segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

Amadeu Amaral – nascido Amadeu Ataliba Arruda Leite Penteado-, foi poeta, folclorista, filólogo e ensaísta. É de Capivari, SP, do dia 6 de novembro de 1875. Faleceu em São Paulo, em 24 de outubro de 1929. Eleito para a Cadeira n. 15, na vaga de Olavo Bilac, foi recebido em 14 de novembro de 1919, pelo acadêmico Magalhães Azeredo.

Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, as universidades e os cursos especializados que vieram depois. Dedicou-se aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. O dialeto caipira, publicado em 1920, escrito à luz da lingüística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulário. Visando à formação dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos, no Brasil, até ser posteriormente posto de lado.

Confira trechos da obra mais famosa de Amadeu Amaral, abaixo. E entenda porque nosso dialeto é caipira....

O DIALETO CAIPIRA

INTRODUÇÃO

Tivemos, até cerca de vinte e cinco a trinta anos atrás, um dialeto bem pronunciado, no território da antiga província de S. Paulo. É de todos sabido que o nosso falar caipira - bastante característico para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundível - dominava em absoluto a grande maioria da população e estendia a sua influência à própria minoria culta. As mesmas pessoas educadas e bem falantes não se podiam esquivar a essa influência.

Foi o que criou aos paulistas, há já bastante tempo, a fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de linguagem. Quando se tratou, no Senado do Império, de criar os cursos jurídicos no Brasil, tendo-se proposto São Paulo para sede de um deles, houve quem alegasse contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente contaminaria os futuros bacharéis, oriundos de diferentes circunscrições do país...

Ao tempo em que o célebre falar paulista reinava sem contraste sensível, o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações da nossa vida provinciana.

FONÉTICA

Antes de tudo, deve notar-se que a prosódia caipira (tomando o termo prosódia numa acepção lata, que também abranja o ritmo e musicalidade da linguagem) difere essencialmente da portuguesa.

O tom geral do frasear é lento, plano e igual, sem a variedade de inflexões, de andamentos e esfumaturas que enriquece a expressão das emoções na pronunciação portuguesa.

2. Os acentos em que a voz mais demoradamente carrega, na prolação total de um grupo de palavras, não são em geral os mesmos que teria esse grupo na boca de um português; e as pausas que dividem tal grupo na linguagem corrente são aqui mais abundantes, além de distribuídas de modo diverso. Na duração das vogais igualmente difere muito o dialeto: se, proferidas pelos portugueses, as breves duram um tempo e as longas dois, pode-se dizer, comparativamente, que no falar caipira duram as primeiras dois tempos e as segundas quatro.

Este fenômeno está estreitamente ligado à lentidão da fala, ou, antes, se resolve num simples aspecto dela, pois a linguagem vagarosa, cantada, se caracteriza justamente por um estiramento mais ou menos excessivo das vogais

GRUPOS VOCÁLICOS

(acentuados ou não)

. ai (dit.) - Antes da palatal x, reduz-se à prepositiva: baxo, baxêro, faxa, caxa, paxão.

Dois exemplos de mudança em éi: téipa, réiva.1. ei (dit.) - Reduz-se a e quando seguido de r, x ou j: isquêro, arquêre, chêro, pêxe, dêxe, quêjo, bêjo, berada.

Nos vocábulos em que é seguido de o ou a, como ceia, cheio, veia, também aparece às vezes representado por ê: chêo, vêa, cêa. Cp. a evolução destas palavras no português: cheio <>
a) Acentuado ou não, contrai-se o primeiro em ô: poco, tôro, locura, rôpa. Em Portugal, bem como no falar da gente culta no Brasil, há notório sincretismo no uso dos ditongos ou e oi. Para o caipira tal sincretismo não existe: os vocábulos onde esses ditongos aparecem são pronunciados sempre de um só modo. Assim, lavôra, ôro, estôro, côro, côve, lôco, bassôra, tôca, frôxo, trôxa, e nunca lavoira, oiro, etc.; por outro lado, dois, noite, coisa, poiso, foice, toicinho, oitão, afoito, biscoito, moita, e nunca dous, noute, etc. Se há formas sincréticas, são raríssimas. A causa desta distinção é puramente fonética: note-se, nos exemplos acima, que há ô diante dos sons r, v, k e x, e oi diante de s = ç, z etc.
b) Nas formas verbais em que o acento tônico recai em ou, este às vezes se contrai em ó: róba, estóre, afróxa. A trouxe corresponde truxe; a soube, sube. ein (em) - Final de vocábulo, reduz-se a e grave; viaje, virge, home, êles corre. Parece-nos inútil acentuar que na palavra portuguesa viagem e em outras de idêntica terminação existe um verdadeiro ditongo nasal grafado em (viagein, virgein, etc.) Da mesma forma existe o ditongo nasal õu nas palavras bom, som, etc. (bõu, sõu). õu (om) - a) Na preposição com, reduz-se à vogal nasal un, quando se segue a essa prep. palavra que comece por consoante: cum você, cum quem vô, cumsigo, (com-sigo). Quando há eclipse, reduz-se a o grave: co ele, cos diabo(s). Nas palavras bom, tom e som muda-se em ão: bão, tão, são. Final de vocábulo, ditonga-se sempre em iu: paviu, tiu, riu.
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CONSOANTES b e v - Muda-se às vezes uma na outra, dando lugar a várias formas sincréticas: burbuia e vevúia - borbulha bassôra e vassora - vassoura berruga e verruga - verruga biête e viête - bilhete cabortêro e cavortero - cavorteiro jabuticaba e jabuticava - jaboticaba Piracicaba e Pricicava - Piracicaba mangaba e mangava (fruta) - mangaba bespa e vespa - vespa bagaço e vagaço - bagaço bamo e vamo - vamos
Fonte: Sítio do Caipira. Nossa Gente. Disponível em http://eptv.globo.com/

Língua do Caipira

Babau!
Tá de mal? Come sal. O dialeto caipira na pesquisa de um dos maiores estudiosos da língua e da cultura popular, Amadeu Amaral.

Você sabe o que quer dizer "azoretado"? Mestre Amadeu responde:
"Atordoado, confuso. E ele exemplifica: "As corujas do campo a mó que tavam malucas, essa noite: era um voar sem paradaem riba da minha testa, que me deixava azoretado..."

E tem mais. Você sabe o que é um azucrim? É um importuno! Aquele que azucrina.

Como é que o caipira diz amanhã? Diz da maneira mais castiça: "aminhã", que se aproxima do português antigo, ou arcaico.

E se chegar um circo, o caipira vai ver os "alifantes"...Também é a forma arcaica do nome elefante, no Brasil e em Portugal.

Angu é um termo que serve para designar duas coisas: alimento e confusão. Pode ser a papa de farinha ou de fubá. E pode ser também teia de intrigas e mexericos.

Você já notou que o caipira diz "ansim" e não assim? Esta é a forma usada também nas peças de Gil Vicente.

Quer dizer: o caipira parece que fala errado, mas fala muito certo. Pelo menos como se falava no Brasil e no Portugal antigos.
PS: Babau quer dizer: acabou!

Fonte:
Sítio do Caipira. Folclore. Disponível em http://eptv.globo.com/

Folclore (Mula Sem Cabeça)

O mito da mula-sem-cabeça passa pelo conceito de pecado para criar uma espécie de "lobisomem" feminino.

Dizem que ela se transforma da quinta para a sexta-feira de Lua cheia. Ela seria a amante do padre... castigada pelo pecado com o encantamento cruel. Um animal desvairado, de galope selvagem e relincho altíssimo, que solta fogo pelas ventas.

Mas que ventas, se a mula não tem cabeça? Mistérios do mito brasileiro. Segundo a lenda, o encanto só acaba se alguém lhe tirar o freio...Aí ela reaparecerá em sua forma humana, arrependida e nua. Outra maneira de evitar o encantamento é de que o amante a amaldiçoe sete vezes antes de celebrar a missa. Alguns folcloristas, como Gustavo Barroso, supõem que o mito tenha nascido no século 12, a partir do fato de que as mulas serviam, na época, ao transporte privativo dos padres. O cavalo era reservado às batalhas e aos guerreiros.

