terça-feira, 21 de agosto de 2012

Florbela Espanca (Cavalgada de Poemas) v.2

IN MEMORIAM
Ao meu morto querido


Na cidade de Assis, "Il Poverello"
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!

"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água..."
Ah, Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa

Batida por furiosos vendavais!
Eu fui na vida a irmã dum só Irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!

OUTONAL

Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago...

Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...

Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...

MOCIDADE

A mocidade esplêndida, vibrante,
Ardente, extraordinária, audaciosa.
Que vê num cardo a folha duma rosa,
Na gota de água o brilho dum diamante;

Essa que fez de mim Judeu Errante
Do espírito, a torrente caudalosa,
Dos vendavais irmã tempestuosa,
- Trago-a em mim vermelha, triunfante!

No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir!

Ama-me doida, estonteadoramente,
O meu Amor! que o coração da gente
É tão pequeno... e a vida, água a fugir...

NOSTALGIA

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p'las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

O meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

AMBICIOSA

Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O vôo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
- Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? - Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor dum deus!...

CRUCIFICADA

Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las,
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
- Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.

E depois... Ah! depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!

ESPERA...

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!...

INTERROGAÇÃO
A Guido Batelli

Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma de charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize pra onde vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra...
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

VOLÚPIA

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...

FILTRO

Meu Amor, não é nada: - Sons marinhos
Numa concha vazia, choro errante...
Ah, olhos que não choram! Pobrezinhos...
Não há luz neste mundo que os levante!

Eu andarei por ti os maus caminhos
E as minhas mãos, abertas a diamante,
Hão de crucificar-se nos espinhos
Quando o meu peito for o teu mirante!

Para que corpos vis te não desejem,
Hei de dar-te o meu corpo, e a boca minha
Pra que bocas impuras te não beijem!

Como quem roça um lago que sonhou,
Minhas cansadas asas de andorinha
Hão-de prender-te todo num só vôo...

MAIS ALTO

Mais alto, sim! mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quem

O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!

Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!
Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
A rutilante luz dum impossível!

Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!

NERVOS D'OIRO

Meus nervos, guizos de oiro a tilintar
Cantam-me n'alma a estranha sinfonia
Da volúpia, da mágoa e da alegria,
Que me faz rir e que me faz chorar!

Em meu corpo fremente, sem cessar,
Agito os guizos de oiro da folia!
A Quimera, a Loucura, a Fantasia,
Num rubro turbilhão sinto-as passar!

O coração, numa imperial oferta.
Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,
É uma rosa de púrpura, entreaberta!

E em mim, dentro de mim, vibram dispersos,
Meus nervos de oiro, esplêndidos, que são
Toda a Arte suprema dos meus versos!

A VOZ DA TÍLIA

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça,
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primavera...
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás de ser tília como eu sou..."

NÃO SER

Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!

Ah! arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!

Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro duma flor aberta!...

Fonte:
Florbela Espanca. Charneca em Flor.

Eça de Queiróz (A Rainha e a Escrava)

Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico, de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua borda!

Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas...

Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de ouro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.

Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.

E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue.

Mas, ai! dor sem nome! O corpozinho tenro lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lhes mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada magnificamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolsas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A rainha tomou a mão da serva. E esta, sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros.

Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes.

As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo “ah!” – lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a escrava não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... E então sorriu e estendeu a mão.

Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?

A aia estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:

– Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu filho!

E cravou o punhal no coração.

Fonte:
Eça de Queiróz. A Aia.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 644)

Uma Trova de Ademar 

O pantanal se engalana,
mas eu mesmo desconfio;
que até a própria chalana
sente ciúmes do rio.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Vendo a descrença ao meu lado
e a esperança por um triz,
eu chego a achar que é pecado
crer na vida e ser feliz!
–Domitilla B. Beltrame/SP–

Uma Trova Potiguar 


A inspiração não me veio
trazer um verso feliz,
mas em teus olhos eu leio
a trova que não te fiz.
–José Lucas de Barros/RN–

