domingo, 18 de maio de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (Os amores de Zain Al-Mauassif)


Conta-se, ó afortunado rei, que havia certa vez, no antigo dos tempos, um adolescente formoso chamado Anis. Era o mais rico, o mais generoso, o mais delicado e o mais agradável jovem de seu tempo. Amava tudo que era digno de ser amado: as mulheres, os amigos, a poesia, a música, os perfumes, uma boa risada - e vivia no auge da felicidade. Certa tarde, enquanto dormia sob uma árvore em seu jardim, sonhou que estava brincando com quatro pássaros e uma pomba, quando um corvo se precipitou sobre a pomba, arrebatou-a e a levou. Anis acordou impressionado com o sonho e saiu a procurar quem lho pudesse interpretar. No seu caminho, passou por uma linda residência onde uma voz feminina cantava com acentos melancólicos estes versos: 

Ouço o coração dos enamorados 
cantar livremente na madrugada. 
Mas meu coração não canta 
por causa de um cabritinho montês, 
mais ligeiro que um gamo. 
Tenho-te, presente ou ausente. 
E teu nome nunca deixa meus lábios. 
Durará ainda muito teu afastamento? 
o amor, de que me penetraste, 
tornou-se uma tortura além das minhas forças. 
Até quando continuarias a fugir de mim? 
Se teu propósito era matar-me de saudade, 
sente-te feliz, pois teu desejo se cumpriu. 

Levado pelo ímpeto de conhecer a cantora, Anis olhou pela porta semi-aberta e viu um jardim cheio de rosas, jasmins, violetas, narcisos onde gorjeavam mil pássaros. Entrou e começou a andar no jardim e deparou com uma jovem sentada sobre um tapete com quatro companheiras. Era tão bela que podia acender fogo na pedra mais dura. 

Anis inclinou-se diante dela e levou a mão ao coração, lábios e fronte naquela saudação árabe pela qual oferecemos ao interlocutor nossos sentimentos, nossos cumprimentos e nossos pensamentos. Mas a moça gritou: “Como ousaste penetrar neste lugar reservado, ó jovem impertinente? 

Anis respondeu: “Ó minha ama, a culpa não é minha. É tua e deste jardim. Pela porta entreaberta, vi as flores e os pássaros homenagearem a rainha da beleza, e minha alma não resistiu à tentação de vir juntar sua homenagem à das flores e dos pássaros.”

A jovem riu e perguntou: “Como te chamas?”

- Anis, teu escravo.

Ela exclamou: “Anis, agradas-me. Vem sentar-te a meu lado.”

Depois, perguntou-lhe: “Sabes jogar xadrez?” 

“Sim”, respondeu Anis.

O jogo começou. Mas Anis dava mais atenção à beleza da adversária que aos peões, e acabou por exclamar: “Como posso ganhar contra esses dedos?” 

E perdeu um primeiro e um segundo jogos.

- Vamos apostar cem dinares por jogo, disse a moça. Isso te obrigará a te concentrares.

- Com prazer, disse Anis, mas continuou a perder.

- Vamos apostar mil dinares, disse a moça.

- Aceito, disse Anis, mas continuou a perder.

Depois, apostou sua loja, sua casa, seu jardim, seus escravos até que nada lhe sobrasse.

- Anis, meu amigo, és um louco, disse a moça. Mas para que não lamentes ter vindo aqui, devolvo-te tudo que perdeste. Agora, levanta-te e retoma teu caminho em paz.

- Por Alá, minha rainha, não lamento o que perdi. Se me pedisses minha alma, oferecer-te-ia com prazer. Mas deixarás que eu parta sem satisfazer meu desejo?

- Posso satisfazer teu desejo; mas, primeiro, deves trazer-me quatro odres de almíscar puro, quatro onças de âmbar cinzento, quatro mil peças de brocado de ouro e quatro mulas arreadas.

- Pela minha vida, terás tudo isso.

- Como? Não possuis mais nada.

- Tenho amigos. Eles me socorrerão.

