sábado, 24 de maio de 2025

Beatrix Potter (O alfaiate de Gloucester)


Na época das espadas, perucas e casacos de aba larga com lapelas floridas – quando os cavalheiros usavam babados e coletes de paduasoy (tecido de seda com fio) e tafetá bordados a ouro – vivia um alfaiate em Gloucester. 

Ele se sentava na vitrine de uma pequena loja na Westgate Street, de pernas cruzadas sobre uma mesa, desde a manhã até o anoitecer.

Durante todo o dia, enquanto durava a luz, ele costurava e cortava, remendando seu cetim, pompadour e stringlute (cordão de alaúde); as coisas tinham nomes estranhos e eram muito caras na época do alfaiate de Gloucester.

Mas, embora costurasse tecidos de luxo para seus vizinhos, ele próprio era muito, muito pobre – um velhinho de óculos, com o rosto franzido, velhos dedos tortos e um terno puído.

Ele cortava os casacos sem desperdício, de acordo com seu pano bordado; eram pontas e pedaços muito pequenos que estavam espalhados sobre a mesa – “Tão estreitos que não servem para nada – exceto coletes para ratos”, disse o alfaiate.

Em um dia muito frio perto da época do Natal, o alfaiate começou a fazer um casaco – um casaco de seda cor de cereja bordado com amores-perfeitos e rosas, e um colete de cetim cor de creme – enfeitado com gaze e chenile verde penteado – para o prefeito de Gloucester.

O alfaiate trabalhava e trabalhava, e falava sozinho. Ele mediu a seda, virou-a várias vezes e aparou-a com sua tesoura; a mesa estava toda coberta de pedaços cor de cereja.

“Sem tecido para nada, e com corte na cruz; não é tecido suficiente; tippets (lenço para os ombros) para ratos e fitas para ralos! Para ratos!” disse o Alfaiate de Gloucester.

Quando os flocos de neve caíram contra as pequenas vidraças de chumbo e bloquearam a luz, o alfaiate havia terminado seu trabalho do dia; toda a seda e cetim estavam recortados sobre a mesa.

Havia doze peças para o casaco e quatro peças para o colete; e havia abas de bolso e punhos e botões, tudo em ordem. Para o forro do casaco havia um fino tafetá amarelo; e para as casas dos botões do colete, havia torção cor de cereja. E tudo estava pronto para costurar pela manhã, tudo medido e com tecido o suficiente – exceto que faltava apenas um único novelo de seda trançada cor de cereja.

O alfaiate saía de sua loja ao anoitecer, pois não dormia ali à noite; ele fechou a janela e trancou a porta, e tirou a chave. Ninguém morava lá à noite, exceto ratinhos marrons, e eles entravam e saíam sem nenhuma chave. Pois por trás dos lambris de madeira de todas as casas antigas de Gloucester, existem pequenas escadas de ratos e alçapões secretos; e os ratos correm de casa em casa por aquelas longas passagens estreitas; eles podem correr por toda a cidade sem ir para as ruas.

Mas o alfaiate saiu de sua loja e voltou para casa na neve. Ele morava bem perto de College Court, perto da entrada de College Green; e embora não fosse uma casa grande, o alfaiate era tão pobre que alugava apenas a cozinha. Ele morava sozinho com seu gato; chamava-se Simpkin.

Agora, durante todo o dia, enquanto o alfaiate estava trabalhando, Simpkin cuidava da casa sozinho; e ele também gostava dos ratos, embora não lhes desse cetim para casacos!

“Miau?” disse o gato quando o alfaiate abriu a porta. “Miau?”

O alfaiate respondeu: “Simpkin, faremos nossa fortuna, mas estou esgotado. Pegue esta moeda (que são nossos últimos quatro pence) e Simpkin, pegue um pipkin de porcelana; compre um pence de pão, um pence de leite e um pence de salsichas. E oh, Simpkin, com o último centavo de nossos quatro pence, compre-me um pence de seda cor de cereja. Mas não perca o último centavo dos quatro pence, Simpkin, ou eu estarei perdido e gasto como um fio de papel, pois NÃO TENHO MAIS PENCES.”

Então Simpkin disse novamente: “Miaw?” e pegou o grão e o pipkin e saiu para a escuridão.

O alfaiate estava muito cansado e começando a passar mal. Sentou-se perto da lareira e falou consigo mesmo sobre aquele casaco maravilhoso.

“Farei minha fortuna – para não ser tendencioso – o prefeito de Gloucester vai se casar no dia de Natal pela manhã, e ele encomendou um casaco e um colete bordado – para ser forrado com tafetá amarelo – e o tafetá é suficiente; não sobra mais em snippets do que servirá para fazer tippets para ratos”

Então o alfaiate começou; pois de repente, interrompendo-o, da cômoda do outro lado da cozinha vieram vários pequenos ruídos.

Tip tap, tip tap, Tip tap tip!

“Agora, o que pode ser isso?” disse o alfaiate de Gloucester, pulando da cadeira. A cômoda estava coberta de louças e pratos de salgueiro e xícaras de chá e canecas.

O alfaiate atravessou a cozinha e ficou imóvel ao lado da cômoda, ouvindo e espiando através dos óculos. Novamente debaixo de uma xícara de chá, vieram aqueles barulhinhos engraçados.

Tip tap, tip tap, Tip tap tip!

“Isso é muito peculiar”, disse o alfaiate de Gloucester; e levantou a xícara de chá que estava de cabeça para baixo.

De lá saiu uma ratinha viva e fez uma reverência ao alfaiate! Então ela pulou para fora da cômoda, e sob o lambril.

O alfaiate sentou-se novamente perto do fogo, aquecendo as pobres mãos frias e murmurando para si mesmo:

“O colete é cortado em cetim cor de pêssego – ponto de pandeiro e botões de rosa em linda seda de fio dental. Será que fui sensato em confiar meus últimos quatro pence a Simpkin? Vinte casas de botão de torção cor de cereja!”

Mas de repente, da cômoda, vieram outros barulhinhos:

Tip tap, tip tap, tip tap tip!

“Isso é extraordinário!” disse o Alfaiate de Gloucester, e virou outra xícara de chá, que estava de cabeça para baixo.

Saiu um ratinho cavalheiro e fez uma reverência ao alfaiate!

E então de toda a cômoda veio um coro de pequenas batidas, todas soando juntas e respondendo umas às outras, como besouros de relógio em uma velha veneziana carcomida por vermes…

Tip tap, tip tap, tip tap tip!

E debaixo de xícaras de chá e de tigelas e bacias, saíram mais e mais ratinhos que pularam da cômoda e para debaixo do lambril.

O alfaiate sentou-se perto do fogo, lamentando: “Vinte e uma casas de botão de seda cor de cereja! Para terminar ao meio-dia de sábado: e esta é a noite de terça-feira. Foi certo soltar aqueles ratos, sem dúvida propriedade de Simpkin? Alack, estou perdido, pois não tenho mais reviravoltas!”

Os ratinhos saíram novamente e ouviram o alfaiate; eles notaram o padrão daquele casaco maravilhoso. Eles sussurraram um para o outro sobre o forro de tafetá e sobre os pequenos ratos.

E então, de repente, todos eles correram juntos pela passagem atrás do lambril, guinchando e chamando uns aos outros, enquanto corriam de casa em casa; e nenhum rato havia restado na cozinha do alfaiate quando Simpkin voltou com o pote de leite!

Simpkin abriu a porta e saltou para dentro, com um furioso “Grr-miaw!” como um gato que está irritado: porque ele odiava a neve, e havia neve em suas orelhas e neve em sua gola na parte de trás do pescoço. Ele colocou o pão e as salsichas sobre a cômoda e cheirou.

“Simpkin”, disse o alfaiate, “onde está o meu novelo?”

Mas Simpkin colocou o pote de leite sobre a cômoda e olhou desconfiado para as xícaras de chá. Ele queria seu jantar de ratinhos gordos!

“Simpkin”, disse o alfaiate, “onde está meu NOVELO?”

Mas Simpkin escondeu um pequeno embrulho no bule de chá, cuspiu e rosnou para o alfaiate; e se Simpkin pudesse falar, ele teria perguntado: “Onde está meu RATO?”

“Alack, estou perdido!” disse o Alfaiate de Gloucester, e foi tristemente para a cama.

Durante toda aquela noite, Simpkin caçou e vasculhou a cozinha, espiando nos armários e embaixo do lambril, e no bule onde havia escondido aquele twist; mas ainda assim ele nunca encontrou um rato!

Sempre que o alfaiate murmurava e falava durante o sono, Simpkin dizia “Miaw-ger-rwss-ch!” e fazia barulhos estranhos e horríveis, como os gatos fazem à noite.

Pois o pobre velho alfaiate estava muito doente com febre, se revirando em sua cama de dossel; e ainda em seus sonhos ele murmurava: “Chega de novelo! Chega de novelo!”

Todo aquele dia ele estava doente, e no dia seguinte, e no seguinte; e o que seria do casaco cor de cereja? Na alfaiataria da Westgate Street, a seda e o cetim bordados estavam recortados sobre a mesa — vinte e uma casas de botão — e quem viria costurá-las, quando a janela estava trancada e a porta também bem trancada?

Mas isso não atrapalhou os ratinhos marrons; eles entram e saem sem nenhuma chave por todas as casas antigas de Gloucester!

Do lado de fora, o pessoal do mercado caminhava pela neve para comprar seus gansos e perus e assar suas tortas de Natal; mas não haveria jantar de Natal para Simpkin e o pobre alfaiate de Gloucester.

O alfaiate ficou doente por três dias e três noites; e então era véspera de Natal, e muito tarde da noite. A lua subiu sobre os telhados e chaminés e olhou para baixo sobre o portão de College Court. Não havia luz nas janelas, nem barulho nas casas; toda a cidade de Gloucester dormia profundamente sob a neve.

E Simpkin ainda queria seus camundongos e miava ao lado da cama de dossel.

Mas é na velha história que todos os animais podem falar, na noite entre a véspera de Natal e o dia de Natal pela manhã (embora haja muito poucas pessoas que possam ouvi-los ou saber o que eles dizem).

Quando o relógio da catedral bateu meia-noite, houve uma resposta – como um eco dos carrilhões – e Simpkin ouviu, saiu pela porta do alfaiate e vagou pela neve.

De todos os telhados e velhas casas de madeira de Gloucester vinham mil vozes alegres cantando as velhas cantigas de Natal — todas as velhas canções de que já ouvi falar, e algumas que não conheço, como os sinos de Whittington.

Primeiro e mais alto, os galos gritaram: “Senhora, levante-se e asse suas tortas!”

“Oh, Dilly, Dilly, Dilly!” suspirou Simpkin.

E agora em um sótão havia luzes e sons de dança, e gatos vinham do outro lado do caminho.

“Ei, idiota, idiota, o gato e o violino! Todos os gatos em Gloucester – exceto eu”, disse Simpkin.

Sob o beiral de madeira, os estorninhos e os pardais cantavam sobre as tortas de Natal; as gralhas acordaram na torre da Catedral; e, embora fosse meia-noite, os galos e os tordos cantavam; o ar estava cheio de pequenas melodias de pássaros.

Mas tudo isso era bastante irritante para o pobre e faminto Simpkin!

Particularmente, ele estava irritado com algumas pequenas vozes estridentes por trás de uma treliça de madeira. Achou que eram morcegos, porque sempre têm vozes bem baixinhas — principalmente na geada negra, quando falam durante o sono, como o Alfaiate de Gloucester.

Eles disseram algo misterioso que soou como—

“Buz, disse a mosca azul, hum, disse a abelha,
Buz e hum eles choram, e nós também!”

E Simpkin saiu sacudindo as orelhas como se tivesse uma abelha em seu chapéu.

Da alfaiataria em Westgate veio um brilho de luz; e quando Simpkin se aproximou para espiar pela janela, ela estava cheia de velas. Houve um corte de tesoura e um corte de linha; e pequenas vozes de camundongos cantavam alto e alegremente—

“Vinte e quatro alfaiates
Foram pegar um caracol,
Os melhores homens entre eles
Durst não toque em sua cauda,
Ela colocou seus chifres
Como uma pequena vaca kyloe,
Corram, alfaiates, corram! 
ou ela pegará todos vocês agora mesmo!”

Então, sem pausa, as vozes dos ratinhos continuaram:

“Peneire a aveia da minha senhora,
Moa a farinha de minha senhora,
Coloque em uma castanha,
Deixe repousar por uma hora…”

“Miau! Miau!” interrompeu Simpkin, e ele arranhou a porta. Mas a chave estava debaixo do travesseiro do alfaiate, ele não conseguiu entrar.

Os ratinhos apenas riram e tentaram outra música:

“Três ratinhos sentaram-se para fiar,
A gatinha passou e ela espiou.
O que vocês estão pensando, meus belos homenzinhos?
Fazendo casacos para cavalheiros.
Devo entrar e cortar seus fios?
Oh, não, senhorita Gatinha, 
você morderia nossas cabeças!”

“Miau! Miau!” exclamou Simpkin. 

“Ei, idiota!” responderam os ratinhos.

“Ei, pequenino, bichinho de estimação!
Os mercadores de Londres usam roupão;
Seda na gola e ouro na bainha,
Marcham tão alegremente os da lojinha!”

Eles clicaram em seus dedais para marcar o tempo, mas nenhuma das canções agradou a Simpkin; ele fungou e miou na porta da loja.

“E então eu comprei
Um pipin e um popkin,
Um Slipkin e um Slopkin,
Tudo por um centavo

e sobre a cômoda da cozinha!” acrescentaram os ratinhos rudes.

“Miau! Raspa! Raspa!” Simpkin deitado no parapeito da janela; enquanto os ratinhos lá dentro pularam de pé e todos começaram a gritar ao mesmo tempo em pequenas vozes gorjeiantes: “Chega de tecer! Chega de tecer!” E eles fecharam as venezianas das janelas e isolaram Simpkin.

Mas ainda através das fendas nas persianas ele podia ouvir o clique de dedais e pequenas vozes de camundongos cantando…

“Chega de tecer! Chega de tecer!”

Simpkin saiu da loja e foi para casa, refletindo em sua mente. Encontrou o pobre velho alfaiate sem febre, dormindo tranquilamente.

Então Simpkin ficou na ponta dos pés e tirou um pequeno embrulho de seda do bule e olhou para ele ao luar; e sentiu-se bastante envergonhado de sua maldade em comparação com aqueles bons ratinhos!

Quando o alfaiate acordou pela manhã, a primeira coisa que viu sobre a colcha de retalhos foi um novelo de seda torcida cor de cereja, e ao lado de sua cama estava o arrependido Simpkin!

“Alack, estou exausto”, disse o alfaiate de Gloucester, “mas tenho meu novelo!”

O sol brilhava na neve quando o alfaiate se levantou e se vestiu e saiu para a rua com Simpkin correndo à sua frente.

Os estorninhos assobiavam nas chaminés e os tordos e outros pássaros cantavam — mas cantavam seus próprios barulhinhos, não as palavras que haviam cantado durante a noite.

“Alack”, disse o alfaiate, “eu tenho meu novelo; mas não tenho mais energia – nem tempo – do que me servirá para fazer uma única casa de botão; pois este é o dia de Natal pela manhã! O prefeito de Gloucester deve se casar ao meio-dia – e onde está seu casaco cor de cereja?”

Ele destrancou a porta da pequena loja na Westgate Street e Simpkin entrou correndo, como um gato que espera alguma coisa.

Mas não havia ninguém lá! Nem mesmo um ratinho marrom!

As tábuas foram varridas; as pequenas pontas de linha e os pequenos pedaços de seda foram todos arrumados e retirados do chão.

Mas sobre a mesa – Oh que alegria! O alfaiate deu um grito – lá, onde ele havia deixado cortes simples de seda – lá estava o mais belo casaco e colete de cetim bordado que já foi usado por um prefeito de Gloucester.

Havia rosas e amores-perfeitos nas orlas do casaco; e o colete foi trabalhado com papoulas e flores de centáurea.

Tudo estava pronto, exceto uma única casa de botão cor de cereja, e onde faltava essa casa de botão havia um pedaço de papel pregado com estas palavras – em letras miúdas:

ACABOU O NOVELO

E a partir de então começou a sorte do Alfaiate de Gloucester; ele ficou bastante robusto e muito rico.


Ele fazia os mais maravilhosos coletes para todos os ricos mercadores de Gloucester e para todos os nobres cavalheiros da região.

Nunca foram vistos tantos babados, ou punhos e lapelas tão bordados! Mas suas casas de botão foram o maior triunfo de tudo.

Os pontos daquelas casas de botão eram tão perfeitos – tão perfeitos – que me pergunto como puderam ser costurados por um velho de óculos, com dedos velhos tortos e dedal de alfaiate.

Os pontos daquelas casas de botão eram tão pequenos — tão pequenos — que pareciam feitos por ratinhos!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
HELEN BEATRIX POTTER (Londres, 1866 — Lakeland/Inglaterra, 1943) foi uma escritora, ilustradora, micologista e conservacionista inglesa, célebre por seus livros infantis de grande originalidade e valor intemporal. Sua obra mais famosa é A História do Pedro Coelho. Ela estudou em casa e recebeu das governantas uma educação vitoriana.  O Coelho Benjamim foi uma das primeiras personagens que Beatrix Potter vendeu a uma editora. Beatrix começou por ilustrar contos tradicionais como "Cinderela", "A Bela Adormecida", "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", "O Gato das Botas" etc, mas muitas das suas ilustrações incluíam os seus animais de estimação. Beatrix Potter teve bastantes dificuldades em encontrar uma editora que publicasse as suas histórias. Depois de receber várias cartas de rejeição, ela decidiu tratar do assunto sozinha e criou um livro pequeno a preto e branco com a histórias dos quatro coelhinhos e publicou 250 cópias do mesmo que pagou com o seu próprio dinheiro. Frederick Warne & Co, que já tinha rejeitado as histórias de Beatrix, decidiu publicar o que apelidou de "livro dos coelhinhos". A mudança de posição deveu-se ao fato de a editora querer entrar no mercado dos livros infantis de formato pequeno. A História do Pedro Coelho foi publicado em 1902 e foi um enorme sucesso, vendendo 20 000 cópias até ao Natal desse ano. No ano seguinte, foram publicados A História do Esquilo Trinca-Nozes e O Alfaiate de Gloucester. Nos anos seguintes, Beatrix trabalhou com o editor Norman Warne e publicou entre dois e três livros de formato pequeno todos anos, atingindo um total de 23 obras publicadas na sua carreira. Em 1905, Beatrix e Norman Warne, o seu editor, ficaram noivos. O noivado foi mantido em segredo pois a família de Beatrix desaprovava um noivo que vivia de sua profissão de editor, por considerá-lo de classe inferior. Tragicamente, em 25 de agosto de 1905, um mês depois do pedido, Norman morreu de leucemia, quando tinha 37 anos. Isso deixou Beatrix devastada, mas ela fez o máximo para superar esse momento difícil, trabalhando ainda mais do que o costume. Em 1913, aos quarenta e sete anos, Beatrix casou-se com William Heelis, um procurador local, e foi morar em Sawrey. Ela passou a desenhar e a escrever menos, dedicando-se às atividades da fazenda, à criação de carneiros e a comprar muitas terras em Lakeland, para preservá-las. Quando Beatrix Potter morreu, em 1943, deixou mais de 4 000 acres e 15 fazendas para o National Trust, uma organização destinada a preservar lugares de interesse histórico ou de grande beleza cênica, na Inglaterra. Beatrix e William tiveram um casamento feliz que durou trinta anos. Apesar de não terem filhos, Beatrix era um elemento importante da família de William e teve uma relação muito próxima com as suas sobrinhas, que ajudou a educar. Beatrix faleceu em 1943, devido a uma pneumonia e complicações cardíacas em sua residência, chamada Castle Cottage, localizada em Lake District. Os seus restos mortais foram cremados. O seu marido continuou cuidando das propriedades e do trabalho literário e artístico da esposa até à sua morte, em agosto de 1945. Em 2006, a vida de Beatrix Potter foi transformada em um filme, Miss Potter, com Renée Zellweger e Ewan McGregor como protagonistas. 

Fontes:
Beatrix Potter. The Taylor of Gloucester. Publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.  
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Beatrix_Potter
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Asas da Poesia * 25 *

 

Trova de
LUÍZA NELMA FILLUS
Irati/PR

Singela festa de outrora,
olhos puros de criança,
vem-me lágrimas agora,
com essa doce lembrança.
= = = = = = = = =  

Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Spinoza

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante ideia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Há um encanto na melancolia

E a chuva continua...
Do vidro do carro
Observo a
A paisagem líquida
Que em tons de verde e cinza
Passa depressa...
Há um encanto na melancolia,
Dividindo o cristal da taça
Fazendo-me companhia
Nesta tua ausência,
E, na lembrança dos teus beijos
Com gosto e aroma do chá de morangos
Despedindo-se aos poucos,
Há um encanto na melancolia
Que dilacera a alma,
Repleta de uma saudade,
Das tuas poesias,
E mensagens de amor
Que, ainda navegam  em imagens
De sonhos...
Há um encanto na melancolia
Qual uma tela com pontilhismo,
Pincelando em  meu coração
Um amor tão intenso e impossível,
Repleto de inquietos e alegres
Pontinhos de cores,
Ah, a melancolia encanta-se
Com esse lento passar das horas,
Em que a imobilidade dos sinos de vento
E a ponta quebrada do lápis
Adiam um ponto final
= = = = = = 

Poetrix de
FÁBIO ROCHA
Rio de Janeiro/RJ

presas na boca

as pessoas fingem certezas.
certamente
estão presas
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Eu pintava trezentos arco-íris
(Mário Quintana, in “Rua dos Cataventos”)

Pintaria trezentos arco-íris
No céu de chumbo desse teu futuro
Para que ele não fosse tão escuro
E alegre com a sorte, tu te rires.

É tempo de a tristeza despedires
De veres o que está além do muro
E que o teu sol rebrilhe, grande e puro
Para que à luz te vejas e te admires.

A chuva misturada com o pranto
Vai, da alma, lavar o desencanto
Que em dias já passados tu tiveste.

Enfrenta cada dia sem temer
Que a vida só te paga com prazer
Aquilo que primeiro tu lhe deste.
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Na taça de cada dia, 
a transbordar de amargura, 
cai um pingo de alegria, 
e o fel se torna doçura. 
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

A voz do amor

Nessa pupila rútila e molhada,
Refúgio arcano e sacro da Ternura,
A ampla noite do gozo e da loucura
Se desenrola, quente e embalsamada.

E quando a ansiosa vista desvairada
Embebo às vezes nessa noite escura,
Dela rompe uma voz, que, entrecortada
De soluços e cânticos, murmura...

É a voz do Amor, que, em teu olhar falando,
Num concerto de súplicas e gritos
Conta a história de todos os amores;

E vêm por ela, rindo e blasfemando,
Almas serenas, corações aflitos,
Tempestades de lágrimas e flores...
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Com minha alma amargurada, 
envolto em meu sofrimento, 
passo inteira a madrugada 
jogando versos ao vento…
= = = = = = 

Poema de
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul/RS

A beleza de ser

A beleza de ser,
está na magia de saber sentir...
É no mundo real das coisas não vistas,
mas sentidas, que as belezas ou riquezas são manifestadas.
Amor, caridade, riso, arte, prece,
são manifestações capazes de enaltecer
o encanto desta raça chamada “gente”.
Ou seja, beleza é algo que nasce de dentro para fora.
E não de fora para dentro.
Embora isso também possa acontecer.
Autenticidade é algo raro. E caro.
Tão caro que não tem preço.
Não se importe com o que os outros falam
sobre atitudes sentimentais.
Sinta amor...
Seja belo sendo sentimento.
E não razão.
= = = = = = 

Haicai de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

Mocidade

Do beiral da casa
(telhas novas, vermelhas!)
vai-se embora uma asa.
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Este quarto... 
(para Guilhermino César)

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...
= = = = = = 

Hino de 
ANTONINA/ PR

Salve terra formosa e querida 
Que se estende na costa a sorrir 
Terra calma onde achamos à vida 
Sob a qual esperamos dormir 

Salve terra de brisas ciciantes, 
Doce gleba que nos viu nascer
Não te esqueças teus filhos distantes, 
Esquecer-te é mais fácil morrer.

Estribilho

Antonina, Antonina, 
Deitada a beira do mar 
Sob a tutela divina 
Da Senhora do Pilar 

Antonina, cidade das flores, 
De suave e finíssimo olor
Tens o brilho de mil esplendores 
Para nós que te damos amor 

Salve gleba, fecunda cidade 
Mais augusta por certo acharás 
Deus te encha de felicidade 
Para a glória do meu Paraná 

Antonina, Antonina,
Deitada a beira do mar 
Sob a tutela divina 
Da Senhora do Pilar
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Festas vespertinas

Nas vespertinas festas, nos domingos,
Quando eu queria muito o teu amor,
Dancei gostoso rock, joguei bingos,
Te esperando namoro me propor.

Dançávamos bolero, ou mesmo tango,
E ao som daquele rock fui dançando...
Para o salão sozinha, e então eu mango
Do teu jeito sem graça rebolando.

Até que um dia escuto teu lamento,
Porque não poderias nem me ver
Assim, me divertindo em tal evento.

Eu era adolescente e bem feliz,
Nas vespertinas festas pude ter
A tua companhia enquanto quis.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/ SP, 1945 – 2021, Santos/ SP

Sou poeta e trovador, 
a inspiração me transporta 
às nuvens e, com amor, 
nas nuvens minha alma aporta.
= = = = = = = = = 

Uma Lengalenga de Portugal
BICHO DA CONTA
 
Estas lengalengas dirigidas a insetos, eram ensinadas ás crianças para elas dizerem quando encontravam um deles nos campos. Era uma maneira de as ensinar a ter respeito pela natureza.
 
Debaixo da pedra
 Mora um bichinho
 De corpo cinzento
Muito redondinho
 
Tem medo do sol
Tem medo de andar
Bichinho de conta
Não sabe contar
 
Muito redondinho
Rebola, no chão
Rebola, na erva
E na minha mão
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
Serro/ MG

O vento bateu na porta
eu pensei que era a Sinhana,
tive pena de mim mesmo!
Até o vento me engana.
= = = = = = = = =  

Soneto de
AFONSO FELIX DE SOUSA
Jaraguá/GO, 1925– 2002, Rio de Janeiro/RJ

Sonetos Elementares XV

E Deus chamou à luz dia; e às trevas
chamou noite: o primeiro dia, feito
de elementos de mortos dias, dia
de madrugadas feito – assim nascera.

Embora com o corpo a debater-se
na sombra anterior, perdi-me ao canto
das aves primitivas, e boiei
entre espumas e o espírito de Deus.

Flores mortas brotaram e eram belas.
A terra toda se transfigurara
nessas ilhas de que só nós sabemos.

Cego sem céu e mar que de repente
recupera as paisagens, segui leve
como um louco cantando entre anjos.
= = = = = = = = =

Poema de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Boêmio

Boêmio – em turbilhão intenso a vida esbanjas,
escravo de emoções em noites deturpadas.
Teu sol, luz de abajur, a arder envolto em franjas,
tem o álgido livor das frias madrugadas.

Volúvel, novo amor te aguarda em cada esquina,
e insatisfeito vai teu coração repleto
dessa ânsia de viver, que arrasta, que fascina,
alheio à paz de um lar, à placidez de um teto!

Boêmio, a mocidade é curta… logo passa!
A seara, quando má, provém de mau plantio!
Apressa-se o amanhã… o nada te ameaça
e a solidão abraça o coração vazio!
= = = = = = = = =  

Trova do
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

De barro se faz o homem, 
e de luz principalmente. 
O barro, os anos consomem; 
a luz eterniza a gente!
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Décima do
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Solidariedade!

Oh! Deus meu, que estás no céu,
diga-me, qual o destino
desta menina (ou menino!),
que vive jogada ao léu
sem solado e sem chapéu?
Que Tu me dês, de verdade,
um pingo de caridade
pra que eu leve à esta criança
uma nesga de esperança.
Isto é: Solidariedade!
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Trova de
OLÍVIA ALVAREZ MIGUEZ BARROSO
Parede/Portugal

Quando a esperança se alia
ao conceito de beleza,
há folhas de poesia
a pairar na natureza.
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Soneto do
ADELMAR TAVARES
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

Francisco, meu pai

Como que o vejo... O chapelão caído
Sobre a cabeça branca de algodão...
Buscando o campo, — o dia mal nascido,
Voltando à casa, o dia em escuridão.

Lavrador, fez da terra o ideal querido.
"Meu filho, a terra é que nos dá o pão",
Dizia-me. E cavava comovido,
A várzea aberta para a plantação...

Mas um dia, eu, pequeno, vi, cavando,
Sete palmos de campo, soluçando,
Uns homens rudes... Tempo que já vai!

"Francisco, adeus"! Diziam repetindo.
Meu pai desceu de branco... Ia dormindo
Fechou-se a terra... E não vi mais meu pai!
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Trova Premiada em Natal/RN, 2009 
RODOLPHO ABBUD 
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013

A violência e outras formas 
de opressão, mesmo discretas, 
não conseguem ditar normas 
aos corações dos poetas! 
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Gabinete de
OTACÍLIO BATISTA
(Otacílio Guedes Patriota)
São José do Egito/PE, 1923 – 2003, João Pessoa/PB

O povo deseja ouvir
     Um Gabinete bonito;
     Poeta, só acredito
     Se você não me mentir.
     Trate de se prevenir
     Para poder cantar bem
     Eu comprei um cartão
     Para viajar no trem:
     Sem cartão ninguém vai,
     Sem cartão ninguém vem!
     Vai e vem, vem e vai,
     Vem e vai, vai e vem.
     Quem não tem o que eu tenho,
     Morre danado e não tem!
     Quem estiver com inveja,
     Se esforce e faça também ...
     Cavalo bom é ginete;
     Quem não canta Gabinete,
     Não é cantor pra ninguém!
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Trova do
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Que trovador desastrado!
… foi direto pro doutor:
Fiz trova de pé quebrado!
Bota um gesso, por favor!
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Soneto de
SÍLVIA ARAÚJO MOTTA
Belo Horizonte/MG

Sol com chuva

No adágio popular ouvi dizer
que quando há sol com chuva...alguém sorriu!
Na despedida vi “viúva” a crer:
-“Marido vivo” em paz, feliz, fugiu...

Mulher tão forte, em tudo, quis vencer!
Enxugou o pranto, teve fé, agiu!
Criou seus filhos, graças viu chover!
Pingos lavaram “alma pura à mil...”

Com seu poder de sol viveu, brilhou...
Sempre enfrentou problemas, mas sorria!
Buscou o saber, destino então traçou.

Chove amizade... só por seu valor!
Ao ritmo dança, canta e faz poesia!
Molhada agora, beija o novo amor.
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Haicai de
ANALICE FEITOZA DE LIMA 
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP

Uma água barrenta,
pássaros sobre o barranco.
Um rio minguante.
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Poema de
ALICE GOMES
Tabuaço/Portugal, 1910 – 1983, Lisboa/Portugal

Na idade dos porquês 

Professor diz-me porquê?
Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?

Professor diz-me porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
E roda, gira, rodopia
e cai morto no chão...

Tenho nove anos, professor
e há tanto  mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!

Tu falas, falas, professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Fazes-me decorar.

É a luta, professor
a luta em vez de amor.

Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.

Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes, professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.

Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...

E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
o meu coração
o meu coração que não sei como é feito
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.
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Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Aquela alegre canção,
que, outrora, era de nós dois,
traz, hoje, triste emoção
na solidão de um depois…
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Poema do
J. G. DE ARAÚJO JORGE
(Jorge Guilherme de Araújo Jorge)
Tarauacá/AC 1914 – 1987 Rio de Janeiro/RJ

Poema às palavras 

 Tem uns homens por aí
com medo das palavras.

Tem uns poetas por aí
segregacionistas.

Tem preconceitos contra
as palavras:
esta não serve - é mestiça,
esta também não - é muito comum,
é do povo, não é importante,
e aquela também - não tem educação
fala muito alto, é palavrão.

Tem poeta por aí cochichando
como gente muito fina
de salão,
falando entre dentes
perpetrando futilidades
e maldades, como comadres.

Tem uns homens por ai
tratando as palavras pela cor
de sua pele:
não cruzam com as palavras, negras
amarelas, mulatas,
só fazem poemas brancos, poemas
puros, poemas arianos, poemas de raça.

Que se danem! Faço filhos
com todas as palavras
basta que elas se entreguem, e me amem
e saiam com o meu verso, à rua
para cantar.
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Quadra Popular
AUTOR ANÔNIMO

Coração entristecido,
por que tanto te magoas?
Se estás cercado de penas,
o que fazes que não voas?
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Laé de Souza (Padrinho de casamento)


Estranhei ao atender à porta. A moça, conhecia de vista, mas o rapaz era o Antero, filho do seu Guilhermindo. Cochichei para a mulher: “Decerto que hoje tem velório. O Mindo morreu e o filho veio avisar.” Mas como cumprimentou e não deu nenhuma notícia, descartei. Educadamente convidei-os para entrar, embora não fosse muito com a cara do garoto que sempre foi meio esnobe e quando nos cruzamos na rua faz que não me conhece.

Entraram e ficaram por uns trinta minutos assistindo também ao Silvio Santos sem dizer uma palavra. Naquele mutismo eu matutava, que diabos fizera aquele casal vir até aqui. Pigarreava e suava, enquanto observava que a barriga da moça parecia estar um pouco espremida por um cinto.

Finalmente, depois de tomarem um café, o rapaz desembuchou. Viera fazer um convite para que fôssemos padrinhos de casamento. Escolhera em consideração à amizade antiga com seu pai. Eu recordava vagamente e maldizia ter conhecido o Mindo nos tempos de garoto. Mas não tinha aquela amizade toda que o rapaz apregoava. Minha mulher teve um acesso de tosse, que foi curada com um copo d’água. Eu fixei os olhos na barriga da moça, ela encabulada enrubesceu, o que me convenceu que estava mesmo crescidinha. O rapaz, já dando como aceito o convite, tirou um papel do bolso e disse: “Seu Zunga, para não ter repetição de presentes, o padrinho já pode escolher aqui na lista o que quer dar.” 

Olhei de soslaio e li nas primeiras linhas freezer, conjunto de fogão com micro-ondas, TV com vídeo, telefone celular, sendo interrompido na leitura pela moça que lhe tirou das mãos o papel: “Já disse para pedir os móveis da sala”, falou brava ao rapaz. “É melhor o celular”, respondeu ele com a voz alterada. 

Minha mulher, que não tem papas na língua, esbravejou: “Quer dizer que uma televisão nova, você não compra, mas celular para afilhado, numa boa!” 

Sem qualquer cerimônia arrastou a moça para a cozinha e lhe mostrou a geladeira com a porta emperrada, o fogão com algumas partes oxidadas, que eu relutava em trocar. A garota esperneava. Tentava soltar-se das mãos que a arrastavam pelos cantos. 

Na inquietação, segurei a moça, arranquei meu chinelo e dei-lhe nas nádegas levemente, em respeito à sua gravidez, falando: “Afilhada minha tem de aprender a respeitar os padrinhos. E como castigo, não vai ganhar presente nenhum.” 

Saíram quietinhos.

No dia do casamento, para mostrar que sou de coragem, me apresentei no altar e não estava nem aí com a cara virada dos noivos e o rabo de olho do Mindo. E muito menos com os comentários maldosos dos convidados.
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Laé de Souza é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco.

Fonte:
Laé de Souza. Nos bastidores do cotidiano. SP: Ecoarte, 2018.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing