sábado, 2 de julho de 2016

A Presença Africana na Música Popular Brasileira (Parte I)

A cultura brasileira e, logicamente, a rica música que se faz e consome no país estruturam-se a partir de duas básicas matrizes africanas, provenientes das civilizações conguenses e iorubana. A primeira sustenta a espinha dorsal dessa música, que tem no samba sua face mais exposta. A segunda molda, principalmente, a música religiosa afro-brasileira e os estilos dela decorrentes. Entretanto, embora de africanidade tão expressiva, a música popular brasileira, hoje, ao contrário da afro-cubana, por exemplo, distancia-se cada vez mais dessas matrizes. E caminha para uma globalização tristemente enfraquecedora.

Das congadas ao samba: a matriz congo

Já nos primeiros anos da colonização, as ruas das principais cidades brasileiras assistiam às festas de coroação dos “reis do Congo”, personagens que projetavam simbolicamente em nossa terra a autoridade dos muene-e-Kongo, com quem os exploradores quatrocentistas portugueses trocaram credenciais em suas primeiras expedições à África subsaariana.

Esses festejos, realçados por muita música e dança, seriam não só uma recriação das celebrações que marcavam a entronização dos reis na África como uma sobrevivência do costume dos potentados bantos de animarem suas excursões e visitas diplomáticas com danças e cânticos festivos, em séquito aparatoso. E os nomes dos personagens, bem como os textos das cantigas entoadas nos autos dramáticos em que esses cortejos culminavam, eram permeados de termos e expressões originadas nos idiomas quicongo e quimbundo.

Esses cortejos de “reis do Congo”, na forma de congadas, congados ou cucumbis (do quimbundo kikumbi, festa ligada aos ritos de passagem para a puberdade), influenciados pela espetaculosidade das procissões católicas do Brasil colonial e imperial, constituíram, certamente, a velocidade inicial dos maracatus, dos ranchos de reis (depois carnavalescos) e das escolas de samba – que nasceram para legitimar o gênero que lhes forneceu a essência.

Sobre as origens africanas do samba veja-se que, no início do século XX, a partir da Bahia, circulava uma lenda, gostosamente narrada pelo cronista Francisco Guimarães, o Vagalume, no clássico Na roda do samba, de 1933, segundo a qual o vocábulo teria nascido de dois verbos da língua iorubá:san, pagar, e gbà, receber. Depois de Vagalume, muito se tentou explicar a origem da palavra, alguém até lhe atribuindo uma estranha procedência indígena. Mas o vocábulo é, sem dúvida, africaníssimo. E não iorubano, mas legitimamente banto.

Samba, entre os quiocos (chokwe) de Angola, é verbo que significa “cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito”. Entre os bacongos angolanos e conguenses o vocábulo designa “uma espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito do outro”. E essas duas formas se originam da raiz multilinguística semba, rejeitar, separar, que deu origem ao quimbundo disemba, umbigada – elemento coreográfico fundamental do samba rural, em seu amplo leque de variantes, que inclui, entre outras formas, batuque, baiano, coco, calango, lundu, jongo etc. Buscando comprovar essa origem africana do samba – nome que define, então, várias danças brasileiras e a música que acompanha cada uma delas –, veremos que o termo foi corrente também no Prata como samba ou semba, para designar o candombe, gênero de música e dança dos negros bantos daquela região.

Responsáveis pela introdução no continente americano de múltiplos instrumentos musicais, como a cuíca ou puíta, o berimbau, o ganzá e o reco-reco, bem como pela criação da maior parte dos folguedos de rua até hoje brincados nas Américas e no Caribe, foram certamente africanos do grande grupo etnolinguístico banto que legaram à música brasileira as bases do samba e a grande variedade de manifestações que lhe são afins.

Dentre as danças do tipo batuque ou samba listadas pela etnomusicóloga Oneyda Alvarenga, com exceção da tirana e da cachucha, de origem europeia, todas elas trazem, no nome e na coreografia, evidências de origem banta, apresentando muitas afinidades com a massemba ou rebita, expressão coreográfica muito apreciada nas regiões angolanas de Luanda, Malanje e Benguela, e que teve seu esplendor no século XIX.

No Rio de Janeiro, a modalidade mais tradicional do samba é o partido-alto, um samba cantado em forma de desafio por dois ou mais participantes e que se compõe de uma parte coral e outra solada. Essa modalidade tem raízes profundas nas canções do batuque angolano, em que as letras são sempre improvisadas de momento e consistem geralmente na narrativa de episódios amorosos, sobrenaturais ou de façanhas guerreiras. Segundo viajantes como o português Alfredo Sarmento, nos sertões angolanos, no século XIX, havia negros que adquiriam fama de grandes improvisadores e eram escutados com o mais religioso silêncio e aplaudidos com o mais frenético entusiasmo. A toada que cantavam era sempre a mesma, e invariável o estribilho que todos cantavam em coro, batendo as mãos em cadência e soltando de vez em quando gritos estridentes.

Segundo Oneyda Alvarenga, a estrofe solista improvisada, acompanhada de refrão coral fixo, e a disposição coro-solo são características estruturais de origem africana ocorrentes na música afro-brasileira. Tanto elas quanto a coreografia revelam, no antigo samba dos morros do Rio de Janeiro, a permanência de afinidade básicas com o samba rural disseminado por boa parte do território nacional. Observe-se, ainda, que os batuques festivos de Angola e Congo certamente já se achavam no Brasil havia muito tempo. E pelo menos no século passado eles já tinham moldado a fisionomia do nosso samba sertanejo.

Mas até aí, o batuque e o samba a que os escritores se referem são apenas dança. Até que Aluísio Azevedo, descrevendo, no romance O cortiço, um pagode em casa da personagem Rita Baiana, nos traz uma descrição dos efeitos do “chorado” da Bahia, um lundu, tocado e cantado. Esse lundu a que o romancista se refere foi certamente o ancestral do samba cantado, herdeiro que era das canções dos batuques de Angola e do Congo.

Com a estruturação, na cidade do Rio de Janeiro, da comunidade baiana na região conhecida historicamente como “Pequena África” – espaço sociocultural que se estendia da Pedra do Sal, no morro da Conceição, nas cercanias da atual Praça Mauá, até a Cidade Nova, na vizinhança do Sambódromo, hoje –, o samba começa a ganhar feição urbana. Nas festas dessa comunidade a diversão era geograficamente estratificada: na sala tocava o choro, o conjunto musical composto basicamente de flauta, cavaquinho e violão; no quintal, acontecia o samba rural batido na palma da mão, no pandeiro, no prato-e-faca e dançado à base de sapateados, peneiradas e umbigadas. Foi aí, então, que ocorreu, entre o samba rural baiano e outras formas musicais, a mistura que veio dar origem ao samba urbano carioca. E esse samba só começou a adquirir os contornos da forma atual ao chegar aos bairros do Estácio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde foi empurrada a população de baixa renda quando, na década de 1910, o centro do Rio sofreu sua primeira grande intervenção urbanística. Nesses núcleos, para institucionalizar seu produto, então, foi que, organizando-o, legitimando-o e tornando-o uma expressão de poder, as comunidades negras cariocas criaram as escolas de samba.

Daí que, em conclusão, todos os ritmos e gêneros existentes na música popular brasileira de consumo de massa, quando não são reprocessamento de formas estrangeiras, se originam do samba ou são com ele aparentados.

continua...

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