sexta-feira, 18 de junho de 2021

Estante de Livros (Tudo é possível para quem ousa sonhar, de Jaqueline Machado)

“Este é um livro motivacional, onde a autora nos faz acompanhar, como se estivéssemos a subir os degraus de uma escada, cada fase de evolução do indivíduo, desde o nascimento, os primeiros passos, a escolinha, as decepções, a rebeldia, o bullying, os caminhos, a adolescência até a fase adulta. Numa linguagem simples mostra a importância da vida, fazendo-nos refletir a cada passo sobre nossa existência e nossa missão. Jaqueline também apresenta alguns ícones da humanidade que dentro de suas próprias limitações e campos de atividade conseguiram voar alto, deixando suas marcas como exemplos de superação.

Enfim, este livro nos mostra que com fé podemos superar as vicissitudes da vida e mesmo que aprendizes, podemos ser mestres de outros desta e das futuras gerações."
(Texto de apresentação do livro, por José Feldman)
 
TRECHO DO LIVRO 
 
FELICIDADE

A felicidade nos guia, nos guarda, nos inspira...
Envia tantos sinais...
No mágico instante do parto, ansiamos pelo mundo
e o mundo anseia por nós.
No dia da nossa chegada, uma pressa misteriosa invade
nossa alma e, de cinco em cinco minutos, as mães
choram com as contrações provocadas pela nossa incontrolável
ansiedade.
Mas mãe tudo entende...
Paga o preço do pesar.
Chora contente...
Pois sua dor vem do amor.
E por amor vale a pena sofrer feliz.
Em certos momentos do parto, a mãe não sabe se
chora ou se sorri, pois ela está fazendo o milagre da vida
acontecer trazendo ao mundo, um filho...

Costumo dizer que, de todos
os espetáculos da Terra,
é o espetáculo do parto
que Deus senta para assistir...

Nesse momento tão corriqueiro e, ao mesmo tempo,
sempre único, em que a mulher contente sofre com dores
para dar à luz, nascemos chorando...
Na verdade, não sei bem se nascemos a chorar ou a
cantar.
Tenho em mim essa deliciosa dúvida... Mas isso não
importa.
Chorar... Cantar...
Os compassos do lirismo da vida são os mesmos.
E a verdade é que nascemos para a felicidade.
Nascemos do amor.
E o amor nos ensina que felicidade não é apenas um
estado de espírito, mas sim um dom.
Um dom tão magnífico que também se revela na adversidade.
Na alegria ou na tristeza, essa graça bendita chama
por nós, bate à porta do nosso coração, faz plantão diante
dos olhos, cócegas em nosso nariz.
Da espera, das contrações e das lágrimas, a vida nasce.
E isso nos mostra que a dor não é feita apenas de lamentos,
e que o prazer não é feito apenas de satisfações...
Nada tem um lado só.
No momento da concepção, quem comanda os corpos
são os estímulos do prazer...
Na hora de nascer, quem comanda são os estímulos
da dor...
Prazer e dor são faces de uma mesma moeda.
E possuem grandeza infinita, pois um nos ensina a
vencer pelo trabalho, e o outro, pelas carícias do amor...
Quando o pesar invade o nosso coração, é sinal de
que somos árvores férteis.
Capazes de dar frutos...
Quando este pesar machuca nossa alma, é porque
ele está cavando nossa terra para plantar flores de perfume
sem igual.
Quando a angústia faz chover lágrimas em nosso
rosto, as nuvens se enchem de água para regar os jardins
celestiais da nossa própria alma.
A transformação faz com que tudo nasça e renasça
o tempo todo.

A vida é uma
mãe em constante
gestação.

O livro está disponível para venda no site da Amazon (https://www.amazon.com.br)
 
Fonte:
Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Umberto Eco (Como justificar uma biblioteca particular)

Desde criança, tenho estado habitualmente exposto a dois (e apenas dois) tipos de piada: "Você é aquele que sempre responde" e "Você é aquele que ressoa pelos vales." Passei toda a minha infância convencido de que, por um curioso acaso, todas as pessoas que eu encontrava fossem estúpidas. Depois, tendo chegado à idade adulta, precisei descobrir que existem duas leis a que nenhum ser humano tem como esquivar-se: a primeira ideia que vem à mente é sempre a mais óbvia e, depois que a pessoa tem uma ideia óbvia, não lhe ocorre jamais que outros já possam tê-la tido antes.

Reuni uma coleção de títulos de artigos e resenhas, em todas as línguas do tronco indo-europeu, que variam entre "O eco de Eco" e "Um livro que produz eco". Salvo que, nesses casos, desconfio que não tenha sido esta a primeira ideia que veio à mente do redator; toda a redação deve ter-se reunido, discutido cerca de vinte títulos possíveis e, finalmente, o rosto do redator-chefe se iluminou e ele disse: "Rapazes, tive uma ideia fantástica!" E os colaboradores: "Chefe, você é um demônio, como é que tem essas ideias?" "É um dom", deve ter sido a sua resposta.

Não quero dizer com isto que todas as pessoas sejam banais. Tomar uma obviedade por ideia inédita, inspirada pela iluminação divina, revela certo frescor de espírito, um certo entusiasmo pela vida e sua imprevisibilidade, um certo amor pelas ideias – por menores que elas possam ser. Sempre me lembrarei do primeiro encontro que tive com o grande homem que foi Erving Goffman: eu o admirava e amava pela genialidade e a profundidade com que sabia recolher e descrever as nuances mais sutis do comportamento social, pela capacidade que tinha de perceber traços infinitesimais que até então haviam escapado a todos. Nós nos sentamos num café ao ar livre e ao fim de algum tempo, olhando para a rua, ele me disse: "Sabe, acho que hoje há automóveis demais circulando nas cidades." Talvez nunca tivesse pensado nisto, porque geralmente pensava em coisas bem mais importantes; tinha tido uma iluminação imprevista, e o frescor mental para enunciá-la. Eu, pequeno esnobe intoxicado pelas palavras de Nietzsche, teria sido incapaz de dizê-lo, mesmo que o pensasse.

O segundo choque da obviedade sobrevém a muitos que se encontram em condições iguais às minhas, ou seja, que possuem em casa uma biblioteca de certas dimensões – de tal maneira que, entrando em nossa casa, as pessoas não tenham como deixar de notá-la, inclusive porque nossa casa não contém muitas outras coisas. O visitante entra e diz. "Quanto livros! Já leu todos?" No início eu achava que esta frase só fosse pronunciada por pessoas de escassa intimidade com o livro, acostumadas a ver apenas estantezinhas com cinco livros policiais e mais uma enciclopédia infantil em fascículos. Mas a experiência me ensinou que também é pronunciada pelas pessoas que concebem as estantes como mero depósito de livros lidos e não a biblioteca como instrumento de trabalho, mas isto não bastaria. Estou convencido de que, quando se vê diante de muitos livros, qualquer pessoa é tomada pela angústia do conhecimento, e fatalmente resvala para a pergunta que exprime seu tormento e seus remorsos.

O problema é, à piada "O senhor é aquele que responde sempre" basta reagir com um sorriso e no máximo, quando é o caso de ser gentil, com uma "Boa, esta!" Mas é preciso dar uma resposta à pergunta sobre os livros, enquanto o maxilar se enrijece e filetes de suor gelado escorrem ao longo da coluna vertebral. Durante algum tempo adotei uma resposta desdenhosa: "Não li nenhum deles; senão, por que estariam aqui?" Mas esta é um resposta perigosa, porque desencadeia a reação óbvia: "E onde guarda os que já leu?" A melhor é a resposta padrão de Roberto Leydi: "E muitos mais, senhores, muitos mais", que deixa o adversário paralisado e o reduz a um estado de veneração estupefata. Mas acho esta resposta impiedosa e ansiogênica. Ultimamente, eu me inclino por outra afirmação: "Não, estes são os que preciso ler durante o próximo mês, os outros eu guardo na universidade", resposta que por um lado sugere uma sublime estratégia ergonômica e, por outro, induz o visitante a antecipar o momento da despedida.

Fonte:
O segundo Diário Mínimo. Publicado em 1992.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXIII

Ah, Quanta melancolia!

 
AH, QUANTA melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!

Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.

Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu

Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
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A Lua (dizem os ingleses)
 
A LUA (dizem os ingleses)
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma ideia se perde.

E era essa, era,  era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... não sei se é desejar.

Sim, todos os meus reveses
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando.
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A Mão Posta Sobre a Mesa
 
A MÃO POSTA  sobre a mesa,
A mão  abstrata, esquecida,
Imagem da minha vida...
A mão que pus sobre a mesa
Para mim mesmo é surpresa.
Porque a mão é o que temos
Ou define quem não somos.
Com ela aquilo que fazemos
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Amiel
 
NÃO, NEM NO SONHO a perfeição sonhada
Existe, pois que é sonho.  Ó Natureza,
Tão monotonamente renovada,
Que cura dás a esta tristeza?
O esquecimento temporário, a estrada
Por engano tomada,
O meditar na ponte na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos
No esforço de pensar na ação,
Sozinho com meus frios pensamentos
Nem com uma 'sperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração
Este vazio ser que anseia o mundo,
Este prolixo ser que anseia em vão,
Exânime e profundo

Tanta grandeza que em si mesma é morta!
Tanta nobreza inútil de ânsia e dor!
Nem se ergue a mão para a fechada porta,
Nem o submisso olhar para o amor.
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A Minha Camisa Rota
 
A MINHA camisa rota
(Pois não tenho quem me a cosa)
É parte minha na rota
Que vai para qualquer cousa,
Pois o estar rota denota
Que a minha [...]
Para muita coisa de volta.