- Não precisas apelar para eles, pois com certeza te decepcionarão. Eu te devolvo tudo que perdeste se fores mais hábil no outro jogo de xadrez do que neste.

E Zain Al-Mauassif levou Anis até a alcova. Lá Anis tomou a adolescente nos braços e jogou com ela um jogo de xadrez, seguindo todas as regras com refinamento e perícia. Depois, iniciou e ganhou quinze jogos seguidos, comportando-se o rei em todos eles com a mesma valentia e estando sempre na ofensiva, até que a moça reconheceu ter sido derrotada e exclamou, já sem fôlego: “Ganhaste, ó pai das lanças. Dize ao rei que descanse.”

Depois, disse: “Anis, seduziste-me. Por Alá, não poderei mais viver sem ti.” 

E passaram o resto do dia e toda a noite juntos, beijando-se e se amando. E continuaram assim durante um mês inteiro, só parando para comer. 

Zain AlMauassif, que era casada, recebeu então uma carta do marido, anunciando sua volta. 

“Possa o demônio quebrar-lhe os ossos,” exclamou. “Que devemos fazer, Anis?”

- Os estratagemas e os ardis pertencem mais ao campo feminino que ao masculino.

Ela refletiu uma hora, depois disse: “Meu marido é muito ciumento e astuto. O único meio que vejo é que tu te apresentes a ele como mercador de perfumes e especiarias. Estuda bem este negócio. Depois, procura-o na sua loja e faze amizade com ele.”

Quando o bom homem chegou, achou a mulher toda amarela, da cabeça ao pés. Ignorando que ela se tinha esfregado com açafrão, perguntou-lhe, apavorado, se estava doente. Respondeu: “Estou amarela, não porque estou doente, mas por causa de minhas preocupações a teu respeito durante tua ausência. Em nome da compaixão, não viajes mais sem tomar um companheiro que te possa defender e cuidar de ti.” 

O homem agradeceu esta manifestação de afeto, beijou a mulher com amor redobrado e foi para sua loja, pois era um grande mercador judeu. A mulher também era judia. Anis, que havia estudado seu novo comércio, estava esperando por ele. Para ganhar-lhe a boa vontade imediatamente, ofereceu-lhe perfumes e especiarias por preços bastante inferiores aos do mercado. 

O marido de Zain Al-Mauassif, que tinha a alma endurecida, ficou tão satisfeito que os dois se tornaram amigos e depois sócios, da noite para o dia. E o homem levou Anis para jantar com ele em sua casa, pois sendo destituído de vergonha e não mantêm seus haréns protegidos.

Quando o marido quis apresentar a mulher a Anis, ela se revoltou: “Por Moisés, como ousas introduzir estranhos na intimidade de teu lar? Devo renunciar à virtude das mulheres porque achaste um associado? Prefiro cortar meu corpo em pedaços.”

O judeu regozijou-se no seu coração por ter uma mulher tão casta e reservada; mas disse em alta voz: “Desde quando adquirimos os modos dos muçulmanos de esconder nossas mulheres? Somos filhos de Moisés.” 

E ele apresentou Zain AlMauassif a Anis. Ambos fingiram que não se conheciam e nem sequer olharam um para o outro durante todo o tempo da visita.

O marido reparou, todavia, numa coincidência estranha. Tinha ele em casa uma ave que se habituara a brincar com ele e a pousar em seu ombro. Quando ele voltou da viagem, não o reconheceu. Mas, quando Anis chegou, acorreu a ele com gritos de alegria.

Reparou também que a mulher, que sempre tivera um sono tranquilo, tinha agora sonhos que a agitavam a noite toda. 

Convidou Anis outra vez para sua casa e, antes de mandar servir o jantar, alegou que recebera uma convocação urgente do uáli. 

“Irei vê-lo porque ë meu interesse,” disse à mulher e a Anis; “mas será coisa rápida. Voltarei logo para o jantar.”

