quarta-feira, 14 de maio de 2025

Asas da Poesia * 21 *

 

Poema de
WASHINGTON DANIEL GOROSITO PÉREZ
Irapuato/Guanajuato/México

Solidão
 
A solidão dos espaços
infinitos me aterroriza.
Pascal.
 
Muda, etérea, indisciplinada,
se rompe ante a vista
do mundo.
 
A vontade de sermos livres
nos guia.
Às vezes,
enfraquece essa vontade.
 
Até onde se inclina o fiel
da balança da liberdade?
 
Vista nossa decadência atual,
é impossível prever,
se seremos conservadores,
para construir a liberdade.
 
Ou nos encerramos mais
na solidão.
= = = = = = = = =  

Trova de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Nada mais belo, decerto,
no cenário da esperança,
que a imagem de um livro aberto
sob o olhar de uma criança!
= = = = = = = = =  

Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Alencar

Hão de os anos volver, — não como as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste, — ora os escreves
No volume dos pátrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.

Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto...
= = = = = = = = =  

Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/ SP

Quando a noite se desata
e o véu de sombras descerra,
a lua derrama prata
sobre as misérias da terra.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Prelúdio do anoitecer

Esmaece o fim de tarde
Quase, posso tocar
As nuvens, em degrade
Ah, esse silêncio encantado
Do outono em gotas
À beira do lago beijando as folhas,
Sussurrando às flores
Um poema de amor,
Enquanto  embala
A despedida do dia
Na cadeira de balanço
E nesse amenizar da respiração
Da saudade tão intensa,
Mas calada - disfarçada - lágrima
Deixo as lembranças
De cada detalhe
Do teu corpo junto ao meu
Mesclarem-se, unificando-nos
Nesse terno e apaixonante
Prelúdio do anoitecer...
= = = = = = 

Haicai de
ÁLVARO POSSELT
Curitiba/PR

Faz eco na rua –
O grito dos quero-queros
sob o nevoeiro
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Sobre a margem tranquila de um açude
(Mário Quintana, in “Rua dos Cataventos”)

Sobre a margem tranquila de um fresco açude
Fez uma pausa longa o Tempo, a acalmar
Exausto de correr sempre a vindimar
Risos, vontades, crenças e juventude.

Também eu me detive nessa atitude
De conceder a mim mesmo esse vagar
Vergando-me ante mim, não sendo eu altar
Num gesto de humildade que me desnude.

Temos andado os dois sempre de mãos dadas
Desperdiçando as horas, que são sagradas
Em correrias loucas e sem sentido.

Vejo agora que me expus ao grave risco
De fazer desta vida um pequeno cisco
E chegar ao fim sem nunca ter vivido.
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Bem outro seria o clima
se em tantos gritos cruzados,
fosse ouvida, lá de cima,
a prece dos desgraçados!
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Maldição

Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
- Hoje, velha e cansada da amargura,
Minh’alma se abrirá como um vulcão.

E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...

Maldita sejas pelo Ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...
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Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

É nos momentos tristonhos 
que eu peço à minha lembrança 
que traga de volta os sonhos, 
no aconchego da esperança…
= = = = = = 

Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

À memória de uma ave

Quando morre uma criança,
Diz-se que o pálido anjinho
Voou como uma esperança,
Foi para o Céu direitinho.

Mas nossa mente se cansa
A voar de ninho em ninho,
Interrogando a lembrança,
Quando morre um passarinho.

Só eu, se alguém diz que a vida
De uma avezinha querida
Se extingue como um clarão,

Ponho-me a rir, pois, divina,
Ouço cantar, em surdina,
Tu' alma em meu coração.
= = = = = = 

Haicai de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

Interior

Havia uma rosa
no vaso. Veio do ocaso
a hora silenciosa.
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Imemorial

À noite pervaguei pelo Beco do Império
que há cinquenta anos não existe mais
e as horríveis mulheres, nos portais,
estavam belas de eu sonhar com elas.

Um bêbado me olhava, muito sério.
"Ó meu velho Condessa, como vais?"
Porém, agora — eu é que era o velho
e ele nem me conhecia mais...