Fonte:
Sitio do Caipira. Folclore. Disponível em
http://eptv.globo.com/

Rocir Santiago (Causo: Num quero ser mentiroso)

Dois amigos, de São João, a 17 Km de Garanhuns, um caçador e pescador e o outro pessoa comum: Mário e Adolfo.
Certo dia Mário chamou Adolfo para uma caçada, no que ouviu:
-Tá doido, amigo! Num quero fama de mentiroso não!
Foram várias insistências e negativas como resposta até que um dia, Adolfo aceitou.
No mato, Mário perguntou:
- O amigo quer caçar, ou pescar?
- Prefiro pescar - respondeu Adolfo - não gosto de ofender à fauna, nem à flora!
Mário saiu para um volta pra ver se encontrava caça e deixou o amigo às margens de uma barragem pescando.
Passadas algumas horas, Mário voltou com um tatu que havia abatido, mas se deparou com o amigo cochilando às margens da barragem.
Aproveitou para fazer uma brincadeira: entrou lentamente na água, colocou o tatu no anzol, deu uns puxões e saiu.
Despertado, Adolfo arrastou o bicho da água e, vendo o amigo foi incisivo:
- Num conte isso pra ninguém não, senão vão me chamar de mentiroso! E olha que é o terceiro tatu que arrasto daí e devolvo pra água pra ninguém dizer que tô mentido!

Fonte:
Sítio do Caipira. Causos. Por Rocir Santiago (Guaranhuns/PE). Disponível em
http://eptv.globo.com/

Lá vem o Saci (Gabriela Romeu)

Há 90 anos, após inquérito de Monteiro Lobato, personagem estreou na literatura

O saci completa agora 90 anos de nascimento literário pela pena do escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948), principal responsável por propagar essa figura do imaginário popular nacional. O personagem, cujo nome é uma corruptela de Çaa cy perereg, do tupi-guarani, saltou do universo oral para o mundo das letras após pesquisa realizada por Lobato no começo do século XX.

O livro O sacy-perere – resultado de um inquérito (1918) foi publicado pouco depois de o escritor paulista reunir, para o Estadinho, edição vespertina do jornal O Estado de S. Paulo, muitos dos “causos” sobre o duende relatados por leitores de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e, principalmente, do interior paulista. O futuro criador do Sítio do Picapau Amarelo convocara leitores a compartilhar informações sobre a criatura “genuinamente nacional”.

A obra, que antecedeu até mesmo Urupês, trazia o inquérito sobre o moleque: havia relatos de constantes aparições nas zonas rurais, a informação de que adorava praticar diabruras, como azedar o leite, embaraçar a crina dos cavalos e esconder objetos da casa. Um dos leitores garantiu: “(...) era um negrinho muito magro, muito esperto, de cima de uma perna só, do tamanho de um menino de doze anos, muito feio, banguela, olhos vivos, rindo sempre um riso velhaco de corretor de praça”.

O saci surgiu nas fronteiras do Paraguai, entre os índios guaranis. Mas foram os negros escravizados no país que se apropriaram da figura. E foi então que ganhou feições africanas, gorro vermelho e pito de barro, segundo Mario Cândido, presidente da Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci), associação engajada na missão de não deixar bruxas de Halloween apagarem a imagem do homenzinho perneta no imaginário das crianças brasileiras – hoje, no país, 31 de outubro é dia do saci.

E o duende perneta no universo lobatiano ressurge com destaque no livro O saci, de 1921. E ali é Pedrinho, mais uma vez de férias na casa da avó, que “andava com a cabeça cheia de sacis”. Com tanta curiosidade quanto medo, o menino vai perguntar sobre a criaturinha para tio Barnabé, aquele que “entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem – de tudo”.

Até que um dia Pedrinho consegue captu¬rar um saci num rodamoinho que chega ao sítio com uma peneira de cruzeta. E, no meio da mata, perto de taquaruçus, espécie de bambu onde os sacis nascem, os dois travam diálogos filosóficos sobre a lei da floresta, a vida na cidade, a sabedoria dos homens, a importância da erudição – questionamentos lobatianos.

Só é lamentável que o livro (editora Brasiliense) seja pouco atraente para meninas e meninos de hoje, já acostumados com edições cada vez mais sofisticadas nas capas, no projeto gráfico e nas ilustrações. Mas em 2007, ano em que o escritor de Taubaté completaria 125 anos de nascimento, a disputa judicial pela obra do autor está na reta final – e tudo indica que novas edições das aventuras do Sítio do Picapau Amarelo estejam bem próximas.

Os sacis, no entanto, continuam aprontando poucas e boas na literatura infantil. A veterana Tatiana Belinky foi premiada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) por Dez sacizinhos (Paulinas), com as ilustrações de Roberto Weigand. Belinky faz versos sobre o desaparecimento de sacis, que, um a um, vão sendo subtraídos da história: “Eram dez os sacizinhos; um ficou imóvel e nunca mais se moveu, e sobraram nove”.

Em Nas pegadas do Saci (Conex), Marcia Camargos, co-autora do premiado Monteiro Lobato – furacão na Botocúndia (Senac), coloca um grupo de amigos no rastro biográfico do moleque de uma perna só. Os diálogos entre adultos e crianças, recheados de informações históricas e mensagens ecológicas, soam, às vezes, um pouco artificiais. Mas, se a obra carece de recursos literários, o livro com ilustrações de Marcos Cartum destaca-se justamente por oferecer informação de qualidade sobre a criatura folclórica – é boa fonte de pesquisa para crianças em idade escolar.

Já Pererêêê Pororóóó (DCL), de Lenice Gomes, escritora de livros que resgatam o aspecto folclórico com roupagem contemporânea, é uma prosa poética cheia de adivinhas – “Pererêêê / Pororóóó / Saci-Pererê! / Adivinha o quê?”. Em versos livres, é contada a história do encontro de Raul e Diva, duas crianças, e três sacis que rodopiam feito “piões enlouquecidos” em um casarão abandonado na cidade. As colagens de André Neves dão um adequado toque folclórico aos personagens.

É também na cidade, em sua periferia, que o enredo de O caso do saci (Cosac Naify), do ilustrador e escritor Nelson Cruz, se desenrola. Os irmãos Manfredinho e Andréa desconfiam que é o duende que anda escondendo o dinheiro do pai, vítima de malandros do bairro. Depois de roubar o gorro vermelho do Saci, o que deixa o duende sem força, os dois acompanham o negrinho até o vale onde estão os objetos escondidos pelo moleque que migrou das zonas rurais para os centros urbanos – pelo menos na literatura infantil.

Fonte:
http://www2.uol.com.br/entrelivros

Os Livros que naõ lemos (Umberto Eco)

Lembro-me (mas, como veremos, isso não significa que eu me lembre direito) de um belíssimo artigo de Giorgio Manganelli, no qual ele explicava como um leitor requintado pode saber que um livro não é para ser lido mesmo antes de abri-lo. Ele não estava se referindo àquela virtude que muitas vezes se exige do leitor profissional (ou ao amador de bom gosto), a de conseguir resolver por algumas palavras iniciais, por duas páginas abertas ao acaso, pelo sumário, não raro pela bibliografia, se um livro vale a pena ou não ser lido. Isso, diria eu, são ossos do ofício. Não, Manganelli se referia a uma espécie de iluminação, da qual, evidente e paradoxalmente, se arrogava o dom.

Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard, psicanalista e docente universitário de literatura, não trata de como saber se devemos ler um livro ou não, mas de como se pode falar tranqüilamente de um livro que não se leu, mesmo de professor para estudante, e mesmo em se tratando de um livro de importância extraordinária. Seu cálculo é científico: os acervos das boas bibliotecas contêm alguns milhões de volumes, e mesmo que leiamos um volume por dia, leríamos apenas 365 livros por ano, 3.600 em dez anos, e entre dez e 80 anos teríamos lido apenas 25.200 livros. Uma inépcia. Aliás, quem quer que tenha tido uma boa educação secundária sabe perfeitamente que pode acompanhar um raciocínio sobre, digamos, Bandello, Boiardo, inúmeras tragédias de Alfieri e até sobre As confissões de um italiano [de Ippolito Nievo] tendo aprendido sobre eles apenas o título e a classificação crítica na escola.

O ponto crucial, para Bayard, é a classificação crítica. Ele afirma, sem o menor pudor, que nunca leu o Ulisses de Joyce, mas que pode falar sobre ele aludindo ao fato de que se trata de uma retomada da Odisséia (que ele, aliás, admite não ter lido por inteiro), que se baseia no monólogo interior, que se passa em Dublin em um único dia etc. Assim escreve: “Portanto, em meus cursos acontece com certa freqüência que, sem pestanejar, eu mencione Joyce”. Conhecer a relação de um livro com outros livros não raro significa saber mais sobre ele do que o tendo lido.
Bayard mostra que, quando começamos a ler livros há certo tempo negligenciados, percebemos que conhecemos seu conteúdo porque entrementes havíamos lido outros livros que falavam deles ou se moviam dentro da mesma ordem de idéias. E (assim como faz algumas divertidíssimas análises de textos literários em que se trata de livros nunca lidos, de Musil a Graham Greene, de Valéry a Anatole France) honra-me ao dedicar um capítulo ao meu O nome da rosa, no qual Guilherme de Baskerville demonstra conhecer muito bem o conteúdo do segundo livro da Poética, de Aristóteles, que ainda assim ele tem na mão pela primeira vez, simplesmente por deduzi-lo de outras páginas aristotélicas. Veremos depois, no final dessa Ecco!, que não menciono esta citação por mera vaidade.

A parte mais intrigante desse panfleto, menos paradoxal do que poderia parecer, é que esquecemos uma porcentagem altíssima até daqueles livros que lemos realmente. Aliás, compomos uma espécie de imagem virtual a seu respeito, imagem feita nem tanto do que eles diziam, e sim do que fizeram passar em nossa mente. Por isso se alguém que não leu determinado livro citar para nós passagens ou situações ali inexistentes, somos mais que propensos a acreditar que o livro fala realmente daquilo.

É que Bayard não está tão interessado em que as pessoas leiam os livros alheios, mas antes no fato de que cada leitura (ou não-leitura) tenha de ter um aspecto criativo e que (utilizando palavras simples) em um livro o leitor tenha de colocar, antes de tudo, farinha de seu saco. A ponto de auspiciar uma escola em que – já que falar de livros não lidos é uma maneira para conhecer a si próprios – os estudantes “inventem” os livros que não deverão ler.

Exceto o fato de que Bayard, para mostrar que ao se falar de um livro não lido até quem o leu não percebe as citações erradas, lá pelo final de seu discurso confessa ter introduzido três notícias falsas no resumo de O nome da rosa, de O terceiro homem, de Graham Greene, e de A troca, de David Lodge. O caso divertido é que, ao ler, percebi de imediato o erro sobre Greene, tive uma dúvida a propósito de Lodge, mas não tinha percebido o erro a propósito de meu livro. Isso significa que provavelmente não li direito o livro de Bayard ou então que eu apenas o folheei. Mas a coisa mais interessante é que Bayard não se deu conta de que, ao denunciar seus três (propositais) erros, assume implicitamente que há, dos livros, uma leitura mais correta do que outras – tanto que, dos livros que analisa para sustentar sua tese da não-leitura, dá uma leitura muito minuciosa. A contradição é tão evidente que dá margem à dúvida de que Bayard não tenha lido o livro que escreveu.
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Sobre Umberto Eco
professor de semiologia da Universidade de Bolonha, na Itália, e autor, entre outros, de A misteriosa chama da rainha Loana, Baudolino, O nome da rosa e o pêndulo de Foucault
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Fonte:
http://www2.uol.com.br/entrelivros
edição 30 - Outubro 2007

Últimos dias de Borges, Cabral e Joyce segundo Fuks (Ricardo Lísias)

Entre o escuro e o esplendor Fuks recria os últimos dias de Borges, Cabral e Joyce, marcados pela cegueira e pelo gênio literário
artigo de Ricardo Lísias


Antes de publicar Histórias de literatura e cegueira, Julián Fuks lançou, em 2004, Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu. Os dois livros são muito diferentes, mas já no primeiro ficava evidente a preocupação estilística do autor, que parece disposto a criar um estilo elaborado, elegante e muito cuidadoso. Se acrescentarmos o fato de que Histórias de literatura e cegueira revela também uma enorme disposição de leitura e, por fim, um respeito maduro pelos clássicos, podemos apontar Julián Fuks como um escritor que se destaca de outros da nova geração.

O livro ficcionaliza o final da vida de três escritores que, além do fato de serem já clássicos, tiveram em comum o destino de perder a visão. O fenômeno da cegueira foi tão marcante para Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce que praticamente se incorporou à descrição de suas obras e às respectivas histórias literárias da Argentina, do Brasil e da Irlanda. Fuks imagina três vidas perdidas entre o escuro da vista e o esplendor de textos marcantes e, com perdão do trocadilho, luminares para cada uma das três tradições. É esse choque entre o olhar cego de Borges, Cabral e Joyce e a força de sua literatura que prende o leitor a cada uma das lapidares páginas de Histórias de literatura e cegueira.
Nos três textos, o constante ir e vir temporal ordena o espaço melancólico mas muito diferente para cada um deles. Borges passeia entre a Genebra que acolheu seus últimos dias e a Biblioteca Nacional Argentina, seguramente o lugar de que ele mais gostava no mundo. Maria Kodama o acompanha em alguns momentos, e a imaginação onírica, que parece ter sido uma de suas principais obsessões, toma praticamente conta de tudo e faz o texto terminar com um ruído ao longe, misto de imaginação e lembrança. O final do primeiro texto é comovente.

Para o poeta brasileiro, Fuks reservou descrições minuciosas com um diálogo seco, tudo muito adequado à obra de João Cabral. Nesse segundo texto, a plasticidade toma lugar do onirismo, e uma cena muito cotidiana, um atropelamento, encarrega-se de trazer tudo para o plano do palpável. A história é triste e produz efeito marcante: o jornalista que vai entrevistar o poeta nota em seus olhos cegos uma grossa camada líquida, que ele não sabe o que é. Já nos nossos olhos, de leitores, são as lágrimas, que desse segundo capítulo não passam.
A terceira história, sobre Joyce, é a que mais evidencia a disposição de pesquisa de Fuks. Depois das duas anteriores, muito comoventes, esta última é mais colorida, um pouco exótica e bastante feliz na tentativa de parodiar o estilo joyceano. O autor de Ulisses briga com a esposa e se vê soterrado por uma montanha de cartas recusando o seu livro. O irmão o aborrece e ele já não enxerga nada direito, muito embora esteja disposto e preparado a compor o enorme raio de luz que é o Finnegans Wake.

Em nenhum dos três textos Julián Fuks se deixa levar pela comiseração e muito menos sente pena da situação dos três escritores cegos, privados da melhor coisa que existe no mundo, a leitura. De fato, Borges, Cabral e Joyce merecem muita coisa, mas não pena. Enfim, um livro como esse, ao mesmo tempo uma homenagem e uma espécie de declaração de amor, eles sem dúvida merecem. E nós, leitores, também merecemos: vale a pena tatear entre a bruma contemporânea, pois no meio do nevoeiro existem pessoas fazendo literatura, e muito boa literatura, por sinal!
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Sobre Julian Fuks
jornalista e escritor. Nasceu em São Paulo, em 1982. Formado em jornalismo pela Universidade de São Paulo, foi repórter do jornal Folha de S.Paulo. Seu primeiro livro, Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu, foi publicado em 2004 pela editora 7 Letras e ganhou o prêmio Nascente da Universidade de São Paulo em 2003.
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Fonte:
http://www2.uol.com.br/entrelivros
Revista Entrelivros - edição 32 - Dezembro 2007

Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa 2008

Estão abertas as inscrições para o prêmio que é considerado uma das maiores recompensas literárias do Brasil

A partir de hoje, escritores brasileiros e de qualquer nacionalidade que escreve em português podem fazer a inscrição para concorrer ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa 2008.

O prêmio foi criado em 2003 pela empresa portuguesa de telecomunicações com o objetivo de divulgar a literatura brasileira e é considerado uma das maiores recompensas literárias do Brasil, comparado até com o britânico Booker Prize.

O Portugal Telecom contemplará os três vencedores com a maior premiação em dinheiro oferecida aos escritores no Brasil. São R$ 100 mil para o primeiro colocado, R$ 35 mil para o segundo e R$ 15 mil para o terceiro. Podem concorrer quaisquer romance, conto, poesia, crônica, dramaturgia, biografia e autobiografia escritos originalmente em língua portuguesa e publicados em primeira edição entre janeiro e dezembro de 2007.

Em 2007, o Prêmio ficou com o angolano Gonçalves Tavares, com o livro Jerusalém. O escritor amazonense Milton Hatoum foi o último brasileiro a vencer o Portugal Telecom, em 2006. O autor recebeu o prêmio pelo seu terceiro romance, Cinzas do Norte.
Fonte:

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Lelia Maria Romero (O Rei Poeta e O Poeta Rei)

Início do século XI. Antes das tropas berberes chegarem ao Alandaluz, "o rei poeta e o poeta rei", fez dos seus domínios um dos mais prósperos reinos hispano-muçulmanos. Al Mu’tamid, rei da taifa de Sevilha, era um poeta inspirado. Protagonista de passagens que marcaram sua trajetória como líder, poeta e homem sensível, foi também um verdadeiro cavalheiro.

