segunda-feira, 6 de junho de 2016

Irmãos Grimm (Frederico e Catarina)


Houve, uma vez, um moço que se chamava Frederico e uma moça que se chamava Catarina. Tinham-se casado e viviam a vidinha dos recém-casados. Um dia, disse Frederico:

- Vou ao campo, querida Catarina, e, quando eu voltar, quero encontrar qualquer coisa bem quentinha em cima da mesa, para matar a fome, e cerveja bem fresquinha para matar a sede.

- Está bem, querido Frederico! - respondeu a mulher - Podes ir sossegado, que arranjarei tudo direitinho.

Ao se aproximar a hora do almoço, ela tirou uma salsicha do fumeiro, colocou-a na frigideira, com manteiga, e levou ao fogo. Não demorou muito, a salsicha começou a fritar fazendo espirrar gordura por todos os lados. Enquanto isso, Catarina segurava o cabo da frigideira, muito pensativa. De repente, lembrou-se: "Enquanto a salsicha vai fritando, poderias ir buscar a cerveja na adega." Então arrumou direito a frigideira, pegou uma jarra e desceu à adega para tirar cerveja. Abriu a torneira, a cerveja começou a jorrar para a jarra e ela olhava pensativa, mas lembrou-se: "Oh, e se o cachorro na minha ausência entra na cozinha e rouba-me a salsicha da frigideira? Era só o que faltava!" Largou a jarra e disparou para a cozinha.

Mas chegou tarde demais, o velhaco já estava com a salsicha na boca e ia arrastando-a para fora. Catarina saiu correndo atrás dele pelo meio do campo, mas o animal era mais esperto e mais ligeiro das pernas do que ela, não largou a salsicha e meteu-se no meio do mato.

- Pois que vá! - exclamou Catarina voltando pelo caminho, cansada e afogueada de tanto correr. Assim, muito calmamente entrou em casa enxugando o suor do rosto.

Enquanto isso, a cerveja ficou escorrendo do barril, porque ela se tinha esquecido de fechar a torneira. Enchendo a jarra, a cerveja passou a escorrer pelo chão, espalhando-se pela adega inteira. Quando chegou no alto da escada que ia dar à adega, Catarina viu aquele desastre e exclamou:

- Meu Deus! Que hei de fazer agora para que Frederico não veja esse estrago?

Depois de refletir um pouco, lembrou-se de que ainda sobrara da última quermesse um saco de farinha de trigo. Foi buscá-lo no canto onde estava e espalhou-o por cima da cerveja esparramada.

- Muito bem! - disse ela - Quem sabe guardar sempre encontra no momento preciso. Mas, arrastando o saco com muita pressa, esbarrou desastradamente na jarra cheia, entornando-a, e a cerveja ajudou também a lavar a adega.

- Bem! - disse ela - Aonde vai um deve ir o outro também.

E espalhou bem a farinha por toda a adega. Depois disse, muito satisfeita com o trabalho:

- Agora sim! Vejam como está tudo limpo e bonito!

À hora do almoço, Frederico voltou para casa.

- Então, mulher, que me preparaste de bom?

- Ah, querido Fred! - respondeu ela - eu quis fritar uma salsicha para ti, mas, enquanto fui buscar a cerveja na adega, o cachorro roubou a salsicha. Enquanto fui correndo atrás do cachorro, a cerveja derramou-se, espalhando-se pela adega. Quando fui enxugar a cerveja com a farinha, entornei a jarra. Mas não te aborreças, a adega está toda limpinha e brilhante outra vez!

- Ah, Catarina, - disse Fred. - Não devias ter feito isso. Deixas roubar a salsicha, esvazias a cerveja e ainda por cima espalhas, perdendo toda a nossa melhor farinha!

- É, Fred, eu não sabia, devias ter-me dito.

O marido, então, se pôs a pensar: "Com uma mulher assim, é preciso precaver-se!" Ele tinha justamente economizado uma soma regular de moedas de prata, trocou- as em moedas de ouro e disse a Catarina:

- Olha aqui, mulher, são tremoços loirinhos. Vou guardar dentro deste pote e enterrar no estábulo, sob a manjedoura da vaca. Mas não te metas com ele, pois do contrário te arrependerás.

- Não, Fred! - disse ela - Não o farei, com toda a certeza.

Mas assim que Fred saiu, chegaram à aldeia alguns vendedores ambulantes, levando potes e vasilhas de barro para vender. Chegando à casa de Catarina, perguntaram se desejava comprar alguma coisa.

- Ah, boa gente! - disse ela - Não posso comprar nada. Dinheiro não tenho, só se quiserem tremoços bem loirinhos.

- Tremoços loirinhos? Por quê não? Deixa-nos ver.

- Ide procurar no estábulo por baixo da manjedoura da vaca, lá está enterrado um pote cheio deles. Eu não posso ir.

Os patifes não perderam tempo, puseram-se a cavar e logo desenterraram o pote cheio de moedas de ouro. Meteram tudo nos bolsos e, mais que depressa fugiram, deixando na casa a pobre mercadoria de barro.

Catarina então pensou: Já que ficara com todas essas vasilhas novas era preciso aproveitá-las. Como na cozinha não precisasse de nada, tirou os fundos dos potes e colocou-os como ornamento nas estacas da cerca em volta da casa. Quando Fred voltou e viu aquela decoração de um gênero diferente, perguntou:

- Que significa isso, Catarina?

- Comprei tudo com os tremoços enterrados debaixo da manjedoura. Não fui eu que os desenterrei. Os vendedores tiveram que se arranjar sozinhos.

- Ah, mulher, o que fizeste? Não eram tremoços, mas ouro puro. Era tudo o que possuíamos na vida! Não devias ter feito isso!

- Oh, Fred! - respondeu ela - eu não sabia. Devias ter-me dito.

E Catarina se pôs a refletir, e depois de certo tempo disse:

- Escuta, Fred, vamos reaver o nosso ouro. Vamos perseguir os ladrões.

Fred respondeu:

- Sim, vamos tentar. Mas leva um pouco de manteiga e queijo para termos o que comer durante o caminho.

- Sim, Fred, levarei tudo.

Puseram-se a caminho, mas como Fred andava mais depressa, Catarina foi ficando para trás. "Tanto melhor, - pensava ela, - pois quando voltarmos eu estarei na frente um bom pedaço."

Daí a pouco chegaram a uma colina bastante íngreme, cuja estrada tinha sulcos profundos dos dois lados.

- Oh! Veja só como esta pobre terra está toda machucada e ferida! - disse ela - nunca mais se curará!

Profundamente penalizada, pegou a manteiga e untou as rachaduras de um lado e de outro para que não ficassem tão maltratadas pelas rodas. Mas quando se curvou para fazer o seu ato de misericórdia, um dos queijos caiu-lhe do bolso e desceu rolando pelo morro abaixo.

- Já fiz a caminhada para cima uma vez - murmurou ela - não vou agora descer para tornar a subir. Que vá outro buscá-lo.

Assim dizendo, pegou o outro queijo e jogou-o atrás do primeiro. Mas os queijos não voltavam, e então ela pensou:

- Talvez estejam esperando um companheiro, por não gostar de voltar sozinhos!

E fez rolar para baixo um terceiro. E como os três não se resolviam a voltar, ela pensou:

- Realmente não sei o que quer dizer isto! É provável que o terceiro queijo tenha errado o caminho. Vou mandar um quarto buscá-los.

Mas o quarto não se comportou melhor que os outros. Então Catarina irritou-se e atirou o quinto e depois o sexto queijo, que eram os últimos.

Ficou um certo tempo esperando que voltassem, mas como nenhum voltasse, exclamou:

- Lerdos e poltrões como sois, poderia mandar-vos chamar a morte! Se imaginam que vou esperar mais tempo, enganam-se! Eu vou seguindo o caminho. Podeis correr e alcançar-me se quiserdes, pois tendes pernas mais fortes que as minhas.

Catarina prosseguiu o caminho e alcançou Fred, que tinha parado para a esperar, pois estava com muita fome e desejava comer alguma coisa.

- Bem, deixa-me ver o que trouxeste para comer.

Catarina deu-lhe pão seco.

- E a manteiga? E o queijo? Onde estão? - perguntou o marido.

- Oh, Fred! - respondeu ela. - Passei a manteiga nos sulcos da estrada. Quanto aos queijos logo estarão aqui, um escapou do meu bolso e eu então mandei os outros atrás para que fossem buscá-lo.

- Não devias ter feito isso, Catarina! - disse Fred - Untar a estrada com a manteiga e mandar os queijos rolando morro abaixo!

- Oh, Fred! Se me tivesses dito! - exclamou vexada.

Tiveram, então, de comer pão seco. Enquanto comiam, Fred perguntou:

- Fechaste bem a casa, Catarina?

- Não, Fred, devias ter-me dito antes.

- Então volta para casa e tranca bem a porta, antes de irmos mais adiante, assim aproveitas para trazer o que comermos. Eu te ficarei esperando aqui.

Catarina voltou para casa, resmungando consigo mesma:

- Fred quer alguma coisa para comer. Queijo e manteiga não lhe agradam. Levarei um saco de peras secas e uma garrafa de vinho.

Tendo reunido essas coisas, fechou a parte de cima da porta com cadeado, arrancou a parte de baixo e carregou no ombro, imaginando que a casa ficaria melhor guardada se ela pessoalmente guardasse a porta. Pelo caminho, não se apressou, pensando com isso proporcionar um descanso mais prolongado a Fred. Quando chegou ao ponto onde ele a esperava, deu-lhe a porta da casa dizendo:

- Aqui está a porta da casa, Fred. Assim podes guardar tu mesmo a casa.

- Oh, Deus meu! - disse Fred - Como é inteligente a minha mulher! Trancou a parte de cima da porta e arrancou a parte debaixo, por onde qualquer pessoa pode entrar mais facilmente! Agora é tarde demais para voltar, mas já que trouxeste a porta até aqui, tu a poderás continuar a carregar.

- Carrego a porta de boa vontade! - respondeu Catarina - Mas as peras e o vinho pesam muito. Vou pendurar o saco e a garrafa na porta para que ela os carregue.

Pouco depois, chegaram a uma floresta e se puseram a procurar os ladrões, mas não os encontraram. Sendo já muito escuro, treparam os dois numa árvore, a fim de passar aí a noite. Nem bem tinham chegado lá em cima, surgiram os malandros que lhes tinham roubado as moedas e, por coincidência, sentaram-se justamente debaixo da árvore na qual os dois tinham subido. Acenderam uma fogueira e se dispunham a repartir a presa.

Fred cautelosamente desceu pelo outro lado da árvore, apanhou uma porção de pedras e tornou a subir, com a firme intenção de liquidar os ladrões a pedradas. Mas as pedras não os atingiram e os ladrões exclamaram:

- Daqui a pouco vai clarear o dia, o vento já está sacudindo as pinhas.

Durante o tempo todo, Catarina tinha ficado com a porta no ombro e como o peso era grande ela pensou que a culpa era das peras secas. Então disse:

- Fred! Preciso atirar fora estas peras.

- Não, Catarina! - respondeu o marido - Não faças isso agora, poderia nos trair.

- Ah, Fred, preciso atirá-las, estão pesadas demais.

- Então atira e que o diabo te leve.

As peras secas rolaram de cima da árvore, por entre os galhos, e os malandros disseram:

- Veja só o que estão fazendo os passarinhos!

Pouco depois, como a porta continuasse a pesar, Catarina disse:

- Ah, Fred, preciso atirar fora o vinho.

- Não, não! - respondeu Fred - poderia nos trair.

- Mas preciso atirá-lo, Fred! Está muito pesado.

- Então atira e que o diabo te leve.

Ela despejou o vinho em cima dos malandros e estes disseram:

- Olha, já está caindo o orvalho.

Daí a pouco, porém, Catarina refletiu: "Será que é a porta que está pesando tanto?" e disse:

- Fred, tenho de jogar a porta.

- Não faças isso, Catarina! Ela nos trairá.

- Ah, Fred, preciso fazê-lo. Não aguento mais o peso.

- Não, Catarina! Aguenta mais um pouco.

- Não, Fred, não posso... Já está escorregando!

- Então jogue e que o diabo te leve, - respondeu irritado o marido.

E a porta desceu, fazendo um barulhão enorme, por entre os galhos. Os malandros, assustados, disseram:

- É o diabo que vem descendo da árvore!

Então trataram de fugir a toda pressa, largando no chão o fruto da pilhagem. Quando amanheceu, Fred e a mulher desceram da árvore, encontraram no chão todo o dinheiro e voltaram para casa. Assim que chegaram, Fred disse:

- Agora, porém, Catarina, tens de trabalhar duro e fazer tudo direito!

- Sim, Fred, naturalmente! - respondeu ela - Irei ao campo ceifar o trigo.

Quando chegou ao campo, ela se pôs a pensar:

- "Será melhor comer antes de ceifar, ou será melhor dormir primeiro? Bem, comerei primeiro."

Depois de comer, ficou caindo de sono, começou a ceifar sem enxergar direito o que fazia, de tanto sono, e assim cortou a roupa em dois pedaços, avental, saia e blusa. Despertando dessa longa sonolência, viu-se meio nua, então perguntou a si mesma:

- Será que sou mesmo eu? Não, não pode ser! Não sou eu que estou aqui!

Nisso a noite foi escurecendo. Catarina correu para casa e bateu na vidraça da sala onde eslava o marido e chamou:

- Fred!

- Que aconteceu? - perguntou o marido.

- Quero saber se a Catarina está aí dentro.

- Está, sim! Está lá dentro dormindo.

- Nesse caso eu estou em casa! - disse ela, e saiu correndo.

Lá fora, Catarina viu alguns ladrões que queriam furtar. Aproximou-se deles e disse:

- Quero ajudar-vos também.

Os ladrões concordaram, julgando que ela conhecesse bem o lugar. Mas Catarina, colocando-se diante das casas, perguntava:

- Minha boa gente, que tendes aí? Nós queremos roubar!

Pensando que ela queria vingar-se deles, os ladrões trataram de se ver livres dela e disseram-lhe:

- À entrada da aldeia, o pároco tem uma porção de nabos amontoados no campo, vai buscá-los para nós.

Catarina foi até o campo e começou a apanhar os nabos, mas era tão preguiçosa que tardava a mover-se. Nesse momento, ia passando um homem que a viu e parou, julgando que ela fosse o Diabo que estivesse ali colhendo os nabos. Correu à casa do pároco e disse:

- Reverendo, o diabo está no vosso campo, arrancando todos os nabos.

- Pobre de mim! - respondeu o padre - Estou com um pó machucado e não posso ir lá exorciza-lo!

O homem, então, disse:

- Isso não tem importância, eu vos carregarei nas costas!

Quando chegaram ao campo, Catarina pôs-se de pé, espichando-se toda.

- Ah, é o diabo, é o diabo! - exclamou apavorado o padre, e deitou a correr juntamente com o homem.

Tão grande era o medo, que o pároco, com o pé machucado, corria mais depressa do que o outro que o carregara nas costas e que tinha os pés sãos.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/titles

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 1a. Parte

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RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo das Tragédias Cariocas, último ciclo do teatro de Nelson Rodrigues, sob a perspectiva do trágico moderno. Para isso, estudiosos do gênero, como Peter Szondi e Raymond Williams, foram tomados como base para compreender a modificação que tem ocorrido dentro do gênero no decorrer dos séculos. Aspectos como o funcionamento das três unidades aristotélicas, as personagens e a ação desenvolvida através da relação intersubjetiva, além, é claro, da própria ideia que a palavra trágico tem se apropriado, é fundamental para entender o mecanismo interno deste gênero literário.
                                                                           
1. Introdução

O que segue é uma análise voltada à tragédia como gênero literário e em seu sentido popular, ou seja, no seu sentido mais acadêmico e no uso comum do termo. A princípio, as peças em estudo são classificadas como tragédias, denominação que Nelson adotou antes de falecer quando na elaboração do seu teatro completo. Porém, verificarei se podem realmente ser definidas como tragédias, uma vez que a base do gênero mudou radicalmente. Isso porque desde o surgimento da tragédia grega, com os helênicos, passando por uma crise, com Eurípides, até uma tentativa de salvamento, com os alemães[1], tal formação teatral pouco manteve de sua ideia inicial, da sua ambivalência dionisíaca e apolínea. Da tragédia grega à tragédia moderna houve uma transformação gigantesca. E esse resultado é o que mais me interessa, visto que é com base na tragédia moderna que analisarei Nelson Rodrigues.

Quando falamos em tragédia, numa concepção atual e vulgar do termo, sempre nos vem à mente um acontecimento ruim, relacionado ou a acidentes, ou a problemas sérios. E quando falamos, então, em ler uma tragédia ou assistir a uma tragédia, pensamos logo numa peça de teatro que envolva acontecimentos tristes, mortes, desgraça para as personagens. É certo que isso vem de uma tradição e se mantém até hoje, extrapolando as fronteiras da dramaturgia e inserindo-se no cotidiano. E isso é ainda mais forte quando vinculado ao nome de Nelson Rodrigues, um dramaturgo tido por maldito, cujas peças são infestadas de mortes, assassinatos, suicídios, relações incestuosas. Mas também é certo que quando falamos em tragédia, principalmente no aspecto literário, abordamos o fator estético: o gênero trágico. E falar de estética literária implica saber como funcionam sua trama, sua estrutura. Para o meio acadêmico, trágico é antes de tudo o gênero. É claro que não devo desconsiderar uma natural ligação entre os dois sentidos de trágico: o sentimento trágico e o gênero trágico.

A tragédia é um gênero que percorreu milhares de anos. Existente desde os helênicos em Sófocles e Ésquilo, ultrapassou todo esse tempo e persiste até hoje entre nós. Obviamente, depois de tanto tempo, ela não permanece com as mesmas características. A tragédia helênica, conforme explica Nietzsche, tinha como base principal o coro, que com o tempo, mais precisamente com a influência de Sócrates sobre Eurípides, foi abolido, perdendo a tragédia seu elemento ambivalente fundamental[2]. Hoje se consegue distinguir a tragédia clássica, medieval, renascentista, elisabetana, neoclássica e a tragédia moderna[3]. A que mais me interessa neste momento é a última, a permanência da tragédia moderna, pois é a partir dela que pretendo analisar as tragédias rodrigueanas.

2. Trágico rodrigueano

A obra dramática rodrigueana tem suas peculiaridades estéticas e formais, principalmente se formos percebê-la sob a perspectiva da tradição da tragédia. Falo de peculiaridades tanto se olharmos Nelson com base nesta tradição quanto se o vermos dentro de seu próprio conjunto de peças, uma vez que ele sempre tentou experimentar novos formatos.

Nas Tragédias Cariocas, Nelson elaborou o próprio sentido do trágico, misturado ao riso e ao grotesco. Daí provêm as várias nomenclaturas para designar suas peças, variando de “tragédia carioca” à simples “peça”. A questão é se, com tais nomenclaturas, o dramaturgo manteve uma linha trágica, com elementos do trágico clássico e do trágico moderno, fundando o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano.

Se por um lado a tragédia clássica baseava-se na representação do mito a partir de uma perspectiva externa, a tragédia moderna se funda na esfera do intersubjetivo, numa perspectiva interna. Assim, o que interessa na tragédia helênica é o que está fora, tanto das personagens quanto da sua própria estética. Já na tragédia moderna, interessa o que está dentro.

Conforme Schiller explica em Teoria da tragédia (1991), a tragédia é a representação do real, apenas transparecendo imagens dos homens enfrentando situações-limite impulsionados pelas crenças espirituais. “O trágico apresenta o homem naquela situação-limite em que, ser natural que é, comprova contudo a sua destinação espiritual.” (1991:12) Assim, a tragédia mostra o homem sofrendo, mas resistindo a esse sofrimento graças à dignidade. Mostra, enfim, a luta que há entre a vontade e a natureza, a moral e o natural, não sem sofrimento, mas com resistência.

Sabe-se, entretanto, que Schiller desenvolveu suas ideias acerca da tragédia clássica. Apesar de ser um olhar voltado ao clássico, essa carga de tragicidade, de sofrimento, perdurou por muito tempo e ainda hoje resiste. Embora as bases da tragédia tenham mudado radicalmente, pode ser identificada, pelo menos em Nelson Rodrigues, a tendência em demonstrar a vontade do herói em luta contra a natureza. Ou seja, o herói [4] possui uma vontade interna iminente que entra em conflito com um fator externo, social, natural, desafiando as “forças do universo”.