Uma Trova Premiada 


1983  -  Maricá/RJ
Tema  -  FRIO  -  1º Lugar


Meu destino é uma contenda,
é um eterno desafio:
- vem o sonho, faz a renda...
- vem a vida, puxa o fio...
–Izo Goldman/SP–

...E Suas Trovas Ficaram 

De um sentimento profundo,
no silente ou no escarcéu,
prosa é linguagem do mundo,
o verso a prosa do céu.
–Fernando Vasconcelos/PR–

U m a P o e s i a 


Aqui por estas areias
Já correram muitos pés...
Estalaram muitos arcos,
Vibraram muitos borés...
Estes garbosos coqueiros
São fantasmas de guerreiros
Que o tempo não quis matar!
Estas palmeiras delgadas
São índias apaixonadas
Por homens brancos do mar!
–Rogaciano Leite/PE–

Soneto do Dia 

AMOR ADOLESCENTE.
–Hegel Pontes/MG–


Esta noite, meu bem, foi tão comprida
e tão sem graça foi a madrugada,
que eu senti que você é minha vida
e a vida sem você não vale nada.

Mas é tarde demais. A despedida
é como a pedra que já foi lançada:
mesmo partindo da pessoa amada,
nunca mais poderá ser recolhida.

Tudo acabado: os sonhos que sonhei,
seu amor, seu carinho e seu desvelo...
E esta noite, meu bem, foi tão comprida,

que dei graças a Deus quando acordei
e percebi, após o pesadelo,
que entre nós dois nunca houve despedida.

Fonte:
Ademar Macedo

Neida Rocha (Vem me Buscar)

Busco as estrelas.
Quero te encontrar.
Busco teu rosto
na multidão.
Não te encontro.
Sei que estás
em outro mundo
e clamas por mim,
como eu clamo por ti.
Sei que já fomos um só.
estamos separados
Por nossa própria culpa.
Quero te reencontrar.
Busco teu rosto,
mas sei que na multidão,
não estás.
Sei que vives sozinho
em teu mundo,
assim como eu,
vivo sozinha
na multidão.
Me espera.
Estou indo.
Mas se a saudade
for muita,
vem me buscar.

Fonte:
A autora

Lima Barreto (O Homem que Sabia Javanês)

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver.

– Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!

– Só assim se pode viver, Castro... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!

– Cansa–se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.

– Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!

– Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?

– Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.

– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?

– Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:

– Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte:

 

"Precisa–se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar–me. Insensivelmente dirigi–me à Biblioteca Nacional. Na escada, acudiu–me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que o javanês, língua aglutinante do grupo maleo–polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A Encyclopédie dava–me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá–los bem na memória e habituar a mão a escrevê–los.

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a–b–c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci–me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

– Senhor Castelo, quando salda a sua conta?

Respondi–lhe então eu, com a mais encantadora esperança:

– Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...

Por aí o homem interrompeu–me:

– Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?

Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:

– É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?

Oh! alma ingênua! O homem esqueceu–se da minha dívida e disse–me com aquele falar forte dos portugueses:

– Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?

Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor–me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" – e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil – podes ficar certo – aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta e maltratada.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram–me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz.

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir–me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

– Eu sou – avancei – o professor de javanês, que o senhor disse precisar.

– Sente–se, respondeu–me o velho. O senhor é daqui, do Rio?

– Não, sou de Canavieiras.

– Como? – fez ele. – Fale um pouco alto, que sou surdo.

– Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu.

– Onde fez os seus estudos?

– Em São Salvador.

– Em onde aprendeu o javanês? – indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.

Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei–lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera–se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.

– E ele acreditou? E o seu físico? – perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.

– Não sou – objetei – lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele podem dar–me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

– Bem, – fez o meu amigo – continua.

– O velho – emendei eu – ouviu–me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou–me com doçura:

– Então está disposto a ensinar–me javanês?

– A resposta saiu–me sem querer: – Pois não.

– O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...

– Não tenho que admirar. Têm–se visto exemplos e exemplos muito fecundos...

– O que eu quero, meu caro senhor....

– Castelo – adiantei eu.

– O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Meu avô, o Conselheiro Albernaz, ao voltar de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse–me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidade para quem o tem. Faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz". Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse–me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. De uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê–lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.

Veio o tal livro. Era um velho calhamaço, um in–quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo–me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí–lo.

Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!".

O barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira–me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê–lo, disse–me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi–as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!

Fez–me morar em sua casa, enchia–me de presentes, aumentava–me o ordenado. Eu passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê–lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz–lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. – "Qual!, retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou–me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

O diretor chamou os chefes de secção: "Vejam só, um homem que sabe javanês – que portento!".

Os chefes de secção levaram–me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!".

O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?". Disse–lhe que não, e fui à presença do ministro.

"Bem, disse–me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!".

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez–me uma deixa no testamento.

Pus–me com afã no estudo das línguas maleo–polinésicas; mas não havia meio!

Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English–Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam–me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês". A convite da redação escrevi no Jornal do Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

– Como, se tu nada sabias? – interrompeu–me o atento Castro.

– Muito simples: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.

– E nunca duvidaram? – perguntou–me ainda o meu amigo.

– Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês – uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram–me na secção do tupi–guarani e eu abalei para Paris.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou–me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.

– É fantástico – observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

– Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?

– Que?

– Bacteriologista eminente. Vamos?

– Vamos.

Fonte:
Lima Barreto. O Homem que Sabia Javan~es, e outros contos.

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Projeto Quatro em Um) n.9

Suas Mãos
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

São Fidélis "Cidade Poema"


Suas mãos em minhas mãos
São prenúncio de um amor...
Carícia gera paixão

E tudo esquenta, então,
Pois faísca traz calor!

É o início do aconchego,
Do desejo tão gostoso
Que vai em busca do beijo,
Fonte de intenso desejo
Terno, moleque e meloso.

Em nossas mãos o começo
De toda preliminar,
O bê-á-bá do querer,
O princípio do gostar,
A gota d’ água do copo
Que faz tudo transbordar...

Em nossas mãos o jeitinho,
O toque, o tato e o tino,
O caminho e o destino,
A malícia sem juízo...
Nossas mãos abrem a porta
E depois mais nada importa:
Entramos no paraíso!

Nossas mãos são o começo
E também o meio e o fim
Quando eu toco em você,
Quando você toca em mim!

Uma alma que tem vida
ADEMAR MACEDO/RN

( Poema dedicado ao Site Alma de Poeta www.sardenbergpoesias.com.br, por ocasião do seu 8º aniversário)

São oito anos de vida
de sucesso e muita glória,
de versos e de Poesia
que entram aqui para História.
Uma equipe competente
que põe poesia da gente
aqui...E ela se projeta,
e é pra vocês neste dia,
meus parabéns em Poesia
ao site: “ALMA DE POETA”

Eu encontrei neste Site
a poesia mais completa,
que é centrada na beleza
e de inspiração repleta;
de um modo puro e gentil,
este é o Site do Brasil
que tem “Alma de Poeta!...”

P a r a b é n s !!!

Desencontros
SILVA RAMOS

1853/1930

Quantas vezes me viste sem te eu ver,
E quantas eu te vi que me não viste...
E só agora, ao ver que me fugiste,
Eu vejo o que perdi, em te perder.

Estranha condição do estranho ser
Que alegre vive nesta vida triste:
Que só saibamos em que o bem consiste,
Quando o bem só consiste no morrer.

Quão feliz eu seria, se, na hora
Em que te vi, te visse como agora,
Ideal, nos meus sonhos ideais!...

Se o que eu sinto por ti sentir pudera,
Então, sorrindo, eu te diria: Espera,
E hoje, chorando, não te espero mais.

TROVAS DE DOROTHY JANSSON MORETTI

Tecendo trovas ao vento
nascidas do coração,
num pouco de luz e alento,
Eu disfarço a solidão.
––––––
Que bela seria a vida
se, acima de ódios mortais,
uma ponte fosse erguida
unindo margens rivais!

––––––––––––-

Ora eloqüente, ora mudo,
teu olhar é uma charada:
promessa sutil de tudo,
no fútil revés de um Nada.

Fonte:
Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Celito Medeiros (Seguindo o Intruso)

Caminho vagarosamente sem fazer barulho, para não ser visto pelo intruso que se distancia à minha frente. Passo por entre uns galhos espinhosos, já pisando em plena lama.

É um pequeno alagadiço que tenho que transpor e seguro em um cipó, para não cair ao escorregar naquelas bordas lisas do solo molhado. Mas tem uma coisa que já está me intrigando... por que sigo em frente tão curioso e para ver o quê?

Esquisito, mas parece que algo novamente me convida a seguir em frente, transpor obstáculos e não desistir. Talvez seja um apelo à minha simples curiosidade, uma vez que é atrativo sempre sair e desvendar o que possa parecer difícil e misterioso. Não posso dizer que não tenho meus medos, pois afinal, de medo todos possuem um pouco. Mas isso é coisa que eu não sinto no momento e sim, uma vontade danada de descobrir o que está se passando.

Já começo a suar um pouco, pois temos coberto mais de um quilômetro de caminhada tensa, e continuo sempre com aquela sensação de estar  sendo convidado a seguir em frente. Desço mais uma ribanceira, começando a alcançar um patamar de topografia plana com muitas árvores de cerejeira e peroba, intercaladas por muita taboca.

Quem eu sigo, parece caminhar com muita destreza e nunca se distanciar. Sim, claro, ele deve estar sabendo que eu o estou seguindo. Ele deve estar realmente querendo que eu o siga! Tal pensamento me deixa confuso.

Que droga, estarei sendo levado para alguma armadilha? Por quem? E para quê?

Não pude responder a essas perguntas, nem ficar por muito tempo me questionando, pois começo a ver uma espécie de clarão à minha frente e, minha pulsação aumenta terrivelmente ao tentar imaginar do que se trata.

Naquele mesmo instante sinto que alguém procura me comunicar que não devo ter preocupações e que me aproxime!

Ora, isso já parece estar extrapolando os limites!

Quem estaria querendo que eu me aproximasse e por quê? - Não me dou tempo a respostas e sigo em frente confiante, é isso - confiante - é como estou me sentindo. Já sei, este cara seja quem for, está utilizando de telepatia!...

Seria extraordinário, em plena selva amazônica, alguém usando de comunicação telepática!

Seria a mesma pessoa a qual eu seguia? Então, por isso toda minha coragem e o fato de tê-lo seguido sem muito questionar? - Hei! Realmente eu já devia ter percebido que não se tratava de um indígena, afinal eu só estava pensando tratar-se  de um indígena e isto fez com que não imaginasse  tratar-se de alguém mais.

As luzes em frente estão mais nítidas, mas estranhamente não parecem ser de uma fogueira. Começo a  perceber que é de mais de um ponto que parte tal claridade.  Não! Não pode ser!... Aquilo é um foguete!?

Pelas barbas de mil profetas, aquilo é uma nave!!?

É claro, estou sonhando. Aperto os dentes na mão esquerda e sinto uma dorzinha, opa!, não estou sonhando, é pura realidade.

Estou ainda molhado, me aproximo mais e mais... quando avisto pessoas! Seriam alienígenas? A clareira na mata não é grande - como essa coisa pousou?

Não, felizmente não, apenas orientais. Vestem uma espécie de quimono. Mas o que estes orientais estariam fazendo aqui? Ou não seriam orientais?!...

Bem, já se podem perceber os olhinhos puxados, pelo menos me parece que sim. O que parece claro é que de fato são orientais de olhos puxados! Estatura mediana. Magros. Irradiando simpatia. Nada leva a crer tratar-se de  inimigos. Ou seriam inimigos disfarçados em docilidades e revestidos com peles de cordeiro? Nem mesmo havia obtido respostas, contemplo aquele objeto estranho, mas que com certeza tem características de uma nave. Mais ou menos uns seis metros de altura por uns vinte e cinco de comprimento. A envergadura das asas cobre além do corpo de uns oito metros, mais uns três de cada lado. Escura, ou será por causa da noite que chega à madrugada?

Não, realmente é escura, talvez um grafite ou sei lá o quê! Bico bem afinado, asas curtas para tal tamanho, bem pontiagudas, espere... parece ter um par de asas ainda menores no dorso que se alongam afinando até a cauda, terminando por elevar-se um pouco. É isso, as asas começam no bico e terminam na cauda, sendo que o centro da nave é o ponto mais alongado, formando uma espécie de estrela esmagada. Debaixo da interseção das asas está descida uma escada com corrimão.

Não percebo de imediato janela alguma além da que se situa na parte frontal. E é muito bonito o acabamento delas. Estranho eu não estar observando luzes coloridas piscarem, pois isto é o que eu imaginaria ver numa nave extraterrestre. Possui apenas algumas inscrições, mas parecem até familiares, pelo menos num escudo ou coisa assim, logo atrás do que seria provavelmente a cabine de comando. Em alto relevo, não distingo bem o desenho, mas vejo claramente a letra e o número: S 12.

Não tenho mais tempo para observações minuciosas, pois estão à minha frente quatro seres de aparência oriental, sendo  um deles uma mulher, pelos cabelos bem longos e pretos.       

Fico muito confuso, pois parecem bem humanos como se fossem nativos deste planeta, e a princípio nada percebo de diferente nestes seres, parecendo familiares.

Estariam estes Japas ou Chinas fazendo alguma experiência em nossas florestas? Mas, e este tipo de nave desconhecida, no meio da mata sem campo de pouso?

Sou tirado desses pensamentos com um deles que se adianta e me telecomunica dizendo:

- Tudo será devidamente esclarecido se você me der a honra de poder ser feito, ao devido tempo!

Reparo então, que o sujeito da esquerda está com seu quimono ou túnica um pouco suja e molhada, do que rapidamente posso concluir ser o furtivo visitante da noite que eu havia seguido até aqui.                    

Então procuro simplesmente... dar a entender a eles em pensamento, que estou um pouco desorientado com tudo isto. No entanto permanecerei na retaguarda, para não ser iludido ou ludibriado por quem quer que seja.

- Hei, funcionou!!!

Ele responde telecomunicando que está certo, e que compreendem como eu possa estar me sentindo. Diz também, que somente o que eu queira comunicar é que será compreendido por eles, que fui muito esperto em perceber logo que havia telecomunicação, bem antes de vê-los quando eu estava seguindo o furtivo da noite.

Da mesma maneira ele só comunicará o que for necessário ou perguntado.

Pergunto que garantias eu tenho de não ser apenas “usado” por eles, e imediatamente recebo como resposta:

- Apenas a sua intuição e capacidade de perceber.

Neste momento, a acompanhante feminina faz um gesto que entendo como sendo para eu entrar na nave. Estremeço..., engulo em seco e logo comunico que não estou com tanta pressa e prefiro trocar algumas idéias primeiro.

Vou logo perguntando o que fazem aqui e o que querem de mim. Novamente é meu primeiro interlocutor que comunica:

- Estamos em missão nesta área do planeta, estando perfeitamente “autorizados” a seguir com um projeto predeterminado e aprovado pela Patrulha Galáctica.

Diz também que seguiram a mim e meus companheiros nos últimos dias pela tela do radar de sua espaçonave. Não sei se estão respondendo de maneira a esclarecer ou a confundir ainda mais.

O que estou presenciando é real, preciso logo ter uma boa compreensão e tomada de decisão, para não complicar o encontro ou fazer algo de que me arrependa mais tarde.  Continuo suando e já estou com a boca seca. Pudera!

 Fonte:
Celito Medeiros. De Olho na Terra. Ed. All Print, 2005.

Ademar Lopes Pessoa / PB (Caderno de Sonetos)

A MEUS AMIGOS, OS LIVROS

A Deus aradeço a amizade de vocês,
Com que tão cedo na vida fui agraciado,
Pois sem ela, hoje eu seria um pobre coitado,
Sem compreender o bem ou o mal que a mim se fez.

Quantas vezes vocês receberam o meu pranto,
Enquanto eu lia o que vocês muito me diziam,
Que até suas páginas tanto se umedeciam
Me acalentando, se em mim desgosto era tanto !

Assim, a vocês serei sempre muito grato,
Pelos conselhos que vocês me cumularam
Que hoje, mais experiente e mais confortado,

Sigo minha vida sem me sentir um ingrato,
Sem ter ofensas para os que me maltrataram,
E continuar amando e me sentindo amado !

SAUDADES ETERNAS

Tua imagem querida dentro em mim é tão forte,
Pois sempre foste bom, amigo e inteligente,
Que a saudade será eterna daqui para a frente,
E a levarei comigo até a minha morte.

Se te faltei o amparo, perdão eu peço a ti,
Como peço a Deus tua eterna proteção;
E que me dê forças para os dias que virão,
Tão diferentes dos dias que contigo vivi.

Vai ser muito difícil suportar tua saudade,
Tão intensa porque eras bom e partiste cedo,
Quantas alegrias tu me destes desde criança,

Que hoje tanta tristeza meu coração invade,
E não creio que vou suportá-la, e tenho medo,
Pois não sei se com ela meu peito descansa.

DE REPENTE

De repente senti que o tempo passou.
- O tempo da felicidade e do amor.
E a vida, se não era, hoje é tão sem graça ...
Pois sem eles nada fica, tudo passa.

Assim, quando já não há esperança,
Quando a vida se vai e sem tardança,
Tento rever o passado, dia a dia,
Para sentir como ele se exauria.

Enquanto eu esperava ser amado,
O tempo passava sem eu perceber,
Mas havia esperança nos atos meus,

De um dia viver feliz ao seu lado,
Mas hoje, já não há um alvorecer
Que me anime, nem mesmo Deus.

O ENTARDECER

Sinto no entardecer um certo encanto,
Uma promessa de encontros me ofusca,
No vôo suave dos pássaros em busca
De uma árvore onde repousem num canto.

No sol que no horizonte desaparece,
A mostrar que o Rei da Luz vai dormir,
No deslocar das pessoas por aí;
No lar, se a família reza uma prece.

Assim, há no entardecer um sinal
De que devemos viver em união,
Sempre em procura da paz e do amor,

Evitando assim a vida infernal,
Àqueles que sentem que não foi em vão
O entardecer do dia que passou.

LINDA MULHER

Linda mulher. Em meiguice, a primeira.
Sua imagem, que guardarei a vida inteira,
Deixou minha a alma por demais confusa,
E do meu estro se tornou eterna musa.

A alma é sofrida por sentir sua falta,
Enquanto o estro tanta beleza exalta.
Sentem os dois só por esta princesa
Tão puro amor e tamanha tristeza.

Pois sabem que ela é uma bela criatura,
Não só pelo que seu corpo irradia,
Seu caráter, sua bela formação

Levam minha alma e meu estro à sua procura,
Por toda a vida, na busca, dia a dia,
Pois sua imagem vive em meu coração.

O HOSPITAL

São gritos, correrias, tristezas e esperança,
As cenas de cada hospital no seu dia-a-dia,
Corações a esperar trazerem alegrias,
Médicos e enfermeiras - Luta que não cansa !

Se deles a dedicação e a competência
Confortam cada paciente e seus parentes,
O hospital se torna um templo. Não sentes,
Quando é salva uma vida que era só carência ?

O hospital se torna um lugar tão sagrado,
Que cada profissional seu, se refletir
Que suas ações, que já salvaram tantas vidas,

São um atributo que lhe foi por Deus legado,
Que nas suas ações Ele está dentro de si,
E lhe agradece com suas bénçãos repetidas.

VOCÊ

Você vive sempre nos sonhos meus,
E, no entanto, mal sabe quem eu sou.
Por você nutro o mais profundo amor,
E, comovido, sou tão grato a Deus.

Quero expressar a você meu sentimento,
Mas eu tenho receio da sua recusa,
E, minha alma, já por demais confusa,
Ainda me pergunta até quando aguento

Guardar só comigo este amor platônico,
Já que necessito do seu carinho,
Neste momento de tanto sofrer.

Mas perto de você fico afônico,
E até me afasto e penso no caminho :
- Que em novo sonho venha aparecer !

A PROFESSORA

Das primeiras letras, a professora
É para nós imagem tão querida,
Como da santa que por toda a vida
Foi sempre amiga, terna e acolhedora.

Na verdade, milagres operou,
Apesar de viver de um vil salário,
E desconhecida do noticiário,
Até quando um presidente falou

Que, aquele que nada sabe fazer
Termina por ser professor.
Ele é que não sabe a nobre missão

De quem, com amor, nos ensina a ler,
A dar passos em busca do valor,
Do conhecimento e da profissão !

NUM GRANDE AMOR ...

Não ... Num grande amor não há adeus,
Num grande amor não há despedida,
Pois ele transcende além da nossa vida,
E só é um grande amor graças a Deus.

Num grande amor há renúncia e há perdão,
Num grande amor há pura sinceridade,
Num grande amor há até a ingenuidade
Da pureza manifesta de cada coração.

Num grande amor não há vencido,
Num grande amor só há vencedor,
Se há lágrima, se há até gemido,

São manifestações que, com fervor,
Duas almas se entrelaçam no sentido
Da vida, da felicidade e do amor !

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=96&x=18&y=5

Camilo Castelo Branco (Sete Mulheres)

O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram.

A primeira era uma órfã, que vivia da caridade de um ourives, amigo do seu defunto pai. Chamava-se Leontina. Fiz versos a Leontina, sonetos em rima fácil, e muito errados, como tive ocasião de verificar, quando os quis dedicar a outra, dois anos depois.

Leontina não tinha caligrafia nem idéias; mas os olhos eram bonitos e o jeito de encostar a face à mão tinha encantos.

Era minha vizinha. Por desgraça também, era meu vizinho um algibebe que morria de amores por ela e, à conta deste amor, se ia arruinando, por descuidar-se em chamar freguesia, como os seus rivais, que saíam à rua a puxar pelos indivíduos suspeitos de quererem comprar. Aristocratizara-o o amor: envergonhava-se ele de tais alicantinas, debaixo do olhar distraído da mulher amada.

Odiava-me o algibebe. Recebi uma carta anônima, que devia ser sua. Era lacônica e sumária: “Se não muda de casa, qualquer noite é assassinado”.

Pouco mais dizia.

Contei a Leontina, em estilo alegre, com presunçoso desprezo da morte, o perigo em que estava minha vida, por amor dela. Indiquei o algibebe como autor da carta. A menina, que tivera o desfastio de lhe receber noutro tempo algumas, conheceu a letra mal disfarçada. Tomou-lhe raiva, fez-lhe arremessos e induziu a criada a atirar-lhe com uma casca de melão. Que lhe sujou um colete de veludinho amarelo e verde com listas encarnadas e pintas roxas. Que colete!

Passados tempos, Leontina desapareceu com a família; e, ao outro dia, recebi dela um bilhete, escrito em Almada. Dizia-me que o algibebe escrevera ao seu padrinho uma carta anônima, denunciando o namoro comigo. O padrinho ordenou logo a saída para a quinta de Almada.

O padrinho era o ourives, sujeito de cinqüenta anos, viúvo, com duas filhas mulheres, das quais amargamente Leontina se queixava. As filhas do ourives, receando que o pai se casasse com a órfã, queriam-lhe mal, e folgavam de a ver nas presas de alguma paixão, que a arrastasse ao crime, para assim se livrarem da temerosa perspectiva de tal madrasta.

E o certo é que o ourives pensava em casar com Leontina, logo que as filhas se arrumassem. Estas, porém, sobre serem feias, tinham contra si a repugnância do pai no dotá-las em vida. Ninguém as queria para passatempo e menos ainda para esposas.

Picado pelo ciúme, abriu o ourives seu peito à órfã, ofereceu-lhe a mão, e uma pulseira de brilhantes nela, com a condição de me esquecer.

Leontina disse que sim, cuidando que mentia; mas passados oito dias admirou-se de ter dito a verdade. Nunca mais soube de mim, nem eu dela; até que, um ano depois, a criada que a servia me contou que a menina casara com o padrinho e que as enteadas, coagidas pelo pai, se tinham ido para o recolhimento do Grilo com uma pequena mesada e a esperança de ficarem pobres. Não sei mais nada a respeito da primeira das sete mulheres que amei, em Lisboa.

 Nota:

Eu sei mais alguma coisa que merece crônica. Leontina subjugou o ânimo do marido; descobriu que ele era rico e gozou quanto podia das regalias do mundo, às quais vivera estranha até aos vinte e quatro anos. O ourives tomou gosto aos prazeres e esqueceu o valor do dinheiro, exceto o que dava às filhas, que lhe saía da secretária com pedaços de vida. Começaram pelos arlequins e pelos touros e acabaram no Teatro de S. Carlos o refinamento do gosto.

Leontina andou falada na sua roda, como esposa fiel e admirável vencedora de tentações. Quase todos os amigos particulares do marido a cortejaram, sem resultado. Deu bailes em sua casa, donde era freqüente saírem os convidados penhorados, às quatro horas da manhã; mas, duma vez, não saíram todos; ficou um escondido no quarto da criada, e lá passou o dia seguinte.

O ourives ignorou muito tempo que a sua lealdade não era dignamente correspondida: porém, suspeitando um dia que a criada o roubava, fez-lhe uma visita domiciliária ao quarto, sem prevenir a esposa, e achou lá o filho do seu primo Anselmo, dormindo sobre a cama da moça, com a segurança de quem dorme em sua casa. Estava de moiras amarelas e vestia um chambre de lã do dono da casa! É o escândalo e mangação!

Foi chamada Leontina a altos gritos. Acordou o filho de Anselmo e foi procurar na algibeira do paletó um revólver. O qüinquagenário viu cinco bocas de ferro, mais persuasivas que a boca de ouro de Crisóstomo, o santo.

Passou ao andar de baixo e gritou pelo código criminal. Leontina tinha fugido para casa da sua amiga e vizinha D. Carlota, pessoa de hipotética probidade.

O escandaloso possessor do chambre despiu-o, vestiu-se, sacudiu as moiras amarelas, sentou-se a calçar as botas, acendeu um charuto, desceu as escadas serenamente e encontrou-se no pátio com dois cabos de polícia e um municipal. Dali foi para o administrador, que o mandou reter até ulteriores explicações.

Leontina, dias depois, foi para o Convento da Encarnação, onde esteve dois anos e donde saiu a tomar caldas em Torres Vedras, por consenso do marido, que a foi lá visitar e de lá foi com ela à exposição a Londres. Da volta da viagem, o ourives morreu hidrópico, legando às filhas umas inscrições, que rendem para ambas um cruzado diário, e à esposa uma independência farta em títulos bancários e em gêneros de ourivesaria.

Consta-me que Leontina se lembrara então de Silvestre; mas ignorava que destino ele tivesse. Incumbiu um compadre de indagar se estava no Porto o homem; a resposta demorou-se alguns dias, sete, creio eu, e ao sexto já ela estava em indagações da vida e costumes dum sujeito de bigode e pêra, que à mesma hora de cada tarde lhe passava à porta num tílburi, tirado por uma orça. Fácil lhe foi saber que o sujeito fora, cinco anos antes, algibebe, tirara o prêmio da Loteria de Espanha e fechara a loja. Era o mesmo algibebe que levara no colete de veludinho com a casca de melão.

Que mudança de cara e de maneiras ele fizera! O dinheiro faz essas mudanças e outras mais espantosas ainda. Chegaram à fala, deram-se explicações e casaram. Eu tive ocasião de os ver ontem no seu palacete a Buenos Aires.

Estão gordos, ricos e muito considerados na rua.

Fonte:
Camilo Castelo Branco. Coração, Cabeça e Estômago.