Corria a tarde. Contam que ele passeava à beira do Guadalquevir, com o vizir Ibn Ammar, também poeta, quando lhe propôs que continuasse o verso que recitava: "A brisa transforma o rio num rastro entrelaçado". Porém, antes que Ibn Ammar respondesse, uma jovem que passava seguiu o verso na medida exata: "Em verdade, que belo tecido se o gelo o tornasse sólido!" Surpreso, o rei se virou para ver de onde vinha o que ouviu e avistou uma moça do povo, especialmente bonita, que lançara sua poesia sobre as águas correntes. Al Mu’tamid enviou um dos seus serviçais atrás dela. Seria um presente delicado do destino?

A jovem se apresentou com seu verdadeiro nome, I’timad. Contou que era mais conhecida como Rumaykiyya, por ser escrava e condutora de mulas de um senhor chamado Rumayk. À parte beleza e poesia, tinha talento e originalidade. Como não era casada, o rei procurou seu senhor, pagou por sua liberdade e a pediu em casamento. Leal e marido dedicado, ao longo da vida fez de tudo por ela, sendo o primeiro a satisfazer o que fosse de encontro ao um grande desejo seu. Contam que sempre foram parceiros, pois além da afinidade poética, a jovem trazia no nome o selo de um relacionamento sólido: I’timad quer dizer "confiança".


Fonte:
http://www.icarab.org/

Os Livros Têm Asas (Lelia Maria Romero)

O Alandaluz foi referência de conhecimento na Idade Média e este saber ainda sopra. Embora os reinos europeus fossem desunidos e fechados em si mesmos, o pólen cultural correu ventos para além dos Pireneus, séculos adiante. Uma rede de saber pontuada por bibliotecas, escolas de tradução e pesquisa, hospitais, centros de estudos islâmicos e sufis, fomentaram um sistema educacional, uma tradição pensante e um olhar curioso sobre o mundo. A herança grega e abássida se tornou fonte de conhecimento singular, alimentou a Europa e serviu de base para mudanças radicais, no ocidente, no final do século XV. Entre tantas transformações, as Américas entraram na história oficial a partir das grandes navegações, que se tornaram viáveis devido aos investimentos da burguesia empreendedora. Árabes, judeus e ciganos foram expulsos da Espanha, mas a cultura alandaluza participou do processo, inerente à erudição que impulsionou a expansão artística, científica e mercantilista européia.

Para a sabedoria islâmica, o conhecimento da natureza é uma forma de elevação a Deus. No Alandaluz, um amplo espectro de interesses partiu da física rumo à harmonia musical. Contam que a música era reconhecida como parte da teoria matemática. Os árabes também desenvolveram a álgebra, a trigonometria, os logaritmos, seno, cosseno e tangente; e a botânica, zoologia, astronomia, geografia, história, e especialmente, medicina e filosofia. Esse culto ao conhecimento abriu caminho para a ciência moderna e ficou conhecido como a Idade de Ouro do Islã, se contrapondo ao atraso da Europa medieval.

Os filósofos e médicos gregos foram traduzidos para o árabe e mais tarde para o latim. Os árabes, antes do Alandaluz, já se interessavam pelas traduções. A expansão do islã aproximou caravanas e exércitos árabes da cultura mediterrânea, persa e indiana. Abássidas e omíadas cultivavam o apreço às traduções, e o único sobrevivente omíada levou da Síria para a península Ibérica, essa herança na bagagem: a relevância da tradução para se situar no mundo e fazer-se conhecido; ampliar o horizonte e se inteirar do que o outro tem a dizer. Aí se incluíam interesses do saber e da conquista. “Os livros têm asas”, disse Averróis, o pólen do conhecimento não tem fronteiras, é irreversível, fertiliza corações e mentes, alimenta um sonho, projetos de vida e de guerra, inclusive os do inimigo.

Fonte:
http://www.icarabe.org/

Fernando Sabino (Conto:Conversinha Mineira)

- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
- Sei dizer não senhor: não tomo café.
- Você é dono do café, não sabe dizer?
- Ninguém tem reclamado dele não senhor.
- Então me dá café com leite, pão e manteiga.
- Café com leite só se for sem leite.
- Não tem leite?
- Hoje, não senhor.
- Por que hoje não?
- Porque hoje o leiteiro não veio.
- Ontem ele veio?
- Ontem não.
- Quando é que ele vem?
- Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.
- Mas ali fora está escrito "Leiteria"!
- Ah, isso está, sim senhor.
- Quando é que tem leite?
- Quando o leiteiro vem.
- Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
- O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
- Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?
- Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.
- E há quanto tempo o senhor mora aqui?
- Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos.
- Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?
- Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
- Para que Partido?
- Para todos os Partidos, parece.
- Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...
- E o Prefeito?
- Que é que tem o Prefeito?
- Que tal o Prefeito daqui?
- O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.
- Que é que falam dele?
- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
- Você, certamente, já tem candidato.
- Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
- Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?
- Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí...

Fonte:
Texto extraído do livro "A Mulher do Vizinho", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1962. www.releituras.com

Fernando Sabino (Conto: Como nasce uma história)

Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.
— Sétimo — pedi.
Eu estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as secretárias daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que, desvanecedoramente para mim, haviam-me incluído entre as celebrações.
A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia:
É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.
Desde o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do infinito pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente já não me lembrava. Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro de concordância.
Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se preza.
Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria! Quantas vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este:
É expressamente proibido os funcionários...
Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria antes a maneira ambígua pela qual isto era expresso:
. . . no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.
Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição:
É proibido subir para depois descer.
É proibido subir no elevador com intenção de descer.
É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo.
Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que experimente, para ver só. Tem de ser bem simples:
Se quiser descer, não torne o elevador que esteja subindo.
Mais simples ainda:
Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo.
De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada:
Se quiser descer, não suba.
Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor.
Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro.
— Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei.
O ascensorista protestou:
— Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.
Os outros passageiros riram:
— Ele parou sim. Você estava aí distraído.
— Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu — reafirmou o ascensorista.
— Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso.
Ele abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram.
— Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o último andar e na volta descer parando até o sétimo.
— Não é proibido descer no que está subindo?
Ele riu:
— Então desce num que está descendo.
— Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elevador vem só até o décimo quarto.
— Para subir. Para descer, sobe até o último.
— Para descer sobe?
Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo.
Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do ascensorista, recebendo-me a rir:
— O senhor ainda está por aqui?
E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutos de atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar:
— Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar.
Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.

Fonte:
extraída do livro "A Volta Por Cima", Editora Record - Rio de Janeiro, 1990. http://www.releituras.com/

Fernando Sabino (Conto: Albertine Disparue)

Chamava-se Albertina, mas era a própria Nega Fulô: pretinha, retorcida, encabulada. No primeiro dia me perguntou o que eu queria para o jantar:
— Qualquer coisa — respondi.
Lançou-me um olhar patético e desencorajado. Resolvi dar-lhe algumas instruções: mostrei-lhe as coisas na cozinha, dei-lhe dinheiro para as compras, pedi que tomasse nota de tudo que gastasse.
— Você sabe escrever?
— Sei sim senhor — balbuciou ela.
— Veja se tem um lápis aí na gaveta.
— Não tem não senhor.
— Como não tem? Pus um lápis aí agora mesmo!
Ela abaixou a cabeça, levou um dedo à boca, ficou pensando.
— O que é lapisai? — perguntou finalmente.
Resolvi que já era tarde para esperar que ela fizesse o jantar. Comeria fora naquela noite.
— Amanhã você começa — conclui. — Hoje não precisa fazer nada.
Então ela se trancou no quarto e só apareceu no dia seguinte. No dia seguinte não havia água nem para lavar o rosto.
— O homem lá da porta veio aqui avisar que ia faltar — disse ela, olhando-me interrogativamente.
— Por que você não encheu a banheira, as panelas, tudo isso aí?
— Era para encher?
— Era.
— Uê...
Não houve café, nem almoço e nem jantar. Saí para comer qualquer coisa, depois de lavar-me com água mineral. Antes chamei Albertina, ela veio lá de sua toca espreguiçando:
— Eu tava dormindo... — e deu uma risadinha.
— Escute uma coisa, preste bem atenção — preveni: — Eles abrem a água às sete da manhã, às sete e meia tornam a fechar. Você fica atenta e aproveita para encher a banheira, enche tudo, para não acontecer o que aconteceu hoje.
Ela me olhou espantada:
— O que aconteceu hoje?
Era mesmo de encher. Quando cheguei já passava de meia-noite, ouvi barulho na área.
— É você, Albertina?
— É sim senhor...
— Por que você não vai dormir?
— Vou encher a banheira...
— A esta hora?!
— Quantas horas?
— Uma da manhã.
— Só? — espantou-se ela. – Está custando a passar...
*
— O senhor quer que eu arrume seu quarto?
— Quero.
— Tá.
Quarto arrumado, Albertina se detém no meio da sala, vira o rosto para o outro lado, toda encabulada, quando fala comigo:
— Posso varrer a sala?
— Pode.
— Tá.
Antes que ela vá buscar a vassoura, chamo-a:
— Albertina!
Ela espera, assim de costas, o dedo correndo devagar no friso da porta.
— Não seria melhor você primeiro fazer café?
— Tá.
Depois era o telefone:
— Telefonou um moço aí dizendo que é para o senhor ir num lugar aí buscar não sei o quê.
— Como é o nome?
— Um nome esquisito...
— Quando telefonarem você pede o nome.
— Tá.
— Albertina!
— Senhor?
— Hoje vai haver almoço?
— Se for possível.
— Tá.
Fazia o almoço. No primeiro dia lhe sugeri que fizesse pastéis, só para experimentar. Durante três dias só comi pastéis.
— Se o senhor quiser que eu pare eu paro.
— Faz outra coisa.
— Tá.
Fez empadas. Depois fez um bolo. Depois fez um pudim. Depois fez um despacho na cozinha.
— Que bobagem é essa aí, Albertina?
— Não é nada não senhor — disse ela.
— Tá — disse eu.
E ela levou para seu quarto umas coisas, papel queimado, uma vela, sei lá o quê. O telefone tocava.
— Atende aí, Albertina.
— É para o senhor.
— Pergunte o nome.
— Ó.
— O quê?
— Disse que chama Ó.
Era o Otto. Aproveitei-me e lhe perguntei se não queria me convidar para jantar em sua casa.
*
Finalmente o dia da bebedeira. Me apareceu bêbada feito um gambá; agarrando-me pelo braço:
— Doutor, doutor... A moça aí da vizinha disse que eu tou beba, mas é mentira, eu não bebi nada... O senhor não acredita nela não, tá cum ciúme de nóis!
Olhei para ela, estupefato. Mal se sustinha sobre as pernas e começou a chorar.
— Vá para o seu quarto — ordenei, esticando o braço dramaticamente. — Amanhã nós conversamos.
Ela nem fez caso. Senti-me ridículo como um general de pijama, com aquela pretinha dependurada no meu braço, a chorar.
— Me larga! — gritei, empurrando-a. Tive logo em seguida de ampará-la para que não caísse: — Amanhã você arruma suas coisas e vai embora.
— Deixa eu ficar... Não bebi nada, juro!
Na cozinha havia duas garrafas de cachaça vazias, três de cerveja. Eu lhe havia ordenado que nunca deixasse faltar três garrafas de cerveja na geladeira. Ela me obedecia à risca: bebia as três, comprava outras três.
Tranquei a porta da cozinha, deixando-a nos seus domínios. Mais tarde soube que invadira os apartamentos vizinhos fazendo cenas. No dia seguinte ajustamos as contas. Ela, já sóbria, mal ousava me olhar.
— Deixa eu ficar — pediu ainda, num sussurro. — Juro que não faço mais.
Tive pena:
— Não é por nada não, é que não vou precisar mais de empregada, vou viajar, passar muito tempo fora.
Ela ergueu os olhos:
— Nenhuma empregada?
— Nenhuma.
— Então tá.
Agarrou sua trouxa, despediu-se e foi-se embora.

Texto extraído do livro "O Homem Nu", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1973. www.releituras.com

Opus Sewaybricker (Gaveta Mágica)

Havia alguma coisa diferente naquele quarto.
A porta era igual as outras, o tamanho também.
As paredes então... Iguais!
Tinha também uma janela pela qual eu não podia entrar, pois não era o vento,
Tão pouco o sol de Primavera.
Mas tinha, por certo, algo diferente naquele quarto...
Era o quarto de minha irmã.
Nesse cômodo da casa, havia um armário, uma cama sempre bem arrumada,
Uma escrivaninha para estudo e um gaveteiro.
Ai, ai... Aquele gaveteiro... Que tinha, entre outras, uma gaveta, onde nela
Tinha uma caixinha, e na caixinha...
Quando minha querida mana estava estudando, deixava-me mexer na gaveta.
Ela era mágica e muito me atraia... Era colorida, uma beleza, forrada de Tranqueirinhas, todas bem organizadas.
Nela tinha copinhos, papeis de bala, de bom-bom e chocolates dos mais diversos; cartinhas, palitos de sorvete, velhos bilhetes de cinema, algumas fotos. Lacinhos e fitas coloridas, nem se fala. Bibelôs vários, chaveiros, brinquedinhos, folhas e rosas secas bem guardadas em papel celofane. Medalhas de santinhos e de campeonato de vôlei. Tinha fotos de minha mãe...
Tinha, na caixinha, as jóias de minha mãe e as fotos de todos os meus irmãos.
Pequenos cachos de cabelo em envelopes de plástico, tudo perfumado com saches aromáticos.
Eu adorava tirar tudo do lugar... Brincar horas e horas com tudo aquilo...
Passou o tempo... Minha irmã cresceu, virou moça, se casou... E foi embora...
Não tinha mais Lúcia, nem cama arrumada com bonecas, nem gaveteiro...
Muito menos gavetas. Menos ainda, a gaveta mágica.
Mas; havia alguma coisa diferente naquele quarto.
E agora, depois de grande e quase sábio, descobri:
Naquele quarto, que era mágico, havia Lúcia e seu amor por mim.
Nele sentia-me seguro, em paz.
Aquela gaveta, que tanto fascinou os olhos de uma criança, agora entendo e sinto, era a gaveta das lembranças de minha irmã mais velha... Doces lembranças pois, lembranças ruins, não merecem lugar nenhum em gaveta alguma.
Hoje; minhas lembranças não guardo em uma gaveta. Guardo sim em um cofre chamado coração. E delas, dessas jóias, faço sempre meu inventário.
Em forma de letras, um poema, uma história ou crônica. Talvez não tão organizada como a mágica gaveta de minha irmã, que se foi para ser feliz, mas repleta de coloridas lembranças... Tesouros preciosos que só o tempo e a maturidade nos dá...
Mas, que tinha alguma coisa diferente naquele quarto...
Há, isso tinha...há tinha sim!!
29/08/07
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Sobre o Autor:
Luis Anto
nio Sewaybricker
Nasceu no inverno de 1964 em Sorocaba. Apaixonou-se pela Literatura ainda na escola e desde então fez da Poesia seu patrimônio literário maior acreditando que ela é vital para o aprimoramento social e construção de um mundo melhor. Bem casado, é pai de cinco filhos maravilhosos que são sua fonte de constante inspiração.Assina suas poesias e textos como ( Opus Sewaybricker ) .
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Fonte:
http://sorocult.com/

O Filósofo e o Poeta (Jean Lauand)

(originalmente, “Que há de comum entre estes dois senhores?” e “Filosofia e Poesia”, artigo publicados no Jornal da Tarde, resp. 15-8-81 e 19-6-82)

O filósofo - diz S. Tomás comentando Aristóteles - assemelha-se ao poeta; o filosofar e o ato poético têm algo em comum.

Para bem entender esta afirmação - clássica no pensamento ocidental - e que situará o filosofar mais próximo da poesia do que das ciências naturais ou exatas, começaremos por - seguindo de perto um ensaio em que Pieper trata do filosofar - descrever brevemente o conceito clássico de filosofar para, em seguida, compará-lo com algumas poesias de nossa música popular.

De início, pois, umas breves considerações sobre o filosofar.

Não se pense que indagando sobre o filosofar (seu princípio, seu fim, suas condições) estejamos lidando com questão menor ou secundária. Pelo contrário, “Nossa pergunta, `o que é filosofar?´, pertence ao campo da Antropologia Filosófica (...) nada se pode dizer sobre a essência da Filosofia e do filosofar sem, ao mesmo tempo, fazer uma afirmação sobre a essência do homem”.

Pieper, seguindo a sabedoria dos antigos e com os olhos voltados para a problemática atual, começa por confrontar o filosofar com o mundo do trabalho.

O mundo do trabalho é “o mundo do dia de trabalho, o mundo da utilidade da sujeição a fins imediatos, dos resultados, do exercício de uma função; é o mundo das necessidades e da produtividade, o mundo da fome e do modo de saciá-la”.

E filosofar é algo que transcende esse mundo do trabalho. Para entender essa afirmação dos antigos, Pieper sugere um interessante “experimento” filosófico: chegar ao coração do mundo do trabalho – um banco por exemplo, às 13h, em dia de pagamento – e, ao chegar sua vez na fila, formular ao inquieto caixa a questão filosófica: “Mas, por que, afinal existem coisas, e não só o nada?” “Eis a antiqüíssima questão filosófica que Heidegger designou como a questão fundamental de toda metafísica! Será necessário apontar ainda o que de incomensurável tem tal pergunta frente ao mundo diário das utilidades e das oportunidades? Se tal pergunta ressoasse inesperadamente em meio a homens ocupados na produção de bens úteis, será que seu autor não seria tido por louco?”.

Não se pense que a afirmação de que o ato de filosofar transcende o mundo do trabalho equivale a afirmar que aquele seja etéreo, alheio à realidade quotidiana. Platão, após narrar o episódio de Tales caindo no poço, explica o sentido para o que aponta a indignação filosófica (Teeteto, 175): o filósofo quer saber não se um rei que tem muito ouro é feliz ou não, mas o que é em si o poder, a felicidade e a miséria. Em si e em suas última razões.

Assim, o filósofo não se afasta de modo algum da realidade quotidiana, mas sim das interpretações e valorações quotidianas do mundo e do trabalho.

E aí temos já uma primeira característica comum, pois também o ato poético transcende o mundo do trabalho.

Ao aproximarmos Filosofia e Poesia não devemos perder de vista também aquilo que as diferencia: a Filosofia apreende a realidade em conceitos que não falam à imaginação, enquanto a Poesia pelo som, ritmo, rima e fluxo da linguagem atinge e apresenta a realidade de modo figurativo.

Mas, voltemos às semelhanças. O ato poético e o filosófico têm seu princípio no mirandum, naquilo que causa admiração.

O que é admiração? É um abalo que de subido nos faz reparar que o mundo, a natureza, as pessoas escondem um encanto inesperado, até então despercebido. Claro que o filósofo e o poeta não estão sob o influxo desse abalo 24 horas por dia. Claro que perceber esse misterioso encanto não é privilégio exclusivo de quem filosofa ou é poeta. Mas se todo homem potencialmente é abalável pelo maravilhoso, o filósofo e o poeta são aqueles que respondem a esse abalo de modos peculiares.

Por isso, na base da Filosofia e da Poesia encontra-se a sensibilidade, que é, na frase feliz do filósofo inglês Copleston, “reparar naquilo que todo mundo tinha visto (mas não notado)”. Acho que é isso o que Orwell queria dizer quando escreveu em seu 1984: “Os melhores livros são os que nos dizem o que já sabíamos”.

Tanto o filósofo como o poeta recusam-se a ter uma visão exclusiva e acabada do fato bruto, de um mundo de rotina onde tudo funciona “normalmente”.

Pieper, falando do filosofar, e da sensibilidade admirativa que essa atitude requer, põe o seguinte exemplo: um dia, ao saudar um amigo, “Como vai, meu amigo,”, uma pessoa pode sentir o abalo filosófico que o leva a perguntar pelo ser (“o que afinal é isto, em si e em suas últimas razões”) e indagar-se: Mas, afinal o que a amizade é? Que misteriosos e maravilhosos laços me unem à pessoa amiga fazendo-a minha?

Pode também perguntar “pelo ser do ter”: o que é, afinal ter? O que queremos dizer quando falamos em “meu” amigo, “minhas” idéias, “meu” amor, “meu” cigarro, “meu” Deus?

A admiração, gerando por exemplo poesia ou filosofar, abala a visão rotineira e quotidiana onde o “ter” não constitui problema algum.

Já o poeta e o filósofo (o exemplo é recolhido por Pieper) voltam-se para o maravilhoso e admirável caráter do ter, expresso no Hai-Kai:

“Meu jardim
disse o rico;
o jardineiro, sorriu...”


Mas precisemos um pouco melhor a essência do abalo admirativo: a admiração, fonte do filosofar, versa sobre coisas simples: “A questão filosófica, portanto, diz respeito ao que sucede todos os dias diante de nossos olhos; mas isto que está diante dos olhos... perde a opacidade, a concretitude, o aspecto definitivo, a evidência. As coisas começam a revelar um aspecto estranho, desconhecido, mais profundo”.

É também a temática de Heidegger em “O Caminho do Campo”: “O dom que (o Simples) dispensa se esconde na inaparência do que é sempre o mesmo”. Para em seguida fazer agudo diagnóstico dos males do nosso tempo: “O homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só vêem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se. O número dos que conhecem o Simples como um bem que conquistaram diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos porém, serão, em toda a parte, os que permanecem”.

De fato, não é preciso muito esforço para verificar como, no nosso tempo, perdemos quase completamente a capacidade de admirar-nos com o Simples. Precisamos mais e mais do estapafúrdio (pense-se nos esoterismos e no pulular de seitas nos dias de hoje) para provocar algo assim como uma pseudo-admiração, prostituída, falsa, sucedâneo para a legítima admiração que reclama respostas filosóficas, poéticas, religiosas, amorosas: formas genuínas de respostas à verdadeira admiração.

“A admiração filosófica não é suscitada pelo ´nunca se viu tal coisa´, por aquilo que é anormal ou sensacional... Perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não diário, o mirandum, eis o princípio do filosofar. Nesse ponto, como dizem Aristóteles e S. Tomás, o ato de filosofar se assemelha à poesia”.

A letra de “Força Estranha” nos fala da arte e do artista, de seus temas, condição e missão: o que o poeta vê, como o vê e expressa. E o que se diz é que o tema e a inspiração da arte procedem da admiração das coisas simples que o poeta vê e – aí está o seu dom – repara: “Eu vi o menino correndo, os cabelos brancos na fronte do artista, a mulher preparando outra pessoa...”

Objetar-se-á que os exemplos – especialmente este último – parecem banais, pouco poéticos, (como dizíamos em artigo anterior), demasiadamente prosaicos (“olhar para aquela barriga”) para as delicadas musas. Como também o ver “muitos homens brigando”.

O poeta responde dizendo que a poesia não tem a necessidade – exageradamente romântica – de fugir à realidade pois “a vida é amiga da arte”. Mas também não precisa cair no estreito e grosseiro “realismo” insensível a tudo o que transcendia o plano meramente material, incapaz portanto de ver, por exemplo, o real encanto do menino correndo ou da nova vida que surge, ou, pelo seu contraste: ver a paz devida, ausente na luta dos homens.

A respeito de realidade e poesia, Caetano diz que é uma questão de sensibilidade, de abrir-se à luz do sol que brilha, ensina, dá a conhecer o jogo das coisas que são e mostra o seu valor.

E assim, podemos nos maravilhar com o menino, com os brancos cabelos do sempre jovem artista e com o surgir da nova vida, sem sermos acusados de querer fugir à realidade pois “aquele que conhece as coisas que são” sabe que há uma realidade de encanto nessas cenas. Note-se que “O tempo parou”, ou a “ausência de tensão do futuro”, é a caracterização que filósofos (como Von Hildebrand ou Pieper) utilizam para falar da contemplação da verdade ou da beleza.

E quem quer que no caminho, na estrada da vida não esteja totalmente cego para essa luz sentir-se-á arrastado – é a experiência relatada desde a Antigüidade por todos os genuínos poetas – por uma estranha força que o compele a externar (“por isso essa voz tamanha”) essas maravilhas.

Quando essa manifestação é de ordem primordialmente estética recebe o nome de arte e seus cultores têm o curioso dom da eterna juventude, por muito que o tempo não pare.

Mas, passemos a outros componentes da postura filosófica platônica. Se o princípio da filosofia é a admiração, seu fim (no sentido da meta) é a “theoria”. Teoria é o simples olhar, “simples visão” contemplativa, desinteressada, ou melhor, desinteresseira: a contemplação pura da verdade e do belo ainda que disso não resulte nada de útil para o “mundo do trabalho”, por exemplo, que não aumente o PIB, mas porque vale “em si”.

Assim Pieper situa a concepção clássica: “Somente aquele que admira consegue realizar em si a forma original de relação com o ser, que desde Platão se chama ´teoria´, isto é, aceitação puramente receptiva da realidade... Teoria só existe quando o homem não se tornou cego e insensível ao maravilhoso, ao fato de que alguma coisa existe”. E, noutra passagem, teoria, “contemplação é um conhecimento com amor. É a visão do objeto amado”. Confronte-se com a antológica “Que maravilha” de Jorge Ben:

Lá fora está chovendo
Mas assim mesmo eu vou correndo
Só para ver
O meu amor...
Que maravilha, que coisa linda
é o meu amor

Registre-se também a oposição que o poeta faz entre a “teoria” (“só para ver...”) e o mirandum (o maravilhoso, que maravilha...) e o “mundo do trabalho”:

Por entre automóveis
Bancários, ruas e avenidas
Milhões de buzinas
Tocando sem cessar...

Se a admiração nos levou à contemplação (teoria), leva-nos também a uma determinada afirmação do mistério como condição do filosofar.

Também aqui devem ser evitadas as confusões: mistério não deve ser entendido como algo esotérico, mas o mistério do simples, dessa realidade quotidiana que, pelo abalo da admiração, manifesta-se misteriosa: o que é o amor?, o que é a dor?, o que o homem é?

Filósofo algum jamais poderá dar resposta plena e acabada a essas e a tantas outras questões. Por isso, Platão personifica o filosofar em Eros, pois Eros é filho de Poro e de Pênia (da abundância e da penúria). Eros (o filosofar, o homem) herdou do pai, Poro, o desejo de conhecer que, nesta vida, não se realizará plenamente (pois Eros é também filho de Pênia).

O filosofar, dizíamos, manifesta o que o homem é. E nessa estrutura dual do mistério e da admiração, misto de ter e não-ter, ânsia de posse que não chega a se perfazer (“... amor é sede depois de se ter bem bebido” – Guimarães Rosa) manifesta-se a estrutura ontológica da criatura humana: uma estrutura de esperança, um não-ter-ainda, não-ser-ainda; intermediária entre a plenitude da divindade e a opacidade do bruto.

O mistério é o claro-escuro: sim, sabemos o que é por exemplo o amor, mas, ao mesmo tempo, não sabemos o que o amor é.
A razão pela qual a realidade é misteriosa para o homem não está na falta de luz mas no excesso, no fato de ter sido criada por Deus, fonte de luz-ser e de inteligibilidade. Como indicávamos (em artigo anterior) a realidade é cognoscível para o homem porque é criada por Deus. Uma afirmação que requer a devida complementação: a realidade é inexaurível para o homem porque é criada por Deus.

À luz destas considerações, trataremos a seguir do samba “Sei lá, Mangueira”.

SEI LÁ MANGUEIRA
(Paulinho da Viola – Hermínio B. de Carvalho)
Vista assim, do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá...
Em Mangueira a poesia
Feito o mar se alastrou
E a beleza do lugar
Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei
Não sei se toda beleza
De que lhes falo
Sai tão somente do meu coração
Em Mangueira a poesia
Num sobe-desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De pensar e sonhar de sofrer
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei não
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação

Esta canção está de tal modo marcada pelo sentido clássico de mistério, que, literalmente, podemos colocá-la lado a lado com trechos filosóficos de Pieper:

O filósofo:
O verdadeiro sentido da admiração é que o mundo é mais profundo, mais amplo e mais misterioso do que pode parecer ao conhecimento comum.

O poeta:
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei
Não sei se toda a beleza
de que lhes falo
sai tão-somente do meu coração

O filósofo
“Mistério significa que uma realidade é inconcebível, porque sua luz é inesgotável e inexaurível. É o que experimenta quem se admira”

O poeta
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei não
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação

Admiração, contemplação e mistério, bem como outros componentes do filosofar, apontam para algo ainda mais profundo: encarar o mundo como criação de Deus!

Só podemos maravilhar-nos, só é digno de contemplação, só há o excesso de luz e a grandeza do mistério, se o mundo possui algo do encanto de Deus.

Seja-me permitida ainda mais uma vez intercalar num parágrafo de Pieper trechos de “Sei lá Mangueira”.

Pieper
“Se dos antigos se aproximasse um discípulo dizendo que era sua intenção aprender e considerar um determinado objeto de maneira filosófica, os antigos mestres replicariam: ´Estás convencido de que a realidade do mundo é algo de divino...

Sei lá Mangueira:
Visto assim do alto
Mais parece um céu no chão...

Pieper:
... a realidade do mundo é algo de divino e, por isso mesmo, digno de veneração...´”

Sei lá Mangueira:
Que as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar...


Pode-se dizer, pois, que o tema, - tão fundamental para os grandes antigos – da reverência como condição para o conhecimento (e que para o homem de hoje, é de tão difícil compreensão...) foi também plena e retamente captado por Paulinho-Hermínio:

Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
e as mãos não ousam tocar
...”

Fonte:
http://www.hottopos.com/

Artur da Tavola (Gatos)

Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso. Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.

O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.

Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?

Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele é dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.

"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.

O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é espelho.
O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação.
Nada pede a quem não o quer.

Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se.
Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.

Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente,é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.

Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado, e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.

O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que ele não está ali. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.

O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.

Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas, esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.

O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!

Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo. O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, o qual ama e preserva como a um templo.

Lição de saúde sexual e sensualidade.
Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias.
Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal.
Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular.
Lição de salto.
Lição de silêncio.
Lição de descanso.
Lição de introversão.
Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra.
Lição de religiosidade sem ícones.
Lição de alimentação e requinte.
Lição de bom gosto e senso de oportunidade.
Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.
O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem.

Fonte:
http://gatosbrasil.multiply.com/

Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala)

"Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro."

Mestre Gilberto Freyre... Escritor pernambucano, morador de Apipucos, no Recife. Era descendente de senhores de engenho. Conhecia bem os casarões...

Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, Gilberto Freyre publica Casa-Grande & Senzala, um livro que revoluciona os estudos no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária.

Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses.

Em Casa-Grande & Senzala, o escritor exprime claramente o seu pensamento. Ele diz: "o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada" . Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.

"Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos estímulos."

Havia tempos Gilberto Freyre procurava escrever sobre o ser brasileiro. Pressões políticas e familiares o levaram, entre 1930 e 1932, a viver o que chamou de "a aventura do exílio". Partiu para a Bahia e pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro Nina Rodrigues e a arte das negras quituteiras na decoração de bolos e tabuleiros. Observou que a culinária baiana era neta da velha cozinha das casas-grandes.

Depois da Bahia partiu para a África e Portugal. Iniciou em Lisboa as pesquisas e estudos que sedimentariam o livro Casa-Grande & Senzala. De Portugal foi, como professor visitante, para a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde viajou pelo Sul e pôde constatar a existência, durante a colonização americana, do mesmo tipo de regime patriarcal encontrado no nordeste brasileiro.

"Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que ficou sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto-conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela... mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse... um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil."

Durante o período de estudos na universidade americana, o escritor elaborou uma linha de pensamento que diferenciava raça e cultura, separava herança cultural de herança étnica; trabalhou o conceito antropológico de cultura como o conjunto dos costumes, hábitos e crenças do povo brasileiro.

"Gilberto Freyre diz que Franz Boas foi a figura de mestre que nele ficou maior impressão, porque foi com Franz Boas que ele aprendeu a distinguir raça de cultura, e nessa distinção ele se baseou para escrever Casa-Grande & Senzala. Agora, o conceito de antropologia de Freyre era muito mais amplo, ele partiu para uma interpretação global do povo brasileiro. É uma história ao mesmo tempo econômica, religiosa, folclórica, sociológica."
Édson Nery da Fonseca, historiador (Olinda, PE)

"Quando, em 1532, se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio, e mais tarde de negro, na composição."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Portugal, um país largamente marítimo, recebia sempre povos de todos os lugares do mundo. Seus portos eram rota de comércio e de migrações. O contato com estrangeiros estimulava, no povo português, tendências cosmopolitas, imperialistas e comerciais. Na Península Ibérica as raças se misturavam havia milênios. O encontro das culturas árabes e romana impregnava a moral, a arte, a economia e a vida do português. Os árabes - excelentes técnicos navais - e os judeus - financistas e com altos cargos de administração, no conselho real -, emprestavam conhecimento e dinheiro para o empreendimento das navegações e dos descobrimentos. A burguesia comercial ganhava mais poder que a aristocracia territorial portuguesa e buscava no além-mar terras e riquezas nunca exploradas.

Além da mobilidade, o português tinha a capacidade de se misturar facilmente com outras raças. Os homens vinham sem família, sozinhos. Chegavam carentes de contato humano e começavam a se reproduzir primeiro com as índias e depois com as negras escravas. Era preciso povoar o território. No momento em que embarcou na aventura ultramarina, Portugal tinha três milhões de habitantes. O Brasil era imenso; então, como povoar esse território?
"Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades que fossem de fé católica. Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós esplendidamente através de toda a nossa formação colonial."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Foi aqui que chegou...dia 02 de março de 1535...um português chamado Duarte Coelho Pereira, viu essa bela vista e deu uma exclamação:Oh! linda situação para se construir uma vila. Por isso que a cidade se chama Olinda. Antigamente chamava Marino Caetês, habitada pelos índios. Em Pernambuco e no Recôncavo baiano, a colonização se desenvolvia à sombra das grandes plantações de cana-de-açúcar e das casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, longe das cabanas de aventureiros e do extrativismo predatório.