Tolice!... Ele, afinal, disse o meu nome!
Ah, sempre que se sonha alguma coisa
tem-se a idade do tempo em que as sonhamos:

Me esqueci do futuro... e lá nos fomos
e a luz da Lua — eterna, intemporal —
juntava numa as duas sombras gêmeas.
= = = = = = 

Hino de 
ITABUNA/ BA

I
Lá na mata, o ouro fruto,
O seu brilho atraiu
Homens bravos, corajosos,
A natureza... O desafio!
Com o machado, o homem na mata
Ressoa o grito voraz da vitória!
Tabocas! Tabocas! Tabocas...
Itabuna tu és agora!

Refrão:
Na madeira, o machado taboca!
E a vila de Ferradas vem surgindo!
O fruto ouro nos olhos, na alma!
Do Cachoeira, a cidade se expandindo!
Amada cidade grapiúna,
Sua glória; sua história
São orgulhos ao coração!

II
Com muralhas, em seu rio,
Grande espelho se formou!
Pedra preta refletindo
Sua gente, seu progresso, seu valor!
Nas praças, seus contos na memória!
Os compêndios enaltecem sua história!
Amada cidade grapiúna:
Itabuna tu és agora!

III
Hoje és linda, hoje és forte!
Sua fauna é conhecida!
Há riquezas nessa terra!
Nessa flora mãe amiga!
No comércio, na indústria... Sua força!
Esse aroma de cacau no coração
São braços fortes, que acolhem o seu povo.
Outra terra não há igual!

Obs : Repetir no final do último coro:
Itabuna, sua glória, sua história
São orgulhos ao coração! 
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Teu retrato

Em frente ao teu retrato jovem, belo,
Chegado há pouco tempo nesta terra,
Cheio de sonhos bons, encontra a guerra
Pela sobrevivência, e busca um elo.

O sorriso confiante nela encerra
Uma esperança no porvir, no anelo,
buscavas inquietante,  sem libelo,
o  apoio certo, então sobes a serra.

Desiludido já não  ris, na foto
Da carteira social, anos depois.
Sério, parece preocupado e noto,

Que não foi tão feliz a decisão
De deixares a amada terra, pois,
Choravas de saudade à volição.
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Uma Lengalenga de Portugal
MENINA BONITA

 Menina bonita
Não sobe à janela
Porque o bicho mau
Carrega com ela.
 
Se quer alvos ovos
Arroz com canela
Menina bonita
Não sobe à janela.
 
Não sobe à janela
Não sobe à varanda
Porque lá está posta
Uma fita de ganga.
 
E dentro da panela
Uma fita amarela
E dentro do poço
A casca de tremoço
E lá no telhado
Um gato molhado
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Se eu pensara quem tu eras,
 quem tu havias de ser,
não dava meu coração
para tão cedo sofrer.
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

Palavra é ave
Às vezes suave
Às vezes arredia
Entre um pouso e outro
Escolhe um coração
Como ancoradouro
Pra nele fazer
O seu seguro ninho.
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Soneto de
FLORBELA ESPANCA
Vila Viçosa/Portugal, 1894 – 1930, Matosinhos/Portugal

Amor que morre

O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há de vir!
= = = = = = = = =  

Setilha do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Casinha à beira da estrada
com chão de terra batida,
fiz do teu portão de entrada
o meu portão de saída,
parti morto de saudade
tangendo os sonhos da idade
pelas estradas da vida!
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Trova de 
PAULO ROBERTO OLIVEIRA CARUSO
Niterói/RJ

Horas por dia eu passei 
no tal mundo virtual,
até que um dia paguei 
uma conta bem real!
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Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Casulo da palavra

Palavra fechada no casulo da alma.
Como bicho da seda tecendo fios dourados.
Trabalha sem cessar.
Na noite profunda sonha.
Escondida, aguarda seu tempo.
Na hora certeira amadurece.
Silenciosa e calma.
Com a força do pensamento,
Abre sua provisória morada.
Vagarosa sai informe.
Úmida e gelada,
Na madrugada de um dia qualquer.
Aguarda o sol chegar.
Um raio luzente a aquece,
Revigora sua carne machucada.
Distende as asas lentamente,
Voa para experimentar a vida!
Agora linda e colorida borboleta.
Não é efêmera…
Logo ela volta e docemente pousa
Na perfumada flor branca do papel.
Que acolhedor está à sua espera.
A Indelével Palavra do poeta.
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Trova de
RENATO ALVES
Rio de Janeiro/RJ

