 de julho de 1861, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1892. Filho de João Francisco de Oliveira e Maria Isabel de Paiva, cursou o seminário e viajou em seguida para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Militar e ali esteve até que a tuberculose pulmonar o obrigou a abandonar os estudos. De volta ao Ceará, se envolveu nas lutas abolicionistas. Foi um dos fundadores do Clube Literário, em 1884. Na revista A Quinzena, órgão do grupo, colaborou assiduamente. Nela estão as ficções que em 1976 resultaram no livro Contos, por iniciativa da Academia Cearense de Letras, com prefácio de Sânzio de Azevedo, que, com Braga Montenegro, os tinha copiado. Na época do Clube escreveu o famoso romance Dona Guidinha do Poço e morreu sem conseguir publicá-lo. Em 1899 José Veríssimo iniciou a publicação, em capítulos, desse romance na Revista Brasileira. Mais tarde, Lúcia Miguel Pereira encontrou o manuscrito sob a guarda do poeta Américo Facó e promoveu a sua publicação pela Edição Saraiva, de São Paulo, em 1952. Era o início da reabilitação pública de Oliveira Paiva. Pouco antes de falecer, em 1889, o escritor publicou em folhetins do jornal Libertador o romance A Afilhada, editada em forma de livro em 1961. Oliveira Paiva escreveu ainda o drama Tal Filha, Tal Esposa, algumas crônicas e poemas.

Um dos mais argutos estudos dos contos de Oliveira Paiva é, sem dúvida, o livro de F. S. Nascimento Três Momentos da Ficção Menor, no qual analisa histórias de Paiva, Herman Lima e Eduardo Campos. A composição do autor de Dona Guidinha do Poço intitula-se “A Melhor Cartada”, impresso pela primeira vez em 1887, no jornal A Quinzena.

Reunidas no livro Contos, em 1976, edição patrocinada pela Academia Cearense de Letras, organizada por Braga Montenegro e com introdução de Sânzio de Azevedo, finalmente as narrativas curtas de Oliveira Paiva deixaram as folhas envelhecidas do jornal A Quinzena e, assim, se salvaram do olvido. As 12 peças coligidas são: “Corda Sensível”, “O Ar do Vento, Ave Maria”, “O Velho Vovô”, “A Melhor Cartada”, “Pobre Moisés que não o Foste!”, “O Ódio”, “A Barata e a Vela (Fábula)”, “Variação Sobre um Tema de Buffon”, “Ao Cair da Tarde”, “De Preto e de Vermelho”, “De Pena Atrás da Orelha” e “A Paixão”. Publicados em 1887 e 1888, podem ser considerados como exercícios para a elaboração dos romances A Afilhada e Dona Guidinha do Poço. Sânzio de Azevedo ensina: “Todos são unânimes em admitir que o escritor ainda não estava em pleno domínio de suas potencialidades criadoras ao compor os contos estampados n’A Quinzena”.

Muitos historiadores desconheciam essas obras de Oliveira Paiva, certamente porque não buscaram as fontes, isto é, não pesquisaram jornais e revistas, onde se iniciavam e se iniciam a maioria dos escritores. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, por exemplo, não se refere ao contista Oliveira Paiva, embora o considere “prosador terso, que sabia descrever e narrar com mão certeira e intervir no momento azado com talhos irônicos de inteligência fina e crítica”.

Sânzio de Azevedo, no estudo “Contos de Oliveira Paiva”, editado como apresentação do livro Contos e no livro Aspectos da Literatura Cearense, analisa um a um as 12 histórias do criador de A Afilhada e conclui: “Quer-nos parecer que “Corda Sensível”, “O Ar do Vento, Ave-Maria”, “A Melhor Cartada” e “O Ódio” são os melhores contos de quantos escreveu Oliveira Paiva, podendo mesmo redimir o autor de quaisquer falhas porventura encontradas nos demais”. Prossegue: “É interessante observar que nenhum de seus contos se ressente daquela linguagem cientificista que prejudica muita página de nosso Realismo-naturalismo. Seria o caso de se dizer que Oliveira Paiva fugia a esses tiques, tanto assim que tal característica não empana a grandeza de Dona Guidinha do Poço, seu derradeiro trabalho de ficção”.

Oliveira Paiva se vale de variadas técnicas na composição das obras, a partir do prisma dramático, como na montagem das três cenas da primeira história, no mesmo palco, como se fosse um drama teatral. Na primeira, uma sala e nela um fardão “enfiado sobre o espaldar de uma cadeira de balanço”. Ao fundo, a janela e parte da rua. Como personagens, a menina Maria (protagonista) e a “filha do cabo de ordens”. Na segunda cena, mais curta, no dia seguinte, a mesma sala, o mesmo fardão, e não mais as meninas, mas a criada, que se espanta diante do estrago feito pelos ratos na roupa do coronel. A última cena, a maior, dias depois, se dá em algum cômodo da casa, e nela as personagens das primeiras cenas aparecem de novo e, ao lado delas, outras, sobretudo os ratos, antes somente mencionados. Não se trata, porém, de conto composto de três células dramáticas. Talvez de drama em três atos.

Esta técnica, a de cenas estanques, separadas pelo tempo e pela substituição e apresentação de personagens, aparece em outras peças.

Nem sempre o espaço da ação em Oliveira Paiva se resume a uma sala, como no primeiro conto. No segundo, esse espaço se abre, se amplifica: um cabeço, a mata cavernosa, além do horizonte, o céu, a lua. Em outro, o mar, as embarcações, em perfeita descrição topográfica.

Uma das ferramentas de linguagem mais freqüentes nas composições de Oliveira Paiva é a descrição de ambientes, pessoas e coisas. Não a descrição enfadonha, desnecessária, detalhista, mas aquela capaz de dar ao leitor perfeita visão do objeto descrito. Veja-se a descrição do fardão do coronel, em “Corda Sensível”. Ora, a indumentária descrita será como que o objeto principal da composição, o alvo dos olhares, dos cuidados de todos, eis que os ratos – personagens fundamentais na história – dele se servirão como objeto de sua sanha.

Um dos pontos culminantes deste livro está em “O Ódio”, onde narração e descrição se mesclam harmoniosamente: a amurada do navio, a gaiola de paus, onde se mantinha aprisionado um tigre, a fera “movendo-se com pés de seda e garbo de mulher”, os marinheiros, o mar – tudo descrito com cores de tempestade, a prenunciar o desfecho trágico – e os homens em movimento, a fera a se debater na gaiola, e, súbito, o entrechoque de embarcações, o tumulto, os olhos do tigre a “bruxulear” nas ondas, a luta do homem com a fera, o fim.

Utiliza Oliveira Paiva, em algumas ocasiões, a narração simultânea de duas ações, como em “A Melhor Cartada”, onde narra uma procissão do Senhor Morto e, ao mesmo tempo, porque se dá no mesmo tempo, a movimentação de uns jogadores de baralho. O sacro e o profano em paralelas, como também em “A Paixão”, onde a cerimônia religiosa é narrada enquanto o narrador, apaixonado, se dilacera – drama psicológico – remoendo o seu amor profano.

O mesmo processo de elaboração narrativa se vê em “Variações sobre um Tema de Buffon”. E também alguns momentos de narração em estado de quase perfeição, como neste trecho, em que um capão sai em defesa de uns patinhos pela primeira vez em banho num açude: “Girava, acima e abaixo, já aflito, a percorrer a trincheira que isolava o abismo líquido. Agachava-se para entrar, recuando hidrófobo; olhava por baixo como galo a brigar; açoutava-se com as moles asas; eriçava a penaria do pescoço, ciscava nervosamente e penicava no chão, a chamar aqueles traquinas, cacarejando, gorgolejando, com a sua tocante responsabilidade de educador e aio”.

Talvez por se tratar de fábula, como a chamou o autor, em “A Barata e a Vela” a narração pura e simples ocorre durante toda a narrativa, não fosse o breve diálogo do narrador com a traça. Esta maneira de escrever não está presente nas demais ficções.

Paiva utiliza ora o ponto de vista da terceira pessoa, ora o da primeira. Às vezes esta aparece no plural. Em outras ocasiões a primeira pessoa se oculta na narração, e o leitor tem a impressão de estar lendo sob o foco onisciente. Veja-se “A Paixão”, onde durante quase toda a história a narração parece estar sendo conduzida por narrador onisciente: Uma moça numa varanda a assistir às cerimônias da Paixão de Cristo, a descrição do templo, do ambiente, a multidão de fiéis, as irmãs de caridade, os padres, suas indumentárias, as velas, o tapete, o incenso no ar, o cantochão etc. Durante toda esta narração-descrição não mais aparece a moça, apenas chamada de “ela”, e muito menos o narrador, embora sejam os dois os protagonistas. Somente no final o personagem-narrador ou narrador-testemunha, sem nome também, se apresenta: “Eu ajoelhava prostrado ante a divina figura do Mestre e o meu olhar trespassava-lhe também o coração fonte do amor”. A jovem reaparece furtivamente na narração: “E as duas almas, feitas uma para a outra...” E mais adiante: “E do sudário desaparecera o Jesus sanguinolento, para pintar-se ela com o seu vestidinho preto e as suas pulseiras de ouro, a olhar-me para meu coração soluçante”.

A utilização do ponto de vista em primeira pessoa, seja ela protagonista ou narrador-testemunha, faz de Oliveira Paiva um dos bons elaboradores de dramas psicológicos do seu tempo. Leia-se “Ao Cair da Tarde”: personagens sem nome (um cocheiro, um velho e um moço), uma carruagem a conduzi-los a um cemitério, a descrição minuciosa da estrada, breves diálogos, nada de tragédias, nada de mortes, apesar da visita ao campo santo. Na mesma linha está “De Preto e de Vermelho”, outro drama psicológico. Novamente a descrição se funde à narração, em exemplos de pura arte: “Um sapato pisava na mesa, revirado, entre os livros e os frascos”. O verbo (narração) na mesma frase dos substantivos (descrição). Um personagem sem nome descreve e narra, como se fosse apenas um observador. Ou, então, o narrador é onisciente, sendo o escritor: “Ele (o personagem) sentia atroar pelos salões a pancadaria da quadrilha pavorosa e danada e louca, vermelha como o sangue vivo, e negra como uns olhos que conheço”. Em “De Pena Atrás da Orelha”, que Sânzio de Azevedo analisa como sendo “a continuação do precedente”, também quase não se vislumbra um enredo, uma trama, e onde se percebem até pedaços de frases constantes do outro conto, como “uma capa de rei”, sem contar o tema: Numa quarta-feira de cinzas, um rapaz, entre dormido e acordado, rememora cenas do carnaval. Sem querer desmerecer esta composição, há um quê de crônica nela, mormente a partir do parágrafo assim iniciado: “Um belo dia que se alevantava na rua!”, até “... e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e rota...”

Braga Montenegro vê nessas obras de Oliveira Paiva “originalidade sem alarde, a força sugestiva dos símbolos, o inesperado da expressão valorizando os temas, estes muitas vezes perigosos pelo abuso do cotidiano”.

A manipulação da linguagem nas histórias de Oliveira Paiva é admirável, mesmo não tendo alcançado ainda, naquele tempo, a maturidade de narrador que culminaria em Dona Guidinha do Poço. Observador atento, impassível, paciente e imparcial, feito a coruja que pousa no mais alto e firme galho da mais alta e robusta árvore, vê, capta as imagens, os movimentos, as falas, os gestos das personagens, a arquitetura do espaço e dos objetos e, sem olhos de julgador – o Bem o Mal à sua frente –, descreve e narra como artista.

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Continua...

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986

Danilo Corci (O Romance Moderno)

Em "Reflexões do Romance Moderno", Anatol Rosenfeld discursa sobre os mecanismos que compõem a temática e o estilo da obra literária no Século XX após a ruptura brutal com as formas determinadas por um passado clássico. E a primeira noção absoluta para criar uma discussão como esta, consiste em enxergar o romance e sua análise como ideais de uma cultura exclusivamente ocidental.

O mecanismo escolhido pelo autor foi uma comparação direta da literatura com a pintura. Ao partir deste esquema, Rosenfeld apresenta os fatores determinantes para a mudança das artes plásticas, que também podem ser encontradas nos textos literários. Uma delas é a "desrealização", ou seja, a obra deixa de ser mimética por excelência e abandona por completo a idéia de cópia, na completa negação do realismo em forma e conteúdo.

Assim sendo, a perspectiva central é completamente limada de consideração primordial na composição do trabalho. Esta perspectiva, resultado direto da observação entre dois pólos, o do homem e o do mundo, foi forjada na Grécia Clássica, o que originou trabalhos tridimensionais e coesos. No romance moderno, a preocupação vai na direção contrária. Vai pela explosão desta perspectiva. Acontece a ruptura com a linearidade e com a cronologia. O espaço e a sucessão temporal são eliminados. Os exemplos cabais desta nova percepção estão nas obras de Proust, Joyce e Faulkner.

Tanto tempo e espaço deixam de ser entidades absolutas. Passam a serem vistos de maneira objetiva e relativa. Não existem mais certezas. A visão de uma realidade mais profunda, mais real do que o senso comum passa a ser a referência e é absorvida pela literatura. A expressão total disto vem com o romance de consciência, uma vez que não vivendo mais "no" tempo, o homem agora passa a ser o tempo, tempo este não cronológico, mas sim uma atualidade que engloba tanto o passado, o presente e o futuro, misturados e quase sem identificação. A consciência flutua entre estas referências de maneira completa. A narrativa fica sem fronteiras em seu contexto.

Portanto, a partir deste entendimento, Rosenfeld compreende que este fluxo de consciência caminha para a radicalização do monólogo interior, característica crucial do romance moderno. Some-se o narrador. A consciência da personagem se manifesta em sua atualidade. Acabam-se, então, as leis de causa e efeito, o começo, o meio e o fim. Porém, o autor observa que esta radicalização foi produzida com base no romance psicológico e realista do Século XIX. Ou seja, se perde a noção de personalidade total. O ser humano, no romance moderno, se fragmenta, se individualiza. Beckett seria um dos principais vetores deste estilo.

Assim, esta individualização facilita a busca dos mesmos padrões arquetípicos dos mitos, como em um eterno retorno já que o tempo mitológico é circular e não cronológico. "Ulisses", de James Joyce faz esta fragmentação. Fragmentação esta que representa a busca da superação da realidade sensível numa procura incansável de algo por de trás da aparência em que vivemos.

Outras possibilidades apontadas pelo autor são o geometrismo, onde um Eu narrador se aproxima do mundo narrado para mostrar um novo mundo sem tempo algum. Proust seria um dos mestres disto. Ao mesmo tempo, este mesmo narrador se ironiza tanto por saber de tudo e busca a sua justificativa nos mecanismos psíquicos de todos os seres humanos, uma vez que o narrador também é um ser humano. É a cultura do relativismo, da transformação.

Uma outra forma encontrada no romance moderno é o Behavorism. Usado por Hemingway e por Camus, este estilo cria um estranhamento total. Não existe plano psicológico. Tudo é sem profundidade, sem mergulhos internos, um verdadeiro mundo estranho e indevassável. Um mundo de seres humanos sem alma, chapados, externos. Kafka, por sua vez, usava a espera como condição primordial. Seu tempo é a eterna espera.

Anatol Rosenfeld ainda identifica outra ruptura com a técnica clássica. Trata-se do tempo simultâneo, onde grandes espaços e o coletivo são as principais fontes da técnica. Ali, os indivíduos são lançados no fluxo de consciências e do mundo, num verdadeiro redemoinho urbano e caótico. Ao identificar os fatores de ruptura, o texto apresenta um panorama da complexidade estética e das questões filosóficas discutidas pelo romance moderno. O que não deixa de ser um ambicioso mergulho no espírito de nossa época.

Fontes:
07/09/2003
http://www.speculum.art.br/module.php?a_id=526#
http://l4mp3j05.blogspot.com/ (figura)

Nathaniel Hawthorne (1804 – 1864)

(Salem, 4 de Julho de 1804 - Plymouth, 19 de Maio de 1864)

Descendente de uma família de tradição puritana, que se instalou nos Estados Unidos no século XVII, Nathaniel Hawthorne foi um dos mais importantes romancistas e contistas norte-americanos do século XIX.

Nasceu em Salem, estado de Massachusetts, a 4 de Julho de 1804, e cedo despertou para a literatura. Depois da morte do Pai, em 1808 na Guiana Holandesa (actual Suriname), vive na casa da família materna, sob influência de um ambiente típico da Nova Inglaterra.

Em 1821, ingressa na Universidade de Bowdoin, em Brunswick, onde trava amizade com o poeta H. W. Longfellow (1807-1882), e com Franklin Pierce, que viria a ser eleito 14.º Presidente dos Estados-Unidos. Formado, em 1825, decide editar, anonimamente, o seu primeiro romance Fanshawe: A Tale, mas rapidamente se arrepende do impulso e nos anos seguintes dedica-se a aperfeiçoar o seu método de escrita.

Após esta tentativa, consegue um emprego na alfândega de Boston e, em 1837, publica a primeira colectânea de contos Twice-Told Tales (contos narrados duas vezes) que viriam a ter continuação em 1842.

Casa-se com Sophia Peabody, de quem era noivo desde 1838, e com a qual virá a ter três filhos. Muda-se para Concord onde conhece os transcendentalistas: Henry David Thoreau (1817-1862) e R. W. Emerson (1803-1882), e, em 1846, de volta a Salem, Hawthorne emprega-se como alto funcionário da alfândega local. Três anos passados, é demitido, por razões políticas, e torna a mudar de residência, agora para Lenox, onde se dedica mais intensamente à literatura, que é o seu único rendimento. É nesta altura que conhece Herman Melville (1819-1891), o autor de Moby Dick (1851), que se pode considerar a sua mais importante amizade e influência literária.

Com a década de 50 vêm os anos produtivos e as suas grandes obras. Primeiro é A letra escarlate (1850), a sua obra-prima, depois A casa das sete empenas (1851). Em 1853, publica Tanglewood Tales, histórias clássicas contadas para crianças, e segue para Liverpool, na Inglaterra, para o lugar de cônsul dos Estados Unidos que desempenha até 1857, quando decide viajar, com a família, pela Europa (França e Itália). De volta a Concord, já doente, Hawthorne vive os últimos anos a começar romances que não consegue acabar e em 19 de Maio de 1864 morre, em Plymouth, durante uma viagem.

Com uma marca fortemente alegórica, fantasista e pessimista as narrativas de Hawthorne versam questões morais complexas e profundas, saídas de um espirito dominado pela permanente luta entre o bem e o mal, mas repudiando - sempre - a intolerância, o fanatismo, ou o dogmatismo religioso.

Nathaniel H. ficou na história como autor de grandes romances, mas também como mestre de numerosos e fascinantes contos, género que se pode considerar como o mais representativo da literatura norte-americana do século XIX, e para a qual ele muito contribui.

OUTRAS IMPORTANTES OBRAS:

Mosses from a old house (1846); The Snow-Image and other Twice-Told Tales (1851); The Blithedale Romance (1852); Marble Faun (1860); Our old home (1863).

Fonte:
http://www.redutoliterario.hpg.ig.com.br/prosa/nathaniel_hawthorne2.htm

Nathaniel Hawthorne (A consoada do “quaker”)

Obs: Consoada = Ceia de Natal (segundo o Dicionário Caudas Aulete)

Era véspera de Natal e, terminada a ceia, o ferreiro quaker, John Inglefield, sentou-se no meio dos seus, na velha poltrona carcomida.

Como estava no centro do semi­círculo formado pelos membros de sua família, em torno da lareira, o clarão das chamas iluminava o seu corpo grosso e atarracado, espargindo um resplendor de cobre no seu rosto rude e dando-lhe o aspecto duma grosseira figura de ferro incandescente, boa para ser forjada na sua própria bigorna.

À direita de John Inglefield havia um lugar vago. As outras cadeiras, muito apertadas à volta do fogo, estavam ocupadas pelos membros da família, muito silenciosos, enquanto suas sombras se projetavam na parede que lhes ficava atrás e dançavam alegremente.

O filho do quaker, que seguira o curso superior e era então estudante de teologia em Andover, também estava presente, assim como a irmã, mocinha de dezesseis anos, que lembrava bem, a quantos a olhassem, um fresco botão de rosa entreaberto. Também estava Robert Moore, antigo aprendiz do ferreiro, agora seu sócio, cujos traços enérgicos e viris contrastavam com os do pálido e escanifrado estudante.

O lugar à direita do velho quaker tinha sido deixado vazio em memória de sua mulher, falecida na última véspera de Natal. Com uma delicadeza de sentimentos verdadeiramente inesperada na casa de um rude ferreiro, o marido, muito compungido, colocara a cadeira da falecida no lugar de sempre, a seu lado, e de quando em quando deitava-lhe um olhar triste e interrogativo, como se perguntasse a si mesmo como era possível que a tumba fria não devolvesse a amada figura da desaparecida para alegria daquelas chamas, naquela suave noite de Natal.

Dessa forma, o velho quaker pensava com saudade e dor naquela que tão recentemente o havia deixado. Outra dor, porém, o consumia, e bem quisera ele arranca-la do coração, ou pelo menos do pensamento: uma perda pela qual ele não queria nem podia sofrer como pela primeira. É que outra pessoa da família também abandonara o lar desde o último Natal, mas para essa ele não tinha reservado o lugar com amorosa lembrança . . . Todavia, ela não tinha morrido. Enquanto John Inglefield se achava cercado da família à beira do fogo, que projetava na parede sombras fantásticas, ouviu-se a porta abrir e leves passos soaram no corredor.

O abrir da porta e o som dos passos eram tão familiares que ninguém se moveu. Uma moça entrou na sala, tirou o capote, colocou-o sobre a mesa, debaixo do espelho, e aproximou-se do círculo familiar, sentando-se na cadeira vazia como se estivesse preparada para ela.

- Pai! Aqui estou. Vocês jantaram sem mim, mas venho cear com vocês.

Era Prudence Inglefield. Usava o mesmo vestido singelo e elegante que outrora costumava pôr, de tarde, ao terminar os trabalhos de casa. Os cabelos lisos, divididos por uma simples risca, à moda das quakers, assentavam-lhe muito bem. Estava um pouco mais pálida que antes, mas a luz da lareira emprestava-lhe um belo tom rosado e saudável. Mesmo que tivesse passado todo o tempo de sua ausência num ambiente dissoluto, sua beleza não parecia ter sofrido o menor arranhão. Mudara tão pouco como se tivesse ausentado apenas uma hora e voltasse à casa paterna antes de consumida a lenha posta na lareira.

Parecia-se extraordinariamente com a mãe. Portanto, ao se sentar à direita do pai, este julgou ver sua delicada esposa, tal como a tinha amado, apaixonadamente, num remoto dia em que festejavam juntos a noite de Natal. Assim, apesar de seu caráter áspero, quase brutal, não conseguiu encontrar as duras palavras com que sempre pensara receber a filha rebelde. Não a abraçou, porém. Disse apenas:

- Seja bem-vinda a esta casa, Prudence. Sua mãe teria tido imensa alegria em vê-Ia; infelizmente morreu há quatro meses.

- Bem sei, pai, eu sei; e contudo, ao entrar aqui, meus olhos ficaram tão deslumbrados pela luz destas chamas que imaginei vê-Ia sentada ao seu lado.

Nesse instante, os demais membros da família, refeitos da surpresa, compreenderam que aquela que entrara tão imprevistamente não era um fantasma, nem uma imagem dos seus desejos e das suas saudades, mas a própria Prudence em carne e osso. Foi seu irmão,quem primeiramente a saudou, dirigindo-se a ela afetuosamente, apertando-lhe a mão, sem todavia pôr nesse gesto todo o calor fraterno, porque, embora sendo um bom coração, era um pastor e sabia que diante de si tinha uma pecadora.

- Felicito-me, minha irmã, por ver que a misericordiosa Providência aqui a trouxe a tempo de eu me despedir de você. Dentro de poucos dias devo embarcar para as ilhas do Pacífico, como missionário. Não tenho, portanto, certeza de tornar a vê-Ia... Ah!, possa eu encontrá-la além da morte! . .

Uma sombra toldou a fisionomia da moça.

- A sepultura é muito escura, meu irmão - respondeu ela, retirando apressadamente a mão que ele apertara. - Você tem de me ver pela última vez aqui, à luz destas chamas.

Entretanto, a irmã gêmea de Prudence, que com ela sempre tinha compartilhado trabalhos, alegrias e sonhos, levantou-se impelida pelo violento desejo de apertá-la carinhosamente contra o peito. Mas resistiu a esse natural movimento, temendo, envergonhada, que Prudence tivesse mudado demais para corresponder a essa demonstração de afeto, ou que a sua própria pureza parecesse uma severa censura para a moça rebelde. Contudo, ouvindo sua voz familiar, fitando bem as delicadas feições de seu rosto e a graça de seus gestos, esqueceu-se de tudo para só se lembrar de que ela tinha voltado e se atirar nos seus braços. Porém, no mesmo momento, Prudence levantou-se e agitou as mãos para contê-la num sinal de advertência.

- Não, Mary! Não, minha irmã! Não me toque! Não podemos nos abraçar.

Mary parou, trêmula, sentindo uma sombra mais espessa e mais fria que a morte interpor-se entre ela e a irmã, apesar de seu inesperado regresso ao lar, onde tinham vivido juntas quase toda a vida.

Prudence, entretanto, olhava para um lado e para outro, procurando com o olhar a única pessoa que ainda não lhe tinha dirigido a palavra. Esta, abandonando o seu lugar, fora para perto da porta e ali ficara, com o rosto virado, de maneira que, das suas feições, só se podia ver a deformada sombra na parede. Prudence, não obstante, reconheceu-o e chamou-o com voz meiga e alegre.

- Venha cá, Robert. Não quer apertar a mão de sua velha amiga?

Robert Moore, ainda por um instante, ficou imóvel. Mas seu orgulho e sua mágoa por fim cederam, e, encaminhando-se para a moça, tomou-lhe a mão e beijou-a.

- Ah!, Robert! - disse ela com tristeza, retirando a mão com vivacidade. - Não é necessária tanta efusão...

Todos se sentaram novamente em volta do fogo, e Prudence ocupou o lugar à direita do pai. Seu caráter era vivaz, terno e geralmente muito alegre, mas sua atitude e sua voz tinha tido sempre qualquer coisa de dramático que se misturava a todos os seus gestos e palavras. Desde a infância tinha compreendido que possuía a rara faculdade de impor a todos os que se aproximavam dela o seu humor do momento, e de espalhar em torno de si, como por magia, o seu estado de alma, triste ou alegre.

