quinta-feira, 31 de maio de 2012

Machado de Assis (O Anjo das Donzelas)


Cuidado, caro leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.

A esta notícia o leitor estremece e hesita. É naturalmente um homem de bons costumes, acata as famílias e preza as leis do decoro público e privado. É  também provável que já tenha deparado com alguns escritos, destes que levam aos papéis públicos certas teorias e tendências que melhor fora nunca tivessem saído da cabeça de quem as concebeu e proclamou. Hesita e interroga a consciência se deve ou não continuar a ler as minhas páginas, e talvez resolva não prosseguir. Volta a folha e passa a coisa melhor.

Descanse, leitor, não verá neste episódio fantástico nada do que se não pode ver à luz pública. Eu também acato a família e respeito o decoro. Sou incapaz de cometer uma ação má, que tanto importa delinear uma cena ou aplicar uma teoria contra a qual proteste a moralidade.

Tranqüilize-se, dê-me o seu braço, e atravessemos, pé ante pé, a soleira da alcova da donzela Cecília. Há certos nomes que só assentam em certas criaturas, e que quando ouvimos pronunciá-los como pertencentes a pessoas que não conhecemos, logo atribuímos a estas os dons físicos e morais que julgamos inseparáveis daqueles. Este é um desses nomes. Veja o leitor se a moça que ali se acha no leito, com o corpo meio inclinado, um braço nu escapando-se do alvo lençol e tendo na extremidade uma mão fina e comprida, os cabelos negros, esparsos, fazendo contraste com a brancura da fronha, os olhos meio cerrados lendo as últimas páginas de um livro, veja se aquela criatura pode ter outro nome, e se aquele nome pode estar em outra criatura.

Lê, como disse, um livro, um romance, e apesar da hora adiantada, onze e meia, ela parece estar disposta a não dormir sem saber quem casou e quem morreu.

Ao pé do leito, sobre a palhinha que forra o soalho, estende-se um pequeno tapete, cuja estampa representa duas rolas, de asas abertas, afagando-se com os biquinhos. Sobre esse tapete estão duas chinelinhas, de forma turca, forradas de seda cor-de-rosa, que o leitor jurará serem de um despojo de Cendrilon. São as chinelas de Cecília. Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé fantástico, imperceptível, impossível; e examinando bem pode-se até descobrir, entre duas pontas do lençol mal estendido, a ponta de um pé capaz de entusiasmar o meu amigo Ernesto C..., o maior admirador dos pés pequenos, depois de mim... e do leitor.

Cecília lê um romance. É o centésimo que lê depois que saiu do colégio, e não saiu há muito tempo. Tem quinze anos. Quinze anos! é a idade das primeiras palpitações, a idade dos sonhos, a idade das ilusões amorosas, a idade de Julieta; é a flor, é a vida, e a esperança, o céu azul, o campo verde, o lago tranqüilo, a aurora que rompe, a calhandra que canta, Romeu que desce a escada de seda, o último beijo que as brisas da manhã ouvem e levam, como um eco, ao céu.

Que lê ela? Daqui depende o presente e o futuro. Pode ser uma página da lição, pode ser uma gota de veneno. Quem sabe? Não há ali à porta um índex onde se indiquem os livros defesos e os lícitos. Tudo entra, bom ou mau, edificante ou corruptor, Paulo e Virgínia ou Fanny. Que lê ela neste momento? Não sei. Todavia deve ser interessante o enredo, vivas as paixões, porque a fisionomia traduz de minuto a minuto as impressões aflitivas ou alegres que a leitura lhe vai produzindo.

Cecília corre as páginas com verdadeira ânsia, os olhos voam de uma ponta da linha à outra; não lê; devora; faltam só duas folhas, falta uma, falta uma lauda, faltam dez linhas, cinco, uma... acabou.

Chegando ao fim do livro, fechou-o e pô-lo em cima da pequena mesa que está ao pé da cama. Depois, mudando de posição, fitou os olhos no teto e refletiu. Passou em revista na memória todos os sucessos contidos no livro, reproduziu episódio por episódio, cena por cena, lance por lance. Deu forma, vida, alma, aos heróis do romance, viveu com eles, conversou com eles, sentiu com eles. E enquanto ela pensava assim, o gênio que nos fecha as pálpebras à noite hesitou, à porta do quarto, se devia entrar ou esperar. Mas, entre as muitas reflexões que fazia, entre os muitos sentimentos que a dominavam, alguns havia que não eram de agora, que já eram velhos hóspedes no espírito e no coração de Cecília.

Assim que, quando a moça acabou de reproduzir e saciar os olhos da alma na ação e nos episódios que acabara de ler, voltou-lhe o espírito naturalmente para as idéias antigas e o coração palpitou sob a ação dos antigos sentimentos. Que sentimentos, que idéias seriam essas? Eis a singularidade do caso. De há muito tempo que as tragédias do amor a que Cecília assistia nos livros causavam-lhe uma angustiosa impressão. Cecília só conhecia o amor pelos livros. Nunca amara. Do colégio saíra para casa e de casa não saíra para mais parte alguma. O pressentimento natural e as cores sedutoras com que via pintado o amor nos livros diziam-lhe que devia ser uma coisa divina, mas ao mesmo tempo diziam-lhe também os livros que dos mais auspiciosos amores pode-se chegar aos mais lamentáveis desastres. Não sei que terror se apoderou da moça; apoderou-se dela um terror invencível. O amor, que para as outras mulheres apresenta-se com aspecto risonho e sedutor, afigurou-se a Cecília que era um perigo e uma condenação. A cada novela que lia mais lhe cresciam os sustos, e a pobre menina chegou a determinar em seu espírito que nunca exporia o coração a tais catástrofes.

Provinha este sentimento de duas coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da natureza das novelas que lhe davam para ler. Se nessas obras ela visse, ao lado das más conseqüências a que os excessos podem levar, a imagem pura e suave da felicidade que o amor dá, não se teria de certo apreendido daquele modo. Mas não foi assim. Cecília aprendeu nesses livros que o amor era uma paixão invencível e funesta; que não havia para ela nem a força de vontade nem a perseverança do dever. Esta idéia calou no espírito da moça e gerou um sentimento de apreensão e de terror contra o qual ela não podia nada, antes se tornara mais impotente à medida que lia uma nova obra da mesma natureza.

Este estrago moral completava-se com a leitura da última novela. Quando Cecília levantou os olhos para o teto tinha o coração cheio de medo e os olhos traduziam o sentimento do coração. O que sobretudo a atemorizava mais era a incerteza que ela tinha de poder escapar à ação de uma simpatia funesta. Muitas das páginas que lera diziam que o destino intervinha nos movimentos do coração humano, e sem poder discernir o que teria de real ou de poético este juízo, a pobre mocinha tomou ao pé da letra o que lera e confirmou-se nos receios que nutria de muito tempo.

Tal era a situação do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma igreja que ficava a dois passos da casa bateu meia-noite. O som lúgubre do sino, o silêncio da noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às suas apreensões.

Procurou dormir para fugir às idéias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar descanso ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma dessas insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia inteiro.

De repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e impossível de descrever. Andava sem que a esteira do chão rangesse sob os passos. Cecília fitou os olhos na visão e não pôde mais desviá-los. A visão chegou-se ao leito da donzela.

— Quem és tu? perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranqüila e os olhos vivos e alegres diante da figura desconhecida.

— Sou o anjo das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem música, mas um som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras como se executasse uma sinfonia do outro mundo.

— Que me queres?

— Venho em teu auxílio.

— Para quê?

O anjo pôs as mãos no peito de Cecília e respondeu:

— Para salvar-te.

— Ah!

— Sou o anjo das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as mulheres que atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só gota do óleo celeste com que se venera o Deus menino.

— Sim?

— É verdade. Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico ante o qual recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?

— Quero.

— Queres que com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna virgindade?

— Quero.

— Queres que eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que podem atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que receberam do berço?

— Quero.

— Prometes que nunca, nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer que sejam as contingências da vida, abençoarás a tua solidão?

— Quero.

— Pois bem! Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes entrar agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é a felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!

E dizendo isto a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um sorriso de angelical suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias perenes que o anjo lhe prometia.

— Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes. Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida. E dizendo estas palavras a visão desapareceu.

A alcova ficou cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de anjos.

No dia seguinte Cecília acordou com o anel no dedo e a consciência do que se passara na véspera. Nesse dia levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha o coração leve e o espírito desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a indiferença para os amores, a certeza de não estar exposta às catástrofes do coração... Esta mudança tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que as amigas não deixaram de reparar.

— Que tens tu? dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!

— Qual namoro!

— Ora, de certo! acrescentava outra.

— Namoro? perguntava Cecília. Isso é bom para as... infelizes. Não para mim. Não amo... 

— Amas!

— Nem amarei.

— Vaidosa!...

— Feliz é que deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta disto?... Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas...

— Sim?

E as amigas desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de arrepender de dizer palavras tais.

Mas passavam os dias e nada fazia notar que Cecília tivesse pago o pecado que cometera na opinião das amigas. Cada dia trazia um pretendente novo. O pretendente fazia corte, gastava tudo quanto sabia para cativar a menina, mas afinal desistia da empresa com a convicção de que nada podia fazer.

— Mas não se lhe conhece preferido? perguntavam uns aos outros.

— Nenhum.

— Que milagre é este?

— Qual milagre! Não lhe chegou a vez... Ainda não enflorou aquele coração. Quando chegar a época da florescência há de fazer o que as mais fazem, e escolher entre tantos pretendentes um marido.

E com isto se consolavam os taboqueados.

O que é certo é que corriam os dias, os meses, os anos, sem que nada mudasse a situação de Cecília. Era a mesma mulher fria e indiferente. Quando completou vinte anos tinha adquirido fama; era corrente em todas as famílias, em todos os salões, que Cecília nascera sem coração, e a favor desta fama faziam-se apostas, levantavam-se coragens; a moça tornou-se a Cartago das salas. Os romanos de bigode retorcido e cabelo frisado juravam sucessivamente vencer a indiferença púnica. Trabalho vão! Do agasalho cordial ao amor ninguém chegava nunca, nem por suspeita. Cecília era tão indiferente que nem dava lugar à ilusão.

Entre os pretendentes um apareceu que começou por cativar os pais de Cecília. Era um doutor formado em matemáticas, metódico como um compêndio, positivo como um axioma, frio como um cálculo. Os pais viram logo no novo pretendente o modelo, o padrão, a fênix dos maridos. E começaram por fazer em presença da filha os elogios do rapaz. Cecília acompanhou-os nesses elogios, e deu alguma esperança aos pais. O próprio pretendente soube do conceito em que o tinha a moça e criou esperanças.

E, conforme a educação do espírito, tratou de regularizar a corte que fazia a Cecília, como se se tratasse de descobrir uma verdade matemática. Mas, se a expressão dos outros pretendentes não impressionou a moça, muito menos a impressionava a frieza metódica daquele. Dentro de pouco tempo a moça negou-lhe até aquilo que concedia aos outros: a benevolência e a cordialidade.

O pretendente desistiu da causa e voltou aos cálculos e aos livros.

Como este, todos os outros pretendentes iam passando, como soldados em revista, sem que o coração inflexível da moça pendesse para nenhum deles.

Então, quando todos viram que os esforços eram baldados, começou-se a suspeitar que o coração da moça estivesse empenhado a um primo que exatamente na noite da visão de Cecília embarcara para seguir até Santos e daí tomar caminho para a província de Goiás. Esta suspeita desvaneceu-se com os anos; nem o primo voltou, nem a moça mostrou-se sentida com a ausência dele.

Esta conjectura com que os pretendentes queriam salvar a honra própria perdeu o valor, e os iludidos tiveram de contentar-se com este dilema: ou não tinham sabido lutar, ou a moça era uma natureza de gelo.

Todos aceitaram a segunda hipótese.

Mas que se passava nessa natureza de gelo? Cecília via a felicidade das amigas, era confidente de todas, aconselhava-as ao sentido de uma prudente reserva, mas nem procurava nem aceitava os ciúmes que lhe andavam à mão. Todavia mais de uma vez, à noite, no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário parece que se não acostumara de todo ao isolamento a que o votara a dona.

A imaginação, para fugir às pinturas indiscretas de um sentimento a que a moça fugia, corria às soltas no campo das criações fantásticas e desenhava com vivas cores essa felicidade que a visão lhe prometera. Cecília comparava o que perdera e o que ia ganhar, e dava a palma do gozo futuro em compensação do presente. Mas nesses rasgos de imaginação o coração palpitava-lhe com força, e mais de uma vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o anel da aliança com a visão.

Nesses momentos recuava, entrava em si e chamava no interior a visão daquela noite dos quinze anos. Mas o desejo era baldado; a visão não aparecia, e Cecília ia procurar no leito solitário a calma que não podia encontrar nas vigílias laboriosas.

Muitas vezes a aurora veio encontrá-la à janela, enlevada nas suas imaginações, sentindo um vago desejo de conversar com a natureza, embriagar-se no silêncio da noite.

Em alguns passeios que fez aos subúrbios da cidade deixava-se impressionar por tudo o que a vista lhe oferecia de novo, água ou montanha, areia ou ervaçal, parecendo que a vista se lhe comprazia nisso e esquecendo-se muitas vezes de si e dos outros.

Ela sentia um vácuo moral, uma solidão interior, e procurava na atividade e na variedade da natureza alguns elementos de vida para si. Mas a que atribuía ela essa ânsia de viver, esse desejo de ir buscar fora aquilo que lhe faltava? Ao princípio não reparou no que fazia; fazia involuntariamente, sem determinação nem conhecimento da situação.

Mas, como se prolongasse a situação, ela foi pouco a pouco descobrindo o estado do coração e do espírito. Tremeu ao princípio, mas em breve se tranquilizou; a idéia da aliança com a visão pesava-lhe no espírito, e as promessas feitas por ela de uma bem-aventurança sem igual desenhavam na fantasia de Cecília um quadro vivo e esplêndido. Isto consolava a moça, e, sempre escrava dos juramentos, ela fazia honra sua em ficar pura do coração para subir à  morada das donzelas libertadas do amor.

Demais, ainda que o quisesse, parecia-lhe impossível sacudir a cadeia a que involuntariamente se prendera.

E os anos corriam.

Aos vinte e cinco inspirou uma paixão violenta a um jovem poeta. Foi uma dessas paixões como só os poetas sabem sentir. Este do meu conto depôs aos pés da bela insensível a vida, o futuro, a vontade. Regou com lágrimas os pés de Cecília e pediu-lhe como uma esmola uma centelha que fosse do amor que parecia ter recebido do céu. Tudo foi inútil, tudo foi vão. Cecília nada lhe deu, nem amor nem benevolência. Amor não tinha; benevolência podia ter, mas o poeta perdera o direito a ela desde que declarou a extensão do seu sacrifício. Isto deu a Cecília a consciência da sua superioridade, e com essa consciência certa dose de vaidade que lhe vendava os olhos e o coração.

Se lhe aparecera o anjo para tirar-lhe do coração o germe do amor, não lhe apareceu nenhum que lhe tirasse o pouco de vaidade.

O poeta deixou Cecília e foi para casa. Daí seguiu para uma praia, subiu a uma pequena eminência e atirou-se ao mar. Dai a três dias encontrou-se-lhe o cadáver, e os jornais deram do fato uma notícia lacrimosa. Entretanto encontrou-se entre os papéis do poeta a seguinte carta:

A Cecília D...

Morro por ti. É ainda uma felicidade que eu procuro em falta da outra que eu procurei, implorei e não alcancei.
Não me quiseste amar; não sei se o teu coração estaria cativo, mas dizem que não. Dizem que és insensível e indiferente.
Não quis crê-lo e fui por mim próprio averiguá-lo. Coitado de mim! o que vi bastou para dar-me a certeza de que não estava reservado para mim semelhante fortuna.
Não te pergunto que curiosidade te levou a voltares a cabeça e transformares-te, como a mulher de Ló, em estátua insensível e fria. Se alguma coisa há nisto que eu não compreendo, não quero sabê-lo agora que deixo o fardo da vida, e vou, por caminho escuro, procurar o termo feliz da minha viagem.
Deus te abençoe e te faça feliz. Não te desejo mal. Se te fujo e se fugi ao mundo é por fraqueza, não é por ódio; ver-te, sem ser amado, é morrer todos os dias. Morro uma só vez e rapidamente.
Adeus...

Esta carta causou a Cecília muita impressão. Chorou até. Mas era piedade e não amor. A maior consolação que ela mesma deu a si foi o pacto secreto e misterioso. É culpa minha? perguntava ela. E respondendo negativamente a si mesma achava nisso a legitimidade da sua indiferença.

Todavia, esta ocorrência trouxe-lhe ao espírito uma reflexão.

O anjo prometera-lhe, em troca da isenção para o amor, uma tranqüilidade durante a vida que só poderia ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança.

Ora, que encontrava ela? O vácuo moral, as impressões desagradáveis, uma sombra de remorso, eis os lucros que tivera.

Os que foram fracos como o poeta recorreram aos meios extremos ou deixaram-se dominar pela dor. Os menos fracos ou menos sinceros no amor alimentaram contra Cecília um despeito que deu em resultado levantar-se uma opinião ofensiva à moça.

Mais de um procurava na sombra o motivo da indiferença de Cecília. Era a segunda vez que se atiravam a essas investigações. Mas o resultado delas era sempre nulo, visto que a realidade era que Cecília não amava ninguém.

E os anos corriam...

Cecília chegou aos trinta e três anos. Já não era a idade de Julieta, mas era uma idade ainda poética; poética neste sentido — que a mulher, em chegando a ela, tendo já perdido as ilusões dos primeiros tempos, adquire outras mais sólidas, fundadas na observação.

Para a mulher dessa idade o amor já não é uma aspiração do desconhecido, uma tendência mal exprimida; é uma paixão vigorosa, um sentimento mais eloqüente; ela já não procura a esmo um coração que responda ao seu; escolhe entre os que encontra um que possa compreendê-la, capaz de amar como ela, próprio para fazer essa doce viagem às regiões divinas do amor verdadeiro, exclusivo, sincero, absoluto.

Nessa idade era ainda bela. E pretendida. Mas a beleza continuou a ser um tesouro que a indiferença avarenta guardava para os vermes da terra.

Um dia, longe dos primeiros, muito longe, a primeira ruga desenhou-se no rosto de Cecília e alvejou um primeiro cabelo. Mais tarde, segunda ruga, segundo cabelo, e outras e outros, até que a velhice de Cecília declarou-se completa.

Mas há velhice e velhice. Há velhice feia e velhice bonita. Cecília era da segunda espécie, porque através dos sinais evidentes que o tempo deixara nela, sentia-se que fora uma criatura formosa, e, embora de outra natureza, Cecília inspirava ainda a ternura, o entusiasmo, o respeito.

Os fios de prata que lhe serviam de cabelos emolduravam-lhe o rosto rugado, mas ainda suave. A mão, que tão linda era outrora, não tinha a magreza repugnante, mas era ainda bela e digna de uma princesa... velha.

Mas o coração? Esse atravessara do mesmo modo os tempos e os sucessos sem nada deixar de si. A isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que repugnância do vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a vontade ou a fatalidade vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde chegar à adiantada idade em que a achamos sem nada perder.

O anel, o fatídico anel, foi o talismã que nunca a abandonou. A favor desse talismã, que era a assinatura do contrato celebrado com o anjo das donzelas, ela pôde ver de perto o sol sem se queimar.

Tinham-lhe morrido os pais. Cecília vivia em casa de uma irmã viúva. Vivia dos bens que recebera em herança.

Que fazia agora? Os pretendentes desertaram, os outros envelheceram também, mas iam ainda por lá alguns deles. Não para requestá-la de certo, mas para passar as horas ou em conversa grave e pausada sobre coisas sérias, ou à mesa de algum jogo inocente e próprio de velhos.

Não poucas vezes era assunto de conversação geral a habilidade com que Cecília conseguira atravessar os anos da primeira e da segunda mocidade sem empenhar o coração em nenhum laço de amor. Cecília respondia a todos que tivera um segredo poderoso do qual não podia fazer comunicação alguma.

E nestas ocasiões olhava amorosamente para o anel que trazia no dedo ornado de uma bela e grande esmeralda.

Mas ninguém reparava nisto.

Cecília gastava horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos.

Quisera achar conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura mágica e a voz celeste do anjo das donzelas.

Parecia-lhe, sobretudo, que o longo sacrifício que consumara merecia, antes da realização, uma repetição das promessas anteriores.

Entre os que frequentavam a casa de Cecília alguns velhos havia dos que, na mocidade, tinham feito roda a Cecília e tomado mais ou menos seriamente as expressões de cordialidade da moça.

Assim que, agora que se encontravam nas últimas estações da vida, mais de uma vez a conversa tinha por objeto a isenção de Cecília e as infelicidades dos adoradores.

Cada um referia os seus episódios mais curiosos, as dores que sentira, as decepções que sofrera, as esperanças que Cecília esfolhara com impassibilidade cruel.

Cecília ria ouvindo essas confissões, e acompanhava os seus adoradores de outrora no terreno das facécias que as revelações mais ou menos inspiravam.