Exemplos disso são os heróis das tragédias de Nelson Rodrigues. Há neles uma tentativa à adequação moral imposta pela sociedade vigente, em que eles se portam conforme são ditadas as regras, comportando-se como bons maridos, esposas, filhos e pais de família. Entretanto, a vontade interior de cada um deles clama por uma libertação. Daí surge o conflito que se passa no íntimo das personagens: a luta entre o que elas querem e o que elas devem. Porém, chega um momento em que os desejos são mais fortes, sobressaem-se às regras sociais, extrapolam protocolos e são, enfim, revelados. Então, surgem a agonia e o sofrimento, pois as personagens digladiam consigo mesmas e com outras personagens, até que elas deixam de resistir, resignam-se a aceitar a força maior do desejo evidente.

Assim é o caso de Zulmira, Tio Raul, “Seu” Noronha, Aprígio, Werneck e Herculano – cada qual com suas peculiaridades. São personagens que sofrem por um desejo reprimido e sucumbem a esse desejo depois de um estado de luta entre a vontade e o natural. Nesse aspecto, Nelson Rodrigues consegue atualizar o que o trágico clássico pretendia, como também consegue, ao mesmo tempo, refletir aquilo que há de mais incômodo na sociedade contemporânea: a relação conflitante entre desejo e repressão social. No entanto, há no herói e no sábio da arte trágica uma superioridade, pois eles não sofrem suas dores, comovem-se e comovem-nos. Tanto é assim que o sofrimento do homem virtuoso nos comove mais dolorosamente que o do depravado. Já a felicidade de um malfeitor nos faz sofrer muito mais que a infelicidade de um homem virtuoso. Nelson Rodrigues comentou atitude sua semelhante, ao comparar seu trabalho dramático com Brecht:

Brecht inventou a “distância crítica” entre o espectador e a peça. Era uma maneira de isolar a emoção. Não me parece que tenha sido bem-sucedido em tal experiência. O que se verifica, inversamente, é que ele faz toda sorte de concessões ao patético. Ao passo que eu, na minha infinita modéstia, queria anular qualquer distância. A plateia sofreria tanto quanto o personagem e como se fosse também personagem. A partir do momento em que a plateia deixa de existir como plateia – está realizado o mistério teatral.
 
O “teatro desagradável” ofende e humilha e com o sofrimento está criada a relação mágica. Não há distância. O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própria identidade. Está ali como o homem. (RODRIGUES, 1995:286)

Com isso, o dramaturgo apresenta sua intenção que já fica clara em suas peças: levar o sofrimento humano, sem distanciamento, para o palco, para que o público possa refletir sobre suas dores. Além, é claro, que possa sofrer ao mesmo tempo em que a personagem sofre no palco. Em suma, a intenção de Schiller está transparecida na intenção de Nelson Rodrigues. Se o herói sofre, o espectador sofre junto.

Aquele estado de luta do qual Schiller fala, e transcrevo aqui, acontece justamente para que o homem mantenha a adequação moral. É por conta desse princípio que a tragédia é o gênero literário que mais proporciona prazer moral. Na tragédia os instintos naturais são suprimidos em prol da adequação moral. Assim é o processo de Nelson Rodrigues nas suas tragédias, pois as personagens não conseguem carregar em si a força da moral e sucumbem, depois de um estado de luta, à força natural, ou melhor, ao instinto.

Se formos utilizar o exemplo de Zulmira, de A falecida, identificamos um viés semelhante ao explanado por Schiller. Zulmira tem uma estranha doença não diagnosticada pelo médico, mas instintivamente descoberta pela própria heroína. Ao mesmo tempo, sabemos da implicância que ela tem com sua prima Glorinha, inclusive atribuindo a ela o motivo de sua doença. Inconscientemente, Zulmira sacrifica-se em prol de uma moral, uma vez que a sua traição foi descoberta e, moralmente, ela não aceita o fato de ter um amante. Daí, a busca de uma doença para compensar a traição.

(Zulmira num desespero maior.)
ZULMIRA – Mas ela tem razão! Eu é que não podia ter um amante!
PIMENTEL – Vem cá!
(Pimentel tenta segurar Zulmira, que se desprende com violência.)
ZULMIRA – Não me toque!
PIMENTEL – Dá um beijo!
ZULMIRA – Nunca!
PIMENTEL – Por quê?
ZULMIRA – Não adianta. Não acho mais graça em beijo, não acho mais graça em nada! (RODRIGUES, 1985:110-1)

Mas é aqui que acontece o caminho inverso da tragédia clássica: a adequação moral está no interior da própria personagem, não no externo, representado na ação trágica. Há a busca da realidade, mas da realidade interior. E a realidade interior de Zulmira é que não podia ter traído o marido, por isso agora não pode amar mais ninguém e abstém-se do amor.

Um outro exemplo é o do jovem Arandir, de O beijo no asfalto. Aparentemente um herói inexoravelmente virtuoso, mas cuja virtude vai sendo, pouco a pouco, destruída pelas matérias sensacionalistas do repórter Amado Ribeiro. Aos olhos do público, Amado faz Arandir aparecer como um homossexual, que empurrou o amante para debaixo do lotação e o beijou. Dentro do texto, sabe-se que Arandir não empurrou o rapaz, pois o próprio Amado confirma que é invenção sua. Por outro lado, sobre o beijo dado no atropelado, paira uma dúvida durante toda a peça, pois há o testemunho de Arandir, de Aprígio e de Amado, sempre contraditórios e ambíguos. Esse é um fator que faz desta peça uma das grandes obras-primas de Nelson: a questão do beijo não é resolvida, ninguém fica sabendo em que circunstâncias o beijo foi dado, visto que o próprio Arandir se contradiz sobre o beijo que ele mesmo deu.

