domingo, 4 de agosto de 2024

Vereda da Poesia = 75 =


Trova de Campos dos Goytacazes/RJ

NEIVA FERNANDES

Meu violão é meu amigo
em qualquer situação:
Chora ou gorjeia comigo
o que vem do coração.
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Poema de Tambaú/SP

SEBAS SUNDFELD
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP

Retrocesso

Sonhos menineiros
acordam-me manhãs de saudade.
E eu caminho
pelas calçadas antigas do passado,
à procura do carinho criança
que deixei brincando
com as mentiras da vida;
da bondade ternura que o coração perdeu
pelas esquinas do mundo;
das venturas inocentes que deixei por aí
rabiscadas
nas paredes envelhecidas do tempo.
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Trova de Magé/RJ

MARIA MADALENA FERREIRA

Fito o espelho… e o que constato?
– Rugas… tristezas… enfim,
o verdadeiro retrato
do que a vida fez de mim! 
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Soneto de Manaus/AM

ANIBAL BEÇA
(1946 – 2009)

Soneto de aniversário

Setembro me agasalha nos seus galhos
e de amor canto no seu verde ventre:
Eis a ventura vaga em danação,
bronze canonizado nas cigarras.

O canto é breve, fino, e já anuncia
o inconfundível som do último acorde:
aquele dó de peito em nó estrídulo.
Como Bashô sonhara, é despedida

que mal se sabe, é morte anunciada,
canora liturgia sazonal.
Em setembro me mato e me renasço

em canto livre, rouco, sem ter palco,
representando de cor e salteado
o meu 13, que é fado e sortilégio.
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Trova Humorística Vencedora em Ribeirão Preto/SP, 2015

JOSÉ FELDMAN 
(Campo Mourão/PR)

Cinquenta reais por ponto...
e ao mestre ele deu quinhentos.
Da propina, houve um desconto:
- Nota dois... e os quatrocentos!!!
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Auto retrato

O homem
Só descobre o verdadeiro
Sentido do ridículo
Quando se vê aprisionado
Na estupidez
A que ele próprio
deu causa.
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Trova Popular

Se eu pensara quem tu eras,
quem tu havias de ser,
não dava meu coração
para tão cedo sofrer.
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Soneto Paulista

GUILHERME DE ALMEIDA 
Campinas/SP, 1890-1969, São Paulo/SP+

Soneto único

Vejo a sombra partir-se pelo meio
e pôr-me duas pálpebras na face;
minha boca de sede bebe o seio
de alguma estrela que me amamentasse;

tem um peso de terra o corpo alheio
que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce
uma árvore cantando um vento cheio
de céu em cada enlace e desenlace;

em minhas mãos paradas pousam ninhos;
vão os passos de todos os assombros
andando as minhas veias de caminhos;

e há, para o voo aceso numa aurora,
pressentimentos de asas nos meus ombros
— quando a Moça da Foice me namora.
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)

Cada vez que faço um verso,
A inspiração se renova...
como pode o universo
caber dentro de uma trova?
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

CECÍLIA MEIRELES
(Cecília Benevides de Carvalho Meireles)
1901 – 1964

Pus o meu sonho num navio

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
depois abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
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Trova de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Cada amigo tem um jeito
que eu não julgo nem desdenho.
Ninguém, no mundo, é perfeito…
Defeitos? … eu também tenho!
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Soneto de Porto Alegre/RS

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Despedida 

O mais duro de todos os momentos, 
que magoa fortemente o coração, 
é quando o pranto escorre com emoção 
cheio de dor, cheio de desalentos! 

A despedida é mais que uma agressão, 
que chega destruindo os sentimentos, 
numa tempestade de fortes ventos, 
como se fosse o adeus, uma explosão! 

Roubando, assim, toda a felicidade, 
sinto no peito, essa cruel verdade: 
As despedidas são violações! 

Dizer adeus é algo que angustia, 
como um mar negro, pleno de agonia, 
onde se afogam tantas emoções!
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Restou a imensa saudade,
pois no tempo, que passou,
a ingrata felicidade
o próprio rastro apagou.
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Spina de São Paulo/SP

SOLANGE COLOMBARA

Semente

Renasço cada manhã,
ecoando em silêncios
esta intensa sensação

de sentir-se viva, uma ilusão
em que fragmentos da alma
unem-se aos ecos no chão,
germinando de novo a vida...
abraçando a voz do coração.
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

O resplendor deste olhar
ilumina o meu caminho.
Pássaro errante a voar,
volto sempre ao nosso ninho.
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Soneto do Paraná

EMILIANO PERNETA 
Pinhais/PR, 1866 — 1921, Curitiba/PR

Veio

Di-lo tanto fulgor maravilhoso, di-lo
Este clarim de sol rubro do meu anseio,
Este verde de mar, como um sono tranquilo,
Este límpido céu azul, como um gorjeio,

Alto, bem alto, assim, para que eu possa ouvi-lo,
Que ela, vencendo o mar, transpondo o serro, veio,
Todo cheirando, em flor, o perfumado seio,
Bela, sonora, ideal, como a Vênus de Milo...

Fosse vaidade ou amor, desespero ou ciúme,
Que a trouxeram aqui, como um leve perfume,
Ou fossem, ai! de mim! raivas e temporais,

Veio, mas com a graça e a própria luz do dia...
Ó prazer que me faz soluçar de alegria,
E respirar, e crer nos deuses imortais!
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Trova Premiada em São Paulo/SP, 2013

DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
Juiz de Fora/MG

Nos bons e nos maus momentos,
quando a emoção cala a voz,
externando os sentimentos,
as rosas falam por nós.
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Poema de São Francisco de Itabapoana/RJ

ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE

Rita

Você era tão bonita…
De uma beleza sem igual.
Eu, como tal,
encantado com a sua silhueta
retratava na memória
você vestida de azul…

De um azul que cintilava
como o céu na sua mais fascinante imagem.
Lembro-me ainda de quanta bobagem
o tempo que desperdicei
por não ter coragem
de revelar pra você a minha fascinação.
Não mereço perdão!

Devia castigar-me
por ter sido tão covarde.
Talvez fosse a idade
Talvez a timidez.
Só sei que a perdi de vez.
 
Perdi você Rita, que era tão bonita,
pra alguém que sequer merecia o seu olhar.
E você olhou
apaixonou-se
entregou-se
E se acabou na desventura
acreditando naquela criatura
que não soube amá-la
não soube respeitá-la
acabando por entregá-la
ao desgraçado mundo da ilusão.

Dói-me o coração
de vê-la descuidada
desiludida, acabada, desfigurada,
como não existisse mais nada…

Ou razão pra viver.
Ah! Rita, você era tão bonita…
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Trova Humorística de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

No carrão recém-comprado
da motorista barbeira:
“Atenção, muito cuidado...
amaciando carteira!”
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Escada de Trovas de São Paulo /SP

FILEMON MARTINS
(Filemon Francisco Martins)

Saudade

NO TOPO:
A distância é que nos mata
porque vem logo a saudade;
saudade - presença ingrata
de antiga felicidade.
Filemon Martins
São Paulo/SP

SUBINDO:
De antiga felicidade
que o tempo tentou levar,
meu coração tem vontade
de outra vez recomeçar.
    
Saudade - presença ingrata
que no coração perdura,
minha imagem não retrata
0 meu viver de amargura.

Porque vem logo a saudade
morar em meu peito agora?
Antes que tudo se acabe
quero ver a luz da aurora.

A distância é que nos mata
e o castigo tem sabor:
- quanto mais forte a chibata,
mais aumenta o nosso amor.
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Trova de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Se me pisas com descaso,
eu gemerei dolorida,
que as flores morrem num vaso,
porém, num jardim, têm vida!
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Hino de Teresina/PI

Risonha, entre dois rios que te abraçam
Rebrilhas sob o Sol do Equador
És terra promissora onde se lançam
Sementes de um porvir pleno de amor

Do verde exuberante que te veste
Ao Sol que doura a pele à tua gente
Refulges, cristalina, em chão agreste
Lírio orvalhado, resplandente

Verde, que te quero verde
Verde, que te quero glória
Ver-te que te quero altiva
Como um grito de vitória

Verde, que te quero verde
Verde, que te quero glória
Ver-te que te quero altiva
Como um grito de vitória

O nome da rainha, altivo e nobre
Realça a faceirice nordestina
Na graça jovial que te recobre
Teresa, eternizada Teresina

Cidade generosa, a tez morena
Do povo honrado, alegre, acolhedor
A vida no teu seio é mais amena
Na doce calidez do teu amor

Verde, que te quero verde
Verde, que te quero glória
Ver-te que te quero altiva
Como um grito de vitória

Verde, que te quero verde
Verde, que te quero glória
Ver-te que te quero altiva
Como um grito de vitória

Teresina, eterno raio de Sol
Manhã de claro azul no céu de anil
És fruto do labor da gente simples
Humilde entre os humildes do Brasil

Verde, que te quero verde
Verde, que te quero glória
Ver-te que te quero altiva
Como um grito de vitória
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Trova de Niterói/RJ

ELEN DE NOVAIS FELIX

Anoitece… a lua espia
a varanda em soledade,
e banha a rede vazia
em seu clarão de saudade.
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Soneto Fluminense

ALBERTO DE OLIVEIRA
Palmital de Saquarema/RJ (1857-1937) Niterói/RJ

A Casa da Rua Abílio

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Tem no topo uma Cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho, ali, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la, em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus.
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
A espreitar-lhe o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns, talvez, ainda, os ecos falarão.

E em seu surto, a buscar eternamente o belo,
Misturado à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.
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Trova de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Sob os feitiços do amor 
e amante desse pecado, 
como é bom ser pecador, 
refém de um beijo roubado!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O gato e o macaco

Ratão era um malandro. Se era um gato!
Beltrão, outro maior, porque era mono.
Gozavam ambos um viver pacato,
Servindo com preguiça o mesmo dono.

Este par de tratantes
Tinha perdido o medo a toda a gente.
Furtavam a valer! E felizmente
Que — não sendo os criados vigilantes —
Não punham pé em casa dos estranhos.
O Beltrão, que larápio! E malfazejo.
O Ratão, esse andava atento ao queijo
E já nem se importava com murganhos.

Um dia os dois, sentados
À lareira,
Recebendo o calor, muito chegados,
Viam assar castanhas. E pensavam,
Sentindo comichões de ladroeira:
«Quem as surripiasse! Tinha graça!»
Era um belo petisco que papavam,
E pregavam por cima uma pirraça.

Beltrão, já com a boca muito aguada,
Pespegou no colega uma palmada
E disse-lhe, a sorrir, com muitas manhas:
«Quero admirar a tua habilidade!
Tu dizes que és esperto,
Que tens agilidade...
Ora vê lá se safas as castanhas!...
Não és capaz. Vamos a ver se acerto.

É difícil, é fato,
Mas... Ah! que se eu tivesse mãos de gato,
As castanhas saltavam cá para fora!»
Ratão, sem mais demora,
Inchado de fumaças de quem pode,
Com muita ligeireza
Arreda a cinza, escalda-se, sacode
Os dedos, vai com mais delicadeza...
Pá! rola uma castanha, duas, três!...
Beltrão ria-se, vendo
Executar esta partida nova.
«Que grande ligeireza!» E ia comendo.
Chega a criada... Zut! Mas desta vez
O hábil Ratão saiu-se mal. Que sova!

Uma observação aqui registro:
Seria muito fácil quanto a mim,
Mudar este macaco num ministro
E transformar o gato em galopim*.
(tradução: Garcia Monteiro)
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* Galopim = cabo eleitoral.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) A Figueira

Morava na rua da tomba em um casarão acachapado, pintado de amarelo. Ao fundo o quintal, parecendo pequeno por ter ao centro uma colossal figueira.

Esta colossal figueira havia estendido grossos braços para todos os lados e copava e fechava de tal forma a ramaria e a folhagem, que a sombra era perpétua.

Não só através dela não filtrava um rastilho de sol, como também nem um pingo de chuva passava para baixo.

Não consegui manter uma galinha no quintal: quantas lá punha morriam de frio; e ali mesmo as enterrava, o cachorro, esse, tiritava como se estivesse em plena garoa de agosto, batida de minuano.

Por estas e outras andava eu aborrecido com a figueira. Carregar, isso carregava que era uma temeridade.., mas nos últimos anos, menos, bastante menos.

Por outro lado, era debaixo da figueira que os meus pequenos e os da vizinhança brincavam; aí faziam as suas merendas, principalmente quando havia frutas; e com o andar do tempo a criançada chegou a fazer em volta dela um verdadeiro tapete de sementes diversas, de laranjas, marmelos, pêssegos, uvas, peras, ameixas, de araçás, de butiás, de limas, melões, etc., enfim um calçamento de caroços e pevides.

Naturalmente cada ano as raízes da figueira cresciam e enterravam e afogavam essa caroçama que desaparecia.

Preciso dizer que a casa e o quintal e portanto a árvore pertenceram aos avós da minha sogra, esta aí nasceu e faleceu, com noventa e sete anos; e que há cinquenta e três anos que os ditos bens pertenciam ao meu casal: basta isto para calcular-se a idade da figueira!

Ora muito bem.

Há de haver uns sete anos fez um inverno molhado e frio como nunca passei outro. Todo o mundo lembra-se desse ano. Em casa fomos todos, de ponta a ponta, atacados de tosses e catarreiras tão fortes, que julguei iríamos acabar héticos (magros). Chiados de peito, roncos, assobios, fanhosidades, rouquidões... um barulho que até alarmava os andantes na rua!

O doutor que acudiu, como se tratasse de uma única doença, já receitava os lambedouros em dose para vir em frasco grande, dos de genebra.

Mas, qual! ... Cheguei a desanimar, e certa vez puxei o médico para uma sala dos fundos, para conversar à vontade. Conforme íamos andando, a casa ia ficando às escuras; o doutor estacou:

— Homessa! Estaremos à boca da noite às duas horas da tarde?...

— Não é nada, doutor: é a figueira!

— Que figueira, Romualdo?

— Ali, na escuridão.., não vê?

O doutor teve medo de seguir avante; eu, já se vê, prático velho, nem me abalei.

Mas tanto como rodou nos calcanhares, disse-me com franqueza:

— Romualdo, toda a doença da sua casa está ali; é a umidade, a escuridão, o abafamento que a figueira produz, derrube-a, Romualdo, derrube-a!

— O abafamento... a escuridão... a umidade...

— Sim, homem: meta-lhe o machado!

Compreendi: era tal e qual! Mas como todos estimávamos muito a figueira, resolvi derruba-la, não podá-la muito, sim.

Logo no dia seguinte começou a esgalhação; trabalhou-se uma semana, de fio a pavio, apenas parando para comer, veio carreta de bois para levantar as lenhas da poda.

Foi uma alegria, na casa. Sol, ar livre, por todas as portas e janelas; chio e paredes começaram a orear.

Ninguém mais tomou lambedouro.

Logo na primavera começou a brotação e vieram galhos novos, bonitos porém com um enfolhamento esquisito.

Esquisito, deveras. Folhas compridas e curtas, e largas e estreitas; recortadas umas, lisas outras; lustrosas, foscas; ... uma atrapalhada! ... e até notei alguns pequenos espinhos.

Vi, vi bem: eram espinhos; pequenos, porém espinhos.

Até aí nada de espantar: curioso e tal, mas tem-se visto..

No ano seguinte porém, e nos outros, é que a figueira começou a encher-me de espanto, a mim e a vizinhança e outras pessoas muitas. Sinto não lhes haver tomado os nomes, mas nem tudo lembra: se tenho tido essa precaução, hoje, com tais testemunhas, entupiria a muitos incrédulos malcriados a quem hei referido este caso. Mas quem mal não pensa, mal não cuida...

Pois esse ano a figueira deu figos e... marmelos; no seguinte, pêssegos e ameixas, de repente, só peras; no noutro ano, puramente laranjas, depois, apenas figos; em seguida, uvas.., e assim sucessivamente, melancias, cocos, limas, araçás, etc.., até que em certa temporada deu umas frutas esquisitas, compridinhas, ressequidas, sem gosto nenhum, nem sumo, e que, bem examinadas, eram quase como penas de aves.., até pelo cheiro ... de galinha, que conservavam...

Matutei muito, mas encontrei a explicação do fenômeno.

Simplíssimo: a figueira tinha absorvido o suco germinativo de todas as pevides e caroços e sementes que lhe alastravam o chão.., e também o das galinhas mortas que junto às suas raízes foram enterradas... Com a força do sol tudo aquilo grelou dentro da sua seiva. Como a árvore não pôde reagir contra a invasão, antes foi dominada, assim é que começou a dar frutos, na desordem que mencionei.

Em conclusão: a figueira já não sabia o que fazia; estava como uma pessoa muito velha, de miolo mole, que já não regula.

Pobre da minha figueira. Coitada!

Estava caduca!

Fonte: João Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado em 1914. Disponível em Domínio Público
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ANÁLISE DO CONTO

A figueira não era apenas uma árvore; era um símbolo de tradição e história. Romualdo cresceu sob seus ramos, e a árvore fazia parte das memórias familiares. As crianças da vizinhança se reuniam ali, criando laços e brincadeiras que se estendiam por gerações.

Embora a sombra da figueira trouxesse um frescor no calor do verão, ela também representava uma prisão. A falta de luz e a umidade criavam um ambiente insalubre. A dualidade da figueira — seu conforto e seu sufoco — refletia a luta de Romualdo entre o passado e o presente.

Quando o médico recomendou derrubar a árvore, Romualdo se viu em um dilema. Era uma decisão difícil, pois a figueira era parte de sua história familiar. No entanto, a saúde da família estava em jogo, e ele optou por priorizar o bem-estar.

Após a poda, a casa renasceu. A luz do sol iluminou os cômodos e trouxe uma nova energia ao lar. As crianças, agora livres da sombra opressiva, criaram novos jogos e histórias sob um céu aberto.

Os frutos inusitados que a figueira começou a dar serviram como uma metáfora para a confusão da vida. A mistura de frutas representava a complexidade das experiências e memórias acumuladas ao longo dos anos. Romualdo percebeu que, assim como a árvore, ele também carregava as influências do passado.

A transformação da figueira trouxe reflexões sobre envelhecimento e mudança. A árvore, antes forte e majestosa, agora estava caduca, simbolizando como o tempo pode afetar até os seres mais robustos. Romualdo aprendeu a aceitar as mudanças e a valorizar as novas possibilidades.

Conclusão
A figueira, mesmo em sua decadência, deixou uma marca indelével na vida de Romualdo. A história da árvore é um lembrete de que, às vezes, é preciso derrubar o que nos prende para permitir um novo crescimento. A vida é um ciclo de perdas e renascimentos, e cada fase traz suas próprias lições.

Recordando Velhas Canções (Acorda, Maria Bonita)


 Compositor: Volta Seca (Antonio dos Santos)

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Se eu soubesse que chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem

Cabelos pretos anelados
Olhos castanhos delicados
Quem não ama a cor morena
Morre cego e não vê nada

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Se eu soubesse que chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem

Cabelos pretos anelados
Olhos castanhos delicados
Quem não ama a cor morena
Morre cego e não vê nada

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

E a polícia já está em pé
E a polícia já está em pé
E a polícia já está em pé
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A Alvorada de Maria Bonita nas Marchinhas de Carnaval
A música "Acorda, Maria Bonita" é uma marchinha de carnaval que evoca a figura histórica de Maria Bonita, companheira de Lampião, o famoso cangaceiro do sertão nordestino. A letra da canção, apesar de simples, carrega consigo um contexto cultural rico e uma pitada de romantismo e nostalgia.

A repetição do verso que pede para Maria Bonita acordar e preparar o café enquanto a polícia já está de pé sugere uma rotina matinal apressada, possivelmente em referência à vida no cangaço, onde a vigilância constante era necessária. A menção à polícia pode ser interpretada como uma alusão aos confrontos entre os cangaceiros e as forças da lei. A canção, contudo, não se aprofunda nos aspectos violentos dessa época, preferindo focar na beleza e na rotina da personagem.

Os versos que falam sobre chorar e impedir a viagem de alguém, seguidos pela descrição física de Maria Bonita, trazem um tom de admiração e amor pela figura feminina. A música celebra a beleza da mulher morena, uma característica comum no Nordeste brasileiro, e sugere que não apreciar tal beleza é como viver na cegueira. A marchinha, portanto, além de ser um elemento festivo do carnaval, serve também como uma homenagem à cultura nordestina e à figura emblemática de Maria Bonita.