Mas sei que a camisa é nada,
Que um rasgão não é mal,
E que a camisa rasgada
Não traz a alma enganada,
Em busca do Santo Graal.
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A Montanha Por Achar
 
A MONTANHA por achar
Há de ter, quando a encontrar,
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.

O santuário que tiver,
Quando o encontrar, há de ser
Na montanha procurada
E na gruta ali achada.

A verdade, se ela existe,
Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade,
Porque a vida é só metade.
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Análogo começo
 
Análogo começo.
Uníssono me peço.
Gaia ciência o assomo —
Falha no último tomo.

Onde prolixo ameaço
Paralelo transpasso
O entreaberto haver
Diagonal a ser.

E interlúdio vernal,
Conquista do fatal,
Onde, veludo, afaga
A última que alaga.

Timbre do vespertino.
Ali, carícia, o hino 
Outonou entre preces,
Antes que, água, comeces.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
in Jornal de Poesia

Andréia Alves Pires (A moça do retrato)

Pela primeira vez Marcela iria passar a tarde na casa da tia Iná. Tão diferente a tia Iná: espichada e fina, bem cabeluda, sempre com um vestidão de uma cor só. Iná morava em frente e gastava bastante tempo pensando em coisas como a vida, o universo, o zodíaco e a dificuldade tremenda que as pessoas têm para dizer o que sentem e para compartilhar projetos, espaços e histórias. Naquela terça-feira, Iná acordou esgotada. A sensação não era exata, parecia algo entre a impotência e a perplexidade. Havia demorado a pegar no sono e antes do sol dar as caras já estava de olhos estalados, fixos no céu branco do quarto. Desconfiou que fossem as notícias por toda parte, o excesso e o teor escandaloso e absurdo delas, ou as eleições por toda parte, o excesso e o teor escandaloso e absurdo delas. Talvez fosse ausência. Tem lembrado tanto da irmã ultimamente. Não podia definir o que fazia o peito apertar daquela maneira, mas estava decidida a melhorar o astral. Como?

Iná queria garantir um dia de contentamento e não tinha ânimo nem para pentear os cabelos. Então o telefone tocou e do outro lado da linha a voz era possibilidade. Alô, Iná, ocupada hoje? Só tu podes me quebrar este galho. Repara a Celinha para mim até umas cinco horas? É que ela entrou em férias e não consegui me organizar, chamar a babá, e tal. A vizinha falava rápido e a Iná gostava das conversas mais arrastadas, das palavras pronunciadas por completo e das pausas nos devidos lugares, para que a escuta fosse decente, fizesse jus ao assunto, pois qualquer assunto merece atenção, pressupunha. Tá, manda para cá. Devolveu o telefone à base e pensou: destino.

Iná tinha um jeito muito honesto de conversar com a menina, sem diminutivos, sem aperto de bochechas, e atento de verdade ao que a criança dizia, não seria ruim recebê-la. Marcela mal terminou o almoço e estava pronta, batendo o pezinho na calçada. Vamos, mãe? A vontade de xeretar a casa e a vida da vizinha quase não cabia nela. Da vez que entrou lá com a mãe só pôde ver da distância os livros espalhados, a estante repleta de quinquilharias, os gatos, o tapete felpudo. Era muita aventura prometida para uma tarde só. E ela queria saber da mulher que também vivia na casa. Uma moça que seguidamente via entrar e nunca sair, que chegava sozinha e nem fazia barulho, e que tinha dois olhos de vaga-lumes, verdes e brilhantes.

Ficou na ponta dos pés, esticada, e tocou a campainha. Que bom teres vindo, Marcela. Entra. Podes ficar tranquila, que eu cuido da tua filha até voltares, disse Iná à vizinha. Juntas na sala, Iná ofereceu uvas e retalhos de maçã. A menina queria tudo e já tinha frutas na boca e nas duas mãos quando parou, hipnotizada, diante do retrato na parede. Era a outra moradora. Quem é essa moça, quis saber apontando o indicador. Eu conheço. Gosto tanto dos olhos dela. Ah, Marcela, o nome dela é Lúcia, era minha irmã. Impossível vocês se conhecerem. Era? Não é mais, tia? Bom, vai sempre ser, acho. Ela morreu dias depois de posar para o retrato. Foi fundo demais na lagoa, onde não dava pé, e se afogou. Faz muito tempo, eu ainda era criança, assim como tu. Marcela ficou muito quieta, estudando o retrato e os traços da moça, pensando no que ouviu, antes de. Tia, tens certeza? É que quem morre não volta mais, não é? E eu vejo essa moça atravessar a rua e entrar na tua casa todos os dias. Ela abana para mim e depois fecha a porta. Iná estranhou e ia contestar o absurdo vindo da criança, fantasia tem limite, mas Marcela mesma se respondeu. Já entendi: ela mora no retrato.
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Andreia Alves Pires é Doutora em Letras - Escrita Criativa pela PUC– RS (2017). Mestra em Letras em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (UFRG)(2008). Graduada em Letras - Português/Espanhol pela UFRG (2005). Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (2005).
Escritora de ficção, autora dos livros De solas e asas (2012), Um ninho no estranho (2013) e Azaleia para erva de passarinho (2018), e do romance O céu riscado na pele. Participou do romance colaborativo Condomínio Saint-Hilaire (2017), e das antologias Grenzenlos (2016), Naufrágios Urbanos (2015) e Vitrais: contos do Invitro (2015), entre outras publicações coletivas. Dedica-se principalmente aos temas de escrita criativa, literatura brasileira contemporânea, poéticas do deslocamento e representações do feminino na literatura, jornalismo e educação. É jornalista da UFRG e editora da Concha Editora.


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Adega de Versos 29: J. G. de Araujo Jorge

 

Sammis Reachers (Como quem guarda uma cidadela)

“Sua distância da dor das pessoas, 
define sua distância de Deus.”

Fiz o bolo preferido dele, chocolate com recheio de chantilly. Todo ano eu faço seu bolo. Meu bebê. Que Deus cuide de você, meu anjinho!

Acordei cedo pra limpar o quarto dele. Avisei à dona Eurásia que não trabalharia; ela, cada vez mais velhinha e dependente, me pareceu entristecida ao telefone, mas entendeu. Sempre entende, desde o primeiro ano. Troquei a roupa de cama, passei pano no chão. Peguei pra lavar o velho boné da Porto da Pedra, onde ele era ritmista. Não era muito do samba, mas dizia que participava em memória do pai, um dos fundadores da escola, com quem só conviveu até os sete anos, que a cachaça o levou.

Hoje é o Dia Onze de Agosto, o principal dia da vida, o principal dia desse mundo morno. O dia do meu meninão. São oito anos que choro este dia, comemoro, me esparramo por dentro. Há oito anos que meu único filho, Godrigo, saiu de casa para se divertir. Iria a um baile funk, uma desgraça de baile funk, mas ele gostava. O baile era do outro lado da Baía, na Vila Kennedy. Tanto baile aqui nos bairros de São Gonçalo, na Covanca, no Salgueiro... Foi sozinho, que meu menino era assim, tinha seus defeitos, mas não era de andar de patota.

Todos os anos, em janeiro e setembro, vou até a 34ª Delegacia Policial, em Bangu. Nunca há informações sobre o caso; mas não desisto, sou mãe, sou a persistência. Um dia o caso se esclarecerá... Ser mãe é não ter opção.

Na delegacia os policiais mudam, mas não o destrato. Devem aprender na academia, se é que isso existe. Ou desaparecidos há muitos, e eles já não se importam.

Nos olhares arredios, de desinteressados a cínicos, percebo que querem, anseiam por dizer, ainda que num jato de vômito: “Seu filho está morto, dona. Pare de nos aporrinhar”. Mas não dizem. E que diferença faria? Sem corpo não há evidências, e eu mantenho minha esperança como quem zela pela própria honra, como quem guarda uma cidadela.

Quando faço café pela manhã, oito anos, meu Deus!, ainda me pego distraída, colocando pó suficiente para dois cafés. Um dia talvez ele entrará por aquela porta, e poderá estar sujo, fedido, esfarrapado; pode vir sozinho ou já com uma família, com um neto. Eu vou esperar. Um dia depois do outro.

Num sábado em maio, na véspera do Dia das Mães, fui a uma reunião de mães de desaparecidos. Lá ganhei um livreto de informações sobre a ONG que promovia o encontro, e no livrinho havia muitas frases sobre o que é ser mãe. Muitas delas tão bonitas que cheguei a decorar, e vou bordar num pano de prato para deixar na cozinha.

Em meio a tantas frases bonitas, uma ali me perturbou. Achei triste, mas depois entendi, alguma coisa em mim entendeu. E aquilo foi estranho, aquela frase me deu força, me amamentou. A frase é de uma pessoa chamada Maeterlink, não sei se homem ou mulher pois dela nunca ouvi falar: “As mulheres jamais se cansam de ser mães: embalariam até a Morte, se ela viesse dormir em seus joelhos.”

É difícil de entender. E ao mesmo tempo é isso.

Com o tempo uma mãe sozinha como eu, “viúva de pai e filho”, a quem o mundo lá fora tanto fez para apequenar, sem perceber vai ficando tão maior que a morte que quando dá por si já não a teme; vai cabendo nela que a morte não pode lhe arrancar o estado de mãe. Mesmo doído, o coração se agiganta, passa por sobre a morte e suas aparências como um trator.

Vivo ou morto, meu filho é eterno. Tudo se resume a uma medida de distância.

Uma mãe é tão maior que a morte que chego a sentir verdadeira piedade dos que não me entendem, dos que meneiam a cabeça quando me veem passar; sinto mesmo uma profunda pena desses que sentem essa tão rasa pena de mim.

Fonte:
Fanzine Samizdat. N.2. 2021. Texto publicado originalmente no Jornal Daki, de São Gonçalo/RJ.
Enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXVI

Nota: Os versos em maiúsculas na Glosa correspondem aos versos do Mote.

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OLHEM A ROSA...

MOTE:
Olhem a rosa os que ainda
costumam dizer-se ateus
— Ela é a resposta mais linda
quanto à existência de deus!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
OLHEM A ROSA OS QUE AINDA
estão sempre a duvidar,
a sua beleza infinda
vem a todos agradar!

Os que nada creem, e então
COSTUMAM DIZER-SE ATEUS
se fartarão de emoção
sentindo os perfumes seus!

A rosa é a flor que brinda
as etapas de um viver...
— ELA É A RESPOSTA MAIS LINDA
do que Deus soube fazer!

Tenha fé, não se questione,
escute os conselhos meus,
é a rosa a cicerone
QUANTO À EXISTÊNCIA DE DEUS!
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O ARTISTA...

MOTE:
Com poemas, sons ou telas
e inspiração desmedida,
o artista torna mais belas
as belas coisas da vida!
Carolina Ramos
(Santos/SP)


GLOSA:
COM POEMAS, SONS OU TELAS
mil belezas retratamos
com palavras... aquarelas...
ou com a música que amamos!

Tendo amor no coração
E INSPIRAÇÃO DESMEDIDA,
vivendo grande afeição,
teremos boa acolhida!

Em emoções paralelas,
vivenciando intenso amor,
O ARTISTA TORNA MAIS BELAS
as coisas, às quais dá cor!

Essa ação, quase magia,
será, jamais esquecida,
pois pintará de alegria
AS BELAS COISAS DA VIDA!
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O SOL...

MOTE:
O sol, imensa alforria,
que o jugo da noite invade,
abre as cortinas do dia,
num palco de liberdade.
Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:

O SOL, IMENSA ALFORRIA,
derramando sua luz,
a todos, acaricia,
com o calor que ele produz!

O Sol, jovem cavaleiro,
QUE O JUGO DA NOITE INVADE,
com ares de feiticeiro,
se veste de alacridade!

Ante a treva que angustia
o Sol, barreiras rompendo,
ABRE AS CORTINAS DO DIA,
que lindo, já vem nascendo!

Com muita luz, muita cor,
o Sol reina de verdade,
num reinado só de amor,
NUM PALCO DE LIBERDADE.
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AMANHECE

MOTE:
Diz adeus à nostagia,
ergue os braços numa prece
celebra com alegria
mais um dia que amanhece!
Selma Patti Spinelli
(São Paulo/SP)


GLOSA:

DIZ ADEUS À NOSTALGIA,
esquece tudo que é triste,
vive mais esse teu dia
pois muita beleza existe!

Ao ver o sol no horizonte,
ERGUE OS BRAÇOS NUMA PRECE
é tão belo o seu desponte
que até uma oração, merece!

Um matiz – policromia
no céu que era azul, somente,
CELEBRA COM ALEGRIA
essa beleza envolvente!

O sol, em raios, fulgindo,
a uma aquarela, parece,
tornando sempre mais lindo
MAIS UM DIA QUE AMANHECE!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Julho de 2004.

Jaqueline Machado (Pedaços de vida)

Meu nome é entusiasmo. Mas sou mais conhecida por JAQUELINE: a indomável.

De todas as regras da sociedade, eu sigo apenas uma, que por sinal anda em baixa: AMAR...

E se tem uma coisa da qual não abro mão é do meu direito de ser simples.

De vez em quando aparece um ou outro, explicando como devo escrever,
mas não sou nada técnica.

E nem quero ser.

Sou entusiasmo e coração.

E é justamente quando deixo o coração “escrevinhar” , que percebo o quanto as pessoas gostam daquilo que escrevo.

Em minhas palestras não ensino como ganhar dinheiro.

Explico que o verdadeiro caminho do sucesso está num certo entusiasmo infantil que vamos perdendo ao longo da vida.

Quando somos crianças, nós sabemos a que viemos e acreditamos que TUDO É POSSÍVEL.

Com o passar do tempo, vamos deixando a fé um tanto de lado e deixamos de correr atrás dos nossos sonhos.

E assim caímos na cilada de que não estamos no mundo para desfrutar da felicidade.

Que o jeito é aceitar a dor e o lamento. E acreditar que um dia vamos acertar a Mega-Sena acumulada e resolver todos os nossos problemas...

Bem, todos nós sabemos ou deveríamos saber, que as provações realmente existem. Mas a missão da provação é nos alertar...

Nos despertar para a verdadeira vida,

E mostrar que sucesso é saber desfrutar de todas as coisas que o dinheiro não pode comprar.

Já passei por muitas provações.

Hoje, AMO, CANTO, ESCREVO, VIBRO!

E sei que os meus textos são PEDAÇOS

DE VIDA espalhando luz e esperança pelos caminhos desse mundo.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Estante de Livros (As mentiras que os homens contam, de Luís Fernando Veríssimo)

BREVE INFORMAÇÃO SOBRE A CRÔNICA


• Cronos, divindade mitológica que representa o tempo

• Primeiro grande cronista da Língua Portuguesa: Fernão Lopes

• Crônicas modernas deixaram de lado o aspecto de registro histórico da classe dominante e anotam com humor, ironia ou lirismo as banalidades do cotidiano

• Crônicas, geralmente, tem a intenção de divertir

• Existem diferentes tipos de crônica:

 Crônica descritiva: predomina a caracterização de elementos no espaço
 Crônica narrativa: história envolvendo personagens, enredo, etc.
Crônica narrativo-descritiva: predomínio das narrações e descrições
 Crônica lírica: linguagem poética e metafórica
 Crônica metalinguística: fala sobre o próprio ato de escrever
 Crônica reflexiva: reflexões filosóficas sobre vários assuntos

Na introdução do livro, Luís Fernando Veríssimo escreve:

“O cronista também precisa respeitar certas convenções e limites mas está livre para produzir seus ovos em qualquer formato. Nesta coleção existem textos que são contos, outros que são paródias, outros que são puros exercícios de estilo ou simples anedotas e até alguns que se submetem ao conceito acadêmico de crônica.(...)”

“Você, que é o consumidor do ovo e do texto, só tem que saboreá-lo e decidir se é bom ou ruim, não se é crônica ou não é. Os textos estão na mesa: fritos, estrelados, quentes, mexidos... Você só precisa de um bom apetite.”  (A crônica e o ovo)


ESTRUTURA DA OBRA E TEMÁTICA

Constituído de quarenta e um textos relativamente curtos, como  são as crônicas, possuem uma linguagem propositalmente descontraída e informal

TEMAS:

• Mentiras de homens e mulheres.

Começa na infância. E a primeira vítima é a mãe. Depois vêm as namoradas, a esposa, a sogra, a amante, os amigos, o chefe. E se torna um comportamento compulsivo.

Muitas vezes lançamos mão delas para evitar algum tipo de constrangimento ou para escapar de broncas, outras pela terrível necessidade de não magoar os outros, ou até mesmo por mera brincadeira.

Não tem como escapar — as mentiras vão sempre estar presentes no cotidiano do ser humano. E se muitas vezes são mentiras inocentes, sem maiores conseqüências, em outras situações elas assumem dimensões gravíssimas e podem levar a um desfecho trágico.

Quem nunca se deparou com um estranho na rua com a constrangedora pergunta: "Lembra de mim?" E você, mesmo sem saber de quem se trata, responde: "Claro." E, aí, tenta ganhar tempo e mais algumas dicas para decifrar a identidade do inconveniente sujeito.

Quem nunca inventou, para a mãe, uma dor ou mal-estar pra fugir de um dia de aula?

Quem nunca usou o trânsito para justificar o atraso a um compromisso?

Afinal, quem nunca contou uma mentira que atire a primeira pedra.

ENREDOS -  PREFÁCIO

“ Nós nunca mentimos. Quando mentimos, é para o bem de vocês. Verdade. “

História sobre a doença para não ir à escola

“ Assim, lhe dávamos a alegria de se preocupar conosco, que é a coisa que a mãe mais gosta, e a poupávamos de descobrir a nossa falta de caráter. Melhor um doente do que um vagabundo.”

Primeira namorada: “A paixão nessa idade pode ser um sumidouro”

“Outras namoradas. Outras mentiras.

- Eu quero só ver, juro. Não vou tocar.

Vocês não queriam ser tocadas, mas ao mesmo tempo se a gente nem tentasse. Nem desse a vocês a oportunidade de afastar a nossa mão, indignadas. Ou de descobrir como era ser tocada.”

Casamento: mentiras sobre o medo de ladrão

“Fiquei fazendo companhia ao Almeidinha, coitado, ele ainda não se refez” significa que a nova gata do Almeidinha só saía com ele se ele conseguisse um par para a prima dela, e nós fazemos tudo por um amigo, mas não queremos estragar a ilusão de vocês de que a separação deixou o Almeidinha arrasado, como ele merecia.”

“ Está quase igual ao da mamãe.”

GRANDE EDGAR

Dois amigos se encontram e um não se lembra do outro

Possibilidade de soluções:

“ Um, o curto, grosso e sincero.  – Não.”

“Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.(...)

Desculpe, deve ser a velhice, mas...”

“E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e ruína. E o que , naturalmente, você escolhe.”

Diversas tentativas e nomes são sugeridos pelo interlocutor

“Você abandonou todos os escrúpulos. Ao Diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que conhece o Bituca?”

“Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que  é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar” Você está me reconhecendo?” Não dirá nem não. Sairá correndo.”

O FALCÃO


História da vida difícil de um homem, que é sequestrado por engano

“Só uma palavra descrevia a vida de Antônio. Foi a palavra que ele usou quando viu o tamanho da fila do ônibus.
(…)
Estava mal empregado, mal casado, mal tudo.”

Antônio faz tentativas frustradas de mostrar aos sequestradores o engano

É morto e jogado da ponte.

A ALIANÇA

História de um homem, que voltando do trabalho, fura o pneu do carro

Na troca, perde a aliança num bueiro

Pensa na conversa que teria com a esposa

“ – O que aconteceu?

 E ele contaria. Tudo exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

 - Que coisa – diria a mulher, calmamente.

 - Não é difícil de acreditar? //  - Não. É perfeitamente possível.

 - Pois é. Eu...  //  - SEU CRETINO!”

Discussão com a esposa / Chega em casa sem dizer nada, pouca conversa.

 “- Tirei para namorar. Pra fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamneto agora, eu compreenderei. (...)

- O mais importante é que você não mentiu para mim.

 E foi tratar do jantar.”

OS MORALISTAS

Paulo separa de sua esposa Margarida

“ Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos. Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no hotel. A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em dissuadi-lo. Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher.”

Todos estão tentando convencê-lo a voltar com a mulher, mostrando-lhe as desvantagens de se separar: família, filhos (“mas nós não temos filhos”), festas nas casas dos outros. (“Você se transformará num pária social, Paulo.”)

Na verdade, a preocupação deles era outra

“- Também, a ideia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima da hora. Quando não dava mais para arranjar mais substituto.

- Os casados nunca terão um goleiro como ele.(...)”

O DIA DA AMANTE

A pergunta é: “ Por que não existe um dia dos Amantes?”

“Já existe o Dia dos Namorados e hoje em dia a diferença entre namorado e amante tornou-se um pouco vaga. Quando é que namorados se transformam em amantes? Segundo uma moça, experimentada na questão, que consultamos, se a mulher der para o mesmo homem mais de 17 vezes seguidas ele deixa de ser namorado e, tecnicamente, passa a ser seu amante.(...)”

Diferenças entre um amante e um namorado solteiros: sexo

“No caso do homem casado e com uma amante a coisa se torna mais complicada, e pouco invejável. No caso do homem casado e com várias amantes, se torna mais complicada ainda, e mais invejável.(...)”

Propagandas para o Dia dos Amantes.

“Tudo para o seu segundo lar.”

“Faça-a sentir-se como se fosse a legítima. Dê uma máquina de lavar roupa.”

“Já que ela não pode ter um a aliança, dê um anel.”

 “No Dia dos Amantes, dê a ela um despertador. Assim você nunca se arriscará a chegar tarde em casa.”

Confusões inevitáveis: marido e mulher se encontram numa loja de lingerie

Marido comprando uma camisola / Mulher leva um susto

“- Há anos que eu tento esconder isso de você. Agora você pegou e vou revelar tudo. Adoro dormir de renda preta! Só me controlei até hoje por causa das crianças!

Ela compreende. Tenta acalmá-lo. Mas ele agora está agitado. Bate no balcão e grita:

- Também quero ligas vermelhas, um chapelão e chinelos de pompom grená!”

Conclusão: a amante ficará sem o presente, mas não existiria suspeitas

Dica: telefone para casa antes de ir para a casa da amante

“ Você se dirige para a casa da amante, com o embrulho do presente embaixo do braço. Começa a pensar na ausência da sua mulher em casa. Onde ela teria ido? Lembra-se então de que a viu mais de uma vez olhando com interesse uma vitrine cheia de cachimbos. Na certa pensando num presente para lhe dar. E súbito você pára na calçada como se tivesse batido num elefante. Você não fuma cachimbos!”

A VERDADE

História de uma donzela que estava na beira de um riacho

Perde um anel de diamante que é levado pelas águas

Com medo do pai, ela inventa uma história de que foi assaltada.

Os irmãos vão até a floresta e encontram um homem e o matam

Voltam à floresta e encontram um segundo homem, que também é morto.

A moça inventa uma história de que existia um terceiro homem

Os irmãos, cansados de sangue, levam-no para a aldeia.

“- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. - Matem-no.

- Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. - Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!”

“O homem contou que estava à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirou a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela deveria ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel dizendo: “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará seu amor.” E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.”

Todos se viraram contra a donzela: ”Rameira! Impura! Diaba!”

Antes da morte, a donzela quis falar com o pescador

“- A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?(...)

- A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.”

O AUTOR E O ESTILO

Nascido em Porto Alegre, Luís Fernando Veríssimo desde cedo trabalhou em redações de jornais, fato que faz suas crônicas sempre tratarem de temas atuais:

Linguagem simples, clara, despreocupada  com a construção acadêmica ou vanguardística.

Sempre procura, tanto na forma como conteúdo, uma comunicação direta com o leitor.

Escritor de texto refinado, sem rodeios.

A objetividade do autor faz o que escreve fluir na cabeça de quem lê

Vive citando nomes, locais e fatos pouco conhecidos do grande público

“Faz rir. Faz chorar. Faz pensar. É político. É humano. É, sem dúvida, um gigolô das palavras. E nem as come! As deixa inteiras para que o leitor possa obter máximo prazer.”

Fonte:
Professor Gilmar para o Mundo Vestibular,   disponível em Orfeu Spam, de Jayrus Luna (por hora, site desativado)

segunda-feira, 14 de junho de 2021

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Festival de Cinema de Maringá

Os mais antigos se lembram do sucesso. A cidade estava com apenas 11 anos, não tinha sequer uma rua asfaltada, porém já ousava fazer artes de gente grande. Ousou, por exemplo, um dia, brincar de Cannes. Isso mesmo: para espanto geral, fez-se aqui, de 3 a 10 de maio de 1958, o I Festival Nacional de Cinema de Maringá.

De começo é preciso falar do articulador dessa proeza: Renato Celidônio, paulista descendente de ilustre família quatrocentona, ex-líder estudantil, engenheiro agrônomo, líder ruralista, cafeicultor caixa-alta, mais tarde deputado federal, consagrado como principal político do PTB (depois MDB) da região de Maringá. Um homem de quem todo mundo gostava.

Renato era, ao mesmo tempo, um inquieto animador social. Basta lembrar que foi um dos fundadores do Maringá Clube e do Clube Hípico. Seu irmão José Hugo Celidônio, que posteriormente virou celebridade como um dos maiores ícones da gastronomia no Rio de Janeiro, morava aqui também naquela época e foi um dos fundadores do Clube Olímpico. Os dois conheciam meio mundo nas altas rodas do Rio e São Paulo, aconteciam nas colunas do Ibrahim Sued e do Jacinto de Thormes e dividiam mesa nos bares cariocas com os mais badalados astros e estrelas do cinema brasileiro.

Pois foi numa dessas conversas de bar que a ideia nasceu. “Vou levar vocês a Maringá para um festival diferente de todos os que se fazem no mundo”, disse Renato num de repente. Os minutos seguintes foram para ele descrever Maringá: “É uma cidade que está nascendo no norte do Paraná, numa clareira da mata. Não tem quase nada ainda, mas tem uma beleza de hotel (Grande Hotel), um baita cinema, e um povo raçudo bom à beça”.

Aqui chegando, ele levou o projeto para o prefeito Américo Dias Ferraz, que, festeiro de nascença, abriu um sorrisão e de bate-pronto respondeu: “Topo”. Renato chamou Zé Hugo, Tertuliano dos Passos, Luís Carlos Borba e mais alguns amigos, traçaram uns esquemas e foram conversar com o Ivens Lagoano Pacheco, diretor do “O Jornal”. Apoio irrestrito, com direito a manchete de primeira página: “Cinema Brasileiro terá Festival em Maringá”.

Veio aqui o primeiro time da tela nacional: Anselmo Duarte, Liana Duval, Alberto Ruschel, Andréa Bayard, Carlos Alberto Souza Barros, Odete Lara, Eva Wilma, John Herbert, Mário Sérgio, Celeneh Costa, Lola Brah, Ana Maria Nabuco, Miriam Persia, os diretores Lima Barreto e Roberto Santos e outros mais.

Arrumou-se uma grande passarela na Avenida Getúlio Vargas, na porta do Cine Maringá, por onde entravam os atores, atrizes e demais personalidades. Numa das sessões, até o bispo Dom Jaime entrou junto, ao lado do prefeito e do Celidônio. Foi uma semana de sonho e encantamento. A grande mídia nacional deu ampla cobertura. Maringá entrou na história do cinema. Belíssimo registro nas atas de uma população pioneira.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 02-7-2020)

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) VII

À MESMA SENHORA

SONETO VII

Alcíone, perdido o esposo amado,
Ao céu o esposo sem cessar pedia;
Porém as ternas preces surdo ouvia
O céu, de seus amores descuidado.

Em vão o pranto seu d’alma arrancado
Tenta a pedra minar da campa fria;
A morte de seu pranto escarnecia,
De seu cruel penar se ria o fado.

Mas ah! — não fora assim, se a voz tivera
Tão bela, tão gentil, tão doce e clara,
Daquela que hoje neste palco impera.

Se assim cantasse, o túmulo abalara
Do bem querido; e, branda a morte fera,
Vivo o extinto esposo lhe entregara.
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AS LÁGRIMAS

Lágrimas, lágrimas tristes,
Não deixeis os olhos meus,
Que por vós eternamente,
Aos prazeres disse adeus.

Para ter indisputáveis
Direitos ao nosso amor,
Arranquei-vos da minh’alma,
Sois filhos, de minha dor.

Minha vida, agreste planta
De desertos areais,
Ao sol das paixões vivendo,
Expira se a não regais.

Para ter indisputáveis
Direitos ao nosso amor,
Arranquei-vos da minh’alma,
Sois filhos, de minha dor.
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RONDÓ

Minha lira brandamente,
Delinquente em leis de amor
Do traidor que tem por crime
O que imprime na razão,
Que lacera a quem afaga
Que propaga em seus ardores
Os horrores da tristeza
Que me pesa na feição,
Tangerei as cordas tuas,
Que são tuas, e não minhas
Que o que tinhas tangedor
Tens de amor a escravidão.

Não mais de outras criaturas
Formosuras cantaremos,
Louvaremos tão-somente
De um só ente a perfeição.
Tirce, a bela moreninha,
Que de minha nada tem,
É, meu bem, a criatura
Que segura meu grilhão.
Eu que em vê-la só me esmero
Ser não quero desprendido,
Que embebido no meu rosto
Acho gosto na prisão.
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O FUROR CIUMENTO

Da mãe, que pelo amante empunha o ferro
Para cravar nos filhos, pede o fogo,
Que em teus olhos dardeja o sol dos trópicos;
A clave do gemido brasileiro
Pede a prece da filha
Que os filhos recomenda ao amor paterno;
Norma de Norma, chega!
Já a língua de Euterpe é língua tua!

Chegaste!... dos desgostos pela senda,
Arrastada por destra misteriosa,
Que dest’arte guiou-te ao ignoto alcáçar
Recebe, pois, um ósculo da Poesia,
Que Música e Poesia
Irmãs nos louros, beijam-se na floria.
Sus, Rainha do Canto, o cetro empunha!
Reina, que, se não reinas
No mundo d’harmonia,
Reinar não pode a cena brasileira.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Lenda Indígena (O Furto do fogo)

Segundo os índios tembés*, nos tempos míticos o fogo tinha um único dono: o urubu-rei. Como o urubu era muito avaro da sua preciosidade, os índios não podiam fazer uso de chama alguma, e quando queriam comer carne só lhes restava o expediente de expô-la longamente ao sol.

Isso foi até o dia em que um índio mais destemido resolveu dar um fim àquilo.

– Vamos atrair o urubu-rei e a sua tropa inteira – disse ele, matando uma anta enorme.

Depois de sangrarem bem o bicho, eles deixaram o cadáver exposto ao sol, para atrair os urubus.

Não demorou muito e o urubu-rei, atraído pelo fedor da carniça, desceu sobre a anta.

– Viva, temos hoje banquete farto! Vamos lá, companheiros, há carniça para todos! – disse ele, dando um grasnido.

Logo o céu anoiteceu com a chegada de uma verdadeira nuvem de urubus. A bicharada caiu sobre a anta, mas alguém teve a ideia de acender um fogo e preparar a carne na grelha, ou no moquém, como se diz entre os índios.

– Carne moqueada também tem lá suas delícias! – disse o urubu-rei, retirando de debaixo da asa negra um tição muito bem escondido para acender a grelha.

Os urubus, naquele tempo, tinham o dom de se transformar em gente e, assim, antes de se lançarem à comilança, despiram as asas e ficaram com a aparência de homens (daí, talvez, o gosto que tinham em assar a carne, ao invés de comerem-na crua, como hoje normalmente fazem).

– Ufa! Que calorão! – disse o urubu-rei, despindo o manto de penas.

Nus feito gente, os urubus atiraram-se finalmente à carne, e justo neste instante, irrompendo de dentro da mata, surgiram os índios, de olho aceso no fogo que ardia na grelha.

– Depressa! Apanhem um tição! – gritou o velho pajé, organizador do assalto.

Um grito de alerta do urubu que vigiava avisou, entretanto, os demais, e logo todos vestiram seus mantos negros de penas e levantaram voo estabanadamente. Antes de partir, o urubu-rei tomou a última fagulha que ardia na grelha e, depois de ocultá-la debaixo da asa, juntou-se às demais aves no céu.

O pajé correu alucinadamente até a grelha, remexeu no borralho e encontrou um último caquinho de carvão, com uma listrinha laranja correndo
pra lá e pra cá.

– Aqui! Aqui! – gritou ele aos demais. – Vamos, assoprem, não deixem apagar!

Quinze bocas cercaram o carvãozinho e começaram a assoprá-lo agoniadamente, mas o fizeram com tanta força que a listrinha laranja acabou por se finar, e o carvão nunca mais se acendeu.

– Idiotas! – exclamou o pajé, irado.

Quando se acalmou um pouco, porém, viu que a anta ainda estava quase inteira.

– Eles voltarão logo – disse ele, animando-se outra vez. – Desta vez, vou ficar bem próximo da grelha, e vocês desapareçam e só surjam quando eu ordenar o ataque!

Os tembés fizeram como o pajé ordenara, enquanto ele tratava de cavar um buraco bem ao lado da carniça a fim de se enfiar ali dentro. O mau cheiro da anta decomposta era insuportável, mas quem disse que furtar fogo era coisa fácil e prazenteira?

Dali a pouco, os urubus voltaram, loucos de fome. Após despirem seus casacos pretos, que fediam mais do que a carniça, reacenderam o fogo e recomeçaram a banquetear-se.

Enquanto comiam, o pajé aproveitou para irromper da sua toca, ágil como uma marmota, e meteu a mão dentro da grelha para apanhar um tição.

Assustados, os urubus apanharam suas vestes e levantaram voo outra vez. O urubu-rei ainda tentou resgatar o tição, ou pelo menos extingui-lo na mão do pajé, fazendo uma ventania danada com as asas, mas o velho índio cerrara os dedos com tanta força que nem um furacão teria como apagá-lo.

No fim de tudo, os urubus sumiram nos céus, e o pajé viu-se dono do tição, que ainda ardia em sua mão. Que Anhangá o carregasse se aquilo não ardia como cem mil espetadas!

Como um Prometeu enlouquecido, o pajé tratou de atear fogo em todas as árvores de lenho incandescente que encontrava, a fim de preservar a chama, e teria colocado fogo na mata inteira se os demais índios não tivessem corrido para apagar aquelas labaredas todas.
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* Tembé
Os Tembé constituem o ramo ocidental dos Tenetehara. O grupo oriental é conhecido por Guajajara. Sua autodenominação é Tenetehara, que significa gente, índios em geral ou, mais especificamente, Tembé e Guajajara. Tembé, ou sua variante Timbé, constitui um nome que provavelmente lhes foi atribuído pelos regionais. Vivem no Pará e Maranhão. De acordo com o linguista Max Boudin, timbeb significaria "nariz chato".

A unidade básica da estrutura social Tembé é a família extensa, que se constitui na unidade de produção. Um líder familiar atrai jovens trabalhadores e fortalece o seu grupo por meio das próprias filhas e as filhas de seus irmãos, de modo que ele procura sempre "adotar" as mulheres cujos pais venham a falecer. O chefe coincide, portanto, com o líder de um grupo familiar cujo poder é avaliado pelo número de indivíduos a ele ligados pelas obrigações de parentesco e matrimoniais, pois o genro deve trabalhar nas roças dos sogros, junto aos quais mora, pelo menos até o nascimento do primeiro filho.

Dentro da família mais ampla, os pais ou a mãe viúva mantêm a posição de autoridade. Como as esferas pública e privada são pouco diferenciadas, a política torna-se doméstica e a mulher chega a ser líder do grupo em determinadas situações. Na década de 80, entre os Tembé do Gurupi, o líder de maior prestígio era a "capitoa" Verônica e duas outras aldeias eram constituídas de famílias extensas agrupadas em torno das "velhas" e viúvas de "capitão".

As aldeias, que variam consideravelmente de tamanho, localizam-se em barrancos elevados na beira do rio, próximo às roças. As casas são cobertas com ubim e as paredes são de troncos finos de palmeira, de cascas de árvores ou simplesmente não existem. No posto indígena, são de taipa. Cada casa abriga uma família elementar, sendo que as pertencentes à mesma família extensa ficam próximas umas das outras. Só a aldeia do posto possui uma grande casa cerimonial. Nas outras aldeias, o principal espaço de uso coletivo são as casas de farinha.

O casamento se faz preferencialmente entre primos cruzados do segundo grau que morem na mesma aldeia. Casamentos com regionais, que foram importantes no período em que a população Tembé estava em queda, têm sido preteridos em favor dos casamentos com os Ka'apor, grupo indígena vizinho.


domingo, 13 de junho de 2021

Contos e Lendas do Mundo (A Tartaruga tagarela)

Era uma vez uma tartaruga que vivia num lago com dois patos, muito seus amigos. Ela adorava a companhia deles e conversava até cansar. A tartaruga gostava muito de falar. Tinha sempre algo a dizer e gostava de se ouvir dizendo qualquer coisa.

