quarta-feira, 17 de julho de 2024

Vereda da Poesia = 58 =


Trova Humorística de São Paulo/SP

JAIME PINA DA SILVEIRA
 
– Quando saiu … a maninha
foi com “mãinha” ou foi só?
– Sei não! Mas voltou “mãinha”,
quando chegou do forró!
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Poema de São Paulo/SP

LUIZ GAMA
(Luiz Gonzaga Pinto da Gama)
Salvador/BA (1830 – 1882) São Paulo/SP

Serei Conde, Marquês e Deputado

Pelas ruas vagava, em desatino,
Em busca do seu asno que fugira,
Um pobre paspalhão apatetado,
Que dizia chamar-se - Macambira.

 A todos perguntava se não viram
O bruto que era seu, e desertara;
Ele é sério (dizia), está ferrado,
E tem o branco focinho, é malacara.

 Eis que encontra postado numa esquina,
Um esperto, ardiloso capadócio,
Dos que mofam da pobre humanidade,
Vivendo, por milagre, santo ócio.

 Olá, senhor meu amo, lhe pergunta
O pobre do matuto, agoniado;
“Por aqui não passou o meu burrego
Que tem ruço o focinho, o pé calçado?”

 Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:
“O seu burro, Senhor, aqui passou,
Mas um guapo Ministro fê-lo presa,
E num parvo Barão o transformou!”

 Ó Virgem Santa! (exclama o tabaréu,
Da cabeça tirando o seu chapéu)
Se me pilha o Ministro, neste estado,
Serei Conde, Marquês e Deputado!...
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Aldravia de Belo Horizonte/MG

LUIZ CARLOS ABRITTA
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG

sou
hedonista:
mínimo
esforço
máximo
prazer
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

AFFONSO LOPES DE ALMEIDA
Rio de Janeiro/RJ, 1889 – 1953

Ascensão

Não será sempre esta melancolia,
este morno cansaço, esta torpeza...
A modorra enevoada da tristeza
há de esvair-se aos raios da alegria!

Hei de agitar a imóvel natureza,
ao vendaval da minha fantasia;
nas minhas mãos a estátua da beleza
deixará de ser muda e de ser fria!

Hei de subir ao píncaro do monte,
vencedor de procelas e escarcéus!
E lá, sozinho, ao centro do horizonte,

em manhã clara, e límpida, e sem véus,
o sol da glória há de dourar-me a fronte,
e eu hei de resplender subindo aos céus!
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Trova Premiada  no Rio de Janeiro/RJ, 1991

ZAÉ JÚNIOR 
(Zaé Mariano Carvalho de Nascimento Júnior)
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Conquista é jogo de azar
e, no amor, jogo pesado;
querendo te conquistar,
eu é que fui conquistado!
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Poema da Itália

CESARE PAVESE
Stefano Belbo (1908 – 1950) Turim

Figura de mulher

Tens rosto de pedra esculpida,
sangue de terra dura,
emergiste do mar.
Tudo acolhes e sondas,
e repeles de ti
como o oceano. Tens na alma
silêncio, tens palavras
tragadas. És turva.
A alva em ti é silêncio.

E pareces com as vozes
da terra - a pancada
do balde no poço,
o cântico do fogo,
um tombo de maçã,
as palavras resignadas
e escuras nas soleiras,
o grito do menino - as coisas
que não passam jamais.

Não mudas. És turva,
és a taberna fechada
com o chão de terra batida,
onde entrou certa vez
o garoto descalço
em que pensamos sempre.

Tu és a sala sombria
em que pensamos sempre
como no velho pátio
onde a aurora se abria.
(tradução: Martins Napoleão)
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Trova Popular

Muito vence quem se vence
muito diz quem não diz tudo, 
porque ao discreto pertence
a tempo fazer-se mudo.
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Soneto de São Paulo/SP

AFONSO DE CARVALHO
(Affonso José de Carvalho)
São Bento do Sapucaí/SP, 1868 – 1952, São Paulo/SP

Lágrima de caveira

Eu vi uma caveira. Branca e fria,
em úmida caverna a sós ficara.
Não sei por qual motivo a sorte ignara
fizera-a triste, quando outrora ria.

