domingo, 13 de julho de 2025

Ficção Científica

 
Ficção científica (normalmente abreviado para SF, FC, sci-fi ou scifi) é um gênero da ficção especulativa, que normalmente lida com conceitos ficcionais e imaginativos, relacionados ao futuro, ciência e tecnologia, e seus impactos e/ou consequências em uma determinada sociedade ou em seus indivíduos, desenvolvido no século XIX. Conhecida também como a "literatura das ideias", evita utilizar-se do sobrenatural, tema mais recorrente na Fantasia, baseando-se em fatos científicos e reais para compor enredos ficcionais.

A ação pode girar em torno de um grande leque de possibilidades como: viagem espacial, viagem no tempo, viagem mais rápida que a luz, universos paralelos, mudanças climáticas, totalitarismo e/ou vida extraterrestre.

Definição

Devido aos seus vários subgêneros e temas tratados, ficção científica não é fácil de definir. Muitos autores, ao longo do tempo, tentaram definir de maneira sucinta o que a ficção científica é e faz. O escritor Mark C. Glassy definiu que ficção científica é como pornografia: não sabemos o que é com certeza, até que vemos uma.

Um dos primeiros a utilizar o termo ficção científica, foi o criador da revista Amazing Stories, Hugo Gernsback:

“Por cientificação, eu falo sobre aquele tipo de romance de Jules Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe, um romance charmoso, entrelaçado com fatos científicos e visões proféticas.”

Uma das definições mais completas foi feita por Rod Serling, criador da série Além da Imaginação.

“Fantasia é o impossível tornado provável. Ficção científica é o improvável tornado possível.”

É consenso entre escritores e leitores, que a ficção científica deva conter uma extrapolação cuidadosa e bem-informada de fatos, princípios ou tendências científicas, mesmo que a ciência apresentada nos enredos seja irreal, ainda não exista ou seja improvável. A ciência não precisa ser da área de Exatas ou Biológicas, podendo conter análises e estruturas antropológicas, sociológicas e filosóficas para se basear. A obra precursora do gênero, o romance de Mary Wollstonecraft Shelley, Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818), foi o primeiro a utilizar-se da separação entre ciência e misticismo para aplicar em um enredo. Outros como O Último Homem (1826), ou a obra de Robert Louis Stevenson, O Médico e o Monstro (1886) são também considerados ficção científica. A ausência deste componente científico classificaria obras em Fantasia ou Horror, como enquanto Drácula, de Bram Stoker (1897).

Há, evidentemente, muitos tipos de ficção científica. Os dois principais tipos são a ficção científica soft como por exemplo as séries televisivas Star Trek (Jornada nas Estrelas), Battlestar Galactica (Galáctica: batalha estelar) e Doctor Who, e também a ficção científica hard como por exemplo os filmes 2001: Uma Odisseia no Espaço, Blade Runner e Solaris. Há também alguns filmes que se utilizam de temas recorrentes na ficção científica embora tenham mais características do gênero fantasia, como por exemplo a série de filmes Star Wars (Guerra nas estrelas), classificada como fantasia científica.

Características

A ficção científica se baseia em grande parte em escrever sobre mundos, futuros e cenários alternativos possíveis e de maneira racional. Diferentemente da fantasia, no contexto narrativo da FC encontramos elementos imaginários, inspirados em fatos reais ou do passado, que estão cientificamente estabelecidos ou postulados por leis e princípios científicos, ainda que o enredo permaneça imaginativo.

Uma boa parte da ficção científica se baseia no conceito da suspensão de descrença, que possibilita ao leitor em acreditar nas explicações, soluções e postulados ficcionais baseados em ciência que estão em uma determinada obra.

Alguns elementos tratados com frequência na ficção científica são:

– Princípios científicos novos ou que contradizem as leis da física, como viagem no tempo ou wormholes (buracos de minhoca).

– Personagens alienígenas, mutantes, robóticos, holográficos, androides, replicantes, bem como personagens que desafiem a evolução humana ou a própria definição do que significa ser humano.

– Universos paralelos e outras dimensões e a viagem entre nossa realidade e estes outros lugares.