Passaram muitos anos nessa feliz convivência, mas uma longa seca acabou por esvaziar o lago. Os dois patos viram que não podiam continuar morando ali e resolveram voar para outra região mais úmida. E foram dizer adeus à tartaruga.

- Oh, não, não me deixem! suplicou a tartaruga - levem-me com vocês, senão eu morro!

- Mas você não sabe voar! - disseram os patos - como é que vamos levá-la?

- Levem-me com vocês! Eu quero ir com vocês! - gritava a tartaruga.

Os patos ficaram com tanta pena que, por fim, tiveram uma ideia.

- Pensamos num jeito que deve dar certo - disseram - se você conseguir ficar quieta um longo tempo. Cada um de nós vai morder uma das pontas de uma vara e você morde no meio. Assim, podemos voar bem alto, levando você conosco. Mas cuidado: lembre-se de não falar! Se abrir a boca, estará perdida.

A tartaruga prometeu não dizer palavra, nem mexer a boca; estava agradecidíssima!

Os patos trouxeram uma vara curta bem forte e morderam as pontas; a tartaruga abocanhou bem firme no meio. Então os patos alçaram voo, suavemente, e foram-se embora levando a silenciosa carga.

Quando passaram por cima das árvores, a tartaruga quis dizer: "como estamos alto!" mas lembrou-se de ficar quieta.

Quando passaram pelo campanário da igreja, ela quis perguntar: "o que é aquilo que brilha tanto?" mas lembrou-se a tempo de ficar calada.

Quando passaram sobre a praça da aldeia, as pessoas olharam para cima, muito espantadas.

- Olhem os patos carregando uma tartaruga! - gritavam. E todos correram para ver.

A tartaruga bem quis dizer: "e o que é que vocês têm com isso?" mas não disse nada.

Ela escutou as pessoas dizendo:

- Não é engraçado? Não é esquisito? Olhem! Vejam!

E começou a ficar zangada, mas ficou de boca fechada.

Depois, as pessoas começaram a rir:

- Vocês já viram coisa mais ridícula? - zombavam.

E aí a tartaruga não aguentou mais. Abriu a boca e gritou:

- Fiquem quietos, seus bobalhões!

Mas, antes que terminasse, já estava caída no chão. E acabou-se a tartaruga tagarela.

Júlia Lopes de Almeidas (As três irmãs)

A Zalina Rolim

Havia muitos anos já que D. Teresa não via as duas irmãs. A segunda, D. Lucinda, partira logo depois de casada, com o primeiro marido, para Buenos Aires, e lá ficara sempre; a mais moça, D. Violeta, fora habitar a Bahia com o seu esposo e ali estava gozando os triunfos acadêmicos dos filhos e os respeitos delicados do seu velho.

Mas um dia, D. Teresa, apreensiva, com medo da morte que se avizinhava, escreveu às irmãs:

– Que viessem ao Rio despedir-se dela e tomar posse do que lhes pertencia.

Interesse ou saudade... (quem lê claro em corações tão bem ocultos?) empurrou para as plagas natais as duas senhoras.

D. Teresa remoçou uns dias. Só ela ficara solteira e em casa dos pais, já há tanto mortos, como um guarda fiel, depositária de todas as relíquias da mocidade deles e delas! Assim, recomendou à criada, mulata antiga, ex-escrava da família, em todo caso uns trinta anos mais moça do que ela:

– Olha, Emília! Para a mana Lucinda arranja o quarto azul, aquele da esquina... era o seu quarto de solteira... Ela gostava de canários... tinha sempre uma gaiola no quarto... era isso: bota lá a gaiolinha dourada do canário novo... Escuta! Lava bem tudo! Ela era muito faceira... não te esqueças do pó de arroz, de por sabonete fino e frascos de... espera! qual era o cheiro que ela preferia?... Ah! já sei! Jasmim! Manda comprar essência de jasmins...

– Sim, senhora.

– Agora, para D. Violeta prepara o quarto branco, das três janelas... Era o quarto dela! Vê se arranjas muitas flores... Violeta era a nossa jardineira!... Olha, faz um ramo para o lavatório, outro para a cômoda. Era assim que ela usava... Espera! que pressa! Manda comprar essência de violetas... era o aroma dela!

– Sim, senhora...

– Não te esqueças de nada!

– Não, senhora...

A mulata saiu, deixando D. Teresa aos guinchos com um ataque de asma. Não queria morrer deixando aquela casa em mãos indiferentes. Só as irmãs receberiam com amor aqueles trastes antigos, em que tantas vezes rolaram juntas, onde os pais presidiam às suas travessuras de crianças e onde, depois, os noivos as beijaram com embriaguez... A pobre coitada estava a desfazer-se, sentia, a cada arranco da tosse, desmanchar-se-lhe sob a pele seca e enrugada a carcaça frágil e dolorida. O seu corpo, nunca amado, caía, como um feixe de ossos partidos, para a sepultura. Como estariam as irmãs?

A Lucinda deveria estar bem velhota! Agora a Violeta, essa, apesar de mais moça, com tantos filhos e já tanta netaiada, é provável que viesse trêmula e bem achacada pela velhice! Havia já uns trinta anos que a não via... e à outra... uns bons quarenta! E D. Teresa revia com saudade o rosto pálido e formoso da esbelta Lucinda, de olhos verdes, dentes sãos, faces brancas como a neve; e o rostinho delicado de Violeta, moreno, levemente rosado, com uns olhos travessos e negros e uma boquinha perfumada de juventude, muito fresca e vermelha!

E apesar de calcular-lhes as rugas, só via diante dos olhos as figuras louçãs e radiantes das irmãs noutros tempos...

A mulata aprontou tudo com esmero. D. Teresa, apoiada ao seu ombro e a uma bengala grossa, percorreu toda a casa. Ela tinha tido sempre a singular mania de conservar as coisas nos mesmos lugares e em igual posição. Se mandava renovar o papel de uma sala, exigia que o novo fosse exatamente igual ao que de lá saísse; e os trastes eram polidos, os estofos espanados com escrúpulo e as alcatifas nunca substituídas por outras que não fossem da mesma cor e de igual desenho... Para ela, aquelas velharias eram preciosidades raras. Não saía nunca, não dava festas. Vagava no ar das suas salas um cheiro de mofo, denunciador do triste isolamento da sua vida de solteirona, sem sobrinhos, nem afilhados, nem ninguém!

Custava-lhe deixar todo aquele esplendor em mãos alheias e ansiava pelas irmãs. Por uma coincidência, chegaram no mesmo dia D. Violeta, vinda da Bahia, e D. Lucinda, de Buenos Aires.

A manhã estava de uma beleza incomparável; o céu todo azul, a atmosfera morna, o que aprouve a D. Teresa, que pôde aliviar o peso da roupa e cruzar sobre o vestido de seda roxo o seu belo mantelete de renda preta. A Emília ajudou-a naquela tarefa. Toda a roupa compartilhava daquele cheiro de umidade. Vestido havia tanto tempo guardado, o que as rugas fundas denunciavam, não podia cheirar a sol nem a primavera...

No topo da escada, com a cabecinha trêmula sempre a dizer que sim, uma das mãos apoiada à bengala, a outra sumida no braço da mulata, D. Teresa esperava as irmãs com os olhos luminosos, molhados de lágrimas. Elas subiam, vagarosas também, falando alto, uma com voz grave, outra em um falsete de gaita. Haviam de ser risadinhas, lembranças da mocidade...

D. Teresa ordenara que se abrisse o salão principal, e foram logo para lá as três. O que ela notou, com certa alegria invejosa, foi que as irmãs andavam mais direitas, sem necessidade de apoio. Sentaram-se no salão. D. Lucinda faiscava de vidrilhos, descansando a papada cor de leite na rica seda preta da capa. Era enorme. A gordura disfarçava-lhe as rugas.

O coquetismo da mocidade ainda mostrava os seus traços: lá estava o cabelo pintado, caído nas fontes em duas bellezas*, à moda espanhola. E de vez em quando saltitava um caramba, que rebentava como uma bomba naquela casa antiga e reservada.

D. Violeta, essa guardara alguma coisa do seu aroma de flor, para a secura da velhice. Era pequena, muito engelhada; vinha vestida de lã marrom, com uma capa de rendas, de pouco enfeite. O que lhe dava graça era o cabelo muito branco e a meiguice dos seus olhos negros, habituados a sorrir para os netos travessos.

D. Teresa era a mais acabada! Faltara-lhe o amor, faltaram-lhe as sagradas agonias da maternidade, e a sua existência passiva, concentrada, inerte, levara-a àquele ponto, de passa seca já empedernida e intragável!

As três irmãs olharam-se com tristeza; mas o que pensaram não o disseram. Os lábios sorriram, houve uns suspiros mal disfarçados e um brilho de lágrimas, que pareceu molhar ao mesmo tempo os olhos de todas, sem rolar pela face de nenhuma... D. Lucinda rompeu o silêncio. Vinha por pouco tempo... o seu segundo marido, um argentino, morrera havia um ano; tinha ainda muita coisa a liquidar...

O seu palacete não podia ficar abandonado em mãos dos perversos enteados... O seu palacete! Como ela encheu a boca, descrevendo em duas palavras o luxo das suas mobílias e da sua equipagem.

Era conhecida e invejada na cidade toda!

D. Teresa pasmou:

– Quê! Pois as suas mobílias são melhores do que...

– Estas?! Oh! E riu-se com desdém. Teresa! você não imagina: isto é horrível! Nós outras temos coisas modernas, vindas de Paris! Meu marido gastava todos os anos uma fortuna em quadros, em louças, em cavalos e em roupas!

D. Teresa, pálida, com a cabecinha ainda mais trêmula, olhou para a irmã Violeta.

– E você?

– Eu já não me importo com luxos... meus netos acabam com tudo! A não ser à missa, não vou a parte nenhuma... O que eu quero é ter muito espaço para as crianças e uma capela bonita. Em minha casa celebra-se sempre, com alguma pompa, o mês de Maria... É o nosso sistema.

– Eu não conheço, modéstia à parte, casa mais completa do que a minha! impou D. Lucinda.

– Nem eu casa mais alegre do que a minha. Se saio, volto logo com saudades... murmurou D. Violeta.

D. Teresa disse, já um tanto envergonhada por tratar as irmãs por você, em um tom cerimonioso e encolhido:

– Pois eu mandei pedir a... vocês... que viessem tomar conta das mobília e da casa, julgando que lhes fosse agradável...

– Vamos ver! interrompeu D. Lucinda, erguendo-se com dificuldade bem disfarçada. Emília amparou D. Teresa e seguiram todas em peregrinação. D. Lucinda apalpava tudo e ia murmurando:

– Esta mobília tem o estofo podre... Olhem! e esgarçava com a unha o damasco das poltronas.

– Está mesmo... afirmava D. Violeta. Assim tudo: este canapé é medonho; eu não o quereria nem na minha cozinha! Meu Deus! Esta sala de jantar parece-me um refeitório de convento... E dizer que antigamente a gente achava isto bonito...

D. Violeta sorria; D. Teresa não chorava por vergonha, com respeito às irmãs, que vinham mais fortes, com outros hábitos e outros gostos, cada qual educada por um marido, com o espírito influenciado pelo espírito deles; uma adorando o luxo, a outra a família e a igreja. Era bem certo, o casamento e a distância roubaram-lhe as irmãs para sempre; a Lucinda e a Violeta de outrora estavam enterradas em algum cemitério de virgens; aquelas duas velhas de gênios opostos... não era elas!

À noite, D. Teresa, opressa pela asma, não se quis recolher cedo ao seu quarto. Emília foi dizer-lhe com acento irônico:

– D. Lucinda mandou tirar do quarto dela a gaiolinha. Diz que não pode suportar barulhos... que o sono da manhã é o melhor!

Ao mesmo tempo aparecia D. Violeta com as flores na mão:

– Isto não pode estar lá no quarto... As flores devem ficar nos jardins... Lá em casa é o meu sistema.

La em casa! pensou D. Teresa; lá em casa! Afinal cada uma ama o que é seu, pensa no que é seu! Eu, só eu, amo esta casa, não porque seja minha, mas porque era nossa... Serei melhor do que elas? De onde me vêm esta ternura e esta saudade que elas não sentem?

D. Teresa chorou na penumbra da sala.

No dia seguinte mandou recolher ao quarto dos badulaques, no fundo do quintal, os trastes mais antigos e de maior estimação. As irmãs zombavam de tudo... pois bem! deixaria escrito que se fizesse com eles uma fogueira no dia do seu enterro. Mas não escreveu, e dois dias depois, à hora do almoço, morreu sentada na sua cadeira de couro, com as mãos sumidas no xale e a cabecinha pendida para o peito.

D. Violeta recolheu as imagens do oratório, como lembrança piedosa; D. Lucinda, nada. Venderam a casa, repartiram os bens... e foi cada uma para o seu destino.
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*Tipo de penteado feminino, com os cabelos do topete puxados às orelhas.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

sábado, 12 de junho de 2021

Adega de Versos 28: Daniel Maurício

 

Solange Colombara (Carreata de Micro-Contos) - 1 -

Garrafa


Em uma de suas caminhadas pela praia, encontrou uma garrafa. Dentro, havia vários poemas com um bilhetinho: "—Leia com carinho e lance ao mar novamente".

E assim foi feito durante décadas. "Reflexões de Adalgisa" ganhou o mundo.
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Misantropia

Passava dias trancada em casa com Archimedes, Edgard e Sócrates. Os vizinhos comentavam: "— Misantropia ou Síndrome do Pânico?"

Adalgisa só tinha uma certeza: Preferia a companhia dos seus gatos.
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Malícia

Vestida de charme e elegância, deu um show na quadra. Ele veio chegando como quem não quer nada, cheio de malícia, prometendo "mundos e fundos". Mas ela só queria ser a rainha da Bateria.

Fonte:
Textos enviados pela autora.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 2 –

A flor, quando desabrocha,
quase deixa de ser flor,
pra se transformar em tocha
aspergindo aroma e cor.
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A morte exige passagem
para à vida subtrair
o colorido da imagem
e a esperança do porvir.
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A vida pede socorro
nas estradas da existência,
contra a falta de decoro
e excesso de prepotência.
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De volta para o passado
movido pela saudade,
vemos o homem, apressado,
perder sua identidade.
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Dos bons momentos vividos
raramente alguém esquece,
dos maus e dos mais doídos
qualquer alma se entristece.
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Entre o anil do firmamento,
aonde o sol, fulgente, impera,
da nudez do chão cinzento
brota a vida e prolifera.
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Frente à tumba do passado
prostrado chora o descrente,
por ver sendo sepultado
um pouco do seu presente.
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Hoje, o ser humano investe,
na aparência, com excesso,
como se o que come e veste
fossem fontes de sucesso.
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Não permita que a vaidade
se sobreponha à virtude,
ambas crescem com a idade
mas conflitam amiúde.
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Não te iludas com as flores
que encontrares nos caminhos,
por trás das vistosas cores
podem esconder espinhos.
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Na vida tens dois caminhos,
num deles deves optar
e o que tem menos espinhos
escolhe pra caminhar.
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No altar onde há tradição,
cultivá-la, pode ser,
muito mais que obrigação
um santo e nobre dever.
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Numa taça de água fria
não deprecia quem dá,
mas refresca de alegria
alguém que com sede está.
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Nunca faças de um fracasso
do sucesso, a sepultura,
porque o teu próximo passo
pode ser o da ventura.
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O presente nos revela,
uma vida, igual façanha,
mais a imagem que foi dela
e aquela da sua entranha.
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O presente planejado
não se assusta do futuro,
povo que não tem passado
imerge em porvir escuro.
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Ouvindo o choro do vento
minha alma se contorcia,
não via, mas seu lamento,
era igual ao que eu sentia.
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Pelas frinchas da janela
aonde refulge a manhã,
a estrela numa olhadela
entra em forma de espiã.
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Pode haver alguém que diga
com toda a sinceridade,
na maldade, quem se liga,
não terá a felicidade.
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Que jamais o ser humano,
venha um dia ser lesado,
por vingança ou por engano
muito menos desprezado.
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Que tem vida após a morte,
diz a fé, ela existe, sim!
Quem na vida tem um norte
não deve temer o fim.
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Se a pedra o caminho veda
e até lhe faz sucumbir,
por que não fazer da queda
um degrau para subir?
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Se à regra tens a exceção
e adotá-la, até te alegra,
não faças dela uma ação,
nem da exceção tua regra.
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Sempre, à noite, quando deito,
sonho em poder despertar,
com o arquétipo refeito
no entusiasmo de lutar.
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Sempre que nuvens espessas
sob o firmamento abundam,
fazem jorrar às avessas
águas que as terras fecundam,
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Se nos jardins se acastelam
flores que exalam perfumes,
juntas brindam, mas revelam,
nos espinhos, seus ciúmes.
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Sonhamos que o bem retorne
a nós sempre que o perdemos,
colhemos frutos, conforme,
as plantações que fizemos.
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Tem muita gente que faz
de um simples ventilador
um tornado forte e audaz
com poder destruidor...
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Tudo na vida são fases
com diferentes matizes,
algumas mais eficazes
e outras bem menos felizes.
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Tudo passa nesta vida,
se não fosse, perde a graça!
Quando a paz lhe for tolhida,
cresce a dor que nunca passa.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Ódio que mata)

Como esta história chegou aqui é fácil de entender. Quem a relata é meu filho, ligado ao ramo, que explica:

- Minhas auditorias, no campo rural, levaram-me a conhecer André, que geria com mãos firmes a fazenda Monte Belo. Bom papo, André desvelou-me a Monte Belo, de ponta a ponta, a trote de cavalo, queixo apontado para além das colinas que delimitavam no horizonte os confins da propriedade. Nas pausas, nossa prosa corria solta, à sombra dos jacarandás floridos, animada pela frescura do farfalhar das folhas. Esta história aflorou a partir da premissa disparada por André, logo que chegamos ao portal da Monte Belo:

– Fazenda de gado tem os seus encantos. Mas tem também algumas coisas que a gente não entende e ninguém consegue explicar.

– Como assim?! - perguntei. - André apertou os olhos, estendendo o olhar pela campina verde.

– É o caso do Atlas.

André calou-se, enigmático, a dar tempo para que aflorasse a pergunta seguinte:

- E quem é esse Atlas? – a resposta irônica saltou pronta:

- Esse Atlas... é um cara bravo, forte, que pretende carregar o mundo nas costas!

- Bem... até aí, você está de acordo com a mitologia. Mas... eu continuo na mesma!

– Este Atlas é outro, meu caro! - emendou André, com ênfase – Este Atlas é um touro Jersey, desaforado, dono do pedaço... E que pensa ser dono da fazenda inteira!...

Ante a minha passividade, André continuou:

-E o pior... é que ele, absolutamente, não gosta de mim! E não gosta mesmo!! Não me suporta! - Você ri... não é? Mas é porque ainda não viu nada! Dizer que aquele touro não gosta de mim... é até bem pouco! Ele me odeia!! Me odeia, sim!!! O maldito me odeia tanto, já tentou me matar por várias vezes! Juro!... Não é brincadeira, não! Pode crer!

- Claro que alguma coisa você deve ter feito a ele! – argumentei, disfarçando o riso: - Ódio não é coisa gratuita! É... toma lá, dá cá!...

- Isso é o que você pensa, meu caro!!! Neste caso... tudo é questão de química! O Atlas sequer pode me ver!... Seus instintos assassinos assomam, tão logo apareço!! Tenho a impressão de que, entre este seu amigo e aquele touro, a vida abriu um abismo sem fundo!

- É como se ele visse, na minha pessoa, um arqui-inimigo que precisasse destruir a qualquer custo!... E é isto mesmo o que ele tenta fazer a cada oportunidade! - Mas, deixe... vou ficar calado! É só chegarmos lá e você vai ver, com os próprios olhos, quem é essa fera! Juro que nem vou precisar dizer nada!...

A casa sede apontava, lá embaixo. Estimulados, os cavalos aceleraram a marcha parando ao pé da porteira gemedora, que uma vez mais gemeu ao nos dar passagem.

André encaminhou-se para o curral. Segui-o, tão logo entreguei o cavalo ao peão para que o livrasse dos arreios.

- Ei-lo! — apontou André de braço esticado. - Lá está ele... Sua Majestade, o Atlas!

Apresentação sarcástica e desnecessária. De costas para nós, o touro impunha-se pelo porte. Uma apoteose de músculos! Ao ouvir vozes, voltou-se devagarinho, pregando os olhos no desafeto.

André baixou a voz: - Tá vendo só ?! Ele já me pressentiu! - O bicho tem faro de cão perdigueiro!

O animal moveu com lentidão as arrobas de carne. Aproximou-se devagar... Trem possante a resfolegar ódio!... E... sem nunca tirar os olhos de cima do André!

- Viu só? Eu não disse?! Tenho ou não tenho razão?!... Esse cara me odeia! Olha só como bufa!... Eia...bicho ruim! - Já chega! Vamos embora! Essa raiva gratuita me faz mal! Fico até doente... picado por cobra!

Não fora difícil concordar:

- Realmente... É muito estranho... parece que o bicho não vai mesmo com a tua cara, André! - Não vai, não!

- Sei lá o que anda na cabeça dele... sei lá!

Sem resposta, demos as costas ao touro, voltando para a casa matriz.

O dia seguinte amanheceu radiante. O Sol... baita holofote a iluminar o bucolismo da Monte Belo! Antes do café, encaminhei-me para os lados do curral, onde o gado filosofava à espera de ser liberto rumo ao pasto... Atlas já estava lá. Olhou-me displicente... a ruminar a indiferença como se eu não existisse... Chicoteava-se com a cauda... a espantar alguma varejeira impertinente.

Perdia-me, tentando decifrar os sentimentos daquela montanha de ossos e músculos, quando notei uma súbita fixação dos olhos do animal em mim. Havia neles um brilho estranho, diferente... Brilho que, pouco antes, não estava ali!

Sem demora, Atlas começou a escavar o chão com os cascos, sem tirar os olhos da minha direção. Inquietei-me! Estaria o animal transferindo sua ira para aquele que sabia ser amigo... do seu maior inimigo?!

O touro tomou posição. Aproximava-se, devagar, cabeça baixa... resfolegante como fole velho! Por sorte, era mocho! Mesmo assim, de um salto o instinto me afastou do cercado. Foi quando André, chegado sem aviso por detrás de mim, bateu-me no ombro, triunfante:

- Viu só?!... Lá está o cara preparando o bote! Logo que me captou ao longe, começou a escavar o chão com a pata. Antes que alguém me visse, ele já me vira! - Juro que, nem por todo o ouro do mundo, eu pularia esta cerca!... Loucura!!!

A fúria do touro crescia... Tufos de capim eram arrojados para longe pelas patas possantes que sapateavam nervosas.

- Então, meu caro, convenceu-se agora? Ele me odeia! Eu te disse! Se me pega, me fura, mesmo sem ter chifres... Me pisoteia e me mata!... Pode crer, meu amigo! - Mas... - E aí, André fez uma pausa, mastigando um sorriso enigmático... No olhar, um brilho maquiavélico acendeu-se, enquanto murmurava entre dentes:

- Mas... o que esse brutamontes não sabe é que, neste jogo de vida ou morte, eu tenho um trunfo guardado na manga!... Ele ignora... ou finge que ignora, que sou eu quem administra esta fazenda!

Ontem, mesmo, comprei outro touro... Mais jovem e mais poderoso do que ele... e que irá reinar neste pedaço!

O Atlas, coitado... já era! Seu nome abre a lista do gado que, na semana que vem, vai para corte. Logo, logo... vai ser bife no prato de muita gente! E tomara que um desses pratos seja o meu!!

André gargalhava... a antegozar a vingança! - E, então, meu filho finalizou a narrativa;

- Coisa estranha, mãe! Embora ouvinte interessado... ao final daquele relato, eu não senti a menor vontade de rir! Cheguei mesmo a ter dó daquele potentado que bufava... e que, muito em breve, seria vítima do seu próprio ódio! Ódio gratuito, não fundamentado... ódio tolamente alimentado... A envenenar uma vida inteira!!

- Foi justamente aí que aquele vivido e tão cansado coração de mãe, que atento aguardava o arremate daquela instigante história, não conseguiu calar... Sabiamente ponderando num suspiro:

- Bem igual ao que, vez por outra, acontece por aí entre os homens!... Igualzinho!... Igualzinho!... Sem tirar nem por!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Estante de Livros (Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado)

Uma Vida em Segredo foi publicado em 1964. Nela, o autor traça o retrato de Biela, jovem humilde que, após a morte do pai, é obrigada a mudar-se da fazenda para a cidade, e não consegue adaptar-se ao novo ambiente. A obra é célebre pela profundidade da exploração psicológica lograda por Dourado, e também por mostrar a riqueza da vida interior da personagem principal, a despeito de sua simplicidade e de seu caráter introvertido.

O narrador mantém uma postura neutra ao longo de todo o texto, limitando-se a mostrar como Biela era vista pelas outras pessoas. Ao mesmo tempo, por meio do fluxo de consciência da personagem principal, oferece revelações que reforçam, nuanças ou contradizem alguns dos aspectos da sua personalidade "exterior".

De acordo com o próprio autor, a ideia para a produção da obra veio-lhe subitamente quando, vagando pela casa enquanto trabalhava em um de seus romances (se A Barca dos Homens ou se Ópera dos Mortos não se sabe ao certo), deparou com uma velha canastra de couro que pertencera a seu bisavô e que lhe trouxe imediatamente muitas recordações da própria infância. Logo depois, ao dormir, sonhou com uma prima que havia esquecido, chamada Rita, e esta lhe contou sua história já estruturada como uma novela curta, como uma "fala escrita", no dizer de Autran Dourado. Até mesmo o nome completo da personagem foi revelado nesse sonho.

“O narrador evidencia a simplicidade, o desapego aos bens matérias de Biela e através do fluxo de consciência, recurso utilizado por Autran Dourado, é mostrada a inadaptação da personagem ao espaço urbano. " (
Neidelamar Lucena de Sá)

Pode-se concluir que a personagem teve a vida desperdiçada devido à sua criação, mas o verdadeiro segredo só ela realmente conhece.

A Novela é a modalidade narrativa que se caracteriza pela sucessividade dos episódios, muitas vezes das personagens e dos cenários. O tempo e o espaço conjugam-se dentro dessa estrutura. Assim, a novela condensa os elementos do romance. Os diálogos são mais rápidos, as narrações são diretas e sem circunlóquios, tudo favorecendo a precipitação da história para o seu desfecho.

Uma Vida em Segredo é uma novela que traz a senha para o estudante entrar no intrincado universo de Autran Dourado, em que cada tema sugere um estilo.

Nesta novela o escritor discorre sobre a gente simplória do interior das Minas Gerais. Centrado na figura da prima Biela, o enredo elucida os dramas morais e psicológicos da moça feia que cresceu na roça e mudou-se para a cidade após a morte do pai. Reprimida, ela transforma seus desejos em reclusão voluntária. Após a morte de seu pai, a jovem Biela, de 17 anos, passa a morar com Conrado, seu primo, que a leva para viver junto com sua família em uma pequena cidade.

 Constança, esposa de Conrado, busca adaptar Biela a uma vida social de acordo com as posses da família e para tanto encomenda vestidos ricos e a ensina a se portar como uma jovem educada e rica. Entretanto, Biela apenas se sente bem ao lado dos empregados da fazenda onde mora, com quem passa a conviver após uma grande desilusão amorosa. Biela é coerente, fiel a si mesma, uma personagem densa e intimista, que aceita a imposição do destino, mas à sua maneira.

O filme, exibido em 2001 no Festival de Brasília, foi lançado em 2002. Possui a direção e roteiro de Suzana Amaral, produção de Assunção Hernandes. No elenco, Sabrina Greve, Eliane Giardini, Cacá Amaral, Neusa Borges e Eric Novinsky. Teve cinco indicações ao Grande Prêmio Cinema Brasil, nas categoria de melhor roteiro adaptado, melhor figurino, melhor maquiagem, melhor direção de arte e melhor fotografia.