Quanto mais a fitava, mais a via,
banhada em pranto com a terrível cara,
cheia de verme e areia, olhando para
o risonho espetáculo do dia.

Por que chorava? Como então pudera
arrancar desse crânio funerário
essa lágrima, trêmula, sincera?

Foi então que notei... Uma goteira,
vindo do teto em líquido rosário,
abria em pranto os olhos da caveira... 
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Trova de Mar de Espanha/MG

ILZA TOSTES

Nesta casa de sapê,
cobertinha de luar,
que pena não ter você
para comigo sonhar!
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Poema de Lisboa/Portugal

MÁRIO CESARINY
(Mário Cesariny de Vasconcelos)
1923 – 2006

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
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Haicai de de São Paulo/SP

ALONSO ALVAREZ LOPES

Amor de verão…
A pipa rompeu a linha,
fugiu com o vento.
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Soneto de Curitiba/PR

EMILIANO PERNETA 
Pinhais/PR, 1866 — 1921, Curitiba/PR

Graças te rendo...

Graças te rendo aqui, preciosa Senhora,
Que, num simples olhar de ternura, tiveste
O dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre os brasões do amor e as púrpuras d'aurora...

O dom de me fazer acreditar que veste
O humano coração, como acredito agora,
Não o lodo, porém, o linho; que se adora,
O linho que fulgura em pleno azul-celeste...

Sei que os votos que são trabalhados com arte
Hão de os deuses cumprir, ó luz maravilhosa:
— Sê, pois, bendita, sê bendita em toda parte!

Que onde fores pisar, que por onde tu fores:
A lama se transforme em pétalas de rosa,
As víboras em fruto, os espinhos em flores!
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Trova Humorística de Socorro/SP

ILDEFONSO DE PAULA

Sendo tão linda, a dentista
fez uma escolha bem certa,
pois todo mundo que a avista
já fica de boca aberta...
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

Mote:
Pobre titia, ao comprar 
uma vassoura, é indagada: 
- Será preciso embrulhar? 
ou já vai nela montada?
Amália Max 
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

Glosa:
Pobre titia, ao comprar 
um presente pra sobrinha 
viu, na hora de pagar, 
não ter grana na caixinha! 

Vendo, a bruxa, no Bom Preço 
uma vassoura, é indagada: 
Vai "montar"? Está no preço! 
- Não, só estou dando uma olhada! 

Cuidado quando comprar 
uma vassoura... e ouvir: 
- Será preciso embrulhar? 
É gozação, não vá rir! 

No balcão, a mulher brega 
com a vassoura comprada 
ouviu um: é para entrega, 
ou já vai nela montada?
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Trova de Contenda/PR

HILDEMAR CARDOSO MOREIRA
São Mateus do Sul/PR, 1926  – 2021, Contenda/PR

Ao professor muito devo,
devo ao médico também.
Mas o livro é meu enlevo,
tudo que sei dele vem.
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

ALCY RIBEIRO SOUTO MAIOR
Rio de Janeiro/RJ, 1920 - 2006

Núpcias

Num jarro esguio e rubro, a rosa pura,
esquecida de sua timidez,
sente do jarro o abraço de ternura
que envolve a sua angelical nudez.

Enquanto a noite espalha a formosura
que para os noivos, caprichosa, fez,
a rosa e o jarro entregam-se à ventura
do amor que vem pela primeira vez.

Quando surge, por fim, a madrugada,
a rosa, sobre a mesa, desfolhada,
recorda, ainda, o beijo nupcial.

E o jarro, desolado, rubro e esguio,
é, ante o espelho indiferente e frio,
uma lágrima rubra de cristal!
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Trova Premiada  em Cruz Alta/RS, 1988

ANTONIO JURACI SIQUEIRA 
(Belém/PR)

Quanto mais a idade avança,
mais trovas de amor componho
para acender a esperança
no entardecer do meu sonho!...
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Poema de Belo Horizonte/MG

CARLOS LÚCIO GONTIJO

Tempo rei

Meus pés não encontram rastros no caminho
Minha rua não é mais cadinho de meus passos
Calçada nua que trocou paralelepípedo por asfalto
Na casa em que morei não há mais samambaias
Dando saias verdes ao alpendre que me recebia
Onde logo eu via o rosto redondo de minha mãe
A vida vai compondo gosto novo para as gerações
Porções de desgosto agora moram em mim
O tempo realmente é invencível rei
Tudo o que eu pensei um dia dominar ou saber
O tempo cuidou de me provar que nada sei! 
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Triverso de Boa Vista/RR

ELIAKIN RUFINO

com um traço
o desenhista faz
o voo do pássaro.
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Poema de Curitiba/PR

ALICE RUIZ

Saudação da Saudade

minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida

aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim
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Trova de Salesópolis/SP

INOCÊNCIO CANDELÁRIA

Desejo, às vezes, fazer
certas coisas que não devo.
Mas penso no meu dever
e a fazê-las não me atrevo...
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HINO DE FORTALEZA/CE

Compositores: Gustavo Barroso/ Antonio Gondim

Junto à sombra dos muros do forte
A pequena semente nasceu
Em redor, para a glória do Norte
A cidade sorrindo cresceu

No esplendor da manhã cristalina
Tens as bênçãos dos céus que são teus
E das ondas que o Sol ilumina
As jangadas te dizem adeus

Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

O emplumado e virente coqueiro
Da alva luz do luar colhe a flor
A Iracema lembrando o guerreiro
De sua alma de virgem senhor

Canta o mar nas areias ardentes
Dos teus bravos eternas canções
Jangadeiros, caboclos valentes
Dos escravos partindo os grilhões

Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

Ao calor do teu Sol ofuscante
Os meninos se tornam viris
A velhice se mostra pujante
As mulheres formosas, gentis

Nesta terra de luz e de vida
De estiagem por vezes hostil
Pela Mãe de Jesus protegida
Fortaleza, és a flor do Brasil

Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

Onde quer que teus filhos estejam
Na pobreza ou riqueza sem par
Com amor e saudade desejam
Ao teu seio o mais breve voltar

Porque o verde do mar que retrata
O teu clima de eterno verão
E o luar nas areias de prata
Não se apagam no seu coração

Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar
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Ode à Cidade do Sol
O Hino de Fortaleza é uma verdadeira ode à capital cearense, exaltando suas belezas naturais, sua história e o calor humano de seu povo. A letra inicia fazendo referência à origem da cidade, que nasceu ao redor do Forte Schoonenborch, construído pelos holandeses e posteriormente tomado pelos portugueses, que o rebatizaram como Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. A menção à 'pequena semente' que cresceu e se tornou uma cidade próspera é uma metáfora para o desenvolvimento e a força da capital do Ceará.

A canção prossegue destacando a relação harmoniosa entre a cidade e seus elementos naturais, como o mar e o sol, que são fontes de vida e inspiração para os fortalezenses. A imagem das jangadas se despedindo ao sol é uma homenagem aos pescadores, parte essencial da identidade cultural da cidade. A referência a Iracema, personagem do romance de José de Alencar, e ao 'emplumado e virente coqueiro' evoca a literatura e a paisagem local, reforçando a riqueza cultural de Fortaleza.

Por fim, o hino celebra o espírito resiliente e acolhedor dos habitantes, que, apesar das adversidades climáticas como a estiagem, mantêm a cidade vibrante e acolhedora. A proteção atribuída à 'Mãe de Jesus' reflete a fé e a religiosidade do povo. A canção conclui com um sentimento universal de saudade e amor pela cidade, que permanece no coração de seus filhos, independentemente de onde estejam. Fortaleza é apresentada como um lar que sempre será amado, uma 'flor do Brasil' que brilha sob o sol e o luar. (https://www.letras.mus.br/hinos-de-cidades/943225/significado.html
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Poetrix de Espinho/Portugal

ANA OLIVEIRA

tempero

enquanto cozinhava
ia chorando
– acabara o sal
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

ALFREDO DE ASSIS
Riachão/MA, 1881 – 1977, Rio de Janeiro/R

Pranto e riso

No pranto da criança não diviso
mágoa nenhuma: é todo luz e encanto.
Tem, nuns restos de céu, de paraíso,
toda a doçura matinal de um canto.

Mas de um velho, num rápido sorriso,
mágoas profundas eu percebo, entanto.
No pranto da criança, há quase um riso;
no sorriso do velho, há quase um pranto.

Um velho ri: — é um por-de-sol que chora;
chora a criança: — é como se uma aurora
um chuveiro de pétalas abrisse.

E tem muito mais luz, mais esperança,
a lágrima nos olhos da criança
que o sorriso nos lábios da velhice.
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Trova de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Envergonhado e sem jeito,
meu coração sonhador
conserta o ninho desfeito
enquanto espera outro amor!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O macaco e o golfinho

Costumam os Malteses nos navios
Divertir-se com cães e com bugios:
Afundou-se um navio desta gente
Junto a Súnio, que é cabo pertencente
À terra ática: andava tudo a nado,
E um bugio também quase afogado.

Um golfinho que o viu em tanto dano,
Parecendo-lhe ser vivente humano,
As costas lhe oferece; vem por cima
Das ondas, com o fim de que o redima.

Defronte do Pireu, que é estaleiro
De Atenas, perguntou ao companheiro
Se era desta cidade. — Respondia
Que sim, e da mais alta fidalguia.

«Conheces o Pireu?» lhe perguntava.
O macaco, cuidando que falava
De algum homem, dizia: «É um amigo
Que estreita confiança tem comigo.»

O golfinho ficou tão iracundo
Da mentira, que o pôs logo no fundo.
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O golfinho foi muito rigoroso
Em dar ao mentiroso tão mau trato;
Porém todo o sujeito que é sensato,
Deve apartar de si o mentiroso.

O tratá-lo sempre é muito danoso;
Por isso haja cautela, haja recato;
Porque quando me faz muito barato,
Ou me deixa enganado, ou enganoso.

Se me deixa enganado, fico tido
Por néscio; e de tal modo enganaria,
Que eu fique, além de pobre, escarnecido
Se, pegando-me a sua epidemia,
Me deixou enganoso, estou perdido;
Que de um que mente bem ninguém se fia.
(tradução: Couto Guerreiro)

Recordando Velhas Canções (Gente humilde)


Compositores: Chico Buarque / Garoto / Vinícius de Moraes

Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar

Igual a como quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar
E aí me dá uma inveja dessa gente
Que vai em frente sem nem ter com quem contar

São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar

E aí me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar
E eu que não creio, peço a Deus por minha gente
É gente humilde, que vontade de chorar
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A Melancolia e a Beleza na Simplicidade 
A música 'Gente Humilde', interpretada por Chico Buarque, é uma obra que reflete sobre a simplicidade e as dificuldades da vida nas áreas mais humildes da cidade. A letra expressa um sentimento de empatia e melancolia do eu lírico em relação às pessoas que vivem em condições modestas, mas que carregam uma dignidade e uma força admiráveis.

O início da canção revela uma reflexão introspectiva, onde o eu lírico se sente emocionalmente tocado ao pensar em sua 'gente', ou seja, nas pessoas simples e trabalhadoras que representam suas raízes ou sua comunidade. Há um aperto no peito, uma emoção que surge espontaneamente, indicando uma conexão profunda e uma preocupação genuína com o bem-estar dessas pessoas.

À medida que a música avança, o eu lírico descreve cenas do cotidiano suburbano, com suas casas simples e a vida que se desenrola na calçada. A inveja mencionada não é de natureza material, mas sim de um espírito de comunidade e de seguir em frente apesar das adversidades. A tristeza e a beleza se entrelaçam na descrição das flores 'tristes e baldias' e na alegria que parece não ter um lugar para se apoiar. A música culmina em um apelo emocionado a Deus, mesmo para aquele que não é crente, revelando a profundidade do sentimento de solidariedade para com a 'gente humilde'.

“Gente Humilde” teria surgido durante uma visita de Garoto a um subúrbio carioca. De repente, ao observar aquelas pessoas e suas casas modestas, ele resolveu homenageá-las numa canção. Tempos depois, a gravaria num acetato para o professor mineiro Valter Souto, registro que asseguraria a sobrevivência da composição, mantida inédita em disco comercial.

Finalmente, quase quinze anos após a morte de Garoto, Baden Powell mostrou-a a Vinícius de Moraes que, apaixonando-se pelo tema, deu-lhe uma letra em parceria com Chico Buarque. Aliás, uma letra primorosa que, segundo o próprio Chico, é quase toda de Vinicius: “São casas simples, com cadeiras na calçada / e na fachada escrito em cima que é um lar / pela varanda, flores tristes e baldias / como a alegria que não tem onde encostar...”

Muito antes, porém, houve uma outra letra (“Em um subúrbio afastado da cidade / Vive João e a mulher com quem casou / tem um casebre onde a felicidade / bateu à porta, foi entrando e lá ficou...”) de um poeta mineiro, que preferiu se manter no anonimato. Com esta letra, “Gente Humilde” foi cantada em programas da Rádio Nacional por Zezé Gonzaga e o coral Os Cantores do Céu, em arranjo de Badeco, do conjunto Os Cariocas (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

Aparecido Raimundo de Souza (Chuva ácida)

VERÔNICA TRAZIA na boca o gosto acre dos infindáveis caraminguás com os quais se relacionara durante toda a vida. No corpo inteiro, as marcas indeléveis dos amores tentados, e, no peito, as dores em virulenta profusão das paixões desfeitas. No frívolo incoerente dos olhos, recordações de figuras que usufruíram de seus melhores momentos no desfrute de infindáveis horas de prazer. Um diletantismo esmaecido e sem o fogo da mocidade, ou pior ainda, um resto dela que ainda insistia em manter uma tênue luz deixada pelo inóspito de uma distância alpestre (grosseira). 

Na alma combalida, estropiada e machucada, lembranças dos que se fartaram e se saciarem a bel prazer dos pecados da carne fraca. No geral, fantasmas iracundos se insurgiam do âmago de suas entranhas como se fossem restos de coisas repugnantes. Seu tato, sua química, seu suor, cheiros e gostos, aromas e olores, não dispunham agora do primor necessário para fazer alguém ficar por vontade própria. Faltava o distinto, o notável e o essencial, o excelente e o basilar.  Cicatrizes aqui e ali, lesões não curadas pareciam brechas profundas sedimentadas em sua armadura. 

Verônica sentia, na verdade, a necessidade de manter a postura dos vinte, mas, o peso da solidão e a carga fastidiosa da casa das sessenta primaveras, não davam tréguas. Ao contrário, magoavam e feriam profundamente. Sua vida se assemelhava à dos covardes e vencidos – os covardes e vencidos não fazem história –, simplesmente passam e seguem em frente, sem deixar vestígios dos feitos realizados. Verônica não tinha feitos memoráveis, nem páginas escritas. Tão somente folhas soltas ao sabor do nada. Rascunhos, debuxos e boquejos absolutamente inúteis que para coisa alguma serviam. Sequer, a bem de algo sólido, poderiam ou deveriam ser conservados ou restaurados. 

Apenas a fraqueza mirrada da covardia franzina e valetudinária (enferma) de não ter tentado coisa melhor. O livro-base da sua existência vazia e débil estava totalmente em branco. Em paralelo, timbres e sons sem ressonâncias harmoniosas, se confundiam numa abstinência de vidas retalhadas em completo e total fracasso. Em caminho igual, gritos e brados, clamores e rogos se perdiam difusos. Seu espírito se deixara ser levado por ruas e estradas tortuosas de inseguras realidades, como as corredeiras de um rio imenso e à esmo, buscando um afluente qualquer para se desaguar em morte lenta. 

Verônica, como essas águas, desejava um canto de sossego onde descarregar as mágoas do longo caminho percorrido. Esquecer o destino inglório e encontrar um pouco de paz. Pelo que sua vida de altos e baixos pagou em tributos, em igual camada de dissabores e desgraças, o amanhã poderia lhe comprar respostas. Ao invés disso, o porvir que se descortinava à frente, se mostrava complicado demais. Era triste aos extremos. Solitário e melancólico em demasia. As pessoas que não tem nenhum tipo de problemas ou questiúnculas pendentes conseguem vislumbrar um porvir colorido. Somente elas gozam desta beatitude e se permitem atingir o Nirvana do privilégio fazendo com que a alma se veja e se sinta em tranquilidade total e ausente de qualquer sentimento pernicioso. 

O resto, portanto, vegetava, malograva, naufragava “desprosperava,” em preto e branco.  Assim se resumia naquele instante o cotidiano de Verônica. Sem cor, sem brilho, sem um pingo de viço. Do acordar até a hora de voltar a dormir: à noite, igualmente longa e pegajosa, não ficava atrás: se fazia feia, hostil, sem sentido, mutilada. O mundo se assemelhava a um bicho pré-histórico de três cabeças a perseguir implacável. Ela, sozinha, se sentia numa espécie de hidrofobia viral. Tinha consciência, à morte, somente a Dama da Foice possuía o antídoto vital para tirá-la, de vez, daquela morbidez sem volta, daquela incerteza degradante, sem sentido lógico. 

Seu universo inteiro parecia que se deslocara da órbita natural. Dava sinais de ter seguido um trilhar secundário que se distanciava a cada minuto do que deveria ser seu hoje-agora. A sintonia meridiana desse planeta, se adumbrava (sombreava) a uma espécie rara de zumbi errante em busca do nada. Literalmente, Verônica fizera um suco de limão, mais que azedo e jogara fora o doce néctar que o destino lhe presenteara. Sem saída, sem bifurcações novas à frente, sem objetivos a serem alcançados, Verônica estancou os passos. Encarcerou seus anseios, abalou seus horizontes. Se interditou. 

Pés e mãos atados, olhou em volta de si e não viu nada. Espiou o céu e só enxergou nuvens negras. Fechou os olhos e também, dentro de si, coisa alguma. Não encontrou razão para continuar vivendo. Viver se resumia em algo sem sentido, sem conformidade ou nexo. O viver se opunha desleal, incômodo e nocivo. Lembrou da rodovia. Havia uma, não muito longe. Uma autovia gulosa que consumia o progresso. Talvez se servisse dos seus insucessos. Caminhou apressada. Como um braço enorme estendido ao “não sei para onde,” uma passarela metálica cruzava para o outro lado. 

Sob ela, carros, caminhões, ônibus e motos iam e vinham numa velocidade estonteante. Carros, caminhões, ônibus e motos passavam com pressa. Voavam ávidos de um destino certo.  Verônica não tinha destino, nem talvez, nem paradeiro. Menos ainda, ponto de chegada. Não dispunha de eira nem beira. Não sabia para onde ir, para onde chegar, para quem voltar. Não tinha o mínimo, ou melhor, um chão para continuar pisando. De repente, pulou num impulso incontido. Saltou do meio da passarela para o centro do desconhecido. Viajou com tudo, num plainar rápido e sem sentido, tão sem lógica como a sua vida sem brilho, sem sabor, sem razão de ser, sem o perfume das flores mais simples. 

Mergulhou de cabeça, esvaneceu, se reduziu a nada para o transito do tudo tresloucado que fluía com uma intensidade cada vez mais sedenta de sangue. No oco frio dos olhos, as recordações de figuras antigas que usufruíram de seu corpo por algumas horas de prazer. Na alma combalida, afundada em transgressões, lembranças caducas dos muitos e milhares que se fartaram e se saciaram a bel prazer do pecado na sua forma. Cicatrizes aqui e ali pareciam cissuras em sua armadura. Os covardes e vencidos não fazem história. Indubitavelmente, os covardes e vencidos não fazem his... 

Fonte: Texto enviado pelo autor