domingo, 13 de outubro de 2024

Vereda da Poesia = 132=


Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Ao breve
soluçar
de Poseidon
o mar salpica
a praia,
varrendo
os castelos
de sonhos.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Com seu valor aumentado,
saudade é a restituição
do que já nos foi cobrado
pelos sonhos e a ilusão...
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Teu enredo

Abençoa o enredo da tua história,
Que possui sensacionais alegorias,
E se lembras de tuas lindas fantasias
Tu manténs as alegrias na memória.

Ouve o disco... resgata teus sentimentos
E escreve-os!... teu sorriso é um bom passista,
Que ao dançar, acaricia a própria pista
No instante dos mais doces pensamentos.

O teu coração e bom percussionista
Da emoção que te abençoa a vida inteira
E se a vida é uma batida passageira,
Tens bem mais que um coração por baterista.

Teu amor nem sempre foi bom ritmista,
Porque às vezes ele é muito passional,
Porque faz teu coração pulsar tão mal.
Que tua dor se torna bem mais intimista.

Teu enredo ainda tem muita avenida,
Tua escola tem muito que desfilar
E se esse teu coração sabe sambar,
O teu samba-enredo é tua própria vida.
= = = = = = 

Trova  Premiada em Irati/PR, 2023
LILIA MARIA MACHADO SOUZA 
Curitiba / PR

Depois de tanto desgaste,
do topo avisto a alvorada.
A pedra que me atiraste
serviu-me para a escalada.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Gotas perfumadas para você

 Hoje, de manhãzinha,
Enquanto caminhava
Lembrei-me de você
E, em uma garrafa
Linda e surreal,
Do mais fino cristal
Guardei para você

O azul do céu,
Três raios de sol,
E um coração
Que a nuvem desenhou...

Guardei para você,
A liberdade do voo
E canto do bem-te-vi,
Mesclado ao som
De um antigo sino de vento...
E emocionada
Juntei da calçada
Algumas flores de Ipê,
Suaves poemas amarelos
E os guardei para você...

Daquela orquídea que tirei foto,
Acrescentei o aroma de baunilha,
Com sete gotas de ternura,
Que se mesclaram
A sensação de um beijo,
Repleto de amor intenso, e ainda
Àquela foto da joaninha, lembra?
Para você eu guardei
E depois fechei a garrafa.
Guardei para você
Um pouco do meu mundo,
Nosso mundo...

Para você eu guardei -
As gotas perfumadas
Do jasmim-dos-poetas
Da foto de hoje...
= = = = = = 

Trova Popular

A menina que eu namoro
e que me quer muito bem,
tem um sorriso que encanta         
e vinte contos também.
= = = = = = 

Sonetilho de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Confusão

Alma estranha esta que abrigo,
Esta que o Acaso me deu,
Tem tantas almas consigo
Que eu nem sei bem quem sou eu.

Jamais na Vida consigo
Ter de mim o que é só meu;
Para supremo castigo,
Eu sou meu próprio Proteu.

De instante a instante, a me olhar,
Sinto, num pesar profundo,
A alma a mudar... a mudar...

Parece que estão, assim,
Todas as almas do Mundo,
Lutando dentro de mim...
= = = = = = 

Trova de
MARIA CRISTINA M. CORRÊA
Santos/SP

Esta imagem que eterniza
o tranquilo mar dourado,
foi refúgio, agora é brisa,
transportando-me ao passado...
= = = = = = 

Soneto de
MILTON S. SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Luz na escuridão

Caminhar lento, tateando pela calçada,
faz a bengala ser a luz na escuridão.
Ouvido atento: som é mensagem cifrada,
calcula o espaço em cada passo pelo chão.

A cada instante, bate forte o coração
pela incerteza que pode surgir do nada.
Algumas vezes, sente a força de uma mão
que muda o rumo da indecisa caminhada.

Olhar sem vida, noite eterna na retina,
ele usa os sonhos... e com eles ilumina
os horizontes onde busca os seus totais.

Nada reclama, porém mostra, do seu jeito,
que o mundo deve um pouquinho mais de respeito
para com todos deficientes visuais.
= = = = = = 

Trova Humorística de
FRANCISCO BAPTISTA
São Paulo/SP

A velha chegou, tão chique,
na igreja e o padre pensou.
"Qual foi agora o trambique
que essa beata aprontou?..."
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Bosque da poesia

Eu vou passear no bosque da poesia;
quem quiser vir comigo, tem carona...
Desejo me nutrir na boemia
do universo que cria, e jamais clona...

Lá o gorjeio das aves arrepia
a nossa pele! E a gente se emociona
ao ouvir a cigarra, em nostalgia,
soltar seu canto triste que impressiona!

E em meio do arvoredo é certo achar
flores e frutos doces como o mel
e borboletas lindas a bailar...

Quem ama planta versos em semente
e brotos de soneto, ou de um rondel,
para que o bosque viva eternamente!
= = = = = = 

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

É neste “Canto que eu Canto”
belezas que a vida tem
que ao meu mundo dão encanto
e tanto me fazem bem!
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

M. de memória

Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Os meus prazeres morreram,
quando morreu minha bela…
Dão hoje causa a meu pranto,
saudades que tenho dela.
= = = = = = 

Soneto de 
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Temporais

O néctar me seduz e, embevecido,
despejo em tuas pétalas o ardume,
deixando que no peito se avolume
a fúria de um desejo desmedido.

As gotas preciosas do perfume
volitam pelos ares e, atrevido,
atendo o desespero do bramido
enquanto a insanidade tudo assume.

A tua perfeição me subordina,
perverte meu juízo e a indisciplina
mergulha as emoções em temporais.

Tu és a eterna rosa da quimera
que torna minha vida a Primavera
repleta de sabores divinais.
= = = = = = 

Trova de
LEONETE OLIVEIRA LIMA ROCHA
São Luís/MA

Naquele beijo inocente,
que os nossos lábios uniu,
meu coração, de repente,
para o teu peito fugiu.
= = = = = = 

Poema de 
BENEDITA AZEVEDO
Magé  / RJ

A Força da Natureza

Sou transitória e natural,
inconstante tal qual o vento
que muda a direção do barco
rasgando a vela.

Sou a chuva que vem e passa,
sou o sol ardente que se esconde
atrás da montanha para
que possas descansar.

Sou a força da natureza,
do vendaval de outono
que surge de repente
e arrasta tudo que encontra.

Mas, também sou o galho partido,
o rio que transborda
ao ser contido em barragens.

Sou o tufão, o fogo, a ventania
que passam e transformam o ambiente.

Sou a chuva que irriga e faz crescer
a relva verde das pastagens.

Sou a luz do luar que
banha os teus cabelos
com o perfume das flores.

Sou a primavera que inebria
e tonteia com suas fragrâncias.

Sou as ondas do verão quebrando
nas pedras e salpicando gotas
de frescor em teu rosto suave.

Sou o sol da manhã surgindo
após a tempestade noturna.

Sou o sereno da noite a salpicar
as pétalas da rosa vermelha
que irão a ti pela manhã.

Sou a alegria da criança ao sugar
o seio materno e saciar a sede.

Sou a direção, o rumo, o horizonte
de quem se arrisca numa empreitada
sem saber o resultado.

Sou a tua imaginação
que penetra nos recôncavos mais íntimos
e alcança as mais elevadas alturas.

Sou a música majestosa
que domina a mais indomável
de todas as criaturas.
O homem.
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP


Sem avisar, sorrateira,
foi ao pagode e azarou:
No baile, um "chá de cadeira"!
Chegando em casa... "dançou"!
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Tapera

Torce o caminho manso e entre pedras percorre
agarrando-se, ansioso, à encosta da colina.
sobe-se um pouco e olhar curioso descortina
a paisagem feral da tapera que morre.

Reina a desolação e a tristeza domina
tudo, restos mortais. A luz do sol socorre
piedosmente, a flux, como um bálsamo, e escorre
sobre a ferida em flor dessa bela ruína.

Tetos a desabar, muros em derrocada,
as cercas pelo chão, porteiras vacilantes,
pompeando os ervaçais na casa abandonada.

Cadáveres, e só, da rica habitação
onde floriu, feliz, o grande senhor dantes,
dos tempos memoriais da negra escravidão.
= = = = = = 

Trova de
OLYMPIO S. COUTINHO
Belo Horizonte/MG

Gente sozinha falando..
Este mundo enlouqueceu?
Às vezes, fico pensando:
- Será que o louco sou eu?
= = = = = = 

Poema de
JESSÉ NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

A luz no túnel

Via uma luz
no fim do túnel.
Ainda via.
Agora procuro
a luz,
não mais a vejo.
Nem mesmo o túnel...
= = = = = = 

Trova de
AMÁLIA MAX
Ponta Grossa/PR (1929 – 2014)

Fico em silêncio e ouço os passos
de quem não vai mais chegar…
Então abraço os meus braços
e não paro de chorar.
= = = = = = 

Poema de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Fotografias

Olhando o álbum de fotografias
eu não vejo retratos, vejo dias
que já não voltam mais.
Insuspeitada máquina do tempo,
cada página de fotos é exemplo
de outros aniversários e Natais.

Vejo que algumas ficam desbotadas,
depois de muitas páginas viradas
que as fizeram perder-se na distância.
E aquilo que ontem foi tão importante,
e mereceu ficar gravado num flagrante,
hoje não tem sequer mais importância.

Este álbum é a janela que o passado
abre, para o olhar do pensamento,
nos sótãos e porões da eternidade.
E o que ficou nas fotos registrado
e vai viver outra vez nesse momento
será o que chamamos de saudade.
= = = = = = 

Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

No amor o tempo se gasta
com medidas desiguais:
se estás longe, ele se arrasta;
se perto, corre demais!
= = = = = = 

Hino de 
Resende/RJ

1. 
Resendenses, entoemos um hino
Que fulgure qual mundo que sois,
A esta terra, que é um berço divino
De poetas, de artistas, de heróis!

Estribilho: 
Eia, pois, fervorosos saudemos
De Resende, a Cidade gentil
Onde o berço,entre flores tivemos
Sob um céu todo azul, todo anil!

2. 
Covam bençãos de luz sobre o dia
Em que o seu Centenário ela faz!
Que nos enche de doce alegria,
Que ventura tão doce nos traz!

3. 
De outro século o sol majestoso
Surge agora imponente "brandão"
Deste "Vale", dourado, amoroso,
Toda nova e aromal floração!

4.  
O Itatiaia, emergindo das brumas,
Ei-lo, o século novo a saudar!
E o Paraíba o seu manto de espumas,
Vai contente e cantante a arrastar.

5. 
Que este dia, da Pátria, na história
Fulja sempre com mago esplendor!
E que viva na nossa memória,
Todo luz, todo paz, todo amor!
= = = = = = 

Trova de 
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

O passado é intrigante!
Ontem mesmo era presente…
Durou por algum instante
e esvaiu-se de repente.
= = = = = = 

Poema de 
ERIGUTEMBERG MENESES
Blumenau/ SC

Rodeio da vida

O mundo é cavalo louco e cansei de ser caubói.
As faces do corpo já não passam de couro
mapeado com as cicatrizes
acumuladas nos tombos.

Cansei!
Vou apear do estribo.
Nas clareiras da vida,
aprendi a montar as mais duras montarias,
a bolear o laço, a ferrar novilhos
e galopar touros bravios,
redemoinhando ante a porteira,
mas não consigo domar meu coração.

Hoje, como um animal machucado
e abatido, quero, apenas, arrancá-lo
e entregá-lo ao verdadeiro amor
para continuar vivendo, na ilusão de dançar
entre abraços doces na arena do grande
rodeio realizado entre as estrelas,
por que parece que somente a magia é que é real.

E depois, não mais do que descansar
sobre o espelho das aguadas
de um corpo cheirando a rama fresca,
embriagado pelas auroras da eternidade.
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Se as rosas tivessem voz
diriam num canto lindo
que Deus se revela a nós
em cada rosa se abrindo.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A tartaruga e os dois patos

Estava enfastiada a tartaruga
Da negra e estreita toca em que vivia;
Por isso um belo dia,
Apoderou-se dela
O desejo profundo
De abandonar a casa e correr mundo.

A todos bem parece a terra estranha,
E sempre foi notória a grande sanha
Que o coxo tem à casa.
A dois patos foi ela então dizer
A viagem que tinha projetado.
Solene, autorizado,
O par lhe respondeu:
«Tens aberto o caminho.
E nós te levaremos
A um sítio que sabemos;
Verás muito país e murtas gentes,
Repúblicas e reinos florescentes.

Terás muito que ver
E muito que aprender.
Ulisses muito aproveitou com isso.»
Os dois eram espertos,
E expeditos no ajuste do serviço
Que iam prestar à pobre tartaruga.

Foram logo fazer de um pau nodoso
Tirado de uma árvore,
Um engenho famoso,
A fim de transportar a viageira.
Agarra-se cada um
Valentemente a cada extremidade,
E apresentando o meio à tartaruga,
Disseram-lhe com grande autoridade:
«Ferra aqui e não largues!»

A mísera assim fez,
Sem de leve temer
O que ia suceder.
E foram pelos ares...
«Milagre!» gritam todos os que veem;
Tartaruga voar é caso estranho.
Decerto tem em si poder tamanho,
Que não cabe no mundo!»

A tartaruga enfatuada e louca,
Para responder vai a abrir a boca.
Melhor fora calada,
Pois logo num momento
Caiu arrebentada,
Aos pés do povo atento.

Vaidade, presunção, muita palavra
Reveladora de apoucado siso,
Têm a mesma origem,
Da mesma fonte brotam.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 122


À medida que os anos passam muitas pessoas se aposentam e falam em se recolher com várias, sempre digo, desculpas. E o renunciar significa abandono voluntário, deixar em poder de outros, como no francês " laisser à bandon ". 

Não vamos esquecer que somos todos dependentes e encontramos pessoas que perdem a tramontana* quando ficam sem alguma atividade. Não sabem ou não entendem que a vida é um permanente renovar de afãs. Hora de restaurar ações, resgatar ideias, praticar outros conhecimentos. 

Nos seus pensares a atriz Andrey Hepburn escreveu que " as pessoas, mais do que objetos, precisam ser reparadas, revividas, animadas, chamadas e salvas - jamais jogue alguém fora ". 

Manter a calma - contar os dias como flores, não como sombras.
=======================
* perdem a tramontana = perdem o rumo

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (O ‘x’ do problema)

 (samba, 1936) 
Compositor: Noel Rosa

Nasci no Estácio, fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê

Nasci no Estácio, o samba é a corda
Eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você  

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
      E felicidade maior neste mundo não há   
             Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair   do Estácio é que é     
O 'x'    do problema 

Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair   do Estácio é que é     
O 'x'    do problema

Você    tem vontade que eu abandone 
O Largo do Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana

Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode crer que palmeira do Mangue
Não vive na areia  de Copacabana

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
      E felicidade maior neste mundo não há   
             Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é     
O 'x' do problema 

Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é     
  O 'x' do problema

A Essência do Estácio: Identidade e Pertencimento em 'O X do Problema'
A música 'O X do Problema', de Noel Rosa, é uma celebração da identidade e do pertencimento ao bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Noel Rosa, um dos maiores compositores da música popular brasileira, utiliza a letra para expressar o orgulho de suas raízes e a importância da cultura do samba em sua vida. A personagem da canção, que se identifica como uma mulher nascida e criada no Estácio, destaca sua formação na roda de bamba e na escola de samba, elementos centrais da cultura local.

A letra também aborda a questão da autenticidade e da resistência às mudanças impostas por pressões externas. A personagem recusa a ideia de abandonar o Estácio para viver em um grande palácio, mesmo que isso signifique uma vida de luxo e glamour. Ela enfatiza que sua essência está profundamente enraizada no Estácio, e que mudar de ambiente seria como tentar fazer uma palmeira do mangue viver na areia de Copacabana. Essa metáfora reforça a ideia de que certas identidades são intransferíveis e que o verdadeiro valor está em ser fiel a si mesmo e às suas origens.

Além disso, a música reflete sobre a felicidade e o sucesso sob uma perspectiva diferente da convencional. Para a personagem, ser diretora da escola de samba do Estácio de Sá é a maior felicidade que ela poderia alcançar, mais do que ser uma estrela de cinema. Isso sublinha a importância da comunidade e da cultura local como fontes de realização pessoal e coletiva. Noel Rosa, com sua habilidade lírica, consegue capturar a essência do Estácio e transmitir uma mensagem poderosa sobre identidade, pertencimento e autenticidade.
Fonte: https://www.letras.mus.br/noel-rosa-musicas/862749/significado.html

sábado, 12 de outubro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Impulso canino)

ARABRUTO ACORDOU eufórico. Estava decidido. Aquele dia iria liberar seu lado cachorro. Desde que Anabela viera trabalhar em seu apartamento, na Belizário Pena, na Ilha do Governador, como secretária do lar, prestando os serviços mais variados, nas quintas e sextas-feiras, Arabruto desembestou, assim do nada, seu lado canino. Pôs na cabeça que dessa sexta-feira não passaria. Assim que a graciosa chegou, como sempre, bem vestida, arrebatada num meio-vestidinho que lhe deixava as pernas bem torneadas à mostra, o desregulado de sua cabeça degringolou de vez. O fato é que todo o conjunto da bela, em sintonia com o pecado carnal, deixava fora de órbita qualquer ser humano que não tivesse um pingo de juízo no cérebro. A musa suscitava uma visão danada para nenhum marmanjo colocar defeito. Arabruto, um desses manés que, desde que a moça aportara em sua casa, vivia engendrando uma maneira de pular em cima dela com a ferocidade devastadora que lhe consumia as entranhas. Seus instintos estavam, realmente, à flor da pele. O presente texto contará tudo como de fato aconteceu, sem tirar nem por.

— É hoje, é hoje que me esbaldo... – teria dito Arabruto pouco antes de partir para o tudo ou nada.  

Como sempre, no horário habitual, a deusa encantada chegou. Antes de se dar em serviço, interfonou da portaria. Arabruto atendeu. Sabia, antecipadamente quem se fazia do outro lado da linha. Se arreganhou em mesuras:

— Minha fofa, nem precisava avisar. Você é parte das boas coisas do meu dia a dia. Tem a chave. Bastava pegar o elevador e se pôr a caminho...

Anabela educadamente deu a resposta:

— Bom dia, seu Arabruto. Sua esposa me ligou e pediu para eu passar aqui na padaria. Falou que a última caixa de leite havia sido aberta. Aproveito e levo uns pães frescos...

— Ótimo, Anabela. Tem dinheiro?

— Quando eu for embora, no final do expediente, o senhor ou dona Isaltina me reembolsam... pode ser?

— Ok. Fechado.

Assim aconteceu. Quando a moça entrou pela única porta existente, ou seja, a da sala, Arabruto a esperava escondido deitado no chão, atrás da geladeira, camuflado de um jeito que ela não o veria, quando ingressasse na peça. Aquela se fazia a primeira vez que o seu chefe agia daquele jeito. Não deu outra. Anabela tomou, pois, em consequência, um susto grandioso. Sua reação, não poderia ser pior. Como nunca antes o desmiolado se escondera, ou brincara de se passar por um cachorro, e pior, latindo, e pegando nas pernas dela, à altura dos joelhos com as mãos à guisa de abocanhada de um totó encarniçado, o desespero da prestadora nota mil se fez pavoroso e inevitável. Anabela, em ato de se precaver, passou a mão no primeiro objeto que encontrou. Uma panela cheia de feijão em cima do fogão. Sem pensar duas vezes, meteu a sua arma de resguardo improvisada em ação e o fez com toda força de suas agilidades, atingindo diretamente os cornos de Arabruto. Em face do intempestivo, a moça deixou cair por terra o saco de pão e a sacola com a caixa de leite que trouxera consigo. 

Por conta dessa brincadeira desastrosa e não programada, e, claro, de estropiado gosto sinistro, Arabruto arranjou uns bons cortes e galos na cabeça, bem ainda nas costa e pernas. Caso passado, susto refeito, o resultado do vexame, atonou:

—  Seu Arabruto, me desculpa. Que baita susto! O que fazia metido aí nos fundilhos da geladeira?

— Esperando você...

— E para quê?

— Você sabe, não é de hoje prometi a mim mesmo lhe daria umas mordidas de brincadeirinha. Olha como você me deixou...

A moça obviamente espiou, mas nada disse a respeito do que presenciava. Aproveitando o ensejo, se defendeu:

— Eu não esperava essa atitude de sua parte. O senhor ficou maluco? Olha como lhe deixei. Meu Deus, vamos para o pronto socorro aqui da Ilha, logo ali na Estrada do Dendê. Está jorrando muito sangue. Rápido, preciso dar conta do serviço ou a sua esposa vai subir nos cascos e me botar de volta para Bonsucesso com passagem só de ida...

Entretanto, não deu tempo. Dona Isaltina, a mulher de Arabruto, por algum motivo incalculado pintou de volta, dez minutos depois, não comparecendo aquela manhã ao seu local de trabalho. Em face disso, deu com a empregada toda melosa, o vestido curto mostrando o que não devia, socorrendo seu marido, os dois acomodados no chão. 
 
Para engrossar o caldo, na justa hora do assomo na cozinha, Anabela tentava estancar o sangue do cocuruto e também dos olhos e queixo do abestalhado, com ele acomodado tipo uma criancinha desprotegida em seu colo de fundo rosa. E o desgraçado sem vergonha se aproveitando da situação, mantinha os braços envoltos em torno do pescoço da prestimosa. Esse flagra deu um baita “BO,” ou melhor, um tumultuado “BU” (Boletim Unificado), na 37ª DP da Ilha do Governador, na estrada do Galeão, uma vez que a empregada, coitada, precisou explicar, toda confusa, à sua patroa, pormenorizadamente os motivos do marido dela, ensanguentado estar literalmente atarracado em seus braços e nuca. Final da tragédia, prevaleceu a mordida de um cachorro vira-lata e seus latidos invisíveis que sequer existiram. Caso passado, início de noite desse mesmo dia, depois dos curativos no hospital, compra de remédios e mentiras sem pé nem cabeça, o casamento de Arabruto e Isaltina culminou em separação. Sumariamente despejado, o desditoso jogou no ralo um relacionamento de quase trinta anos. Sem saída, as tralhas jogadas no elevador de serviço, o doidivana se aquartelou, às pressas, na casa de uma filha casada (rebento advindo da união dele com a sua adorada Isaltina). Quanto a ela, tão logo recuperada do baque, trocou de empregada e continuou tranquilamente em seu cargo. Isaltina exercia a função de assistente de uma empresa de advogados famosos na Avenida Presidente Vargas, quase às barbas da Igreja da Candelária e realizava as suas habilidades, desde quando ainda nem pensava em se unir ao Arabruto.  

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Estante de Livros ("Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola", de Daniel Munduruku)

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma coletânea de contos do autor e educador Daniel Munduruku, que busca apresentar de maneira acessível e envolvente a cultura, as tradições e as vivências dos povos indígenas do Brasil. O livro é dividido em crônicas que misturam humor, crítica social e reflexões profundas sobre a identidade indígena e suas interações com a sociedade contemporânea.

As crônicas abordam diversas situações do cotidiano indígena, destacando a riqueza das tradições orais, a relação com a natureza e as questões enfrentadas pelos povos indígenas, como preconceito, desinformação e a luta pela preservação de suas culturas. Munduruku utiliza uma linguagem simples e direta, apropriada para o público jovem, enquanto insere elementos de crítica e reflexão sobre a realidade dos indígenas no Brasil.

Cada crônica é uma oportunidade para rir e refletir, instigando os leitores a questionar estereótipos e preconceitos. O autor também enfatiza a importância da educação e do respeito à diversidade cultural, propondo que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo um diálogo entre diferentes saberes.

Munduruku explora a identidade indígena de maneira multifacetada, abordando as diferentes etnias e suas particularidades. Ele destaca a riqueza das tradições, costumes e línguas, reafirmando a diversidade cultural dos povos indígenas. A identidade é apresentada como algo dinâmico e em constante construção, desafiando a visão homogênea que muitas vezes é imposta à cultura indígena.

O autor enfatiza a conexão profunda que os indígenas têm com a natureza, apresentando-a como um elemento central de sua cultura e espiritualidade. As crônicas ressaltam a importância da preservação ambiental e a sabedoria indígena em relação ao uso sustentável dos recursos naturais. Munduruku sugere que essa relação deve ser respeitada e aprendida por todos, promovendo uma reflexão sobre a crise ambiental contemporânea.

Uma das principais críticas do livro é à maneira como os indígenas são frequentemente representados na sociedade. Munduruku utiliza o humor para desmantelar estereótipos e preconceitos, mostrando que os indígenas são seres humanos complexos, com suas próprias histórias e desafios. O autor convida os leitores a refletirem sobre suas próprias percepções e a importância de uma abordagem mais respeitosa e informada sobre as culturas indígenas.

O livro propõe que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo a diversidade cultural como um valor essencial. Munduruku defende que o conhecimento sobre as tradições e modos de vida indígenas deve ser integrado ao currículo escolar, contribuindo para uma educação mais inclusiva e consciente. O autor acredita que a educação é uma ferramenta fundamental para a transformação social e para o combate ao preconceito.

O uso do humor nas crônicas é uma estratégia eficaz para atrair o interesse dos jovens leitores. Através do riso, o autor cria um ambiente propício para a reflexão, permitindo que temas sérios sejam abordados de maneira leve e acessível. O riso é apresentado como uma forma de resistência e resiliência dos povos indígenas, que enfrentam desafios cotidianos com uma perspectiva otimista.

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma obra que vai além da simples narrativa; é um convite à reflexão crítica sobre a cultura indígena e seu lugar na sociedade contemporânea. Daniel Munduruku, através de sua escrita envolvente e humorística, desafia os leitores a se desapegarem de preconceitos e a abraçarem a diversidade cultural. O livro é um recurso valioso para educadores e alunos, promovendo um diálogo necessário sobre a identidade indígena, a relação com a natureza, e a importância da educação na construção de uma sociedade mais justa e respeitosa. 

A obra de Munduruku é um chamado à ação, incentivando a valorização das vozes indígenas e a necessidade de um espaço de aprendizagem que respeite e celebre a diversidade cultural do Brasil.

Fonte: José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Recordando Velhas Canções (Rasguei minha fantasia)


(marcha/carnaval, 1935) 

Compositor: Lamartine Babo

Rasguei a minha fantasia
O meu palhaço
Cheio de laço e balão
Rasguei a minha fantasia
Guardei os guizos no meu coração

Fiz palhaçada
O ano inteiro sem parar
Dei gargalhada
Com tristeza no olhar
A vida é assim...
A vida é assim...
O pranto é livre
Eu vou desabafar

Tentei chorar
Ninguém no choro acreditou
Tentei amar
E o amor não chegou
A vida é assim...
A vida é assim...
Comprei uma fantasia de pierrô

A Melancolia por Trás da Fantasia
A música 'Rasguei a Minha Fantasia', de Lamartine Babo, é uma obra que explora a dualidade entre a alegria aparente e a tristeza interior. A letra começa com o eu lírico declarando que rasgou sua fantasia de palhaço, um símbolo de alegria e diversão. No entanto, ao rasgar essa fantasia, ele revela que guardou os 'guiços' (sinos) no coração, sugerindo que a tristeza e a melancolia ainda estão presentes, mesmo que escondidas.

O segundo verso aprofunda essa dualidade ao descrever como o eu lírico fez palhaçadas o ano inteiro, mas com tristeza no olhar. Essa imagem é poderosa, pois mostra como muitas vezes as pessoas escondem suas verdadeiras emoções atrás de uma máscara de felicidade. A frase 'A vida é assim!' é repetida, enfatizando a resignação do eu lírico diante das dificuldades e desilusões da vida. Ele tenta chorar, mas ninguém acredita em seu choro, e tenta amar, mas o amor não chega. Essas tentativas frustradas reforçam a sensação de isolamento e incompreensão.

Por fim, a música termina com o eu lírico comprando uma nova fantasia de pierrô, outra figura tradicionalmente associada à tristeza e à melancolia. Isso sugere que, apesar de tentar se livrar da fantasia de palhaço, ele ainda está preso em um ciclo de tristeza e desilusão. A escolha do pierrô como nova fantasia é significativa, pois essa figura é conhecida por sua expressão de tristeza e solidão, contrastando com a imagem alegre do palhaço. Assim, 'Rasguei a Minha Fantasia' é uma reflexão profunda sobre a complexidade das emoções humanas e a dificuldade de encontrar verdadeira felicidade e compreensão.
Fonte: https://www.letras.mus.br/lamartine-babo/1877876/significado.html

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 3 *

 

A. A. de Assis (Banheiroteratura)

Neste mundo de gente apressada não sobra tempo livre para nada, muito menos para ler. Mal e mal se dá um jeito de olhar por alto alguns jornais e revistas, e só porque estar informado é ainda investimento. Livro quase ninguém mais abre.

Há, porém, dois derradeiros tipos de leitores inveterados: os que não conseguem dormir sem antes folhear um livro e os que fazem do banheiro seu gabinete cultural. Os adeptos da “sonoteratura” passam às vezes um ano com o mesmo volume, lendo duas ou três páginas por noite; os praticantes da “banheiroteratura”, idem.

Reza a medicina das vovós que ler no troninho pode prejudicar a saúde – sei lá se é verdade. Poucos, porém, parecem atentos a tais preocupações. Conheço gente que não entra no banheiro sem algo escrito. No mínimo como garantia para eventual carência de papel.

Um professor me disse que leu e releu a “Ilíada” e a “Odisseia” assim. Durante quase dois anos, dez minutos por dia. Outro aproveitou a ideia e está usando o mesmo processo para ler “Os sertões”, do Euclides. Depois pretende entrar no “Grande sertão – veredas”, do Rosa. Quem sabe algum dia chegue a Virgílio, Camões, Cervantes… 

Antigamente todo mundo curtia leitura. Sem televisão, sem rádio, sem cinema, sem celular, sem barzinho, a noite era vazia. O jeito era ler.

Gordos volumes de romances, contos, poemas. Minha mãe, embora tivesse feito na escola somente as primeiras séries, jamais ficava sem uma pilha de livros ao lado da cama. Leu toda a obra de Machado de Assis, de José de Alencar, e sabia de cor os versos da maioria dos poetas românticos e parnasianos.

Veio depois o que se costuma chamar de progresso, e com ele a necessidade de as pessoas trabalharem mais horas por dia. Veio também a maior variedade de programas.

E a leitura foi ficando de lado.

O jovem moderno lê apostilas e livros didáticos, sem os quais não consegue passar de ano na escola. O adulto lê o que interessa para o exercício de sua profissão. Literatura (arte literária) não tem mais vez. A não ser naqueles dez minutos diários a ela dedicados pelos que cultivam a “sono-“ ou a “banheiroteratura”.

O professor que leu a “Ilíada” e a “Odisseia” na “casinha” explica suas razões: dá aulas de manhã, de tarde e de noite, fica muitas vezes até de madrugada corrigindo trabalhos e provas ou preparando a matéria que ensinará no dia seguinte. Os únicos momentinhos sobrantes são mesmo aqueles em que se tranca para as urgências orgânicas. O bom e sábio Homero, lá do seu nobre assento etéreo, há de generosamente compreender e perdoar a irreverência. Afinal, neste agitado tempo de gente sem tempo, ler no banheiro já é uma grande homenagem prestada a quem escreve…

(Crônica publicada no Jornal do Povo em 10.10.2024)

Fonte: Texto enviado pelo autor