Saiu, mas em vez de ir à casa do uáli, deu uma volta e subiu secretamente ao sótão de onde podia observar o que se passava na sala de visitas. E viu os dois se jogarem nos braços um do outro e trocarem beijos de paixão incontida. O homem escondeu sua indignação e voltou para casa, sorridente. Jantaram como se nada tivesse acontecido. 

No dia seguinte, disse à mulher que recebera um relatório de um de seus agentes que o obrigava a viajar de novo. A mulher camuflou sua alegria e começou a gemer e reclamar: “Deixar-me-ás morrer de solidão, amado marido? Pobre Zain Al-Mauassif, nunca poderás conservar teu marido junto de ti?”

Mas o marido retrucou: “Não te aflijas, querida. Decidi levar-te comigo desta vez e não mais te expor aos tormentos da saudade.” 

E partiram na hora, eles e as quatro aias de Zain Al-Mauassif, Hubub, Sukub, Kutub e Rukub.

Após viajarem um mês, o judeu mandou que parassem e montassem as tendas na vizinhança de uma cidade que ele conhecia. Aí, despiu a mulher de suas ricas vestes, pegou numa vara e disse-lhe: “Vil e hipócrita rameira, só esta vara será capaz de purificar-te. Chama Anis em teu socorro.” 

E não obstante os gritos e os protestos, fustigou-a sem piedade.

Depois, foi á cidade e trouxe um ferrador a quem pediu: “Põe ferraduras nas mãos e nos pés desta escrava.” 

O ferrador estupefato, replicou: “Por Alá, é a primeira vez que sou chamado a ferrar seres humanos. Que fez esta jovem para merecer tal castigo?”

- Pelo Pentateuco! Este é o castigo que nós, judeus, impomos às escravas de quem temos queixas.

Mas o ferrador, extasiado diante da beleza de Zain Al-Mauassif, olhou o judeu com desprezo e cuspiu-lhe na face. Em vez de tocar na rapariga, dirigiu estes versos ao seu marido:

Ó cavalgadura imunda, enfiaria mil pregos na tua pele
antes de torturar pés tão delicados,
feitos para serem domados com anéis de ouro.
Se for dado a um pobre senador julgar das coisas,
tu deverias ter ferraduras, e ela, asas.

E o ferrador foi informar o uáli do que estava acontecendo à mais bela das mulheres. O uáli mandou os guardas levarem à sua presença do judeu, a escrava e os outros componentes da caravana.

Quando se apresentaram, o uáli maravilhou-se com a beleza de Zain Al-Mauassif e perguntou-lhe: “Como te chamas, minha filha?”

“Meu nome é Zain Al-Mauassif, tua escrava. Este judeu raptou-me de meu pai e mãe, violentou-me e quis obrigar-me a abjurar a santa fé dos muçulmanos, meus antepassados. Todos os dias tortura-me e tenta superar a minha insistência em permanecer muçulmana. Minhas aias confirmarão o que digo. E o ferrador poderá descrever o bárbaro tratamento a que este judeu queria submeter-me.”

O judeu gritou: “Pelas vidas de Jacó, Moisés e Aarão, esta mulher é judia e é minha legítima esposa.” 

Mas o uáli perguntou às aias: “Qual dos dois está dizendo a verdade?” 

Hubub, Kutub, Sukub e Rukub responderam: “Nossa ama.”

O uáli mandou então aplicar no judeu trezentas chicotadas e ameaçou cortar-lhe as mãos e os pés se não confessasse. Para escapar a tal calamidade, o homem disse: “Pelos comos sagrados de Moisés, confesso que esta mulher não é minha esposa e que a raptei de sua família.”

Ordenou então o uáli “Na base da confissão do réu, condeno-o à prisão perpétua. Assim sejam punidos os homens sem crença.”

Zain Al-Mauassif beijou a mão do uáli, mandou levantar o acampamento e iniciar a marcha da volta.

Ao crepúsculo do terceiro dia, a caravana chegou a um mosteiro cristão, habitado por quarenta monges e seu patriarca Danis. O patriarca convidou a caravana a passar a noite no mosteiro e foi tomado de uma louca paixão por Zain Al-Mauassif. Mandou sucessivamente os quarenta monges pleitearem sua causa junto à moça. Mas foram todos repelidos. 

Então, o patriarca, recordando o provérbio de que “para coçarmos a pele não há como as próprias unhas,” procurou pessoalmente Zain Al-Mauassif, que o rejeitou e humilhou, zombando de sua barba e de sua idade avançada. 

Depois, Zain Al-Mauassif disse a suas companheiras:

“Vamos fugir deste mosteiro antes de sermos violentadas e maculadas por contatos tão aviltantes.” 

Quando, na manhã seguinte, os monges e seu patriarca se deram conta da fuga de Zain Al-Mauassif, reuniram-se na igreja para cantar como asnos, conforme seu costume. Mas em vez de cantarem os hinos habituais, improvisaram versos como estes:

Senhor que criaste o fogo da paixão e 
despertaste em mim este ardente desejo, 
devolve-me o seu corpo saboroso,
ó Senhor que puseste amor na cama de teus filhos.

Depois, decidiram pintar uma imagem da fugitiva e colocá-la nos seus altares.

Quanto a Zain Al-Mauassif, chegou em segurança a sua terra e reencontrou seu amado, que tinha quase enlouquecido de saudade e preocupação diante do mistério de sua desaparição. Curou-o com uma noite de excessiva paixão. 

No dia seguinte, mandaram vir o cádi e as testemunhas e casaram-se legalmente e viveram na felicidade até o fim de seus dias. 

Glorificado seja Aquele que distribui a beleza e os prazeres de acordo com sua justiça. E bênçãos sobre Maomé, o maior dos profetas, que reservou o Paraíso a seus crentes!
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 16 de maio de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 30 *

 

Eduardo Martínez (Paulão, Dudu e o Elefante)


Paulão trabalhava em um órgão do governo, onde ocupava uma posição de chefia. Por causa disso, sempre havia um ou outro bajulador em sua sala, seja levando uma maçã ou qualquer outro agrado, seja elogiando o novo terno, seja até mesmo para levar um pouco de café requentado em um copo de plástico. No geral, ele recebia todos de bom grado, mas lhe faltava algo naquela cidade tão distante da sua, lá no interior de São Paulo.

Nesse mesmo local havia um outro funcionário, o Dudu, que de chefe não tinha nada. Ele trabalhava em um departamento bem próximo da sala do Paulão, com quem já havia cruzado algumas vezes pelos corredores ou na cantina. Apenas um "Oi!", nada de muita conversa. No entanto, o Dudu havia percebido algo que o incomodava no Paulão. Ele, que não era psicólogo nem nada, notou um olhar tristonho por detrás daquele sorriso expansivo do Paulão.

Certo dia, lá estava o Paulão, jogando aquelas pernas longas em passadas espaçosas pelo corredor, quando foi parado por um grupo de funcionários, que falava sobre futebol. Um deles, mais atrevido, perguntou para o Paulão qual era o seu time. Ele deu aquela estufada no peito e, quase gritando, disse: 

- Linense!

- O quê?

- Linense! O Elefante!

Ninguém entendeu bulhufas do que o Paulão queria dizer com aquilo. Todavia, antes que ele pudesse explicar, alguém o chamou para resolver um problema de última hora. Coisas da chefia!

Alguns dias se passaram, até que o Paulão precisou ir ao departamento do Dudu, que fingia estar entretido com alguma coisa importante simplesmente porque não queria trabalhar. Entretanto, o olhar sagaz do Paulão não pode deixar de notar o símbolo do seu time do coração na tela de proteção do computador do Dudu.

- Linense! Por que você tem o escudo do Linense no seu computador?

- Ué, porque sou Elefante!

O Paulão, ainda desconfiado, pensou que aquilo fosse uma piada. Mas, antes que pudesse fazer novo questionamento, eis que o Dudu, com um ligeiro toque no teclado bem à sua frente, fez com que o hino do Linense começasse a tocar. 

A partir daí, aqueles dois malucos passaram a ter um vínculo tão intenso, que muita gente não entendia. "Afinal, quem é que torce pro Linense?", todos se perguntavam.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Asas da Poesia * 22 *

 

Trova de 
LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI
Bandeirantes/PR

Ante a dor de um dissabor
a esperança no socorre;
age feito a planta em flor
que está murcha, mas não morre!... 
= = = = = = 

Folclore Brasileiro em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

O Lobisomem

Na lua cheia um uivo a ressoar,
o Lobisomem surge, a besta a vagar,
filho da maldição em dor a se transformar,
nas noites sombrias sua fúria a despertar.

Homem e lobo em luta a se tornar,
os instintos primais, a razão a ofuscar,
entre as sombras da floresta, um ser a errar,
a busca por paz, que nunca vai encontrar.

Mas há quem o veja como trágico ser,
uma vida marcada, um amor a perder,
e em cada transformação, um grito de dor,

que ecoa na bruma em busca de amor.
Na solidão da noite, um lamento a crescer,
o Lobisomem, na sombra, anseia por viver.
= = = = = = 

Trova de
NEI GARCEZ
Curitiba/PR

A justiça nos ensina
o equilíbrio que nos deu:
o teu direito termina,
bem onde começa o meu!
= = = = = =

Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Presidente Alves/SP, 1947 – 2025, Bauru/SP

Tropeço

Vejo-me agora no final da estrada
e as consequências de uma vida aflita
a procurar afoito a mais bonita
virtude altiva, joia lapidada.

As mãos vazias cheias de desdita
não afagaram outras sem ter nada.
E a consciência viva, tão pesada,
arrasta o fardo que a ambição incita.

Peço perdão para mim mesmo, eu sei
que para evoluir existe lei
da semeadura e sua consequência.

Queira ou não queira o fim faz o começo
para engendrar a escala sem tropeço;
ser mais humilde na nova existência!
= = = = = = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Há nesta recorrente dolência 
um preparo para o saber
barreiras a quebrar fronteiras
a adivinhar o acontecer 

Ciente desta real irrealidade, 
desta minha inconformidade  
anulo a envolvência do espaço
à dimensão retemperadora dum abraço

Há beleza e encanto
no dia onde espreita o pranto
da nuvem carregada d' incerteza 
esparjo água límpida e fecunda

Existo na pureza utópica
revelando anseios secretos
na essência harmoniosa dos afetos 

Na beleza deste amar
quero em gratidão levitar!
= = = = = = 

Quadra Popular

Diga, meu benzinho, diga,
com tua boca, confesse,
se no mundo já encontrou
quem tanto bem lhe quisesse.
= = = = = = 

Poema de
NELIO CHIMENTO
Rio de Janeiro/RJ

Gentileza

A gentileza anda tão pálida
Quão fagulha apagada
Perdida na poeira bruta
Que envolve essa era de gente afobada.

Gente que vive no corre-corre sem fim,
Competindo entre si e com o tempo,
Que não para uma prosa
E acha que a vida é mesmo assim.

Mas assim não é, isso o tempo dirá,
Precisamos do afeto e da energia humana...
Para alimentar o ânimo que nos elevará
Ao patamar que a alma reclama.

Temos a primazia de saber sorrir
E o privilégio de se emocionar,
Para desenvolver a arte de se relacionar
E aprender a viver e se divertir.

Nesses tempos de afeto precário,
Encoberto pelo encanto do novo,
Bom seria que a gentileza desse povo,
Não virasse joia inativa de relicário.

Quero me ver nos olhos dos outros,
Dizer algo a alguém, para ouvir meu pensamento,
Ceder o lugar, para ter um lugar na vida,
Fazer da trilha rude, uma alameda florida.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

A justiça humana é falha!
E reconheço isto a custo...
Se é rico, livra o canalha!
Se é pobre, condena o justo...
= = = = = = 

Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/Portugal

Vê para lá do nevoeiro
Não te deixes cegar
Fechar os olhos
Não te leva a nenhum lugar

A canção foi feita para ser compreendida
Preciso de ouvir todas as palavras
Só assim percebo as frases
E com elas o pensamento
Que, de repente passou por ti

Não vejas só o nevoeiro
Vê com o coração
Eu estou para lá do que não vês…
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A estrela da mocidade,
que em minha infância brilhou;
brilha em meu céu de saudade,
depois que a infância passou!
= = = = = = 

Poema de 
SEBASTIÃO ALBA
Braga/Portugal, 1940 – 2000

Ninguém, Meu Amor

Ninguém, meu amor
 ninguém como nós conhece o sol
 Podem utilizá-lo nos espelhos
 apagar com ele
 os barcos de papel dos nossos lagos
 podem obrigá-lo a parar 
 à entrada das casas mais baixas
 podem ainda fazer
 com que a noite gravite
 hoje do mesmo lado
 Mas ninguém meu amor
 ninguém como nós conhece o sol
 Até que o sol degole
 o horizonte em que um a um
 nos deitam
 vendando-nos os olhos.
= = = = = = 

Trova de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão...
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Clausura 

Reclusa no próprio 
tempo, seu sorriso
é seu sentimento.

Ora transborda paz, um alento, 
às vezes um leve contratempo. 
Atada em utopias, é momento, 
ou somente uma página virada
levada por folhagens no vento.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Será?

Tal qual a juriti de canto triste,
que enfrenta a vida solitariamente,
mas mesmo assim tão só, jamais desiste
de esperar que um amor se lhe apresente...

Também minha alma que é tristonha e crente,
no aguardo de seu par, por muito insiste...
E tal e qual a juriti, não sente
vontade de cantar e ainda resiste.

Será que a juriti tristonha, um dia
terá o trinado de uma cotovia,
de tão feliz, por encontrar seu par?

Se acontecer tal sorte, algo me diz,
minha alma vai também ser tão feliz,
que ao certo vai cantar, e muito amar!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Com que suave ternura 
tece a canária o seu ninho! 
– Mãe é assim, dengosa e pura... 
a nossa e a do passarinho. 
= = = = = = 

Poema de
SONIA CARDOSO
Curitiba/PR

Finitude 

Não mereces a finitude 
No duro calcário 
Mereces o acolhimento 
Da terra mãe, que te 
Acolheu, te fez germinar 
E crescer em tamanho e beleza.
= = = = = = 

Trova de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Tenham todos terra e teto,
sem preconceito ou fronteira
e que haja amor, não decreto,
para a inclusão verdadeira!
= = = = = = 

Poema de 
PEDRO EMÍLIO 
São Fidélis/RJ (1936 – 2013)

Canção Finita

Do primeiro canto da primavera
serão teus:
- o pássaro e a canção

Da primeira flor da primavera
serão teus:
- a cor e o perfume

Do primeiro verso da primavera
serão teus:
- o poeta e o poema.

Do último canto da primavera
de quem serão:
- o pássaro e a canção?

Da última flor da primavera
de quem serão:
- a cor e o perfume?

Do último verso da primavera
de quem serão:
- o poeta e o poema?

Murcha a flor...
quieto o pássaro...
morto o verso...

De quem será a primavera?
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

O meu sonho é uma tapera
que nenhum caminho corta;
e assim mesmo ainda espera
que alguém bata à sua porta!
= = = = = = 

Hino de 
TREZE TÍLIAS/SC

Erguendo os braços co´as algemas rotas
Na data augusta da libertação
O escravo outrora vil e acorrentado
Enflora as armas deste teu brasão.

Deixando ao longe a escravatura branca
Louro imigrante aqui chegou
Liberto da opressão e agora livre
Semente, flor e fruto ele plantou.

Teu signo é herança de um falaz passado,
Mas hoje é lema do Brasil inteiro
A liberdade à sombra da Bandeira
Os pés na terra e os olhos no Cruzeiro.

Por sobre os troncos e os grilhões em sangue
E o azorrague de uma mão cruel
Colocou Deus as régias mãos bondosas
E a imagem redentora de Isabel.

Caminha, juventude, e acende a chama
E mostra ao mundo escravo o teu perfil.
És filho desta terra quem a ama.
A liberdade é filha do Brasil.

Não olhes nunca, heroica juventude
Lá no passado as marcas dos grilhões,
Há no futuro uma esperança nova
Tu és da primavera as florações.
= = = = = = 

Poetrix de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

Retrospecto

Relógio antigo
ecoa passado
em badaladas musicais.
= = = = = = 

Poema de
ELCIANA GOEDERT
Curitiba/PR

En(frente)

Como disse outro poeta
Sim, "a vida vale a pena"
Tá difícil nesse planeta
Mas tento me manter serena
Sigo firme com minha meta
Se preciso rezo uma novena
Repito um mantra, discreta
Sei que logo tudo se engrena.
= = = = = =

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Sozinha, num desvario,
sem concretude, meus braços,
traçam, sobre um leito frio
o perfil dos teus abraços.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
CHICO BUARQUE DE HOLANDA 
Rio de Janeiro/RJ

Construção (Deus Lhe Pague) 
(1971)

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo por tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
E agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo por tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
E agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Deus lhe pague

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague
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Dalton Trevisan (Penélope)


Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura.   Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

— Que vai fazer?

— Queimar.

— Não, ele acode.  

Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

—   Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

— Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

— Já sei o que diz.

— Por que não queima?

É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.

Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.

Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta?  Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?

No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.

Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.

Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.

Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.

Afinal compra um revólver.

— Oh, meu Deus... Para quê? — espanta-se a companheira.

Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.

Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?

Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.

Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma.

Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.

No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.

Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?

Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca.

Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido branco ensanguentado. Deixa-a de olho aberto.

Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.

Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.

Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua.

Um meio de saber, envelhecerá tranquilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia estremecido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova.

Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos.  Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta...

Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave.  Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
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Dalton Jérson Trevisan nasceu em Curitiba, a 14 de junho de 1925 e faleceu em 9 de dezembro de 2024.. Antes de chegar ao grande público, quando ainda era estudante de Direito, costumava lançar seus contos em modestíssimos folhetos. Em 1945 estreou com um livro de qualidade incomum, Sonata ao Luar, e, no ano seguinte, publicou Sete Anos de Pastor. Entre 1946 e 1948, editou a revista Joaquim, "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas nacionais. Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux. Trevisan era avesso a fotografias e jamais dava entrevistas. Em 1959, lançou o livro Novelas Nada Exemplares - que reunia uma produção de duas décadas e recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. O escritor, arisco, esquivo, não foi buscar o prêmio, enviando representante. Escreveu, entre outros, Cemitério de elefantes, também ganhador do Jabuti e do Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira dos Escritores, Noites de Amor em Granada e Morte na praça, que recebeu o Prêmio Luís Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil. Guerra conjugal, um de seus livros, foi transformado em filme em 1975. Dedicando-se exclusivamente ao conto (só teve um romance publicado: "A Polaquinha"), Dalton Trevisan acabou se tornando o maior mestre brasileiro no gênero. Em 1996, recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra. Criou uma atmosfera de suspense em torno de seu nome que o transforma num enigmático personagem. Não cede o número do telefone, assina apenas "D. Trevis" e não recebe visitas — nem mesmo de artistas consagrados. Enclausurou-se em casa de tal forma que mereceu o apelido de O Vampiro de Curitiba, título de um de seus livros. "O "Nélsinho" dos contos originalíssimos e antológicos, é considerado desde  há muito "o maior contista moderno do Brasil por três quartos da melhor crítica atuante". Em 2003, divide com Bernardo Carvalho o maior prêmio literário do país — o 1º Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira —  com o livro "Pico na Veia".

Fontes:
Dalton Trevisan. Vozes do Retrato: Quinze Histórias de Mentiras e Verdades. Publicado em 1998.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing