sexta-feira, 11 de abril de 2025

José Feldman (E se…?)

Era uma tarde abafada em um café literário do Rio de Janeiro, onde o velho charme das calçadas se misturava com a modernidade das telas de celular, um escritor contemporâneo, Lucas, estava sentado em uma mesa, digitando freneticamente em seu laptop, quando, de repente, uma figura conhecida entrou no estabelecimento. Era ninguém menos que Machado de Assis, com seu famoso chapéu e um olhar perspicaz.

Lucas: (olhando para cima, surpreso) Uau, é você, Machado de Assis! O que faz aqui no século XXI?

Machado: (com um sorriso sutil) Ah, jovem, o tempo é uma construção tão maleável quanto a narrativa. Vim ver como andam as letras modernas.

Lucas: (sorrindo) Pois é, a escrita mudou bastante. Você já pensou em como seriam seus livros hoje? Imagina "Dom Casmurro" com redes sociais!

Machado:(levanta uma sobrancelha) Redes sociais? Como assim?

Após algum tempo, regado a várias xícaras de capuccino, explicando resumidamente para Machado de Assis as mudanças entre os séculos, suas inovações e avanços, continuaram a debater as obras.

Lucas:(animado) Pense! Bentinho faria um perfil no Instagram, postando fotos da Capitu. E você sabe como as pessoas adoram uma polêmica! Imagina os comentários!

Machado:(rindo) Capitu teria que ter um filtro especial para esconde-los, não? O que seria da sua fama com uma "influencer" ao lado?

Lucas: Exato! E Quincas Borba, com seu "Humanitismo", poderia ter uma página de autoajuda no Facebook!

Machado:(pensativo) Hummm... e o que ele diria? “Seja feliz ou não, mas não se esqueça de compartilhar seu progresso”?

Lucas: (rindo) Sim! E imagina a briga entre Quincas e o Robson, agora discutindo em threads de Twitter!

Machado: (com um brilho nos olhos) E a ironia? Ah, meu caro, a ironia seria a estrela! “Humanitismo: mais likes, menos empatia!”

Lucas: (aproximando-se) Vamos ser sinceros, hoje em dia, seria um sucesso! Mas e "Dom Casmurro"? Você ainda acha que ele foi ciumento ou só inseguro?

Machado: (com um sorriso maroto) Ah, meu jovem, a dúvida é o que torna a história tão intrigante. Afinal, quem não tem suas inseguranças? Até mesmo neste café, quem sabe se você não está sendo traído por um croissant?

Lucas: (rindo alto) Bom ponto! Mas eu acho que a Capitu teria um podcast, falando sobre o "casamento moderno". Seria um sucesso!

Machado: (pensando) Um podcast sobre infidelidade? Isso poderia ser um verdadeiro "narrador não confiável" em áudio! Teríamos que chamar o Bentinho para debater.

Lucas: (fazendo gestos) Ouvintes votariam: “Capitu traiu ou não traiu?” E no final, a conclusão seria: “Nada como uma boa conversa no divã!”

Machado: (acena com a cabeça) Uma nova forma de análise, sem dúvida. Mas me conte, como é a literatura atual? Os jovens ainda leem clássicos?

Lucas: (pensativo) Alguns sim, mas muitos preferem resumos e adaptações. E há uma pressão enorme por conteúdo rápido. A leitura se tornou quase um “fast-food”!

Machado: (franzindo a testa) Que pena! A profundidade se perde. A literatura é um banquete, não uma refeição rápida! O que seria de Quincas Borba sem suas reflexões?

Lucas: (com um brilho nos olhos) Certo! Imagino um aplicativo de leitura, onde cada página virada poderia ser um prêmio. “Leia e ganhe pontos!”

Machado: (rindo) Seria um "Humanitismo" gamificado? “Parabéns, você acaba de refletir sobre a condição humana!”

Lucas: (aplaudindo) Exato! E o que você diria aos jovens escritores de hoje?

Machado: (pensativo) Que escrevam com sinceridade. A tecnologia pode mudar, mas a essência da escrita permanece. O olhar humano, as emoções... isso nunca deve se perder.

Lucas: (sorrindo) Palavras sábias, Machado. Vou usar isso na minha próxima obra. 

Machado: (levantando a xícara de café) Então brindemos à literatura, que sempre encontrará um caminho, seja no século XIX ou XXI!

Lucas: (erguendo seu copo) À literatura e ao diálogo entre épocas!

E assim, entre risadas e reflexões, o escritor contemporâneo e o mestre do século XIX continuaram a troca de ideias, mostrando que, independentemente do tempo, a literatura sempre será um terreno fértil para a criatividade e o humor.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria e Voo da Gralha Azul. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Eduardo Martínez (Vida dupla)

Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.

— Aureliano, algum problema?

— Margô, você não viu?

— Viu o quê?

— O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.

Margô, a maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro, enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara, que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência, realmente, não era seu forte. 

Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais tradicional do Distrito Federal. 

Aureliano e seu alter ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia. Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era destaque na orquestra. 

O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.

Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.

— Aureliano!

— Oi.

— O que é isso?

— Isso o quê?

— Eu é que pergunto! 

Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi o primeiro a expor a ferida aberta.

— Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?

Aureliano, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas, entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e ir para casa chorar suas mágoas.

O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Blog do Menino Dudu
https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2025/04/vida-dupla.html
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Eduardo Affonso (O dilema das rodas)

Estou pensando em fazer um documentário em que ex-executivos da Volkswagen, da Fiat, da Ford, da Toyota e, por que não, da Gurgel, se penitenciam diante das câmeras por terem desenvolvido automóveis.

– Eles provocam desastres – lamenta X, desviando o olhar após uma pausa dramática.

– Nós sabíamos dos riscos e, ainda assim, colocamos aceleradores – diz, enxugando uma furtiva lágrima, o engenheiro Y.

Os herdeiros de Daimler e de Benz falarão da inveja causada pelas Mercedes inventadas por seus antepassados.

– Já havia ressentimento demais no planeta. Mas vovô foi insensível e… – não conseguirá terminar o depoimento.

Sim, a indústria automobilística é perversa. Mauzona, maldosa e malvada.

– Fui alto executivo da Ferrari. Por mim, teríamos produzido apenas ambulâncias. E carros do Corpo de Bombeiros. Mas havia pessoas gananciosas e o que poderia ser um lindo projeto acabou se perdendo.

No cenário frio (este documentário pede cenários frios), com pequenos trechos do meiquinhofe (este documentário pede maquiadores tirando o brilho da pele de um, reristáilistes ajustando as mechas de outra), um a um os ex-ciiôus lavarão roupa suja, a centrifugarão e farão enxague completo com amaciante e Lysoform.

– Claro que estava nos planos, desde o início, que ladrões usariam nossos carros nas fugas – confessará K (inicial fictícia), engenheiro de produção da Nissan.

– E que agrobois tunariam nossos produtos, incluindo uma potente aparelhagem de som para ouvir dupla sertaneja no volume máximo, com o porta-malas aberto, no domingo, no Parque Barigui – continuará W (inicial mais fictícia ainda), gerente de projetos da Jeep.

– Devíamos ter resistido e abortado o Ford Bigode enquanto era tempo, mas… fomos fracos.

O documentário levantará questões sobre segurança (“Os erbegues não foram instalados nos calhambeques para não atrapalhar a estética. Eles teriam salvo a vida de milhares de melindrosas inocentes”), sobre liberdade (“Sim, o cinto de três pontos foi pensado como forma de manter as pessoas mais tempo presas dentro dos veículos, ouvindo propaganda no rádio. A JB FM e a Super Rádio Tupi injetaram muita grana nesse projeto”) e sobre manipulação (“O viagra foi adiado por décadas para que pudéssemos continuar vendendo Simca Chambords, Mavericks e Camaros amarelos”).

Alguém lembrará que carros também servem para transportar hortifrútis para o Ceasa, levar as crianças à escola, visitar a avó em Taubaté, ver corrida de submarino na Niemeyer. Será um contraponto necessário – afinal, há de ser um documentário isento, neutro e imparcial.

Se fizer sucesso, já tenho engatilhado aqui um sobre a indústria do papel (“Sabíamos que iam imprimir livros de autoajuda, e continuamos produzindo celulose assim mesmo”) e sobre a indústria fonográfica (“Larguei tudo e decidi virar monge tibetano quando saiu aquele disco da Ana Carolina e do Seu Jorge. Isso foi há 15 anos, e até hoje pratico a autoflagelação, para tentar expiar minha culpa.”).