SELMINHA (com surda irritação) – Primeiro, responde. Preciso saber. O jornal botou que você beijou.
ARANDIR – Pensa em nós.
SELMINHA – Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou na...
ARANDIR (sôfrego) – Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me beijou.
SELMINHA – Na boca?
ARANDIR – Já respondi.
SELMINHA (recuando) – E por que é que você, ontem!
ARANDIR – Selminha.
SELMINHA (chorando) – Não foi assim que você me contou. Discuti com meu pai. Jurei que você não me escondia nada!
ARANDIR – Era alguém! Escuta! Alguém que estava morrendo. Selminha. Querida, olha! (Arandir agarra a mulher. Procura beijá-la. Selminha foge com o rosto) Um beijo.
SELMINHA (debatendo-se) – Não! (Selminha desprende-se com violência. Instintivamente, sem consciência do próprio gesto, passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse.) (RODRIGUES, 1990:128)

Por ter beijado na boca outro homem, por ter sucumbido a uma vontade maior, a uma força natural, Arandir encontra-se em luta consigo mesmo, num sofrimento solitário, pois ninguém mais acredita nele, que, ainda assim, resiste contra as forças externas, as imposições e protocolos sociais.

Para Schiller, o teatro é uma forma artística capaz de elevar o sentimento humano a um sublime entretenimento. É no teatro que se evocam as coisas mais inteligíveis e autênticas, onde há homens de vício e virtude, onde há a felicidade e a desgraça. É no teatro que o homem confessa suas paixões, onde tira suas máscaras, onde a verdade se mantém incorruptível. Assim vejo o teatro de Nelson Rodrigues: nele, os homens não conseguem se manter nas formalidades que a sociedade impõe e revelam os seus maiores problemas, suas verdades, sejam elas quais forem.

As personagens trágicas, essas são seres reais, que obedecem à violência do momento e representam um indivíduo e revelam a profundeza da humanidade. Assim são as personagens de Nelson Rodrigues: parecem ser representantes da espécie, uma espécie repleta de segredos, os quais elas vêm revelar. Revelam não somente as suas verdades, mas a realidade de uma sociedade inteira.

Conforme explica Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (2001), o conceito de drama possui vínculos históricos também com sua origem e não somente com seu conteúdo. Uma vez que a arte expressa algo inquestionável, seu entendimento só é total em uma época para a qual o evidente se tornou problema. Ou seja, do ponto de vista estético, uma obra de arte só é compreensível em uma certa época em que foi escrita e quando a sua problemática estava em voga.

A esfera do “inter”, no drama moderno, parecia o essencial da existência do homem, mas não é nada senão o seu interior que se manifesta e torna-se presença dramática. Tudo o que ficava aquém ou além dessa esfera, deveria permanecer estranho ao drama, principalmente o que era desprovido de emoção. Desse modo, toda a temática do drama se manifesta na esfera do “inter”.

Nesse meio intersubjetivo, o meio linguístico utilizado era o diálogo e, no Renascimento, se tornou o único componente da tessitura dramática. Isso é o que distingue o drama da tragédia antiga, da peça religiosa medieval, da peça histórica e do teatro barroco. Assim, o diálogo se compõe no segundo elemento constitutivo do drama, sendo o primeiro a própria ação intersubjetiva.

O diálogo reflete aquilo que se passa no decorrer da trama da peça, dentro do drama. Nada de fora interessa ou é transmitido com o domínio do diálogo. O diálogo é o principal instrumento para a realização das relações interhumanas, ou seja, a ação do “inter” encontra no diálogo sua melhor forma de expressão. O diálogo é o transmissor exclusivo da dinâmica interna do drama moderno.

Nesse caso específico do diálogo, Nelson o incorpora não só enquanto portador de toda ação dramática. O dramaturgo vai além, ele inova na simples forma dialógica teatral. Peças como Boca de Ouro, A falecida, O beijo no asfalto e Toda nudez será castigada, por exemplo, têm toda a peculiaridade nos diálogos. Coerentes com seus propósitos, as personagens mantêm o uso vocabular específico, distintivo. Mas, mais do que isso, é a estruturação dos diálogos, curtos, entrecortados, facilitando a dinâmica interna do texto.
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Notas:
Este texto é parte integrante da dissertação de mestrado denominada Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: um estudo crítico social das personagens rodrigueanas, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[1] A respeito disso, Friedrich Nietzsche desenvolve todo o livro O nascimento da tragédia (2001).

[2] Irã Salomão, em Nelson, feminino e masculino (2000), observa que nas tragédias de Nelson Rodrigues acontece algo semelhante a essa ambivalência, mas entre o feminino e o masculino, que entram em conflito dentro da estrutura dramática, mas não se anulam. “Masculino e feminino realizam um jogo, no qual as regras e seus participantes são muito diferentes de cada lado. (...) Uma fricção e uma fluidez acontecem intermitentemente dentro de cada um destes universos. Da mesma maneira tais contatos e trocas ocorrem entre eles. Neste movimento, nenhuma parte se anula mas, ao contrário disto, elas possuem e reafirmam sua identidade concomitantemente ao seu digladiar.” p. 71.