– Tempo estabelecido no futuro, em linhas do tempo alternativas ou no passado histórico que contradizem os fatos históricos e arqueológicos conhecidos e estabelecidos.

– Cenários baseados no espaço, em outros corpos celestes ou em viagens inter e extrassolares.

– Cenários baseados no interior da crosta do planeta Terra ou em outros planetas.

– Tecnologia plausível como armas de laser, teletransporte, computadores humanoides e/ou conscientes.

– Diferentes ou novos sistemas políticos: utopias, distopias, pós-apocalipse.

Habilidades paranormais, como telepatia, telecinese e controle da mente, baseada em princípios científicos, ficcionais ou não.

HISTÓRIA

Proto-ficção científica

Os antecedentes da ficção científica podem ser traçados até um momento em que mitologia, religião, ou misticismo e história estavam intimamente entrelaçados e não havia ainda a ciência cartesiana tal como a conhecemos hoje e que foi e ainda é utilizado por autores de ficção científica ao compor seus enredos. História verdadeira, de Luciano de Samósata, e considerada a obra mais antiga que pode ser chamada de "proto-ficção científica", sido escrita no século II d.C., que contém muitos temas que caracterizam a ficção científica moderna, como viagem a outros mundos, formas de vida extraterrestres, vida artificial e guerra interplanetárias. Apesar de ser considerada por alguns como o primeiro livro de ficção científica, ele foi escrito em um contexto onde a ciência moderna não existia, sendo assim realocado no grupo de obras precursoras. Algumas histórias como o Conto do Cortador de Bambu, alguns contos de As Mil e Uma Noites, do século X e o conto do Teólogo Autodidata, de Ibn al-Nafis, do século XIII também são obras precursoras.

Era da Razão

Com o início do desenvolvimento da ciência e a construção da chamada Era da Razão, obras foram desenvolvidas por Johannes Kepler, com seu livro Somnium (1620–1630), Francis Bacon com A Nova Atlantis (1627), Cyrano de Bergerac, com História cômica dos estados e impérios da lua (1657) e Os Estados e Impérios do Sol (1662), e Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle-upon-Tyne, com O mundo em chamas (1666).

Século XIX

Com o desenvolvimento, ao longo do século XIX do romance como forma literária e com o surgimento de inovações tecnológicas como a eletricidade e o telégrafo e novas formas de transporte, e avanços nas áreas de biologia, física, química e astronomia, os livros de Mary Shelley Frankenstein (1818) e O último homem (1826) estabeleceram as bases do que viriam a ser chamados os livros de ficção científica deste século em diante, como argumento Brian Aldiss. Outros autores, como H. G. Wells e Jules Verne criaram livros que também se tornaram extremamente populares em várias camadas da sociedade. Em A Guerra dos Mundos (1898), H. G. Wells descreve uma invasão marciana, no final da era vitoriana, na Inglaterra, onde os invasores usavam máquinas (tripods) e um avançado arsenal bélico. No final do século XIX, o termo "romance científico" foi usado na Inglaterra para designar a ficção científica e continuou em uso no começo do século XX por autores como Olaf Stapledon.

Destacam-se também os livros dos astrônomos Percival Lowell e Camille Flammarion, publicados entre o final do século XIX e início do século XX que conjecturavam a existência de dos canais de Marte e de vida extraterrestre, que inspiraram diversos autores.

Na América Latina, os primeiros exemplos são Páginas da história do Brasil, escritas no ano 2000 de Joaquim Felício dos Santos, uma sátira política publicada entre 1868 a 1872 no jornal O Jequitinhonha, em 1875, surgem três obras em países diferentes: El maravilloso viaje del Señor Nic-Nac, de Eduardo Holmberg (Argentina), O Doutor Benignus, de Augusto Emílio Zaluar (Brasil) e História de un Muerto, de Francisco Calcagno (Cuba).

O que desenvolveu e impulsionou a ficção científica no século XX foram as revistas pulp, que ajudaram a criar alguns dos principais autores de ficção científica do século, influenciados pelo fundador da revista Amazing Stories, Hugo Gernsback. Em 1905, Roquia Sakhawat Hussain publicou o conto O Sonho da Sultana, na revista The Indian Ladies Magazine, ficção científica feminista envolvendo uma utopia onde os papéis de gênero foram invertidos. Em 1912, Edgar Rice Burroughs publicou Uma Princesa de Marte, a primeira de uma longa série livros Barsoom, situados em Marte e tendo John Carter como protagonista.

Em 1920, Karel Čapek escreveu R.U.R. (Rossumovi Univerzální Roboti), peça de teatro onde a palavra "robô" surge pela primeira vez. A palavra robô (derivada do tcheco robota = "trabalho forçado"), foi criada por Josef Čapek, irmão do autor. Em 11 de fevereiro de 1938, uma adaptação de 35 minutos da peça R.U.R., transmitida pela BBC, foi a primeira obra de ficção científica a ser exibida na televisão.

Em 1928, Philip Francis Nowlan publicou seu aclamado Armageddon 2419 A.D., na Amazing Stories, trazendo o personagem Buck Rogers, que gerou quadrinhos que rapidamente fizeram sucesso entre o público. Quando Hugo Gernsback publicou a primeira revista pulp de ficção científica, Amazing Stories, em 1926, permitiu que a seção de cartas divulgasse endereços de leitores, que passaram a trocar correspondências, os fãs passaram a criar suas próprias histórias publicando em revistas independentes, chamadas de fanzine, o primeiro fanzine reconhecido é The Comet, do Science Correspondence Club de Chicago, A primeira versão do Superman (um vilão careca) apareceu em 1933 na terceira edição do fanzine Science Fiction: The Advance Guard of Future Civilization, de Jerry Siegel e Joe Shuster, num conto ilustrado chamado O Reinado do Superman, tempo depois, foi reformulado como um super-herói de histórias em quadrinhos.

Em 30 de Outubro de 1938, Orson Welles narrou o rádio-teatro "A Guerra dos Mundos" dramatizando a invasão alienígena de Marte na Terra. A dramatização causou pânico em massa, já que muitos ouvintes do rádio acreditaram tratar-se de uma invasão real.

No final dos anos 1930, John W. Campbell tornou-se o editor da revista Astounding Science Fiction (Ficção Científica Surpreendente), gerando uma grande massa de leitores e escritores, principalmente em Nova Iorque. O grupo dos chamados futuristas incluíam Isaac Asimov, Damon Knight, Donald A. Wollheim, Frederik Pohl, James Blish, Judith Merril e vários outros, como Robert A. Heinlein, Arthur C. Clarke, Olaf Stapledon, e A. E. van Vogt. 

Fora da influência editorial de Campbell, outros autores vinham se destacando, como Ray Bradbury, Stanisław Lem e Yevgeny Zamyatin. O trabalho de John Campbeel é considerado o começo da Era de Ouro da ficção científica, caracterizada principalmente por histórias de ficção científica que celebram o progresso e o avanço científico. Esta era durou até o pós-Segunda Guerra Mundial e seus avanços tecnológicos e científicos, com o surgimento de novas revistas, como a Galaxy, editada por H. L. Gold, e com novos autores escrevendo enredos com ênfase nas ciências sociais ao invés das ciências exatas.

Anos 1950 em diante

No início dos anos 1950, escritores como William S. Burroughs, inauguraram a chamada Geração beat, o embrião do movimento hippie. Durante as duas décadas seguintes, muitos escritores ousados exploraram novas fronteiras ou fronteiras pouco navegadas pelos escritores anteriores, como Ursula K. Le Guin, Samuel Delany, Octavia Butler, Frank Herbert, Harlan Ellison, Roger Zelazny, enquanto que na Inglaterra, muitos escritores ficaram conhecidos como a chamada New Wave, por seus graus de experimentação, em forma, contexto e sensibilidade artística. Em 1950, Isaac Asimov criou as Três Leis da Robótica com o propósito de normatizar o comportamento dos robôs dotados de inteligência artificial, impedindo-os da fazerem qualquer mal aos humanos. As Três Leis surgiram no livro I, Robot, publicado naquele mesmo ano, enquanto o termo "inteligência artificial" foi criado pelo cientista da computação John McCarthy (1927-2011) em 1956.

Nos anos 1980, o cyberpunk quebrou a longa tradição otimista de grande parte da ficção científica, ao trazer um novo olhar sobre o gênero, sobre sociedade e sua interação com ciência e tecnologia, em especial através das obras de William Gibson. Visões distópicas do futuro passaram a se tornar bastante comuns, em especial com os trabalhos de Philip K. Dick, como Androides sonham com ovelhas elétricas? e Podemos lembrar disso para você no atacado, que viriam a ser adaptadas para o cinema como Blade Runner e Rechamada total. A franquia Star Wars ajudou a expandir o interesse e autoras como C. J. Cherryh escreveram obras com riqueza de detalhes sobre a vida alienígena, com desafios científicos que inspiraram uma geração inteira de autores.

O surgimento de uma maior preocupação com o meio ambiente e com o planeta, as implicações para a sociedade do desenvolvimento da internet e a expansão da tecnologia da informação, biotecnologia e nanotecnologia, bem como um interesse em sociedades pós-Guerra Fria a partir dos anos 1990, alimentou toda uma geração de autores, como Neal Stephenson, Lois McMaster Bujold e sua Vorkosigan Saga. 

O retorno de Star Trek para a televisão, com Star Trek: Nova Geração em 1987, trouxe uma nova torrente de séries de ficção científica para a televisão, como Deep Space Nine, Voyager, Enterprise e Babylon 5, grandes influenciadoras do gosto do público fã. 

Seguindo o sucesso de séries derivadas, a década de 1990 viu surgir Stargate SG-1, em 1997, derivada do filme de 1994, que durou dez temporadas, com 214 episódios, uma das mais longas da televisão, superando Arquivo X como a mais longa do gênero. Temas como as rápidas mudanças propiciadas pela tecnologia se cristalizaram em torno do conceito da singularidade tecnológica, popularizada pelo livro Marooned in Realtime (Abandonado em tempo real), de Vernor Vinge, trabalhada por outros autores nos anos seguintes.

Uma das características únicas do gênero é a sua forte comunidade de fãs, da qual muitos autores também fazem parte. Existem grupos locais de fãs um pouco por todo o mundo que fala inglês, e também no Japão, Europa e em outros locais. É frequente que estes grupos publiquem os seus próprios trabalhos. Existem muitas revistas de fãs (e também algumas profissionais) que se dedicam apenas a informar o fã de ficção científica de todas as vertentes do gênero. Os principais prêmios da ficção científica, os Prêmios Hugo, são atribuídos pelos participantes da convenção anual Worldcon, que é organizada quase exclusivamente por fãs voluntários.

Fontes:

sábado, 12 de julho de 2025

Asas da Poesia * 49 *


 Trova de
WELLINGTON FREITAS
Caicó/RN

Há um relógio em cada esquina
marcando o tempo atual;
mas não marca quem destina,
nosso destino final.
= = = = = =

Poema de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

Agradecimento

Feldman é um vencedor 
um mestre da alegria, 
um Poeta Trovador, 
um fazedor de Poesia. 
Não há em todo universo 
melhor fazedor de verso 
pois é um dom que ele traz! 
Pra Feldmam, em nada eu ganho, 
ele é grande no tamanho 
e nas Poesias que Faz.
= = = = = = = = =  

Trova de
ARI SANTOS CAMPOS
Balneário Camboriú/SC

Meus bons anos se passaram
com a leitura aprendi...
Hoje as letras se apagaram
mas o saber não perdi.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Chave do tempo

Tarde de inverno,
Imóvel no arame
Ele continua
O prendedor de roupas
Silencia-se
Sem a companhia
Do lençol ou da camisa branca...
Em sua geometria
Ostenta as marcas
Do sol, da chuva
E das noites frias...
A ferrugem
Com seus tons cobriu seu metal,
E a boa parte de sua madeira
Foi tingida com a passagem
Do pôr do sol e do amanhecer
Prendendo com suas pontas
Lembranças de ontens -
Admirável sua resistência,
Quase, dobra-se à rotina
Das horas, dias e anos -
Mas, a essência permanece
Misteriosa
Chave do Tempo...
= = = = = = 

Poetrix de
BETO QUELHAS
São Paulo/SP

arteiro

o vento brinca escondendo
na cortina dos seus cabelos
os seus olhos em venenos
= = = = = =

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Nunca a casa ficou só de tão vazia
(Rui Balsemâd da Silva in "Meu grito meu canto")

Nunca a casa ficou só de tão vazia
Como nesse dia trinta de Agosto
Quando os olhos te fechei, e o teu rosto
Ficou da mesma cor da cama fria.

A tua alma pura é que aquecia
Esta tua casa onde tinhas posto
Coisas poucas, pequenas, mas com gosto
Com esse amor que à vida te prendia.

Mas da vida, sem ódios, te esvaíste
E nesse dia negro tu partiste
Para onde pertencias; o Além.

Regressaste ao lugar de onde vieste
E já que aos outros tudo de ti deste
Daqui nada levaste, ó minha Mãe! 
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

A lua, em passo indeciso,
muda o andante da sonata,
pondo pausas de improviso
no pentagrama de prata.
= = = = = =

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Pecador

Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,

Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Ninguém calcula essa dor 
no coração dos mortais… 
Quando a saudade é de amor, 
a dor é cem vezes mais !
= = = = = = 

Setilha e Trovas de
NEMÉSIO PRATA 
(Fortaleza/CE) 
JOSÉ FELDMAN 
(Floresta/PR)

Diálogo sem Pé nem Cabeça

Eu pensei por tanto tempo 
no tempo sem ter um tempo 
pra pensar no tanto tempo 
que pensei: passei do tempo... 
e pensar que o tempo tem 
tempo para quem não tem 
tempo de pensar no tempo!
Nemésio Prata

Amigo Nemésio 
Mas o tempo não para por aí... se tiver algum com pé quebrado me enforco num pé de alface...rsrsrs 

Passa o tempo, tanto tempo... 
passa o tempo por quem tem 
um tempo sem contratempo, 
sobre um tempo que não tem. 

Se para agora há mais tempo, 
qual o tempo você tem? 
Pois já se faz tanto tempo, 
que um tempo muitos não têm. 
José Feldman

Um tempo de pé quebrado 
não é tempo, é contratempo; 
gostei do refrão dobrado... 
igual não vi, faz é tempo! 

Quanto a morrer enforcado 
num pé de alface, essa é boa, 
ruim é ficar pendurado; 
assim você me magoa!
Nemésio Prata

Mas se eu ficar pendurado, 
a fome pode bater... 
com tanto alface do lado, 
não terei quando morrer... 

Daí eu terei mais tempo, 
para o tempo que se tem, 
então será um passatempo, 
que o tempo tem... e não tem.
José Feldman

Do Nemésio – A minha última trova estava com 8, corrigi a tempo.

Se não fosse a corrigenda 
feita, de imediato e a tempo, 
era "forca" na merenda, 
sem alface, ao meio-tempo!
Nemésio Prata
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Partir é quase morrer... 
É deixar na despedida 
um pouco do próprio ser 
e muito da própria vida…
= = = = = = 

Poema de
RENATO RUSSO
(Renato Manfredini Júnior)
Rio de Janeiro/RJ, 1960 – 1996

Tempo Perdido

Todos os dias quando acordo, 
Não tenho mais o tempo que passou 
Mas tenho muito tempo 
Temos todo o tempo do mundo. 

Todos os dias antes de dormir, 
Lembro e esqueço como foi o dia 
"Sempre em frente, 
Não temos tempo a perder". 

Nosso suor sagrado 
É bem mais belo que esse sangue amargo 
E tão sério 
E selvagem. 

Veja o sol dessa manhã tão cinza 
A tempestade que chega é da cor dos teus 
Olhos castanhos 
Então me abraça forte 
E diz mais uma vez 
Que já estamos distantes de tudo 
Temos nosso próprio tempo. 

Não tenho medo do escuro, 
Mas deixe as luzes acesas agora, 
O que foi escondido é o que se escondeu, 
E o que foi prometido, 
Ninguém prometeu. 

Nem foi tempo perdido; 
Somos tão jovens.
= = = = = = 

Trova de
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

O tempo vem desfazendo
a família dia a dia;
hoje vivemos fazendo
sala pra tecnologia.
= = = = = = 

Hino de
FLORES DA CUNHA/ RS

Envolvido por um sonho
Sua Itália deixou,
Enfrentando a dor nos mares,
O imigrante aqui chegou;

E da serra indomável,
A videira se adonou,
Sendo mastro da bandeira
De uma história que ficou.

Jorra vinho, giram taças
Espumantes de prazer,
A brindar Flores da Cunha,
Terra do Galo e do bem-viver.

A semente é lançada
Pela mão do agricultor,
Outra mão mais delicada
Faz a arte do sabor.

No trabalho da madeira
Nascem jóias de artesão;
As agulhas trançam malhas
Como pautas de canção.

Uma torre imponente
Representa o vigor
De um povo religioso
Alicerçado em seu labor.

As cascatas, que parecem
Espumantes naturais,
Também lembram tantas lágrimas
Dos bravos ancestrais.
= = = = = = = = =  

Haicai de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

Vento de Maio

Risco branco e teso
que eu traço a giz, quando passo.
Meu cigarro aceso.
= = = = = =

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Sonho de beija-flor

Beija-flores são almas flutuando
em busca de um amor plasmado em flor.
Em volteios inquietos ao sabor,
um só, se afasta, se aproxima olhando...

No suave bailado ao seu amor,
em cuidados atentos vai levando
a ternura distribuída quando,
em doces toques vai colhendo olor.

O sonho que o fascina enche-o de graça
Nesse momento de ternura abraça
com plenitude, comunhão, calor.

E o beija-flor enamorado andeja
de selinho em selinho busca, almeja
o etéreo sonho de levar sua flor.
= = = = = = = = =  

Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/ SP

O passado é intrigante! 
Ontem mesmo era presente… 
Durou por algum instante 
e esvaiu-se de repente.
= = = = = =

Soneto de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Soneto a Cora Coralina – In Memoriam 

Poesia simples, plena de filosofia,
de gente humilde da cidade e do interior,
que só nos trouxe tanta vida e tanto amor,
colhidos no lutar no afã do dia-a-dia...

Viveu a transmitir sua sabedoria,
na qual não faltaram as pitadas de dor,
mas momentos também de jovem alegria,
em que desenvolveu seu talento de humor...

Foi Cora Coralina, a poetisa exemplar,
cuja existência de noventa e cinco anos,
quase um século de conhecimento audaz...

Seus versos vão viver por longo tempo, a dar
uma bênção sublime aos viventes humanos,
porque ela foi feliz, sempre pregando a paz…
= = = = = = = = =

Quadra Popular de
Ouro Fino/MG

Quando o loureiro der baga
e o loureiro der cortiça,
então te amarei, meu bem,
se não me der a preguiça.
= = = = = = = = =  

Dobradinha Poética (trova e soneto) de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Fruta da Semente

Não meças nela o trabalho,
pois colheita é contingente,
mas quanto, de orvalho a orvalho,
tu já plantaste… em “semente”…

De sol a sol, firmando as mãos no arado,
suor pingando, ao solo se entregava…
– Hoje, um trabalho rude e ultrapassado
do lavrador, que a terra cultivava.

Com grande afinco e sempre atarefado,
fazia os sulcos, com as mãos semeava
e, esperançoso a capinar, cansado,
o agricultor, temente a Deus, rezava…

Pedia chuva para aquela empreita,
o pensamento firme na colheita,
depois que via germinando o grão…

E desejava, então, ardentemente,
ver pão na mesa, fruto da semente,
que enverdecera todo aquele chão!
= = = = = =

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Garota que, muitas vezes,
com jantares se tapeia,
vai, durante nove meses,
“chorar... de barriga cheia!”
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG
São Fidélis/RJ

Busca

Traço na tábua a trilha da traça.
Tiro da tira um tanto de nada.
Fito na foto a fita que enfeita,
O filme perfeito de um conto de fada.

Fico atento focando no trono,
O rato roendo a roupa do rei.
Vejo ao relento a força da lei,
Perco a esperança, o sonho, o sono!

Sinto na alma um quê de saudade,
Choro sozinho o sonho perdido,
Vejo o passado morto e partido.
De mim sinto pena, dó, piedade!

Lanço o laço em busca do nada.
Sinto o horizonte mais longe que tudo.
Perco o caminho, o rumo, a estrada,
Caio na poça de um poço bem fundo.

Busco na fé a força do forte.
Conto o tempo em cada segundo.
Procuro na bússola a reta, o norte,
Acho você: meu mundo, meu tudo!
= = = = = = = = =  

Poetrix do
RICARDO INGENITO ALFAYA
Rio de Janeiro/RJ

porcelana chinesa

Luz na água do chá
O rosto de um monge
Dentro da xícara
= = = = = = = = =  

Poema de
ANA LUÍSA AMARAL
Lisboa/Portugal

Espaços

 As nuvens não se rasgaram
nem o sol: só a porta
do meu quarto

 A abrir-se noutras
portas dando para outros
quartos e um corredor ao fundo

 Não havia janelas nem
silêncios: sinfonias por dentro
a rasgar o silencio

 A porta do meu quarto
já nem porta: madeiramento
para o fogo
= = = = = = = = =  

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

– Aceitas dar-me os deleites 
da próxima contradança?... 
– Aceito, desde que aceites 
não me apertar contra a pança! 
= = = = = = = = =  

Poema de
MARIA LUÍZA WALENDOWSKY
Brusque/SC

Vidas II

Vidas, que se cruzam,
Que em seus trilhares
se confundem,
num misto de alegrias,
tristezas...
companheirismo e confidências.

Vidas, que ao longo do tempo,
criam raízes em nossos corações...
que ao se depararem com intempéries,
deixam cicatrizes... apenas!

Vida, que Deus nos presenteia...
e basta um segundo,
um instante,
para se entrelaçar
olhos,
 alma...
e coração!
= = = = = = = = = 

Júlia Lopes de Almeida (A caolha)

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.


O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora…

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre:

– Eu tenho nome!

Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, instruídas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

– Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

– Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas pouco a pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

– Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.

Ao princípio pensava: – É o pudor.

Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor se voltou para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente…

Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

– Limpe a cara, mãe…

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

– Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

– Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!

– E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

– Porque não vale a pena; nada se remedia…

– Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.

A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

– Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

– Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!

– Que verdade, madrinha?

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

– O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

– Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.

– Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

– Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

– Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!
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JÚLIA LOPES DE ALMEIDA nasceu em 1862, no Rio de Janeiro. Fixou residência em Campinas, onde aos 19 anos, publicou seu primeiro texto, no jornal A Gazeta de Campinas, por incentivo do pai, que descobrira que a filha escrevia às escondidas. Mais tarde, em 1884, começou a escrever para o periódico O País. Dois anos depois, foi viver em Portugal, onde publicou, em 1887, o seu primeiro livro, Contos infantis, em coautoria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira (1850-1923). Nesse país, ela se casou com o escritor português Filinto de Almeida. Em 1888, de volta ao Brasil, publicou, em forma de folhetim, na Tribuna Liberal, seu primeiro romance — Memórias de Marta. Seus textos faziam reflexões, principalmente, acerca da condição da mulher na sociedade da época. A romancista é considerada, por alguns estudiosos, como uma feminista, pois defendia a educação para as mulheres, o divórcio e o direito ao voto, além de refletir sobre o lugar da mulher no campo artístico. Assim, no início do século XX, a escritora experimentou a fama devido a seus textos e suas palestras. Foi uma das fundadoras da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Já em 1925, foi para a França, onde residiu até 1931. Foi a única mulher que participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, inaugurada em 1897. No entanto, a escritora não ocupou nenhuma cadeira na instituição, já que muitos de seus colegas foram contra a presença de mulheres nas sessões da ABL. Faleceu em 1934, no Rio de Janeiro. Foi esquecida pela crítica especializada, sendo redescoberta só a partir dos anos 1980. 

Fontes
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. Publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.  
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