Alguém aí tem algum contato na Netflix pra me passar?
~

[Disclêimeres: Este texto contém provocação. Sim, eu sei que a questão não é tão simples assim. Claro, o assunto é muito mais complexo. Lógico, não dá pra tratar esse tipo de coisa tão levianamente. Evidente que é impossível comparar uma coisa com a outra. Concordo que você entendeu tudo e eu não entendi nada.
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EDUARDO AFFONSO. Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 20 outu 2020
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/20/o-dilema-dos-motores/
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quarta-feira, 9 de abril de 2025

Asas da Poesia * 1 *


 Poema de 
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa (1919 – 2004) Porto

Cantata de paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietnam
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
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Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema (III)

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.
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Poema de
WASHINGTON DANIEL GOROSITO PÉREZ
Irapuato/ Guanajuato/ México

Poeta

A noite me pede um poema
é indulgente com este bardo,
ferido pelo silêncio.
Faz minha caneta dançar,
meu ritmo, minhas palavras.
Letras noturnas, letras na solidão.
Escrevo algumas na minha mão esquerda,
Elas serão o início de um poema.
Há folhas que não admitem poesia
e armazenam palavras escondidas.
Você sente o aroma do verbo.
Letras que saltam,
para construir poemas para loucos
como a balada de Ferrer,
com espírito insurrecional
versos de vaga-lume,
iluminam
Morre a noite
e também o poeta,
um pouco a cada verso,
que derrotará a ferrugem do tempo,
e a poeira do esquecimento,
escreve poesia.

(tradução do espanhol por José Feldman)
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (VII)

Avozinha Garoa vai contando
Suas lindas histórias, à lareira.
"Era uma vez... Um dia... Eis senão quando..."
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando
O pezinho da Gata Borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro inda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um' outra história principia,
Para embalar meu coração dorido
Que está pensando, sempre, em outra cousa…
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Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Saudade – no fim do dia, 
já sei por que me dói tanto: 
aumenta a melancolia, 
dobra as dores do meu pranto! 
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Poema de 
JOSÉ PEDRO DA SILVA CAMPOS D’OLIVEIRA
Moçambique (1847 – 1911)

A Uma Virgem
(Improviso)

Motora dos meus martírios!
Causa da minha saudade!
Ingênua e casta deidade!
Minha terna inspiração!
Condói-te da triste sorte
Do jovem que te ama tanto,
Que por ti verte agro pranto
Gerado no coração!
Rasga-me o peito, se queres,
E vê nele a intensa chama,
Que há três anos o inflama
Em cruas dores, sem fim...
De padecer já cansado
Vou sentindo a morte dura
Arrastar-me à sepultura,
E na flor da idade assim!...

E podes ser tão tirana,
Que possas ver indif´rente
D´anos de´nove somente
Morrer o teu trovador?!
Ai! Não! Alenta-me a vida,
Reprime esta dor infinda
Dando-me só, virgem linda,
O teu puro e casto amor!...

(obs: foi mantida a grafia original)
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Poema de
OLIVER FRIGGIERI
Floriana/Malta

Somos água viva

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

(Tradução do Maltês e Espanhol por José Feldman)
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Poema de
LUCIANA SOARES CHAGAS
Rio de Janeiro/RJ

Iara, menina do encanto

Na praia dourada, a menina a brincar,
Iara, com olhos negros a brilhar.
Sorriso faceiro, de encanto sem par,
Sua alegria faz o mundo dançar.

Cabelos cacheados, como ondas do mar,
Bailam no vento, livres a sonhar.
Inteligente e doce, um brilho especial,
Sua presença é luz, um dom celestial.

Amiga querida, sempre a cativar,
Com um toque de rosa, um sonho a criar.
Unicórnios encantam seu mundo infantil,
Irmã e companheira, de amor tão gentil.

Toda charmosa com suas vestes de bailarina,
Iara, sua risada é melodia divina.
Um poema pra ti, menina...
És estrela brilhante, de alma cristalina.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Esperança

Enquanto há vida, eu sei, há esperança
que é uma das virtudes teologais,
foi isso que aprendi desde criança
e na verdade não esqueci jamais.

As outras são: o amor que não se cansa,
e a fé, que todo dia eu tenho mais!
E aí, querida, está minha confiança:
juntos faremos nossos esponsais!

Vou esperar o quanto for preciso,
certo de que não perderei o juízo,
até o dia que você me amar.

E nesse dia eu serei tão feliz,
que vou levar você até a Matriz,
e sob bênçãos, vamos nos casar!
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Hino de 
SÃO TOMÉ/PR

Quando os homens rasgaram um dia
Os mistérios do velho sertão
Entenderam por certo que havia
Um poder incomum neste chão
Visionários, a voz da esperança.
Numa luta de ardor e de fé
Na paisagem da verde pujança
Projetaram à luz São Tomé

ESTRIBILHO
Na mata virgem deslumbrante,
Rio dos Índios o solo a irrigar
A cachoeira borbulhante
Um poema de amor a entoar,
É tão belo, neste recanto.
Outro igual asseguro não há
São Tomé que eu amo tanto,
É orgulho do meu Paraná.

A riqueza brotando imponente
Desta terra de cor peculiar
A mostrar o valor de tua gente
No labor de uma faina invulgar
Na cadência marcada dos passos
Deste povo que ruma seguro
Carregando alegria nos braços
Para um grande soberbo futuro.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Tu nasceste nesta rua,
eu nasci além dos mares,
mas foi sempre a mesma lua
que juntou nossos olhares!
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Recordando Velhas Canções
SOLIDÃO 
(samba-canção, 1961) 
Adelino Moreira

Não, não quero mais o seu amor
Chega de amar, chega de dor
E de esperar em vão

Quando desperto
E vejo o leito vazio
Eu sinto frio no coração

Não, não quero mais ficar sozinha
Já Estou cansada de esperar
Acalentando a promessa
De que um dia
Você vem para ficar

Quem não tem direito ao amor
Não deve amar
Para não sofrer
Para não chorar

Veja meus Deus
A triste sorte minha
Na solidão do quarto
Eu beijo o seu retrato
E vou dormir sozinha
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Contos das Mil e Uma Noites (O homem que queria ser califa por um dia)

Conta-se, ó rei afortunado, que havia em Bagdá um jovem solteiro chamado Abu-Hassan. Seus vizinhos nunca o viram convidar alguém por dois dias seguidos ou convidar alguém de sua própria cidade. Todos os que visitavam sua casa eram estrangeiros. Não compreendendo seu comportamento, chamaram-no Abu-Hassan o Excêntrico. 

Todas as tardes, ia esperar na ponte de Bagdá. Quando avistava um estrangeiro, rico ou pobre, jovem ou velho, apresentava-se a ele com um sorriso urbano e rogava-lhe aceitar a hospitalidade na primeira noite de sua permanência em Bagdá. Levava-o para sua casa, tratava-o  com generosidade e distinção e agradava-o com sua conversação viva e espirituosa. Mas na manhã seguinte, dizia-lhe: “Jurei nunca convidar um estrangeiro por dois dias seguidos, fosse o mais encantador dos filhos dos homens. Por isso, vejo-me obrigado a separar-me de ti e até peço-te, se alguma vez nos encontrarmos nas ruas de Bagdá, que finjas que não me conheces.” Com essas palavras, Abu-Hassan conduzia o hóspede a um khan da cidade e despedia-se dele para sempre. 

Durante muito tempo, Abu Hassan procedeu assim, hospedando um estrangeiro diferente cada noite. Uma tarde, estava na ponte de Bagdá quando viu chegar um rico mercador vestido à maneira dos mercadores de Mossul e seguido por um escravo de aspecto imponente. Tratava-se nada menos que do califa Harun Al-Rachid disfarçado. Pois ele gostava de examinar pessoalmente, escondido pelo anonimato, o que se passava em Bagdá.

Abu-Hassan, ignorando quem ele era, convidou-o para sua casa, conforme seu hábito; e o estrangeiro aceitou. Jantaram os excelentes pratos preparados pela mãe de Abu-Hassan, e este escolhia os melhores pedaços e oferecia-os ao hóspede. Beberam vinho e conversaram. Harun Al-Rachid, encantado, disse a Abu-Hassan: “Peço-te como lembrança desta noite memorável, que exprimas um desejo; e comprometo-me, sobre a Kaaba sagrada, a satisfazê-lo. Fala com sinceridade e não receies que teu pedido seja grande demais, pois Alá me cumulou com seus benefícios e não há nada que não possa realizar.” 

Abu-Hassan afirmou que lhe bastava a alegria da presença de seu hóspede. Mas o califa insistiu, dizendo que se sentiria ofendido se seu anfitrião não atendesse a seu desejo. 

Disse Abu-Hassan: “Agradeço tua generosidade, mas como não tenho desejo a satisfazer nem ambição a concretizar, sinto me perplexo... a menos que te dirija um pedido louco que só Harun Al-Rachid poderia atender... Seria que me tornasse califa por um dia.” 

- O que farias, se fosses califa por um dia? perguntou o hóspede. 

– “Deves saber, ó forasteiro, que a cidade de Bagdá é dividida em bairros, sendo cada bairro administrado por um xeique. Desgraçadamente, o xeique de meu bairro é uma criatura tão horrível que deve ter nascido da cópula de uma hiena e de um porco. Emite um cheiro pestilento, e sua boca parece o buraco de uma latrina. Não há doença que não tenha atacado aquele corpo. “É precisamente este ignóbil libertino que lança a desordem em todo o bairro com a ajuda de dois outros devassos, um dos quais é filho de uma prostituta e de um cão que se faz passar por nobre muçulmano, quando não passa de um cristão da mais baixa extração, e o outro é uma espécie de bobo gordo que parece prestes a cada palavra a vomitar as tripas. Se fosse Príncipe dos Crentes por um dia, não procuraria enriquecer ou favorecer parentes e amigos, mas apressar-me-ia a libertar o bairro desses três desprezíveis canalhas.” 

O califa elogiou seu anfitrião por preocupar-se com o interesse geral mais do que com o seu próprio e disse-lhe: “Vou agora encher a tua taça, pois até então tens sido tu que encheste a minha.” 

E o califa misturou uma pitada de benj (anestesiante) com o vinho do anfitrião. Este, antes de perder a consciência, disse ao califa: “Sinto que vou dormir. Por favor, ao sair pela manhã, não esqueças de fechar a porta atrás de ti.” 

E Abu-Hassan adormeceu profundamente. O califa chamou então seu escravo e mandou-o carregar Abu-Hassan nas costas. E foram todos embora, deixando a porta aberta apesar da recomendação. 

Entraram no palácio por uma porta secreta. Harun Al-Rachid mandou tirar a roupa que Abu-Hassan vestia, substituí-la por vestes do próprio califa e deitá-lo na sua própria cama. Depois, reuniu os dignitários do palácio e deu-lhes ordens severas para que, no dia seguinte, tratassem Abu-Hassan como se fosse o califa e executassem todas as suas ordens e satisfizessem todos os seus desejos. 

Na manhã seguinte, Harun Al-Rachid colocou-se por trás de uma cortina no quarto onde dormia Abu-Hassan para tudo ver e observar sem ser visto. Então, entraram os dignitários, as damas de honra, os escravos e escravas, e um eunuco aproximou-se de Abu-Hassan e acordou-o. Abu-Hassan abriu os olhos e achou-se num leito estranho cujas cobertas eram feitas de brocado vermelho e de pérolas. Viu-se numa grande sala com as paredes revestidas de cetim. Rodeavam-no jovens mulheres e escravas de cativante beleza e uma multidão de vizires, emires, dignitários, altos funcionários, todos inclinados respeitosamente diante dele. E ao lado da cama, viu, estendido sobre um tamborete, o inconfundível vestuário do Emir dos Crentes. 

Persuadido de que estava sonhando, voltou a fechar os olhos. Mas o grão-vizir Jafar aproximou-se dele e, depois de beijar o chão três vezes, disse-lhe: “Ó Emir dos Crentes, permiti a vosso escravo acordar-vos, pois é hora das preces matinais.” 

No mesmo instante, a um sinal de Jafar, os tocadores de instrumentos fizeram ouvir um concerto de harpas, alaúdes e violas, e as vozes dos cantores soaram harmoniosamente. 

Abu-Hassan gritou: “Onde estou? E quem sou eu?” 

Masrur respondeu num tom cheio de deferência: “Vós sois nosso amo e senhor o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, e estais em vosso palácio, rodeado por vossos servidores e escravos. E eu sou Masrur, um deles.” 

Voltando-se então para uma das jovens escravas, Abu-Hassan fez-lhe sinal que se aproximasse. Estendeu um dedo e pediu-lhe: “Morde este dedo! Só assim saberei se estou sonhando ou não.” 

A escrava mordeu o dedo até o osso. Abu-Hassan soltou um grito de dor e disse: “Ai! agora vejo que estou acordado.” E perguntou à rapariga: “E tu, me conheces? Quem sou eu?” 

Respondeu a jovem: “O nome de Alá esteja sobre o califa e à sua volta! Vós sois nosso amo e senhor, o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, vigário de Alá.” 

Pouco a pouco, Abu-Hassan foi convencendo-se de que algo extraordinário lhe tinha acontecido. E pensava: “Por Alá, não é uma coisa maravilhosa! Ainda ontem, eu era AbuHassan, e hoje sou Harun Al-Rachid!” 

Depois de o terem lavado e perfumado, vestiram-no com as vestes reais, coroaram-no com o diadema, puseram-lhe nas mãos o cetro de ouro e conduziram-no ao trono. E Abu-Hassan pensou: “Califa ou não, vou comportar-me como califa.” 

E conseguiu manifestar toda a autoridade e dignidade do cargo. Na sala do trono, diante da multidão de dignitários, cortesãos e homens do povo, Jafar tirou um rolo de papel e pôs-se a enumerar os assuntos do dia. E embora fossem todos novos para Abu-Hassan, pronunciou-se sobre cada caso com tamanho tato e propriedade que o califa, que estava escondido na sala, ficou maravilhado.

Quando Jafar terminou o relatório, Abu-Hassan mandou vir o chefe da polícia e deu-lhe a seguinte ordem: “Leva dez guardas e vai à casa tal na rua tal no bairro tal. Lá encontrarás um horrível porco que é o xeique daquele bairro, sentado entre dois canalhas não menos ignóbeis que ele. Prende os três e começa por dar a cada um quatrocentas bastonadas nas plantas dos pés. Depois, manda empalar o xeque pela boca e atira seu corpo aos cães. Faze o mesmo com o homem glabro de olhos amarelos. Quanto ao terceiro, sendo ele mais bobo que perverso, manda-o passar a vida sentado na mesma cadeira. Assim estarão punidos os caluniadores, maculadores de mulheres, destruidores da ordem pública que agridem as pessoas honestas e apoderam-se do que não lhes pertence. E volta com as provas de que cumpriste tua missão.” 

Depois, mandou levantar o divã, pensando: “ Agora, não posso mais duvidar. Sou realmente o Emir dos Crentes.” 

Momentos depois, chegou o chefe da polícia e entregou-lhe as provas de que tinha cumprido sua missão. Abu-Hassan ficou tão satisfeito que o apetite lhe voltou e fez com alguns dignitários uma lauta refeição.

Harun Al-Rachid, que tinha assistido a tudo, rejubilava-se por ter o destino posto no seu caminho um homem como aquele. Mas o sonho tinha que acabar. Uma das jovens acompanhantes, obedecendo às ordens, disse a Abu-Hassan: “Ó Emir dos Crentes, suplico-vos que bebais mais esta taça de vinho à saúde de todos.” 

Abu-Hassan bebeu a taça de um trago. Nela, a moça havia instilado o anestesiante benj. Abu-Hassan perdeu imediatamente os sentidos, e caiu no chão.

O califa mandou o escravo que havia retirado Abu-Hassan de sua casa carregá-lo para lá de volta e depositá-lo na sua cama. Quando Abu-Hassan acordou no dia seguinte, achou-se num quarto o menos parecido possível com o palácio onde dava ordens na véspera como se fosse o senhor do mundo. Certo de que estava sonhando, pôs-se a gritar para acordar e a chamar Jafar e Masrur para junto de si. A única pessoa que acorreu foi sua mãe, que procurou acalmá-lo. 

Abu-Hassan quis saber quem o havia destronado. E como ela ficou atônita e não respondeu, insultou-a com tamanha violência, tentando até agredi-la, que a pobre mulher teve que chamar os vizinhos para contê-lo. 

No dia seguinte, suas alucinações aumentaram contra os que o haviam destronado, inclusive sua mãe e os vizinhos, a quem ameaçava de morte. A mãe foi obrigada a apelar para um médico. O médico diagnosticou que Abu-Hassan tinha enlouquecido e devia ser internado num hospício. Lá foi necessário amarrá-lo e submetê-lo a diversos tratamentos.

Somente três semanas depois, começou a voltar à normalidade e a reconhecer que era mesmo Abu Hassan. Sua mãe levou-o então de volta para casa e procurou consolá-lo: “Meu filho, nada do que aconteceu é culpa tua. Todo o mal se deve àquele mercador estrangeiro que convidaste por último e que partiu pela manhã sem sequer fechar a porta atrás de si. Ora, todos sabem que cada vez que a porta de uma casa é deixada aberta antes do nascer do sol, o chaitan (diabo) entra nessa casa e toma conta do espírito de seus habitantes. Agradeçamos a Deus por não ter permitido desgraças maiores”.

Abu-Hassan concordou. O califa, que acompanhara todo o drama por intermédio de informantes, censurou-se por sua conduta e procurou compensar as aflições causadas. Recebeu Abu-Hassan no palácio real. Casou-o com a jovem Cana-de-Açúcar que fazia parte das escravas de Abu-Hassan como califa e que lhe havia particularmente agradado. E para manifestar a retidão e o senso de responsabilidade de seu caráter, estabeleceu uma renda vitalícia a Abu-Hassan e Cana-de-Açúcar, que lhes permitiu viverem felizes e seguros até o último de seus dias.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Dia da mentira”


Você sabia que o peixe é o único animal que continua a crescer mesmo depois de morto? Então pergunte a qualquer pescador... Seguindo a tradição, nenhum pescador que se preze conta que pescou alguma coisa do tamanho exato que veio no anzol, na tarrafa ou na rede, porque sempre ele dirá que foi bem maior do que aquilo que realmente foi pescado. 

No Brasil, o primeiro registro do “Dia da mentira” foi há quase dois séculos, em 1828, quando o jornal mineiro curiosamente intitulado “A Mentira”, trouxe falsamente em sua primeira edição a notícia da morte de Dom Pedro I, justamente no dia 1º de abril. Descoberta a patranha, surgiu a afirmação de que "A mentira tem pernas curtas" ou, em sentido figurativo, a afirmação de que “É mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo”. 

Embora possam ser danosas as consequências de uma história mendaz (falsa, mentirosa), no Dia da Mentira pessoas de todo o mundo brincam umas com as outras, pregando peças e contando balelas. Algumas antológicas, tanto que deram origem aos concursos de mentiras espalhados Brasil afora. 

Certame mundialmente famoso é o Festival da Mentira de Nova Bréscia, no Rio Grande do Sul, considerada a capital nacional da mentira, realizado a cada dois anos, em que atua uma banca julgadora integrada por jornalistas, publicitários, professores e coordenadores culturais, que escolhe a mentira vencedora, dentre as mais cabeludas que são contadas, premiando o vencedor com uma recompensa em dinheiro.

“Eu não gosto do mentiroso que mente para prejudicar os outros, eu gosto de mentiroso que mente por amor à arte”, dizia o impagável Ariano Suassuna, que tinha um verdadeiro repertório sobre a mentira e os mentirosos. Também na literatura brasileira, outro personagem se destaca. Mistura de poeta, escritor, folclorista, compositor, conferencista e contador de causos, Cornélio Pires arriscou um elenco de mentiras bem boladas.

Em um de seus vinte livros sobre a vida e os costumes da roça, contou sobre o pai de família que para festejar os 15 anos de sua filha mais velha, preparou um festão na qual a principal atração entre as fartas iguarias oferecidas aos convivas, estava um vistoso e caríssimo queijo suíço, que ele entretanto não permitiu que fosse cortado nem servido aos que compareceram justamente de olho nele. Todo mundo saiu com água na boca, desfrutaram da comilança que foi servida, mas foram impedidos de sequer provar o tal queijo, que pelo seu poder de atração de público, passou a ser alugado pelo dono para motivar com maciças presenças, todas as festas de 15 anos do lugar.

Outra assertiva é que “para mentir precisa ter boa memória” e disso sabem muito bem advogados, promotores e magistrados, pois nos interrogatórios judiciais as testemunhas às vezes distorcem os fatos e mais adiante, esquecidas do que disseram, acabam por revelar inteiramente a verdade caindo em notória contradição. 

Na música popular brasileira, no já distante ano de 1981, Erasmo Carlos nos brindou com “Pega na Mentira”, parece que feita sob medida para o dia 1.º de Abril, mas surpreendentemente atual, mesmo passados mais de 40 anos:

“Zico tá no Vasco, com Pelé
Minas importou do Rio, a maré
Beijei o beijoqueiro, na televisão
Acabou-se a inflação
Barato é o marido da barata
Amazônia preza a sua mata
Pega na mentira, pega na mentira
Corta o rabo dela, pisa em cima
Bate nela, pega na mentira (...)”

O escritor Jorge Fallorca, publicou em 1983 um livro de poucas páginas mas com um sugestivo nome: “Aqui se reúnem políticos, pescadores e outros mentirosos”. Cabia mais gente, claro, mas ele generosamente não deixou de fora os políticos...

Em sites e redes sociais, a mentira hoje se banalizou de tal forma que ninguém acredita de primeira em muitas notícias divulgadas, modernamente conhecidas como Fake News e que nos assolam e nos inquietam a todo minuto. Exemplo típico é recente falácia de que o Governo Federal passaria a cobrar impostos sobre as operações financeiras realizadas por Pix, sobre a compra de dólares e sobre os animais domésticos de estimação, o que, neste último caso, foge a qualquer lógica, de vez que os tutores provavelmente abandonariam seus vira-latas para se eximirem de mais um imposto, entre os tantos que já são pagos. Prova evidente que convivemos com a mentira todo dia o ano todo e não apenas em 1.º de abril, quando ela é tradicionalmente comemorada.

Lembro, a propósito, das ingênuas petas do saudoso mateiro e caçador apelidado de “Mata Onça”, caboclo da região quilombola do Mondongo no Baixo Amazonas, que desbravou o setentrião (norte) como membro da Comissão Demarcadora de Limites onde viveu mil peripécias, uma espécie de Pinóquio ribeirinho que costumava brindar seus ouvintes, sem que crescesse o seu achatado nariz, com mirabolantes pataratices (mentiras) urdidas por sua fértil imaginação, como certa pescaria que ele fez com um amigo, em que sofreram o contratempo de ter a tarrafa enroscada nos galhos submersos do rio, que tinha cerca de três metros de profundidade. O parceiro mergulhou para resgatar a tarrafa, passaram-se dez minutos e nem sinal dele retornar. 

Preocupado, nosso herói pulou na água para ver o que havia acontecido e chegando ao fundo, ficou perplexo ao encontrar seu parceiro calmamente sentado numa pedra consertando a tarrafa, que fora seriamente danificada com o engate. Esse divertido campeão da invencionice afirmava que aquele sujeito tinha um fôlego descomunal, capaz de aguentar mais uns quinze ou vinte minutos submerso, sem qualquer problema. E queria que a gente acreditasse...

Mais famoso que ele foi Pantaleão, inesquecível personagem do genial Chico Anysio no programa Chico City, humorístico que ficou no ar durante toda a década de 1970. No programa, Pantaleão era casado com Terta (interpretada pela atriz Suely May) e de pijama, barbas longas e brancas, cabelos grisalhos e usando óculos cuja lente escura cobria apenas o olho direito, contava suas façanhas se balançando numa cadeira, cada qual a mais inverossímil, alegrando-nos intensamente nas noites em que era exibido, com invejável índice no Ibope, deixando muitas saudade quando foi extinto.

Pela parte que me toca, depois dessas ternas e gostosas lembranças, preciso encerrar este texto por aqui, pois tenho que conferir, cédula por cédula, a polpuda grana que recebi hoje por ter acertado sozinho o último sorteio da mega sena acumulada. Não é verdade Terta?... 
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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