[3] Quem dá uma abordagem mais detalhada da tragédia de cada época é Raymond Williams em Tragédia Moderna (2002).

[4] Faço observar que, embora seja evidente essa relação entre a vontade e a natureza no teatro rodrigueano, em geral a perspectiva é interna da personagem. Daí Nelson figura-se como dramaturgo moderno. Esse assunto será retomado adiante, quando tratado o trágico moderno.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

sábado, 28 de maio de 2016

Samuel da Costa (Poemas Escolhidos)



O POETA E A MUSA
(a beleza na escuridão)
Para Fá Butler

É o poeta que sofre e chora...
Todas as dores do mundo!

Em algum lugar existe
Um místico e nevoento vergel
Orvalhado pela noite outonal eviterna

É o poeta que sangra e chora
Pela virginal musa etérea
Em um voo noturno!

É o bardo perdido em...
Um jardim encantado
Habitado por grandes,
Perdidos e secretos amores

Para o aedo...
Um simples eu te amo não basta!
Ele prefere apreciar...
A beleza eterna
Na escuridão infinda...
Sangrar e morrer por platônicos amores!
Sagrar em odes imortais
A divinal musa vaporosa
Em horas improprias!

Pois um simples eu te amo...
Para menestrel não basta!
MAR AZUL CÉU AZUL

Mar azul
Céu azul
Navego sozinho pelo mar da tranquilidade
Cheio de esperanças

Tenho pensamentos probos
Tenho pensamentos bons
Pois sei que tenho
Um longo caminho a percorrer

Mar azul
Céu azul
A minha negra arte não conhece limites
Criou asas
Voo para além do infinito

Mar azul
Céu azul
Tenho um longo e tortuoso caminho
Pela frente
Mas sei que ela vai estar lá
A minha espera
Tão linda como só ela sabe ser

Mar azul
Céu azul
Já não dói mais...
A minha negra arte tão carregada
De dor e sofrimento
Não existe mais
A minha negra dor se foi
Dobrou a esquina e desapareceu
Por completo

Mar azul
Céu azul
O crepúsculo eviterno
Já não cega mais meus quasímodos olhos
Não temo a negra noite eterna
Com seus mistérios infindos

Mar azul
Céu azul
Tenho o sono tranquilo
Pois sei que ela estará
Ao meu lado
Quando eu acordar pela manhã

BLACK-FACE

A minha poesia é letra morta
Está descalça.
Está ferida...
Está magoada!
Que pede licença para Tupã.
Embrenha-se mata virgem!
E evanesce!
Em ouvidos surdos.

As minhas entoadas!
São belas-letras sideradas...
Aceleradas!
Que foge do capitão-do-mato!
Baladas dos loucos.
Tortas e abstratas!

A minha écloga ouve o ladrar...
Dos cães selvagens!
E vai se abrigar no Quilombo.

Não! Não minha Deusa de Ébano
Minha sacrossanta virgem vaporosa
Não falaremos do nosso ontem
Nem do nosso amanhã
Muito menos do nosso hoje
Ficamos nos dois deitados
Mudos!
Calados
Inertes!

Ainda vejo a tua carne nua!
Carne trêmula...
Extrema...
O teu corpo incorpóreo

Não me fale do teu ontem.
Nem do teu amanhã
Ficamos nos dois mudos
Abrigados no silêncio eviterno
Para todo o sempre

POEMA PEDRA E A REALIDADE LIQUEFEITA
Para Roberto Lamim

Preciso compor um poema!
Com a urgência...
Escrever com poesia.
Palavras lançadas ao vento!
Sem regras e sem lógicas...
Sem rimas!
Sem dores!
Sem choros e sem lágrimas.
Sem velas.

Preciso esculpir na pedra-sabão.
Um poema com pretéritos...
Mais que perfeitos!!!
Sem deméritos.
Para me recompor...
Com o mundo líquido!
Com a realidade mutável...
Re-produzir a vida sem regras.
Sem rumos...
Onde reina as incertezas...

Mais que preciso...
Tenho que re-escrever!
A vida pós-moderna!
Sem crases...
Sem vírgulas...
Sem métricas...
E sem um ponto final.

Preciso com toda a emergência...
Escrever poemas na areia da praia...
Com verbos mais que perfeitos.
Com poética!

Peças soltas do mais...
Puro platonismo démodé...
Milimetricamente imperfeitos!
Em uma mimese...
Que não imita coisa alguma
Peças ocas liquefeitas
Que nada valem
Que não duraram nano-segundos!
Poemas sintéticos...
Para a Deusa de Ébano!

Re-produzir o deserto dentro de mim!
Re-produzir as belas-artes...
Em pedra-sabão,
Sem gritos sintéticos de dor!
Sem sustos...
Soluços...
E sem ponto final

Quero esculpir a minha negra poesia
Na dita pós-modernidade!
Virar as páginas em branco.
Sair do mundo virtual...
Ganhar as ruas...
Dobrar as esquinas...
Voar e voar leve como uma pluma
Ganhar os céus sem nuvens...
Abraçar os astros.
E se perder no cosmo infindo!
Ser livre afinal!
De todas as dores
E de todos os amores

Fonte:
O Autor

Olivaldo Júnior (A Fonte Azul)

Era uma vez uma antiga vila que sofria com a falta do bem mais precioso que existe: a água. Por mais que tivessem bens de toda a espécie, coisas que o dinheiro compra, lhes faltava o H2O, néctar, o supra sumo que faz o mundo girar, circular, se animar.

Eis que um dia, do grito da gruta mais funda, do fundo da concha mais cálida, do sal da terra mais doce, um fio cristalino do que em nós é quase tudo, a água brotou de uma fonte que, refletindo o rosto do sol, se azulava e foi chamada por todos de "Fonte Azul".

Essa fonte ficava bem no meio de uma divisa de terras entre quatro cidades, que eram como os quatro cantos da Terra. De quem seria essa dádiva? A quem pertenceria aquela que matava a sede do justo e do injusto, do "Cristo" e do iníquo, sem olhar a quem?

Juntaram-se homens das quatro cidades e, por mais que suas mulheres pedissem a eles que se sentassem e resolvessem pelo bem comum, ou seja, pela partilha do mel que sacia a sede, aqueles homens estavam dispostos a derramar sangue pela água.

Assim, num dia em que o sol tinha jeito de lua, nova, com a face escondida mesmo à mostra, em batalha, cada exército de cada cidade, com lança nas mãos, guerreou pela fonte que azulava ao sol pleno em seu fino cristal, pronta a saciar quem a visse.

Depois de uns dias assim, a fonte, em meio a guerra por ela, de azul foi passando a cinza e, de cinza, a negra, escura, pastosa, até que, no lugar de água, vertia mesmo petróleo. Quem pode querer beber ouro negro em vez da prata azul que o sustenta?

Uma a uma, caíram as lanças no chão, todo negro, sem água, em nada adiantou a peleja. Assim que os pobres se deram conta de que morreriam de sede, as mulheres, devagar, buscaram cada uma seu homem. A luta fora vã. A "Fonte Azul" era morta.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.pt.dreamstime.com

Pedro Du Bois (Poemas Avulsos)


NATURAL

Na natureza decomposta
a dor exposta
em espécies
abatidas
cortadas
decepadas
depenadas
destocadas na força dos tratores
matrizes dos progressos: o homem
traz na aproximação a visão incolor do lucro
e a subsistência dos excluídos se defronta
com a terra ressecada após as passagens
a recomposição do solo exala
a acidez perpetrada
nos tempos desnecessários
das farturas: o homem
esquece o inconsentido passado
em projetos futuros inexequíveis
onde se debatem mortes
e avanços ao fim do mundo.

CONTIGO
Estarei contigo no tempo
partilhado das indecisões

na rapidez com que transitamos
reteremos imagens da coragem
divididas entre dívidas e dúvidas.

Recolheremos o bastante
recebido em dádiva: estarmos juntos
conduz os corpos ao esgotamento
do encontro em duradouras
combinações sensíveis

juntos no conjunto bipolarizado
das refregas e fugas diremos ao silêncio
em gestos de desilusões na perpetuação
dos entrelaces em que nos prendemos livres
dos aconselhamentos em desvãos abertos
no recolhimento sutil dos amorosos.

ASPEREZA
Não ouço o som
do vento contra a vidraça

no farfalhar da cortina
o estampido

sou silêncio
esculpido em pedra
árida
seca
descoberta no tempo
cristalizado.

DESFECHO
No desfecho
fecho a porta
e dentro
esqueço
a hora
permitida
aos pensamentos
filosóficos

o desvelo com que cuido
meu tempo permitido
na desilusão aleatória
dos enganos

fecho o caderno
e repouso a mão
sobre o tempo

o grafite inerte
sobre razões confessadas
em juízo.

DESGOSTOS

Não gosto do sentimento expressado
em náuseas: ondas elevam o nível
d’água ao extremo desgosto.
No afogamento o corpo levado ao fundo
do recomeço em outra forma: informalidade
com que sentimentos transitam
ódios e amores desgastados em gostos
negativos atrelados à memória.
Reparo no erro imperceptível e o amplifico
em externo conhecimento
onde o demonstrado gesto
recupera o sentido: retraído
o desgosto gera o espaço
em que me recolho: o desgosto
tolhe o movimento empedrado
em irrefletidas lembranças.

HORIZONTES

Na fórmula encerra o contexto.
Nenhum número impensado à palavra.
Nenhum verbo disparado à ação.
Nenhuma palavra armada em números.

O lugar comum permite ao cientista
avançar a busca: o inalcançável
se faz longe em horizontes.

(Os horizontes se repetem).

TÁCITO

Acordo: faço-me desconhecido
ao amigo: sofro suas dores: retorno
ao ponto inicial no me dizer ávido
em consolos: reencontro palavras
ao negar o confronto: acordos
não escritos perduram silêncios.

PODER

Posso indicar o mar como consolo
a vista como alcance e a companhia
como distração. Mentir amizades
e razões. Dialogar palavras
de desengano.

Posso ficar no silêncio
de escuros quartos. Desdenhar
o esquecimento e omitir
fatos desenhados.

Posso refazer as paredes
e entre tábuas enxergar
o lado de fora.

Fonte:
O Autor