— Ah! dizia um, eu é que sofri como poucos.

— Sim? perguntava Cecília.

— É verdade.

— Conte lá.

— Olhe, lembra-se daquela partida em casa do Avelar?

— Foi há tanto tempo!

— Pois eu me lembro perfeitamente.

— Que houve?

— Houve isto.

Todos se prepararam para ouvir a narração prometida.

— Houve isto, continuou o ex-adorador. Estávamos no baile. Eu, nesse tempo, era um verdadeiro pintalegrete. Envergava a melhor casaca, esticava a melhor calça, derramava os melhores cheiros. Mais de uma dama suspirava em segredo por mim, e às vezes nem mesmo em segredo...

— Ah!

— É verdade. Mas qual é a lei geral da humanidade? É não aceitar aquilo que se lhe dá, para ir buscar aquilo que não poderá obter. Foi o que fiz.

Le bonheur, c’est la boule
Que cet enfant poursuit tout le temps qu’elle roule.
Et que, dès qu’ele arrête, il repousse du pied.*

— Bravo!

— Vamos à história!

— Estávamos no baile. Já duas senhoras tinham-se retirado para o camarim a fim de evitar algum desmaio. Por quê? Que fazia eu? Eu derramava aos pés de D. Cecília uma torrente de madrigais, dizia-lhe do melhor modo possível que a beleza dela tinha-me inspirado um amor profundo e decisivo. Ela não prestava aos meus discursos senão uma atenção indiferente. Isto desesperava. Insistia, repetia, pedia-lhe quase o coração. Ela nada. Enfim ofereci-lhe o braço. Percorremos algumas salas. D. Cecília estava divina de graça, de beleza, e etc... de indiferença. Se fosse a indiferença somente bem estava, mas houve mais...

— Houve mais?

— Houve. Houve desengano. Eu disse-lhe que a amava perdidamente; ela respondeu-me positivamente que não me podia amar. Quase caí. Não lhe disse mais nada e voltamos para a sala.

— Não me lembro disso, observou Cecília.

— Lembro-me eu que fui a vítima. O algoz...

— À ordem! à ordem! reclamaram os ouvintes.

O narrador continuou:

— Deixei D. Cecília na sala e saí. Fui para o jardim. Desesperado, cuidei que o ar e a solidão me aplacassem o ânimo. Vi através da rama de uns arbustos um ponto de luz. Era um charuto ao que me parecia, e com o charuto um homem. A noite estava escuríssima. Caminhei para o lugar em que me parecia estar o homem e o charuto. Pedi fogo e vi que o charuto me entrava nas mãos. Acendi um charuto e agradeci. A minha voz foi conhecida pelo meu interlocutor e eu próprio reconheci na voz que me falava um rapaz que eu conhecera aos salões.

— Abrevie a história!

— Apoiado!

— É simples. Contei ao meu interlocutor os motivos da minha presença, e estava calmo, esperando algumas palavras de consolação, quando me senti agarrado. Procurei defender-me e lutamos durante alguns minutos, ao som de uma polca que se executava no interior da casa. Todos compreendem o caso. O meu adversário era pretendente ao coração de D. Cecília; estava, como eu, desconsolado. Lutamos, como disse. Nunca mais nos falamos.

— Nunca mais?

— Nunca mais.

— Não me lembro de nada, nem me constou nada neste sentido, disse Cecília.

— Eu nunca disse nada a ninguém.

Fora escrever dois volumes repetir os episódios trágicos, ou cômicos, ou patéticos, que os ex-adoradores de Cecília traziam para a conversação. Em uma dessas práticas íntimas, singelas, trouxe um criado uma carta para Cecília. Era de Tibúrcio.

Quem era Tibúrcio? Era o primo de Cecília que partira da corte na noite em que Cecília fizera o contrato misterioso para independência do coração.

Tibúrcio partira moço e voltou velho. Nunca dera sinal de si. Não se sabia onde andava nem que fazia.

Tibúrcio escrevia de S. Paulo. Dizia que dentro de oito dias estaria na corte. E daí a oito dias chegou.

A carta dizia:

Minha prima. — Dentro de oito dias lá estarei. Vai aparecer-lhe um velho. Há que tempo de lá saí!
Andei seca e meca. Ganhei, perdi, tornei a ganhar, e a experiência me serviu, porque o que ganhei conservo agora e não tenho idéia, nem ânimo de perdê-lo outra vez. Que é feito de nossa família? Eu de nada sei. Não procurei ninguém, não escrevi; acho que fizeram bem em me não escreverem. Com ingrato, ingrato e meio. Mas eu hei de provar que não fui ingrato.
Adeus. Esta lhe há de ser entregue por C..., meu amigo, que parte para essa corte. 
Adeus. — Tibúrcio.

Tibúrcio acompanhou a carta com intervalo de alguns dias. Era um velho bonito, folgazão, opulento de carnes e de dinheiro.

Nem Tibúrcio reconhecia Cecília, nem Cecília reconheceu Tibúrcio. Tão mudados estavam!

Vieram as longas narrativas do que se houvera passado durante o longo espaço de tempo que se não viram.

É necessário dizer que Tibúrcio, quando partira da corte, amava Cecília, sem que para amá-la se fundasse em nenhum sentimento recíproco.

Cecília foi ao princípio indiferente... por indiferença. Mais tarde é que veio o pacto angélico.

Tibúrcio ouviu, com grande admiração, da boca de Cecília a notícia de que ela nunca se houvera casado.

E de sua parte declarou que também se conservara solteiro, adiantando logo a razão disso, que era não poder levar família para as trabalhosas empresas a que se entregava.

Mas a respeito de Cecília admirou-se muito. Não a deixara formosa e requestada? Não via ainda que essa beleza tarde desapareceu?

— Não quis, respondia Cecília.

— Mas por quê?...

— Não sei... não quis.

E, como sempre, Cecília olhava amorosamente para o anel. Os olhos de Tibúrcio acompanharam os de Cecília e pousaram na esmeralda que ela trazia no dedo.

— Ah! disse ele.

E a conversa passou a outros assuntos.

Insistiram todos em que Tibúrcio referisse as suas viagens, as suas aventuras, os seus perigos, as suas fortunas.

— Fora preciso um ano, disse Tibúrcio.

Com efeito, Tibúrcio tinha vivido uma vida acidentada. Lutas, perigos, sustos, fortunas, alternativas de todo o gênero, tudo matizava o fundo do quadro da existência de Tibúrcio.

Tibúrcio adquirira parte de sua fortuna em algumas explorações de minas de ouro e de brilhantes.

Durante os dias que se seguiram ao da chegada dele em casa de Cecília, a família, os restos da família, e os convivas habituais, divertiram-se muito ouvindo as narrações de Tibúrcio sobre os acidentes das explorações mineiras.

Quando se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres perto do rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até a última gota de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se preparavam para almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava à caça de um criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos estômagos indígenas.

Outros perigos correra o primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios, encontrar-se com onças, e outros deste gênero.

O auditório habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por sua parte sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de comover e interessar.

Tibúrcio resolvera ir morar com as duas parentas, e ali se instalou imediatamente.

Todas as noites havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e jogar. Uma noite de chuva, em mês de junho, debalde se esperaram os convivas. A chuva e o frio não consentiram que os respeitáveis anciões deixassem os conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa de Cecília.

Foram, pois, os três parentes obrigados a se privarem naquela noite da companhia dos amigos.

Tomaram chá cedo e estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora habitual de se recolherem.

Travou-se a seguinte conversação:

— Ora, prima, disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que sofri relativamente ao coração...

— Ah!

— É verdade. Lembrei-me muito de você.

— Deveras?

— É verdade. Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor que alimentava?

— Lembro-me, sim.

— Pois saí da corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para longe e perdia de vista a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci muito.

— Falar nisso agora não sei que me parece.

— Parece o que é, a verdade. Quis matar-me...

— Que tolice!

— Foi o que eu pensei...

— Morria e eu ficava.

— Mas o que me agrada é ver que se eu não esqueci, também você não esqueceu.

— Não, de certo.

— Mas, de certo modo?

— Que modo?

— Gentes! disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!

— Mas de que modo? como apaixonada?

— Sim.

— Que loucura!

— Pelo menos tenho uma prova.

— Vamos ver a prova, disse a viúva.

— A prova não está comigo.

— Está comigo? perguntou Cecília.

— É verdade.

— Onde?

— Aí, no dedo.

Cecília olhou para o anel.

— No dedo! disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.

— Esse anel, disse o primo.

— Este anel? Que tem este anel?

— Ora, afinal, disse a prima viúva, vamos saber o que significa este misterioso anel.

Cecília estava espantada sem compreender.

Tibúrcio continuou:

— Este anel, sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei.

— Mas explique-se.

— Nas vésperas de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era verdadeiro e seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com o maior cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo, francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela lembrança a surpreendesse.

— É romanesco, disse a viúva.

Cecília nada disse. Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as palavras da boca.

Tibúrcio prosseguiu:

— Preferi o segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao executá-lo, ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na hora em que dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.

— Ah! e...

Esta exclamação e esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava que nada podia dizer.

— Descansem, disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a mucama para que alta noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da costumada leitura... Ah! você lia muito romance!

— Adiante!

— Para que alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e lhe pusesse o anel. Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a Teresa nunca lhe disse nada disto?

— Não, disse Cecília distraidamente.

— Pois foi assim. E se quer mais uma prova tire o anel... Nunca o tirou?

— Nunca.

— Pois tire o anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome.

Cecília hesitou entre a curiosidade de averiguar a asseveração de Tibúrcio e um resto de crença que tinha nas palavras da visão.

— Tire o anel.

— Mas...

— Tire! Que receio é esse?

— Esperem, não tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo Tibúrcio.

— Por quê?

— Não creio, mas creio em outra coisa.

— Essa agora!

— É verdade.

E Cecília passou a referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o diálogo que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das donzelas.

— Tal foi, acrescentou Cecília, a razão por que me não casei. Tinha fé nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.

Tibúrcio deu uma gargalhada.

— Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma superstição? Ainda acredita em sonhos!

— Como, sonhos?

— É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.

Cecília abanou a cabeça.

— Pois não crê? Tire o anel.

Cecília hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela prima viúva de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel do dedo.

O anel tinha na parte interna gravadas estas iniciais: T. B.

Texto-fonte:
http://www2.uol.com.br/machadodeassis/
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1864.

Flávio Carneiro (Aprendizagem)


Ilustração: Eva Uviedo


- Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer? 

 - Hã?  - Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo? 

 - Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha. 

 A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas. 

 - Todo dia, mãe? 

 - É, só que a gente não repara. 

 - Por quê? 

 - Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha? 

 A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere não responder. 

 - Você é muito ocupada, não é, mãe? 

 - Hã? 

 - Nada, não. 

 A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário. 

 Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe, mas a verdade é que ficou meio torto. 

 "Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana! 

 Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis. 

 - Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer? 

 - Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura? 

 Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder. 

 A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda. 

 - Mãe! 

 - O que foi? 

 - É que eu estava aqui pensando. 

 - Pensando o quê? 

 Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas. 

 - Vai, fala logo. 

 - Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu? 

 - Não, não entendi. 

 Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar: 

 - Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo? 

 - Ai, meu Deus! 

 Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca. 

 Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela: 

 - Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu? 

 E com um carinho: 

 - Foi minha mãe que me ensinou.

Fonte:

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Patativa do Assaré (A Seca e o Inverno)

Ilustração de Joana Lira

Na seca inclemente no nosso Nordeste
 O sol é mais quente e o céu, mais azul
 E o povo se achando sem chão e sem veste
 Viaja à procura das terras do Sul

 Porém quando chove tudo é riso e festa
 O campo e a floresta prometem fartura
 Escutam-se as notas alegres e graves
 Dos cantos das aves louvando a natura

 Alegre esvoaça e gargalha o jacu
 Apita a nambu e geme a juriti
 E a brisa farfalha por entre os verdores
 Beijando os primores do meu Cariri

 De noite notamos as graças eternas
 Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes
 Na copa da mata os ramos embalam
 E as flores exalam suaves perfumes

 Se o dia desponta vem nova alegria
 A gente aprecia o mais lindo compasso
 Além do balido das lindas ovelhas
 Enxames de abelhas zumbindo no espaço

 E o forte caboclo da sua palhoça
 No rumo da roça de marcha apressada
 Vai cheio de vida sorrindo e contente
 Lançar a semente na terra molhada

 Das mãos deste bravo caboclo roceiro
 Fiel prazenteiro modesto e feliz
 É que o ouro branco sai para o processo
 Fazer o progresso do nosso país

Fonte:
Revista Nova Escola

Chico Anysio (É Proibido Falar ao Motorneiro)


 Era muito grande a surpresa do velhote que, ao receber alta após vinte e dois anos acamado (reumatismo infeccioso), pela primeira vez saía à rua.

 Andava pelo Rio como se estivesse fazendo turismo numa cidade a que nunca fora. Tudo mudado, tudo tão lindo e tão diferente. O aterro, os gramados em volta de postes que mais pareciam perna de ema (quando queimar uma luz como é que mudam?), o monumento ao soldado desconhecido, tudo era novidade. Trocaram a roupa da cidade durante sua enfermidade.

 Quis ir à Galeria Cruzeiro tomar um chope no Bar Nacional e lá encontrou uma cidade em pé, de mil andares, e se contentou com uma laranjada no Bob's. O Tabuleiro da Baiana, os bondes, por onde andavam? Estaria perdido? Poderia perder-se numa cidade que era sua apenas por ter ficado tão pouco tempo (vinte e dois anos) com aquele reumatismo idiota? A Rua das Marrecas tinha o nome de um político e havia um prédio encimando o Cine Metro onde ele assistira, quinze vezes seguidas, a Greer Garson em  Rosa de esperança. E a Lapa, meu Deus! O que fizeram com a minha Lapa? Pelo menos a igreja está de pé, mas aquilo é novo, aquilo lá não existia, no meu tempo não tinha aquilo, roubaram os trilhos? O que fizeram dos trilhos?

 O homem andava, na sua caminhada de reconhecimento, sem saber se devia aplaudir ou vaiar o progresso, já que em nome do progresso tudo tinha sido feito e modificado. Saí de casa a caminho da casa do amigo Vergara, com quem jogava xadrez nos tempos idos. De sua casa, na rua Taylor, até a casa do Vegara, na Santo Amaro, costumava ir de bonde (qualquer um servia, porque todos passavam no Largo do Machado), mas hoje estava disposto a ir a pé. Sabe lá se não acabaram também com a Praça Paris!

 E o homem ia andando, sempre com o olhar circular pelos cantos da cidade. O passeio Público cercado. Se está cercado deixa de ser público!

Sem menos esperar, quase caiu num buraco.Dentro do buraco um homem, com um capacete prateado na cabeça, usava uma pá com a qual aumentava o buraco, jogando no asfalto a terra que dele tirava.

— Alô — disse o convalescente.

— Alô  resmungou, sem muita vontade, o trabalhador.

 — O que é que o senhor está fazendo aí? perguntou o reumático ao homem que cavava.

 — Cavando — disse o homem ao velho.

 Vejam só. Além dos muitos buracos que há na cidade, em vez de fechá-los, o governo trata de abrir outros. Então era isso. Os buracos eram feitos com a concordância do governo. Ou talvez por determinação governamental.

 — Fazendo um buraco, não é? — quis certificar-se o reumático.

 — É, um buraco —  precisou o cara de capacete metálico.

 Exatamente o que ele pensara. Uma barbaridade. Onde estão as Forças Armadas, que permitem este descalabro? Tiram-se os bondes e dão-se buracos. Bela política, essa!

 — E pra que fazer um buraco, moço?

 — Progresso, né? — rezingou* o homem que cavava e cavava, jogando terra, algumas vezes, sobre os sapatos do velho que o aborrecia, olhando-o do alto do buraco.

 Que progresso mais idiota. Depois, aposto que nem põem placas avisando que ali há um buraco, vem uma criança.

 — Feche este buraco — ordenou valendo-se do seu título de cidadão.

 — Não chateia! — repeliu o operário.

 — Este buraco é um perigo. É um atentado à segurança pública. Como cidadão, eu ordeno: jogue no buraco esta terra — completou, enquanto empurrava com o pé número 35 um punhado de terra que se espalhou pelo metálico capacete do trabalhador.

 — Pára de jogar terra aqui, cara. Este buraco é para as obras do metrô.

 Foi como se falasse latim ao Lampião. Metrô? Não teria ele querido dizer Metro? Não seria a instalação de mais um cinema?

 — Metrô — interrogou o velho que saía à rua após vinte e dois anos de leito. — Não será Metro?

 — Metrô, cara. Um trem.

 Era o que faltava. Botar um trem ali, em pleno Jardim da Glória. Bolas ao progresso, que tira os bondes, tão fresquinhos e baratos, e, no seu lugar, coloca vastíssimos trens, de ruído insuportável. Agora é que ninguém dorme, da Conde Lage até nem se sabe onde.

 — Que trem é esse? — questionou o homem contra o progresso.

 — Será possível? — sofreu o operário que cavava às duas da tarde, sob um sol de meio-dia (era janeiro).

 — Diga. Que trem é esse? Na qualidade de cidadão, eu exijo uma explicação — insistiu, zangado, o homem.

 — Olhe, meu amigo. Metrô é um trem que anda por baixo da terra. Faz-se um túnel debaixo do chão, botam-se os trilhos e o trem vai pelos trilhos — explanou o empregado das obras do metrô o melhor que pôde, para encerrar, de uma vez, o assunto.

 — Por baixo da terra? E ninguém respira?

 — Há ventiladores.

 — E a gente entra no trem de que modo?

 — Há entradas. Vai haver uma entrada ali (apontou longe), o senhor compra a passagem, desce as escadas, o trem vem, o senhor entra e vai.

 — Muito bem. É o progresso, não é?

 — É.

 — E, sendo debaixo da terra, não suja a roupa, nem...?

 — É um túnel! — irritou-se o operário. — O trem corre dentro do túnel.

 — Maravilhoso — admitiu. — Maravilhoso!

 — Agora dê licença — pediu o funcionário, voltando a jogar terra sobre o asfalto lá em cima.

 Um trem por baixo da terra. O governo está trabalhando, mesmo. Estava até arrependido de ter pensado as coisas tão antigovernistas que pensara. Ainda bem que ninguém ouviu. Podia ser tomado como um sujeito anarquista.

 — E quando fica pronto?

 — Hein?

 — Esse trem que o senhor falou. Demora para ficar pronto?

 — Um pouco.

 — Mais ou menos quanto tempo?

 — Uns quatro anos.

 — Ah, é muito, não posso esperar.

 E dirigiu-se mesmo a pé para a casa do Vergara, na Rua Santo Amaro.
________
Nota:
* Rezingou = resmungou

Fonte:
Chico Anísio. O Batizado da Vaca. SP: Círculo do Livro

Casimiro de Abreu (Carolina) III – A Volta


Estamos em 1849. 

Numa tarde de fevereiro, levado por toda a velocidade de seu bom cavalo, seguia um cavaleiro a estrada de Lisboa a ***, estrada onde ficava essa linda quinta com sua casa, no meio de perfumes e de verdura.

Esse cavaleiro, era Augusto.

Quando ainda de longe ele avistou a casa, seus olhos disseram é ali, seu coração indeciso, murmurava: aquela?!...

Ai! já não era a mesma quinta bela e verdejante, que ele tinha deixado na primavera! O inverno havia-a transformado horrivelmente.

Os ramos das faias e dos choupos gigantes já não se debruçavam sobre o muro. A natureza estava triste. As árvores não tinham folhas: apenas erguiam seus ramos despidos que vergavam com o vento. 

Uma tristeza involuntária apoderou-se do mancebo. 

Prendeu ao muro o seu cavalo coberto de suor e poeira e pôs-se a cantar com uma voz trêmula: 

Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.

Nenhuma voz respondeu à sua copla apaixonada. Um silêncio profundo reinava nas alamedas; só os ramos das árvores se agitavam. Dir-se-ia ser um cemitério. 

Augusto teve um pressentimento; sua fronte empalideceu por um instante, mas continuou repetindo: 

Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar. 

O mesmo silêncio terrível. Só o eco repetia triste suas últimas palavras: “sê minha, que eu sei-te amar”.

Saltou o muro e alongou a vista impaciente.

Que tristeza! As alamedas estavam desertas, o jardim já não florescia, o lago já não tinha o seu cisne, a natureza já não sorria!

Foi direito ao caramanchão, ele lá estava no mesmo lugar com o seu banco de cortiça, mas a fonte que dantes murmurava parecia gemer agora!

Augusto sentou-se no banco com a cabeça encostada a uma das mãos e olhou para tudo com uma indizível tristeza. 

Ai! os pássaros já não cantavam, nem a brisa brincava travessa!

Então o pranto correu-lhe livre, o seu coração dizia-lhe que chorasse. 

— Foi aqui, murmurava ele, foi aqui que me despedi dela, foi aqui que prometi torná-la a ver. Meu Deus! quantas lágrimas não derramei quando atravessava o Oceano, que me separava da pátria, onde ficara a minha alma! E agora, que torno a ver a terra onde nasci, agora, que devia ver a minha Carolina, não sei por quê, sinto uma vontade imensa de chorar. Carolina! Carolina! bradou ele, vem ver o teu Augusto, vem dizer-lhe que sempre o amaste, vem dar ao desgraçado que chorou os prantos da saudade, o teu beijo de amor: e os soluços abafaram-lhe a voz no peito. 

Mas o mesmo silêncio lúgubre continuou; nem uma voz, nem um som respondeu aos gemidos do amante. 

Ergueu-se pálido e trêmulo e caminhou vagaroso pela alameda que ia dar ao jardim, cantando sempre com a sua voz comovida aquela copla, que tão bem exprimia os desejos do seu coração. 

Chegou ao jardim e olhou. A casa tinha as portas e as janelas todas fechadas. Também estava deserta. 

— Mudaram-se, disse ele, Carolina já aqui não está!

E volta pensativo para o caramanchão  e parou diante da fonte. 

— Onde está Carolina? perguntou ele, como se a fonte pudesse responder-lhe. 

— Onde está Carolina? perguntou ele às árvores, e parecia esperar a resposta. 

Mas a fonte continuava a correr e as árvores a agitar os ramos. 

— Então adeus, meu caramanchão, minha fonte, meu jardim, adeus!

E Augusto saltou o muro e quis passar por diante da casa onde estivera a sua amada. Quando aí chegou, parou e pôs-se a olhar para a janela onde a tinha visto a primeira vez. 

— Jesus! Meu Deus! aquele não é o senhor Augusto? dizia uma saloia, que passava por ali, a seu marido. 

— Parece que é, respondeu o saloio. 

Ao ouvir o seu nome, Augusto olhou para o lado donde partiram as vozes e reconheceu-os. Depois de os cumprimentar perguntou logo:

— Diga-me, o senhor Ferraz já aqui não mora?

— Há que tempos! mudaram-se pelo Natal. 

— Sabe para onde?

— Isso é que não sei; tanto ele como a senhora estavam muito tristes, e tinham razão, aqueles desgostos não são para menos. 

— Então eles tiveram algum desgosto? perguntou Augusto, que pressentia a morte de Carolina.

— E muito grande. Sua filha, a senhora D. Carolina, fugiu...

— Carolina fugiu? perguntou Augusto com uma voz que assustou a pobre mulher.

— Sim senhor, respondeu ela, foi no meado do mês de dezembro. Custa a creditar, que uma menina tão boa deixasse sua mãe. E daí pode ser que fosse roubada, quem sabe!

Augusto já nada ouvia; estava louco.

— Oh meu Deus! meu Deus! murmurou ele.

— Jesus! que é isso, senhor Augusto? perguntou a mulher vendo-lhe a extrema palidez e o chamejar sinistro dos olhos. 

— E eu que a amava tanto! continuou ele em voz baixa. 

A saloia compreendeu-o e afastou-se murmurando:

— Pobre rapaz! o que lhe fui eu dizer!

Augusto ficou ainda algum tempo imóvel com os olhos turvos e o peito arquejante, mas depois erguei a fronte de repente e bradou com uma explosão terrível de dor:

— Ah! mulher, mulher! tu me mataste! 

Desprendeu seu cavalo, montou e desapareceu na estrada. Ainda olhou de longe uma vez para aquela quinta deserta e triste, que lhe inspirava tantas recordações...

Continua…

Fonte:
ABREU, Casimiro de.  Carolina.  in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu.  2ª ed.   Rio de Janeiro:  Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 564)


Uma Trova de Ademar  

Todo homem que se entrega 
aos feitiços de um amor 
sofre demais, porém nega 
o tanto da sua dor... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Diante do encanto desfeito 
por promessas não cumpridas, 
eu sempre encontro outro jeito 
de entrelaçar nossas vidas. 
–Olga Agulhon/PR– 

Uma Trova Potiguar  

Não podemos recompor,
nossos sonhos destruídos;
nem esconder nossa dor,
silenciando os gemidos. 
–Francisco Maia/RN– 

Uma Trova Premiada 

2005 > Belém/PA 
Tema > DELÍRIO > M/H

Em meu delírio utopista
 um sonho não se desfaz:
 é ver um mundo otimista
 unindo as mãos pela paz.
- Licínio Antonio de Andrade/MG-

...E Suas Trovas Ficaram  

Nos açoites da agonia, 
a solidão que me invade 
vai rasgando a fantasia 
com que disfarço a saudade!... 
–Ulysses Carvalho Júnior/RJ– 

Uma Poesia  

Sinto que Deus põe a mão 
na mulher quando engravida, 
a dor se mescla ao prazer, 
a criatura é erguida;
e a vida liberta um Ser 
preso dentro de outra vida. 
–Leonardo Cruz/RN – 

Soneto do Dia  

Ressurreição.
–Reginaldo Albuquerque/MS– 

Eis que volto ao parquinho abandonado... 
De fato, está bem gasto, sem valia, 
porções de entulho e mato lado a lado, 
em vez da meninada em correria. 

Olhando o carrossel empoeirado 
não sei o que dá mais melancolia, 
se o céu de luto todo declarado
ou nossa dupla de alazães vazia. 

Ontem, quantos passeios demos juntos!
Hoje, nesses cavalos já defuntos,
encontro apenas restos de ilusão. 

Mas um clarão de lendas muda o enredo...
Torna a girar o mágico brinquedo,
com a tua imagem me estendendo a mão...

terça-feira, 29 de maio de 2012

Casimiro de Abreu (Carolina) II – Caiu!


No fim da mesma alameda, embaixo do mesmo caramanchão, sentados sobre o mesmo banco onde seis meses antes  dois amantes se beijavam em prantos, dois amantes hoje beijam-se por entre sorrisos de prazer.

Ah! mulher! mulher! que tão cedo esqueceste o homem que te votou o amor mais ardente de sua alma! Esse homem a quem juraste vir aqui todas as tardes escutar o suspiro saudoso, que ele te havia de enviar nas asas da viração!...

Ah! mulher! mulher! que tão depressa esqueceste um homem que te ama, para ouvires os galanteios doutro que te cobiça!... Deixas adormecida em teu peito a imagem daquele por quem teu coração novel bateu as primeiras pulsações, ao mesmo tempo tímidas e suaves, e não te lembras que esse homem virá um dia, implacável como o destino, terrível como o raio, pedir-te o cumprimento das juras que lhe fizeste; exigir-te contas do seu amor, que tu escarneceste; das suas crenças, em que tu cuspiste; da sua alma, que tu assassinaste!...

Não te lembras que os lábios ardentes doutro homem roçaram as tuas faces?
Oh! para o futuro, nas horas mortas da noite, sentirás o pungir desse remorso!
...........................................................................................

O dia está quase no seu termo; em breve virá a noite com seu silêncio, suas estrelas, seus fantasmas, seus mistérios!...

Eles falam; escutamos:

— Olha, Fernando, ontem esperei-te tanto tempo, e tu não vieste! Estava aqui sentada só, triste! Qualquer ruído que sentia na estrada, dizia comigo: é Fernando; e enganava-me, não eras tu! 

— Não vim ontem, porque não pude; mas vi-te. 

— Não vieste e viste-me?!

— Vi-te sim, Carolina, vi-te em sonhos como te vejo todos os dias. E que outra mulher senão tu, há-de vir abrilhantar os meus sonhos? Às vezes, vejo-te similhante a um anjo, fugires da terra envolta em nuvens vaporosas. Ontem vi-te aqui, neste mesmo parque. Tu eras já minha e estavas tão linda como agora; o céu sorria-se para ti, os pássaros gorjeavam para tu os ouvires, a brisa brincava com teus cabelos e tu brincavas com as flores...

— E tu, Fernando?

— Eu?! Corria atrás de ti para te dar um beijo e tu fugias ligeira como a gazela e depois cansada, com teu seio a arfar, com teus lábios entreabertos, com tuas tranças soltas, caías desfalecida em meus braços... e ambos gozávamos gozos, delícias, como só se gozam no céu... estávamos no paraíso. Ah! que sonho tão lindo, Carolina! Mas era um sonho. Foi cruel o despertar. 

— Não te acredito, disse ela com um sorriso, que queria justamente dizer o contrário. 

— Mas eu não te engano; amo-te como um louco, amo-te como ninguém nunca amou, porque és tu a mulher que eu havia sonhado nos meus sonhos da infância, nos meus sonhos da adolescência, nos meus sonhos dos 18 anos, quando o coração tem necessidade d’amor, quando os lábios desejam que os beijos duma mulher venham mitigar a sede que os abrasa. 

E Fernando pôs-se de joelhos aos pés de Carolina, cingindo-lhe a cintura flexível e delicada, com seus braços nervosos. 

— E tu, Carolina, também me amas?

— Muito, muito, disse ela, e subjugada pelo olhar ardente de Fernando, uniu seus lábios corados aos dele, que queimavam...

A noite tinha estendido o seu manto: as estrelas cintilavam no firmamento, grossas nuvens  haviam ocultado a face da lua. 

A noite tem seus mistérios! 
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No meio daquela mudez aterradora, soou um grito de mulher, abafado logo por algum beijo. Teria Carolina visto a figura d’ Augusto desenhada no muro fronteiro?...
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Meia hora depois, à claridade da lua que se mostrou de súbito, um vulto de mulher atravessava apressado a alameda, dirigindo-se para casa, grave como um fantasma, trêmulo como um condenado!
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As estrelas cintilavam mais frouxas, a lua ocultou-se de novo e um murmúrio indefinível, similhante a um queixume, parecia subir da terra ao céu...

Carolina, tinha uma coroa de virgem que lhe circundava a fronte como uma auréola brilhante; Fernando arrancou essa coroa e calcou-a aos pés!...

O anjo caiu do seu pedestal d’ inocência... a rosa purpurina e bela pendeu na sua haste... o vento da noite levou-lhe as folhas...

Continua…

Fonte:
ABREU, Casimiro de.  Carolina.  in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu.  2ª ed.   Rio de Janeiro:  Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ

Tatiana Belinky (A Luva)

Ilustração: Maria Eliana Delarissa

Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.

 Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tensão do ambiente.

 Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:

 "Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva."

 O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e admiração de todo o público presente.

 A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:

 "Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges."

 Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: "Dispenso a vossa gratidão, senhora!", ele disse.

 E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

Fonte:
Recontado de um poema de Schiller por Tatiana Belinky
Disponível na Revista Nova Escola

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 563)

Salina no Rio Grande do Norte
Uma Trova de Ademar  

O bom sal que o mar cultiva 
pinta de branco a salina... 
Faz mais rica e produtiva 
a região nordestina! 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional  

Briguei contigo, é verdade, 
peço perdão, volto atrás 
e faço desta saudade 
bandeira branca de paz! 
–DOMITILLA B. BELTRAME/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Inveja é coisa mesquinha
de uma pessoa sem brio,
amargurada e sozinha
que faz da vida um vazio...
–HELIODORO MORAIS/RN– 

Uma Trova Premiada  

2006 - Nova Friburgo/RJ 
Tema : FRONTEIRA - M/H 

Sempre estão nos corações
as soluções verdadeiras:
quando o amor une as razões,
somem todas as fronteiras.
–MILTON SOUZA/RS– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Mocidade, quem me dera
retomar, com teu calor,
um pouco de primavera
no meu inverno de amor!
–DURVAL MENDONÇA/RJ– 

Uma Poesia  

MOTE : 
Nossa terra e a terra lusa, 
na doce língua que as liga, 
são cordas nas mãos da musa, 
cantando a mesma cantiga. 
–Dorothy Jansson Moretti/SP– 

GLOSA : 
Nossa terra e a terra lusa, 
se fundem no amor sincero, 
numa amizade que cruza 
esse enorme oceano austero. 
Estando assim irmanadas 
na doce língua que as liga, 
sementes serão lançadas 
nessa língua tão amiga! 
Que esta amizade as conduza, 
pois suas inspirações 
são cordas nas mãos da musa, 
ao bater dos corações. 
Abençoando os amanhãs 
que Deus a musa bendiga, 
unindo as pátrias irmãs, 
cantando a mesma cantiga. 
–GISLAINE CANALES/SC– 

Soneto do Dia  

Poeta 
–JOÃO BATISTA X. OLIVEIRA/SP– 

O poeta, vetor da porcelana,
é o arauto das dores e janelas.
Suas veias, refúgio das procelas;
coração, a ruína da pantana.

Ele é o misto dos olhos sem cancelas
com murmúrios que ouvido não se engana.
E na busca da força sobre-humana
sorve o brilho das auras e aquarelas.

Sonha grande e maior é a plenitude
do caminho perene da altitude
em limite de céu, seu companheiro.

Mente aberta aos meandros das mensagens;
mãos dispostas aos versos das miragens...
eis o vate das asas hospedeiro!

Lidia Izecson de Carvalho (Confusões do Seu José)

Ilustração Victor Malta
Seu José foi ao mercado
 Comprar pra semana inteira
 Pegou de tudo um pouco
 Até uma enorme peneira

 Sem pensar como pagar
 Continuou a gastança
 Abacaxi, melancia e morango
 Não era hora de fazer poupança

 Chegou na fila do caixa
 Já meio de cabeça baixa
 Não sabia onde estava o dinheiro
 Teria esquecido no banheiro?

 Procurou por todo lado
 Remexeu daqui e dali
 Do bolso saiu tanta coisa
 Pandeiro, alicate e jabuti

 Mas onde estava o dinheiro
 Isso todos queriam saber
 De repente ele lembrou
 Assim meio sem querer

 Deu um sorriso amarelo
 E levantou o boné
 Sabia que tinha o dinheiro
 Não era nenhum caloteiro

 O que ninguém esperava
 Foi o que se viu então
 Tinha dez notas dobradas
 Somando quase 1 milhão

 Com tanto ladrão por aí
 Foi logo explicando o José
 O melhor é se prevenir
 Guardar na careca ou no pé

Fonte:
Revista Nova Escola

Fanny Abramovich (Dona Licinha)


A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B... 

 Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos. 

 A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza! 

 Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo... 

 Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante. 

 Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas. 

 Um abraço apertado, 
 cheinho de gostosuras, da
Ciça

Fonte: