segunda-feira, 21 de outubro de 2024

José Feldman (O Escritor e o Filósofo)

Era uma vez, em uma pequena aldeia cercada por montanhas e florestas, um escritor chamado Hirram e um filósofo chamado Hermes. Ambos eram conhecidos por suas habilidades excepcionais: Hirram era famoso por suas histórias encantadoras e por criar mundos imaginários, enquanto Hermes era reverenciado por suas reflexões profundas sobre a vida e a existência. 

Certa manhã, enquanto caminhavam pelo bosque, Hirram teve uma ideia. “Hermes, que tal fazermos uma competição? Cada um de nós pode apresentar uma obra que represente a nossa visão do mundo. Aquele que tocar mais corações será proclamado o vencedor!” 

Hermes, sempre ponderando, concordou. “É uma proposta interessante, mas devemos lembrar que a verdadeira sabedoria não é apenas sobre vencer, mas sobre aprender e compartilhar.” 

E assim, decidiram que cada um teria uma semana para trabalhar em sua obra. Hirram, entusiasmado, sentou-se em sua mesa e começou a escrever. Em suas histórias, ele criou heróis que enfrentavam dragões e viajantes que descobriam terras mágicas. Seu mundo era colorido e vibrante, repleto de aventuras e emoções. 

Hermes, por outro lado, passou seus dias contemplando. Ele caminhou pelas florestas, observou os riachos e escutou os pássaros cantando. Em vez de escrever imediatamente, ele refletiu sobre as questões que o intrigavam: o que era a felicidade? Como encontrar propósito na vida? A natureza e a essência do ser humano tornaram-se seus temas centrais. 

Ao final da semana, ambos se reuniram na praça da aldeia para apresentar suas criações. O povo estava animado, curioso para ouvir o que cada um tinha a dizer. 

Hirram foi o primeiro. Com a voz vibrante, ele contou uma história épica sobre um jovem que partiu em uma jornada para salvar seu reino. As reviravoltas, os desafios e as conquistas emocionaram a plateia. A cada palavra, os ouvintes eram transportados para um mundo de magia e esperança. Ao final, aplausos ecoaram na praça, e muitos estavam visivelmente emocionados. 

Em seguida, foi a vez de Hermes. Ele levantou a voz serena e começou a compartilhar suas reflexões. Falou sobre a natureza da vida, a efemeridade do tempo e a busca por significado. Seus pensamentos eram profundos e desafiadores, e ele fez perguntas que ecoavam na mente de todos. A plateia ouvia atentamente, absorvendo cada palavra como se fossem pérolas de sabedoria. 

Quando terminou, um silêncio reverente tomou conta da praça. As pessoas estavam pensativas, imersas em suas reflexões. A competição parecia ter tomado um rumo inesperado. 

Após as apresentações, a aldeia decidiu que não haveria um vencedor. Ambos, Hirram e Hermes, tinham oferecido algo valioso: um mundo de sonhos e uma visão da realidade. O povo percebeu que, enquanto as histórias de Hirram os transportavam para longe, as reflexões de Hermes os traziam de volta ao presente, ajudando-os a entender melhor suas próprias vidas. 

Certa noite, enquanto caminhavam juntos sob a luz das estrelas, Hirram virou-se para Hermes e disse: “Eu desejava vencer, mas agora vejo que ambos temos nosso valor. Você me ensinou que a vida é tão rica em significado quanto em imaginação.” 

Hermes sorriu. “E você me lembrou que as histórias têm o poder de conectar as pessoas, de fazer com que sonhem e sintam. Juntos, somos mais fortes.” 

Moral da História 
A verdadeira sabedoria reside na união entre a imaginação e a reflexão. Enquanto a criatividade nos leva a sonhar, a filosofia nos ajuda a entender a realidade. Ambos são necessários para uma vida plena e significativa.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = 139 =


Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

A partida
de um pai
por mais
esperada
que seja,
arde
e machuca
demais
o inconsolável
coração
de quem ama.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

És um arbusto florido...
Eu sou o vento que passa,
e, num delírio atrevido,
te despe e depois... te abraça…
= = = = = = 

Soneto de
LUIZ POETA
Rio de Janeiro/RJ

Testamento

Chegou o tempo inevitável da lembrança
...de repensarmos o que foi a nossa vida.
Se a mesma dor bate no amor, ele revida
com um sorriso necessário... de criança.

Doces memórias nos impelem a passados
...dourados... livres... onde os voos da inocência
ignoravam os arroubos da ciência
e preocupavam-se em criar sonhos alados.

Como brincávamos!!! ...tudo era tão bonito
movido apenas pela nossa ingenuidade
e hoje, imersos na leveza da saudade,
reinventamos nosso amor mais... infinito.

Na previsão de um infarto fulminante
ou de um mal súbito iminente e sem aviso,
nosso sorriso idiota e... tão preciso
ainda teima em enfeitar o nosso instante.

Nós insistimos em criar nossas gravuras
mais pueris... mais inocentes... caricatas,
que apenas contam histórias que nem têm datas,
mas apresentam seus momentos... de ternuras.

São versos... esse é o derradeiro patamar
mais expressivo... são os túneis de memórias,
para que alguém, ao estudar nossas histórias
entenda, ao menos, nosso tempo de sonhar.

As forças faltam, nossos corpos cambaleiam,
Mas nossas mãos ainda insistem: digitamos
Ou escrevemos e, assim, reeditamos
O que sonhamos, esperando que nos leiam.

Que tolos somos! Quem se importa com vivências?
...nossa aparência é um retrato desfocado
De um novo tempo que despreza o passado
Abominando nossas vãs experiências.

Nosso legado? Um objeto precioso,
algum dinheiro, um imóvel, a mobília,
Um carro novo, algum tesouro... e uma família
Tão dividida, querendo o mais valioso.

Noras e genros, retirando suas capas,
Filhos e netos, disputando, após o choro,
O que deixamos... cada um criando num coro
Traçando planos sórdidos, criando mapas.

É inevitável percebermos nossas lutas
Por um futuro mais feliz e promissor,
Mostrando tudo que ensinamos sobre o amor,
Findar em cenas lamentáveis de disputas.

Melhor seria procurarmos a alegria
Na fantasia e só deixarmos aos parentes,
Nossas histórias infantis e adolescentes,
E alguns romances.... fragmentos de poesia.

Quem sabe, um neto ou um filho mais sensato
E mais sensível compreenda, de verdade,
Que a nossa vida só buscou felicidade
Na liberdade mais feliz de cada fato?

Quem sabe, um deles, nos pesquise mais a fundo,
E estude a história de cada antepassado
E compreenda que a memória é o legado
Mais importante e verdadeiro que há no mundo.

E que os desejos pessoais e as manias
Naturalmente humanas e mais prazerosas
Não sejam teses imbecis, pecaminosos,
Dos que acusam com cruéis hipocrisias!

Que nossas mãos ganhem asas de passarinhos
E haja carinho em nosso último estertor,
Para que alguém encontre o mapa desse amor
Que cultivamos na rudeza do caminho.

Que nos editem... não há outra alternativa
Que imortalize nossos modos de sonhar
E que respeitem nosso jeitinho de amar
Para que nossa liberdade sobreviva.
= = = = = = 

Trova Premiada em Irati/PR, 2023
CIPRIANO FERREIRA GOMES 
São Paulo / SP

Da pedra bruta aos brilhantes, 
mãos calejadas, fiéis, 
servem às mãos elegantes
a vaidade dos anéis. 
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Livros e Saudade

Três quadros encostados na parede...
Em cima da mesa, desenhos por terminar.
Na estante, próxima à janela,
entre os livros, a saudade a espreitar...
= = = = = = 

Trova Popular

Meu amor, vai pelo mundo:
ir pelo mundo é um bem;
o mundo também é regra
para aqueles que a não têm.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Mefisto

Espírito flexível e elegante,
Ágil, lascivo, plástico, difuso,
Entre as cousas humanas me conduzo
Como um destro ginasta diletante.

Comigo mesmo, cínico e confuso,
Minha vida é um sofisma espiralante;
Teço lógicas trêfegas e abuso
Do equilíbrio na Dúvida flutuante.

Bailarino dos círculos viciosos,
Faço jogos sutis de ideias no ar
Entre saltos brilhantes e mortais,

Com a mesma petulância singular
Dos grandes acrobatas audaciosos
E dos malabaristas de punhais…
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Acaso fizeste a Lua? 
Acaso fizeste a rosa? 
Então que ciência é a tua, 
tão solene e presunçosa?…
= = = = = = 

Poema de
PAULO WALBACH PRESTES
Curitiba/PR, 1945 – 2021

Menino Ilha

Como uma ilha deserta, desperto no meio do mar...
Distante, sem eira e nem beira, mal posso sonhar.
O mar, quase amante com ondas infindas, constantes,
que vêm e que vão;
E todas melosas, molhadas me beijam, me afogam e voltam bailar.
O sol escaldante de dia me aquece, me queima, me atenta
e me faz flutuar...
E um solitário coqueiro com seus leques abertos
me dão o frescor no leve roçar...
E a sombra me cobre, se esquiva, vai embora,
sumindo no ar.
 
A noite silente, estrelas luzentes palpitam, desejam, rodeiam a ilha
num doce velar...
Vaidosa a lua me sonda, me espia; se olha, se mira no espelho do mar.
E eu tal uma ilha envolto em letras, que voam, saltitam na noite perdido
num mar de ilusão...
Palavras se juntam, ideias benditas me vêm à cabeça mas logo se vão.
Pensamentos acendem faíscas ligeiras, palavras arteiras...
Meu estro acorda, me deixa sonhar.
 
Sou ilha, sou homem, menino, poeta... Quem sou?...
Sou eu pequenino... no universo, um anão...
sou sol ou sou ilha... sou mar, sou luar, sou eu, sou você...
sou só...
Solidão!
= = = = = = 

Trova Humorística de
IDEL BECKER
Porto Casares/ Argentina, 1910 – 1994, São Paulo/SP

Eu recuso mulher nova,
que é espelho dos enganos.
Quero uma velha bem velha
de vinte, ou vinte e dois anos.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Amor sem jaça

Nem pense em me deixar! Eu enlouqueço,
ou vou, por certo, entrar em depressão...
Não saberei viver sem tanto apreço,
com que você prendeu meu coração.

Por isso eu peço aos céus que, a qualquer preço
nos livre de qualquer separação,
que me poria num torpor espesso,
exterminando a minha inspiração!

Também jamais veria no futuro
alguma graça para o meu viver,
pois existir sem estro eu esconjuro!

Assim, meu bem, evite tal desgraça;
jamais me deixe só! Você vai ver
que é todo seu o meu amor sem jaça!
= = = = = = 

Trova do
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Contradição singular
que angustia o meu viver:
a ventura de te achar
e o medo de te perder.
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
(Flor Bela de Alma da Conceição Espanca)
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

O fado

Corre a noite, de manso num murmúrio,
Abre a rosa bendita do luar....
Soluçam ais estranhos de guitarra....
Ouço, ao longe, não sei que voz chorar...

Há um repouso imenso em toda terra,
Parece a própria noite a escutar....
E o canto continua mais profundo
Que uma página sentida de Mozart!

É o fado. A canção das violetas:
Almas de tristes, almas de poetas,
Pra quem a vida foi uma agonia!

Minha doce canção dos deserdados,
Meu fado que alivias desgraçados,
Bendito sejas tu! Ave Maria!…
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Nem mesmo sei o que sou
pela dor que sinto agora.
Bem pareço a sombra escura
de um ser que viveu outrora.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Ouvia-se os respingos
caindo inertes, sem emoção.
Não era chuva, orvalho,
tampouco pranto.
Somente borrifadas...
Talvez poesia,
talvez um nada no chão.
= = = = = = 

Trova Humorística de 
CÁSSIO MAGNANI
Santa Bárbara/MG, 1921 – 1990, Nova Lima/MG

Madama vai ao peixeiro:
– A senhora quer Robalo?
Ela, mostrando o dinheiro:
– Não, senhor, quero comprá-lo!
= = = = = = 

Poema de 
MOEMA TAVARES
Rio de Janeiro/RJ

Lágrimas  

Correm como um rio 
E me afogam... 
Gota a gota me descem pela face
Gota a gota formarão um lago, um rio
Cada lágrima é uma gota de aflição,
de saudade de algo que não aconteceu, 
de desejos não realizados, 
de sonhos apenas sonhados, 
não vividos...
As lágrimas inundam o presente 
porque não posso esquecer o passado
Idealizado, sonhado...
= = = = = = 

Trova de
ORLANDO WOCZIKOSKY  
Curitiba/PR, 1927 – 2019

A mulher é diferente
    no terreno da emoção:
- O homem diz sim e consente,
    ela consente e diz não!
= = = = = = 

Soneto de
LUCÍLIA ALZIRA TRINDA DECARLI
Bandeirantes/PR

Maravilha natural

Da lenda, a qual explica a sua origem,
um trecho sobre o amor malsucedido...
“Teve, um casal, seu plano interrompido:
- fratura em rochas... águas com vertigem!...”

Vindas da serra as águas se dirigem
ao cânion, onde o rio está estendido.
Cada turista observa, embevecido,
as gigantescas quedas, que coligem!

Nosso Brasil tem belas cachoeiras,
águas cantantes pelas ribanceiras,
e, cristalinas, vistas a olho nu...

Ressalto, aqui, aquelas impactantes,
maravilhosas, densas, sons vibrantes:
- As Cataratas (plenas) do Iguaçu!

(1° lugar no Concurso Literário-2023, pela Academia Literária do Oeste do Paraná)
= = = = = = 

Poetrix de
JUCINEIA GONÇALVES 
Belo Horizonte/MG

descompasso

meus caminhos
não singram mares
ah, essa minha continentalidade!
= = = = = = 

Soneto de
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Porto/Portugal, 1744 – 1810, Moçambique

Marília de Dirceu: Soneto II

Num fértil campo de soberbo Douro,
dormindo sobre a relva descansava,
quando vi que a Fortuna me mostrava
com alegre semblante o seu Tesouro.

De uma parte, um montão de prata e ouro
com pedras de valor o chão curvava;
aqui um cetro, ali um trono estava,
pendiam coroas mil de grama e louro.

Acabou (diz-me então) a desventura:
De quantos bens te exponho qual te agrada,
pois benigna os concedo, vai, procura.

Escolhi, acordei, e não vi nada:
comigo assentei logo que a ventura
nunca chega a passar de ser sonhada.
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

Chega tarde, o companheiro
e ao ver tanta grana, exclama:
- Como ganhaste o dinheiro ?!
Passas o dia na cama!!!
= = = = = = 

Poema de 
YORGOS SEFERIS
Esmirna/Grécia, 1900 – 1971

A Folha do Choupo

Tremia tanto que o vento a levou
tremia tanto como não a levaria o vento
lá longe
um mar
lá longe
uma ilha ao sol
e as mãos apertando os remos
morrendo no momento em que o porto apareceu
e os olhos fechados
em anêmonas do mar.

Tremia tanto tanto
procurei-a tanto tanto
na cisterna com os eucaliptos
na primavera e no verão
em todas as nuas florestas
meu Deus procurei-a.

(tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis)
= = = = = = 

Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Na penumbra, o berço é um templo,
ajoelho e em ternura enorme,
entre rendas eu contemplo
meu pequeno deus que dorme!
= = = = = = 

Hino de 
Arara/PB

Inspirada em uma ave
A tua história surgiu
A pujança de teus filhos
O teu nome difundiu
Reservando o teu espaço
Na História do Brasil.

Arara amada
terra querida
Confio a ti a minha vida.

O teu passado sofrido
Teu presente de certeza
É o prenuncio já vivido
De um futuro de grandeza
Terra plácida e venturosa
Dádiva da mãe natureza.

Arara amada
terra querida
Confio a ti a minha vida.

A tua fé incessante
Sempre enérgica e cristalina
Fruto do teu patriarca
O apóstolo Ibiapina
Faz superar obstáculos
Toda provação domina.

Arara amada
terra querida
Confio a ti a minha vida.

Dezembro mês escolhido
Para ser também o teu Natal
Harmonia, independência
Marcas do teu ideal
Trabalho e crescimento
Tua face natural.

Arara amada
terra querida
Confio a ti a minha vida.
= = = = = = 

Trova Premiada no Japão
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Se algum motivo incessante
sopra luz em tons diversos...
é a musa que vem, migrante,
pedir pouso em nossos versos!
= = = = = = 

Poema de 
PEDRO DU BOIS
Passo Fundo/RS, 1947 – 2021, Balneário Camboriú/SC

Nudez

Desnuda-te
demonstra
tua humanidade
na beleza
em claves
e palavras
onde mostra
aos tolos
que esperam
de ti o golpe
no movimento
de teu corpo nu

teu o arcabouço
no nascimento
e no abandono

no reencontro do corpo
ao encontro de outro
corpo nu como o teu.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Nos meus embates medonhos
sempre enfrento os desafios,
quando a vida tece sonhos
e o tempo desfaz os fios.
= = = = = = 

Fábula em Versos
adaptada das Fábulas de Monteiro Lobato 
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Fábula do Urso e do Coelho 

Um urso forte, de grande tamanho, 
encontrou um coelho, com jeito de estranho. 
“Eu sou o rei, não tenha medo!” 
Disse o urso, com ar de enredo. 

O coelho, esperto, logo respondeu: 
“Reis são muitos, mas amigos são poucos, eu sou seu!” 
E assim, com risos, se tornaram aliados, 
mostrando que a amizade é o maior dos legados.

Aparecido Raimundo de Souza (Ecos de um silêncio que não dava trégua)

TATIANA SEMPRE amou a música. De paixão. Era a sua vida, o seu objetivo, o seu agora, e, igualmente, o seu porvir. Desde pequena, ainda na faixa dos cinco para seis anos, as notas de um piano ou a melodia suave de um órgão nas missas dominicais do padre Daniel a encantavam e acalmavam o seu espírito inquieto, notadamente quando se deparava com as partituras (ainda que de uma simples melopeia.) Sua paixão avassaladora pelos hinos, e pelas canções românticas se fazia como um trilho paralelo. Uma disposição anímica, um escape no meio do cotidiano efervescente, e uma forma direta de comunicação, tipo assim, como algo soberbo que se estendia além, muito aquém das palavras. No entanto, com o passar dos anos, algo que deveria ser uma fonte de alegria e esperança, se tornou um tremendo campo de batalha emocional, como uma arena imensa onde a frustração e o ressentimento se assarapantaram juntamente com as obras que costumava executar.

O pai de Tatiana, o Chico Marreta, sempre foi um homem de grandes expectativas. Para ele não havia limites. Com o sucesso profissional açambarcado pela sua eterna criança, ele transferiu as todas as suas edacidades (avidez) para ela, esperando que a jovem musicista fosse uma ensancha (oportunidade) sôfrega de seus próprios devaneios e conquistas. Em razão disso, uma tara esfaimada e gulosa, quase as raias do pantagruélico em ver a Tatiana nos píncaros das estrelas, se consubstanciava numa única essência, como um reflexo do desejo de brilhar e superar a si próprio, ou qualquer coisa que ele mesmo trazia escondido a sete chaves dentro de si. Contudo, na busca galopante por realizações pessoais, ele se descuidou, ou seja, deixou de lado algo que deveria ser primordial: o respeito, a consideração, a deferência e a cortesia pela vontade e pelos sentimentos de sua única descendente. Tatiana, no início, tentou corresponder às expectativas do pai. 

De todas as maneiras possíveis e imagináveis. Ela se dedicou, de corpo e alma e com profundo afinco, ao treino incansável, buscando em cada aula, em cada audição, a aprovação que sabia ser a chave para o coração de Chico Marreta. Mas o que começou como uma busca por amor e aceitação, logo se transformou em um peso traiçoeiro e esmagador. As sinfonias, que antes representavam seu refúgio, a sua vida, seus sonhos e aspirações, passaram a ser uma fonte constante de pressão e dor à farta. Sendo assim, cada concerto, cada ensaio, cada encontro, se tornava uma espécie catastrófica de obrigação e não mais uma alegria inebriante. O ponto de ruptura culminou. Aconteceu exatamente durante um recital importante no Teatro Municipal no Rio de Janeiro. Chico Marreta, como de costume, se fazia pomposo na plateia lotada, observando atentamente e com os olhos arregalados, não de um pai carinhoso e dócil, de um crítico intransigente. 

No entanto, a verossimilhança de um desempenho impecável não se alinhava com a realidade daquela noite. Tatiana estava nervosa e, em meio à performance, cometeu alguns erros que, para ela, foram profundamente dolorosos. Ao final, quando os aplausos da plateia ainda ecoavam, Chico Marreta se aproximou e, ao invés de oferecer palavras de consolo, de ternura e compreensão, acertou literalmente falando, uma tremenda marretada no âmago da sua garotinha, ou seja, mergulhou afogueado numa crítica dura, perversa, ácida e severa se enveredando, sem nenhuma cortesia e polidez, por desvãos de passos meândricos (tortuosos), no tocante a falta de (segundo ele) a total despreparação de sua única herdeira de vínculo biológico. A ferida imensurável que se abriu naquele momento amargo, se fez deveras profunda. Como um desfiladeiro que lembrava aquela ponte para o céu nas montanhas de Neman, na China. Tatiana, com os olhos baços e marejados, sentiu um peso que nunca antes experimentara. 

A sensação de inadequação e decepção se tornou quase insuportável. Em vez de orgulho, se sentia como se estivesse falhando não só como artista, mas também como filha. Naquele instante, a relação que antes parecia sólida começou a esfriar, ou melhor dito, a rachar, e o que restou logo depois, apenas e tão somente o eco de um silêncio frio e ensurdecedor. O diálogo entre pai e filha se tornou, no mesmo lado da moeda, numa espécie de recesso dentro de um solo minado, se distanciando cada vez de forma mais longínqua, em vista de uma enormidade de ressentimentos não ditos e feridas abertas sem esperanças de serem cicatrizadas. Cada tentativa de Tatiana de expressar a sua insatisfação, culminava respondida com uma mistura amarga de desdém e confusão. Chico Marreta, incapaz de compreender a profundidade do sofrimento da filha, continuava a insistir em suas expectativas, acreditando que agia da melhor forma possível. Ledo engano!

O tempo passou e, como tudo na vida, o sofrimento ímpar e penoso começou a se perpetuar em rostos serenos de compreensão. Tatiana, aos poucos percebeu e não só isso, passou a ver que o seu valor não se fazia atrelado às expectativas do autor de seus dias, e sim à sua própria essência trazida de berço, e obviamente aos seus acalantados sonhos imorredouros de adolescente. Embora a relação com o pai ainda fosse ofuscada, marcada por uma certa distância, ela aprendeu a tocar as suas músicas com um novo simulacro (arremedo). Canções de simetrias sublimes e de autoconhecimento, e, sobretudo, de majestosa libertação pessoal. O caminho para a sua cura foi longo, penoso, cheio de altos e baixos. Difícil, repleto de tropeços aqui e acolá. Muitas vezes, a menina dos olhos cor de mel se via solitária. Porém, “não há mal que sempre ature, nem bem que nunca se acabe.” De repente, do nada, como uma luz que se acende inesperadamente, em meio de um breu tremendo, Tatiana compreendeu que, às vezes, é necessário dar alguns passos para trás. 

Sopesar contras e prós, se afastar para encontrar a própria personalidade, e nela, de contrapeso, o valor indubitável da sua. Chico Marreta, por seu lado desprovido, ausente e distanciado da filha, começou a perceber, igualmente, a importância de ouvir, de escutar, em vez de apenas impor ordens e condições. A reconstrução da confiança e do entendimento mútuo é uma jornada contínua. À poucos passos, pai e filha estavam e não só isso, careciam e se faziam abertos e dispostos a trilharem por essas veredas cheias de curvas e dissabores, com a probabilidade de que, um dia, as notas de suas relações encontrariam um acorde de adesão entrelaçado a um engajamento de indestrutível expectativa. Dessa forma, mesmo com as repetições intransigentes do silêncio obscuro ainda ressoando em seus “eus escondidos", pai e filha, filha e pai, aprenderam a tocar as suas próprias cantatas. Na verdade, se coadunaram com a convicção de que, eventualmente, as suas estradas e veredas se entrelaçariam, e, obviamente, se cruzariam novamente num ponto ainda que afastado. Agora não mais como um campo minado aberto publicamente. Em oposto, entrelaçado como uma entonação de eurritmia (harmonia) onde a compreensão e o amor incondicionalmente se faziam renovados.
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Nota: entre parênteses significado das palavras não usuais, obtido no Dicionário Online de Português, pesquisa realizada pelo editor do blog.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (As Laranjas da Sabina)

 (lundu/tango, 1902)
Compositor: Artur de Azevedo


Sou a Sabina, sou encontrada
Todos os dias lá na calçada
Lá na calçada da Academia
Da Academia de Medicina

Um senhor subdelegado
Moço muito restingueiro
Ai, mandou, por dois soldados
Retirar meu tabuleiro, ai...

Sem banana macaco se arranja
E bem passa monarca sem canja
Mas estudante de medicina
Nunca pode passar sem a laranja
A laranja, a laranja da Sabina.

Os rapazes arranjaram
Uma grande passeata
Deste modo provaram
Quanto gostam da mulata, ai

Sem banana macaco se arranja

Na manhã de 25 de julho de 1889, um grupo de estudantes da Imperial Escola de Medicina uniu-se em uma inesperada passeata pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. O motivo: Sabina, uma baiana vendedora de laranjas, havia sido proibida de armar seu tabuleiro em frente à faculdade, na Rua da Misericórdia. A decisão de expulsá-la, anunciada pelo subdelegado da área, provocou imediata reação dos alunos. Por onde passava, o cortejo ganhava mais adeptos e recebia aplausos de uma multidão entusiasmada. Bem-humorados, os estudantes carregavam uma coroa feita de bananas e chuchus e uma faixa criticando a autoridade, a quem chamaram de “O eliminador das laranjas”. Passaram também pelas redações dos principais jornais da cidade denunciando a arbitrariedade, o que renderia grande repercussão para o caso.

“Um viva aos rapazes, que acabam de escrever a melhor cena das próximas futuras revistas de ano”, publicava a Gazeta de Notícias três dias depois. O jornal estava sendo profético. As “revistas de ano” eram peças teatrais cômicas e musicadas, nas quais desfilavam os eventos tidos como mais importantes do ano anterior. Daí sua denominação: era o momento de passar um ano inteiro em revista. Em 1890, os irmãos escritores Artur e Aluízio Azevedo encenaram sua revista de ano, A República, e Sabina foi uma das personagens mais comentadas. Noite após noite, os cariocas corriam até o Teatro Variedades Dramáticas só para ouvir a canção As laranjas da Sabina. Sabina era interpretada por uma bela atriz grega, Ana Menarezzi, bem diferente da idosa rechonchuda retratada pela imprensa.

Em 1902, quando a indústria fonográfica chegou ao Brasil, As Laranjas da Sabina foi gravada ainda no sistema de cilindros pelo cantor Cadete e já em disco por Bahiano, ainda nesse mesmo ano. Em 1906, a atriz Pepa Delgado gravou o lundu.

Os anos passavam, mas quem disse que Sabina era esquecida? No início do século XX, as agremiações carnavalescas mantinham grupos formados por homens que, nos dias de folia, saíam às ruas fantasiados de baianas e mulatas. Numa homenagem à velha quitandeira da porta da Escola de Medicina, eles eram chamados, no grupo Kananga do Japão, de “Sabinas da Kananga”. Na sociedade dos Fenianos, eram conhecidos simplesmente como “Sabinas”.
Fonte:
https://cifrantiga3.blogspot.com/2013/08/as-laranjas-da-sabina.html