Assim havia sido nos seus dias de inocência, e assim ainda foi naquela memorável noite de Natal. Seus parentes, surpresos e encantados pela sua volta, quase haviam se esquecido de que ela os tinha abandonado e perdido o direito ao seu afeto. Talvez, pela manhã, à luz do sol, a olhassem com outros olhos; mas naquela noite de festa, à luz do fogo familiar, não sabiam senão que a sua querida Prudence tinha voltado e que todos lhes deviam estar agradecidos por isso.

A dura fisionomia do ferreiro parecia então luminosa de íntima e funda alegria. Por uma ou duas vezes, riu com um riso tão forte que, como outrora, fez tremer os vidros das janelas. Sentia-se surpreso da sua própria alegria. O sisudo pastor também desenrugou as sobrancelhas e pôs-se a troçar com o estudante. E Mary, por sua vez, esqueceu-se de que sua irmã gêmea tinha perdido a inocência que por tanto tempo lhes fora comum. Robert Moore fitava Prudence com os olhos brilhantes e envergonhados, tal como um tímido namorado. E a moça sorria de tal modo que ao mesmo tempo o animava e desalentava.

Aquela hora foi uma dessas ocasiões em que a tristeza mortal que há no fundo de todas as vidas se desvanece como uma sombra importuna, e só brilha uma alegria tanto mais deslumbrante e forte como leve e rápida.

Ao soarem onze horas no velho relógio, Prudence, inclinando-se sobre a lareira, pegou a caneca onde fervia o chá que seu pai tomava todas as noites e nela pôs um torrão de açúcar, como sempre o fizera.

- Deus a abençoe, minha filha - disse John Inglefield, aceitando a xícara. - A felicidade voltou ao seu velho pai. Mas... como sua mãe nos faz falta neste momento! Ah!, Prudence, como ela nos faz falta!

E após um silêncio, ajuntou:

- E, contudo, tenho a ilusão de que ela voltou...

- Voltou. . . - respondeu Prudence.

Pouco antes da meia-noite, as conversas cessaram. Era a hora do culto da família. Mary foi buscar a velha Bíblia, onde o pai ia ler o capítulo do nascimento. Mas, enquanto cada um se preparava para um recolhimento íntimo, viram que Prudence se levantava, punha o chapéu e o capote e se encaminhava para a porta.

- Prudence! Prudence! Aonde você vai? - gritaram todos, quase ao mesmo tempo.

Com a porta já aberta, ela virou-se, fazendo com a mão um gesto de adeus. Naquele instante, porém, sua fisionomia pareceu-lhes tão mudada, que eles mal a reconheciam. Era como se uma força diabólica lhe houvesse repentinamente deformado as feições, que uma paixão terrível inflamava. Um sorriso de triunfo, doloroso de se ver, dilatava-lhe os lábios.

- Minha filha! - gritou John Inglefield, pondo-se de pé. - Fique para seu pai abençoá-la, ou vá-se com sua maldição!

Prudence ficou lívida e olhou em torno. Dançavam nas paredes as sombras dos reflexos do fogo. Por um momento, ela pareceu lutar contra uma força demoníaca que a impedia de ser ela mesma, força que só podia vencer dentro do honrado lar paterno... Mas o Demônio venceu. Prudence desapareceu na noite. Todos correram para a porta, mas já nada viram. Só ouviam o som dos guizos dos cavalos que, lá longe, levavam o trenó sobre a neve endurecida.

Nessa mesma noite, entre as belas moças que enchiam o café-concerto da cidade próxima, havia uma cuja perversa alegria parecia incompatível com a doce e pura alegria da vida familiar. Era Prudence Inglefield. Sua rápida aparição no lar paterno, naquela noite de Natal, não tinha sido mais do que a materialização de um desses sonhos de candura que por vezes assaltam as almas mais miseráveis. Mas o mal, ai!, sabe prender os seus escravos. Convoca-os nas horas mais sagradas, nos mais santos momentos, quando as inocentes lembranças de felicidade pura talvez os fizessem voltar ao bem. E eles lhe obedecem.

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com