No caminho sem atalhos
que leva ao teu coração,
feri meus pés nos cascalhos
que espalhaste pelo chão.
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Poetrix de
MARDILÊ FRIEDRICH FABRE
São Leopoldo/RS

pas de deux

No jardim,
Borboletas dançam.
Coreografia da paixão.
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Em uma tarde de outono

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao ir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
- Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol..
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Já quase louco de amor, 
envolto num triste enlevo 
ponho toda a minha dor 
no papel…quando eu escrevo!
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Poema de
JOSÉ CARLOS MOUTINHO
Porto / Portugal

Céu azul

Contemplo o céu, fascinado
Pelo azul imensamente belo;
Deslumbra-me a imensidão do infinito espaço
E me reduz a uma infinita expressão do nada!
As nuvens movimentam-se em bailados
De fantástica coreografia;
Brancas, pombas alvas da paz,
Na quietude do tempo que sorri,
Acariciadas pelo brilho do astro rei!

E é nesta visão, serena, que me acalma,
Ao mesmo tempo que me alerta,
Para as nuvens negras, tenebrosas e ameaçadoras
De tempestades de forças diluvianas...

Mas agora, aqui, neste momento,
Só quero sentir a ilusão do belo eterno
Que me é oferecido,
Neste quadro de singular perfeição,
Onde as cores são distintas
Das inventadas pelos homens;
Aquelas têm um brilho irreal, esotérico,
Que nos atraem e nos elevam espiritualmente,
Para um outro espaço extasiante de emoções.
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Abbie Phillips Walker (O rato sapateiro)


Um dia, um rato roeu o caminho para uma despensa e, depois de ter comido tudo, ele queria ficou ousado e foi para a cozinha.

Lá o cozinheiro o viu e o perseguiu com uma vassoura, mas, não sendo capaz de acertá-lo quando ele saiu correndo da porta, ele pegou um par de sapatos que estavam parados perto e os jogaram sobre ele.

O rato pegou-os e colocou-os.  No caminho para casa ele conheceu um gato.

"O que você tem no pé?" ele perguntou ao rato.

"Você não consegue ver, meu querido Tom?" disse o rato. "Eles são sapatos.  Eu sou um sapateiro e, claro, devo usar meu próprio produto."

"Faça-me um par", disse o gato, "e pouparei sua vida."

"Muito bem", respondeu o rato, "mas primeiro você deve me trazer alguns couros."

Então o gato sumiu e trouxe de volta duas peles de couro.

Quando o rato viu a quantidade de couro, teve uma ideia.  

"Meu querido Tom, "ele disse", Eu posso fazer-lhe um terno de roupas e um par de luvas, bem como os sapatos, e você será a inveja de todos os outros gatos."

Tom ficou encantado e disse ao rato para se apressar e fazer a roupa.

O rato sábio primeiro fez as luvas e cobriu as garras afiadas de Tom.  Então ele fez os sapatos para as patas traseiras e, quando fez isso, se sentiu seguro.

"Agora você deve esperar", disse ele; "até conseguir algo com o qual possa prender o casaco."  Ele fugiu e voltou com um longo e afiado espinho.

Em seguida, o rato colocou o couro ao redor do corpo de Tom e o puxou com força, prendendo-o com um espinho que ele empurrou para que a ponta afiada picasse Tom.

"O que você está fazendo?" perguntou Tom, irritado por estar ferido; mas ele não conseguiu mover-se, o traje de couro era tão rígido e justo, mas ele agarrou a cauda do rato com a boca,.

O rato correu, deixando o rabo na boca de Tom.

"Eu vou te conhecer", Tom ligou atrás dele.  "Quando eu estiver fora deste traje eu vou te pegar e te comer."

O rato não tinha pensado nisso e se perguntou o que deveria fazer, mas ele era um velho sábio e, quando chegou em casa, ligou para todos os seus irmãos e irmãs e primos e tias dele.

"Conheci um gato hoje", disse ele, "que esteve na cidade onde todos os estilos são novos e ele me disse que todos os ratos da cidade estão tendo suas caudas cortadas, então mandei fazer as minhas.  Se você quiser estar com estilo, disse ele  para eles, "devem ter o rabo como o meu."

"Dói?" perguntou um.

"Nem um pouco", respondeu o rato astuto, "e você não tem ideia de como é confortável, estar correndo sem cauda para cuidar.  “É muito caro cortá-lo", explicou ele; "esse é a única parte difícil.  Tive de pagar vinte pedaços de queijo.  Mas eu observei enquanto outro sujeito cortava o seu, e tenho certeza de que consigo fazer isso tão tão bem quanto o rato que cortou o meu. E se você quiser ficar na moda pagando pouquíssimo, eu corto o seu rabo por cinco pedaços de queijo para cada um."

Todos os ratos concordaram e correram para pegar o queijo. Enquanto eles estavam fora, o rato sábio correu para pegar uma faca de cortar.

Logo ele cortou as caudas e tinha um bom estoque de queijo. "Agora", disse ele para si mesmo, "Tom nunca me distinguirá dos outros ratos."

Ele manteve os olhos abertos, procurando por Tom, que havia chamado seus amigos para ajudá-lo a tirar o traje e lhes disse para ficarem atentos a um rato sem rabo. Mas, quando viram todos os ratos sem rabo, desistiram de procurar por um que havia colocado Tom no traje de couro, e Tom, não gostando muito de caçar, também desistiu. "Mas da próxima vez que eu encontrar um rato", disse Tom, "eu o pegarei, não importa se ele tem rabo ou não."
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> 
Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). The Sandman's Hour: Stories for Bedtime. Publicado em 1916. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

David de Carvalho (Bentinho da Samambaia)


Cada um cai do cavalo como quer. Através de uma série de contos da roça, o autor, David de Carvalho, pretende mostrar algumas realidades estratificadas no quadro sócio-cultural de Minas Gerais, procurando captar, também, na temática, traços típicos do comportamento do montanhês, tais como o humor e a tristeza. 
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Indo para o Largo da Capela do Rosário, o Doutor Alonsinho caminha firme e prumado. Indo ao lado dele, meio encumbucado, o Bentinho da Samambaia ora coçava as costas, ora ajeitava a correia. De repente, ele tirou um envelope amarrotado do bolso traseiro da calça:

– Recebi hoje notícias do primo Florindo, que está bem de vida em São Paulo, só trabalhando como servente de pedreiro, mas não entendi o raio dos rabiscos dele, porque os garranchos parecem letras de médico. Está parecendo que ele escreveu assim: “Bentinho, partiu-se o pote no cimento do meio-fio, ô fim de mundo!”

O Doutor Alonsinho pegou o cartão:

– Por favor, deixe-me ver!

O Doutor Alonsinho correu os olhos nos dizeres do cartão:

– Bentinho, você está confundindo topografia com caligrafia e posto artesiano com parto cesariano. Você fugiu da escola? O que está escrito aqui é o seguinte: “Bentinho, participo-te o nascimento do meu filho, o Sigismundo.” Tinha razão o seu pai, o velho Agripino, quando recomendava a você que alisasse mais o banco na escola do Mestre Candinho.

O Bentinho da Samambaia coçou o rosto:

– É!… Deveras, o velho Agripino me recomendava isso. E também: – “Bento, se de tudo você vier um dia a pensar em deixar a lida da roça, então aprenda primeiro o ofício de pedreiro, ainda que não seja um pedreiro inteirado e sim um meia-colher, porque na reconstrução da Europa, depois de acabar a guerra, você vai ficar podre de rico.”

O Doutor Alonsinho franziu a testa:

– Bentinho, qual é o animal que faz cocô em forma de grão de café?

– Cabrito, uai!

– Em forma de bolinho do tamanho de um ovo?

– Cavalo, ora pois!

– E em forma de uma broa?

– Cuá! Só pode ser boi.

– E em que dia, mês e ano Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil?

– Ah! Isso lá eu vou saber, doutor?!

– Você só entende é de cocô mesmo! E fique sabendo que a pessoa que não aprende a escrita e a leitura torna-se desconfiada, a ponto de deixar passar a oportunidade de ganhar dinheiro.

O Bentinho da Samambaia mudou de assunto:

– Doutor, aquele de peito estufado que vai indo ali na frente, de chapéu de aba larga, lenço vermelho no pescoço e botas de cano como sanfona, é o Já Caiu. Hi-hi-hi!… Explico melhor, é o Lindolfinho das Cachebras, mas só é conhecido pelo apelido, desde certa vez num rodeio na cidade de Cláudio, com a tropa do Zé Capitão, fazendeirão lá das bandas de Divinópolis. Antes de montar na égua Pinga Fogo, o Lindolfinho das Cachebras virou para a assistência e acenou o chapelão de aba larga: – “Vou fazer esta égua pingar fogo de suor e dançar no compasso do estalo da minha tala.”

O Bentinho da Samambaia voltou a ajeitar a correia:

– Êta diaba de calça que não pára no lugar! A gente sunga, sunga, e não adianta. Ãh? E daí? Daí que o Lindolfinho das Cachebras caminhou pomposo para o meio do campinho onde a Pinga Fogo estava arreada, laçada, sugigada pelo Quinquim Barba e dois capatazes do Coronel Quinto Tolentino. Parecendo ter o rei na barriga, o Lindolfinho das Cachebras montou nela e ficou acenando o chapelão de aba larga para Deus e todo o mundo e contando farofa: – “Ah, eguinha mixuruca e pangaré, agora é que você vai conhecer um peão bamba!” Atrás de um funilão, o Múcio da Dona Quita animava o peão: – “O Zé Capitão oferece cinquenta contos de réis para o Lindolfinho das Cachebras, se ele conseguir segurar os pulos da Pinga Fogo. Fulano oferece tanto. Beltrano oferece tanto. Sicrano oferece tanto.” E o Múcio da Dona Quita anunciou com todo o rompante: – “Agora, vai montar na Égua Pinga Fogo o …” O Quinquim Barba e os dois capatazes soltaram a bicha e o Múcio da Dona Quita completou: – “Já caiu!”

O Bentinho da Samambaia enfiou a barra da camisa por dentro da calça:

– Enquanto o Lindolfinho estava batendo a poeira da roupa, cheguei perto dele: – “Você machucou?” Com cara de tatu que caiu da garupa, ele ficou me olhando com os olhos parados: – “Eu não e você?” Ora! Que pergunta mais estonteada. Então eu estava bancando o peão? Olhei sério para ele: – “Você deu uma pirueta muito esquisita. Achei até que você tivesse quebrado o pescoço.” Ele me encarou de cara fechada: – “Deixe de ser bobo, sô, porque cada um cai do cavalo como quer! E fique sabendo que, até para cair, o peão precisa de ter a sua destreza!” Deixei para lá. Daí que ele passou a ser conhecido só por Já Caiu.

Já passando em frente da Capela do Rosário o Bentinho da Samambaia tirou o chapéu de palha, fez o em-nome-do-padre e reajeitou a calça:

– Doutor Alonsinho, este “causo” puxou outro na minha ideia. Naquele tempo, eu costumava vir cá para o Arraial do Empanturrado no fim de semana. E ficava sapeando na alfaiataria do Dico. Como o Dico tinha sempre que dar umas saidinhas, eu ficava tomando conta da alfaiataria para ele. Até passar ferro de brasa nuns panos eu passava. Certo dia, lá estava eu, quando apareceu lá um viajante de tipo prosa, pândego e gorducho e me perguntou onde era o negócio do Vivico da Venda. Expliquei para ele e, de troça, recomendei que falasse gritado com o Vivico, porque ele era surdo que nem uma porteira. Na hora, até inventei um “causo” e contei para ele, que certa vez o Vivico, quando estava com a mulher perrengue e desenganada, estava xingando no mandiocal no fundo da horta da casa dele, porque uma porca tinha fuçado por lá. Disse até que encomendei ao Vivico para colocar uma peia ou forquilha como canga na fujona. E que, no outro dia, passando pelo mesmo lugar, lá estava de novo o Vivico. Que então perguntei como ia passando a comadre, a mulher dele. E ele, que por ser surdo que nem tiú, achou que eu estava perguntando pela porca, me respondeu: – “Não usei nem peia e nem forquilha. Preferi colocar a bicha no chiqueiro de engorda.”

O Bentinho da Samambaia tirou do bolso traseiro um lenço e passou na testa:

– Assim que o viajante saiu, passei em frente da venda do Vivico. Então, expliquei para ele que acabava de sair da alfaiataria um viajante procurando a venda dele. E recomendei ao Vivico que o mesmo era muito surdo e que conversasse gritado com ele. Fiquei imaginando a gritaria que os dois iam arrumar. Mais tarde, eu estava soprando atrás do ferro de brasa na alfaiataria do Dico, quando voltou o viajante gorducho, alegre e pândego e me apertou a mão: – “O senhor está de parabéns, porque, andando pelo arraial, só li letreiros escritos com erro: Bazar Ção Pedro, Pharmácia Bom Jezus…” O gorducho passou as palmas das mãos na barrigaça: – “Daí que voltei para a ospedaria, sem h mesmo e resolvi dar um prêmio de quinhentos mangos para o dono do letreiro que estivesse escrito corretamente. E o único que encontrei certo foi o do senhor. Portanto, a Alfaiataria Águia de Ouro está de parabéns. Então, aqui está o prêmio, a pelega.” Pensei comigo: – “O que ele está querendo é tirar desforra do trote, pois deve ter gritado tanto no ouvido do Vivico e o Vivico no dele, até que descobrissem a minha malasartice.” Virei para o viajante: – “Aqui mais aqui para o senhor! O senhor está querendo troçar comigo, porque o nome certo é Alfaiataria Agúia de Ouro.” Ele arregalou os olhos: – “Agulha?!” Fechei a cara para ele? – “Não. Agúia mesmo, porque cada um cai do cavalo como quer.”
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(David de Carvalho, ensaísta, contista, pesquisador. Itaúna/ MG)

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “São outros quinhentos”


A expressão “Outros quinhentos” tem origem numa prática legal da Península Ibérica. Antigamente, uma multa de 500 soldos (moeda de ouro na Roma antiga) era aplicada a quem injuriasse um nobre, cujo valor teria que ser pago para que o infrator pudesse merecer a absolvição. Porém, mesmo com o pagamento, se a ofensa fosse repetida, o reincidente teria que pagar outros 500 soldos, dizendo as autoridades que eram “Outros quinhentos”, e não aqueles já quitados, indicativo de que se tratava de nova culpa e outra penalidade, embora no mesmo valor pecuniário, pela repetição da injúria.  

Luís da Câmara Cascudo, historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista, escritor prolífero que viveu em Natal (RN), dedicando-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira, em seu “Locuções Tradicionais no Brasil”, confirma que se o condenado voltasse a cometer delito semelhante ao anterior, pagaria outros 500 soldos: “Compreende-se que outra qualquer vilta, vitupério sem razão, posterior à multa cobrada, não seria incluída na primeira. Matéria para novo julgamento. Outra culpa. Outro dever. Seriam, evidentemente, outros quinhentos”.

A partir dessa prática punitiva, chegou-se ao longo do tempo a essa conhecida expressão, cujo significado atual indica algo que é diferente, que refoge (evita) do senso comum, que representa uma nova situação, tendo como corolário consequências mais agravantes ou algo muito mais difícil. Basta exemplificar, para ser facilmente entendido: “Emprestar dinheiro em banco é fácil, mas pagar os juros que eles cobram, são outros quinhentos” …

O saudoso apresentador, ator, cantor, músico e compositor paulista Rolando Boldrin, um dos maiores divulgadores da vida interiorana, da cultura caipira e da música sertaneja, num dos programas televisivos em que contava seus “causus”, ofereceu outra explicação para a origem da expressão “São outros quinhentos”, tão histriônica quanto imaginativa. 

Explicou o artista que quando o padrão monetário no Brasil era o mil-réis, apareceu numa cidadezinha do interior um sujeito espertalhão, com o objetivo de aplicar um golpe para ganhar dinheiro fácil dos ingênuos moradores locais. Concebeu o pilantra e pôs em prática uma narrativa fantasiosa – a de que deixara aos cuidados do vigário da paróquia, homem insuspeito e confiável, a vultosa quantia de 500 mil-réis – enquanto ele se ausentaria durante certo tempo, em demorada viagem para outro estado. O religioso teria assumido, sob palavra de honra, o compromisso de lhe devolver o mesmo valor, quando um dia voltasse. Tudo papo furado, coisa de trapaceiro passado na casca do alho.

Concebido o golpe infame, o safado saiu alardeando para todo mundo essa história fantasiosa, justificando que a significativa quantia que deixaria sob a custódia do padre, ele a ganhara honestamente, pelo seu intenso e diuturno labor como caixeiro-viajante que lhe rendera polpudas comissões, mercê das vendas que realizara por toda aquela região.

Depois de propositadamente alardear tal fábula pelos lugares públicos de maior concentração de pessoas, o arguto trambiqueiro sumiu por meses, mas um dia finalmente voltou, com o óbvio intuito de rematar o golpe adrede preparado, tendo encontrado o sacerdote oficiando a missa de domingo na principal igreja da comunidade, que apinhada de gente anônima e dos figurões do lugar, assistia embevecida as exortações da homilia do eloquente presbítero.

Nem bem o pároco encerrou sua prédica, surge o espertalhão próximo do altar e perante uma plateia perplexa, incisivamente passou a exigir a devolução da quantia supostamente confiada ao clérigo, alegando urgência pois precisava viajar no dia seguinte, deixando-o atordoado e sem entender nada, limitando-se a jurar por todos os santos da Corte Celeste, que não guardara quantia nenhuma, nem dele nem de ninguém. 

– Claro que deixei os 500 mil-réis com o senhor, obtemperou o malandro aos gritos! E não adianta se fingir de inocente, pois aqui na cidade todo mundo sabe desse fato, asseverou o golpista sem nem tremer a cara.

Na igreja formou-se grande alarido, com alguns manifestando incredulidade e outros censurando a suposta velhacaria do padre, que imotivadamente se recusava a devolver o numerário que lhe fora confiado. A discussão seguiu acalorada, o padre alegando nada saber sobre o assunto e o trambiqueiro cobrando a pequena fortuna que afirmava ter deixado sob a sua guarda.

Foi quando surgiu no imbróglio uma terceira personagem – o rico e poderoso coronel do lugar, fazendeiro, chefe político influente e grande amigo do padre – que sensibilizado pela saia justa pela qual estava passando seu estimado amigo e querendo livrá-lo daquele descomunal constrangimento (até mesmo porque, homem vivido, já percebera toda a armação daquele refinado pilantra) interferiu bradando para o vigarista, com seu vozeirão de derrubar muro, que ele estava redondamente equivocado:

– O senhor está enganado! Não foi com o vigário que o senhor deixou os seus 500 mil-réis. Foi comigo, tá lembrado? Depois da missa passe na minha casa que eu vou lhe devolver tudo, lá a gente vai conversar direitinho, isso eu lhe garanto… Disse e deixou flutuando no ar a subjacente ameaça de dar uma peia naquele escroque, quando ele fosse receber a tal grana em sua residência.

Mas o embusteiro, pilantra escolado, daquele tipo que fareja dinheiro mesmo quando está constipado, percebendo que poderia tirar duplo proveito daquela situação, retrucou de bate pronto na presença dos fiéis que lotavam a igreja:

– Coronel, no momento só estou querendo receber os 500 mil-réis que ficaram com o padre. Aqueles que o senhor diz que eu deixei com o senhor, “São outros quinhentos…”.

Eis a segunda versão, tão improvável quanto divertida, da origem dessa expressão, utilizada quase diariamente, nas circunstâncias as mais inusitadas. Como, por exemplo, no tenso diálogo entre o guarda de trânsito e o motorista de um ônibus caquético, que trafegava com lanternas e faróis quebrados, excesso de passageiros e os pneus literalmente carecas.

Cioso de seu papel fiscalizador, o zeloso policial fez sinal para o motorista encostar, e com cara de pouquíssimos amigos exigiu o de sempre:

– Habilitação e os documentos do veículo!

– É pra já seu guarda, falou o chofer, mãos trêmulas em busca das credenciais solicitadas, guardadas num saco plástico no porta-luvas do mostrengo.

– Vocês estão tentando eleger outro Papa aí dentro desse ônibus?  

– Papa? Que Papa? Não estou entendendo nada…

– É que até agora só está saindo fumaça preta da descarga. Significa que o motor está desregulado, poluindo o meio ambiente e afetando a saúde pública. É infração grave, com multa e cinco pontos na carteira.  Como o coletivo está todo estropiado, vai ficar retido até ser feita toda a regularização…

– Pera aí seu guarda! Não faça isso comigo. Esse ônibus, mesmo detonado como está, é o meu ganha-pão. Se a papelada está toda em ordem, essa história de meio ambiente e saúde pública são outros quinhentos!… Dá pra gente conversar?…
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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