"A casa-grande do engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI, a levantar no Brasil - grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, telhados caídos num máximo de proteção contra o sol forte e as chuvas tropicais - não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas, mas expressão nova do imperialismo português. A casa-grande é brasileirinha da silva."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Num processo de equilíbrio de antagonismos, o branco e o negro se misturavam no interior da casa-grande e alteravam as relações sociais e culturais, criando um novo modo de vida no século XVI. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os negócios e a religiosidade forjavam, no dia-a-dia, a base da sociedade brasileira.

A casa-grande abrigava uma rotina comandada pelo senhor de engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo. O suor do negro ajudava a dar aos alicerces da casa-grande sua consistência quase de fortaleza. Ela servia de cofre e de cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão e as mulheres, que fundamentariam a colonização portuguesa no Brasil. Embora diretamente associada ao engenho de cana e ao patriarcalismo nortista, a casa-grande não era exclusiva dos senhores de engenho. Podia ser encontrada na paisagem do sul do país, nas plantações de café, como uma característica da cultura escravocrata e latifundiária do Brasil.

O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a implantação de uma cultura agrícola, nos moldes do costume europeu. O português teve então de mudar seus hábitos alimentares. A mandioca substituía o trigo; no lugar das verduras, o milho; e as frutas davam um colorido novo à mesa do colonizador. Mas sua dieta ficava empobrecida, devido à ausência de leite, ovos e carne, que só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. A terra foi usada para o cultivo da cana em detrimento da pecuária e da cultura de alimentos, o que provocou a apatia, a falta de robustez e a incapacidade para o trabalho. Males geralmente atribuídos à mestiçagem. Os portugueses não traziam para o Brasil nem separatismos político, nem divergências religiosas, e não se preocupavam com a pureza da raça. Assim o país se formava. E a unidade dessa grande extensão territorial com profundas diferenças regionais, garantida muitas vezes com o uso da força, aconteceu devido à uniformidade da língua e da religião.

A Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América Latina, toda ocupada por países de tradição católica. Nessa quase cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas desempenhavam um papel importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com base na fé católica. Para catequizar os índios, os jesuítas decidiram vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho tentava escravizá-los. Nos dois casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes da terra para o interior.

"Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral cristã, vieram defrontar-se na América com uma das populações mais rasteiras do continente... Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semicivilizações americanas, como os Incas e os Astecas."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

"O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

A sociedade brasileira, entre todas da América, era a que se formava com maior troca de valores culturais. Havia um aproveitamento de experiências dos indígenas pelos colonizadores. Mesmo quando inimigo, o índio não provocava no branco uma reação que levasse a uma política deliberada de extermínio, como a que ocorria no México e Peru. A reação dos índios ao domínio do colonizador era quase contemplativa. O português usava o homem para o trabalho e a guerra, principalmente na conquista de novos territórios, e a mulher para a geração e formação da família. Esse contato provocava o desequilíbrio das relações do índio com o seu meio ambiente.

"Eu sou índio da tribo pataxó. Eu aprendi com meus pais a fazer artesanato. A gente faz cocares..., a gente vive só disso, de artesanato, a não ser no inverno, quando a gente tem que pescar mucussu. Mucussu é peixe. A gente planta mandioca para fazer cuiúna, feijão e arroz. A gente fala em pataxó: jocana baixu significa mulher bonita e jocana baixa é mulher feia."
Paturi, índio pataxó (Coroa Vermelha, BA)

"A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi uma presença decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português, talvez até por motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando escrevi Casa Grande & Senzala, as sociedades ameríndias ou índias, inclusive a brasileira, eram sociedades que precisavam de festivais como que orgiásticos para provocar nos homens, nos machos, desejos sexuais. O que há de acentuar é o grande papel da índia fêmea na formação brasileira, essa índia fêmea não só através do relacionamento mencionado sexual, mas através do papel social que ela começou a desempenhar magnificamente, tornou-se uma figura capital na formação brasileira."

"Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

A união do português com a índia havia gerado os mamelucos que atuavam como bandeirantes e, junto com os índios, formavam a muralha movediça da fronteira colonial. O mameluco e o índio, que excediam o português em mobilidade, atrevimento e ardor guerreiro; que defendiam o patrimônio do senhor de engenho contra o ataque de piratas estrangeiros, nunca firmaram as mãos na enxada. Os pés de nômades não se fixavam na plantação da cana-de-açúcar.

"Essa arte é descendência dos índios, né! Aí nós somos seguidores já dos índios. A gente ficou fazendo as panelas de barro, que eu aprendi com meu pai. Meu pai já trabalhava, aí eu fiquei trabalhando. Agora meus filhos também trabalham na mesma arte."
Zé Galego, artesão (Caruaru, PE).

Dos costumes dos primitivos habitantes da terra eram as relações sexuais e de família, a magia e a mítica que marcavam a vida do colonizador. A poligamia e a sexualidade da índia iam ao encontro da voracidade do português, ainda que a vida sexual dos indígenas não se processasse tão à solta quanto o relatado pelos viajantes que aqui estiveram. Para as tribos mais primitivas, a união do macho com a fêmea tinha época; o costume de oferecer mulheres aos hóspedes era prática de hospitalidade, quase um ritual. A mulher nativa resgatava o sonho da ninfa, que se banhava no rio e penteava os longos cabelos negros. Uma imagem deixada pela invasão moura na Península Ibérica e adormecida no inconsciente do português.

"Figura vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se nuns à do inglês; noutros, à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem idéias absolutas, nem preconceitos inflexíveis. ...Um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água..."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Os portugueses davam uma contribuição criativa ao novo mundo através da produção de açúcar. E implantavam um sistema econômico que aprenderam com os mouros durante a ocupação da Península Ibérica. Os mouros, de grande tradição agrícola, introduziram a laranjeira, o limoeiro e a tangerina e implantaram a tecnologia do fabrico do açúcar em Portugal. O engenho mouro é avô do engenho pernambucano.

Essa contribuição criativa é que diferenciava o português do holandês e do francês, que para cá traziam apenas aperfeiçoamentos tecnocráticos. O choque das duas culturas, a européia e a ameríndia, no Brasil colônia, se dava mais lentamente, não por meio da guerra, mas nas relações entre homem e mulher, mestre e discípulo. A Igreja ganhava no Brasil capelas simples dentro do complexo arquitetônico da casa-grande. Lá morava o capelão, que dela tirava seu sustento. E essa mesma Igreja, através dos jesuítas, partia maciça e indiscriminadamente para a catequização dos índios.

O animalismo e a magia impregnavam a vida dos índios: desde o berço, quando a mãe entoava cantigas de ninar e, já meninos, nas brincadeiras de imitar animais. Entre os jogos infantis dos curumins, o jogo de cabeçada com a bola de borracha ficava como contribuição da cultura indígena. Apesar de crescerem livres de castigos corporais e de disciplina paterna, os meninos estavam sempre em contato com rituais da vida primitiva. Na puberdade eram levados para o baíto, a casa secreta dos homens, onde passavam por provas de iniciação à fase adulta. Para os padres da Companhia de Jesus, os índios acreditavam em tudo e aprendiam e desaprendiam os ensinamentos rapidamente. Havia uma enorme quantidade de aldeias espalhadas pela floresta, que falavam diferentes línguas. Era preciso unificar as tribos para poder pregar a doutrina católica. O menino indígena servia de intérprete aos jesuítas, que aprendiam com ele as primeiras palavras em tupi. Os padres puderam então escrever uma gramática, unificando a língua dos Brasis. Estava criando o tupi-guarani.

Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o índio no sistema de colonização que iria criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat natural, o índio não se adaptava como escravo: morria de infecções, fome e tristeza. Para suprir a deficiência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano começavam a importar negros caçados na África. Agora, as escravas negras substituíam as cunhãs tanto na cozinha como na cama do senhor. Na agricultura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava finalmente o interesse do Reino de Portugal.

Entre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior não só à dos índios como também à da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam quase sem nenhuma instrução, que para escrever uma carta necessitava da ajuda do padre-mestre. O movimento malê da Bahia, em 1835, foi considerado um desabafo da cultura adiantada, que era oprimida por outra menos nobre. Contava-se que os revoltosos sabiam ler e escrever em alfabeto desconhecido. Eram negros que liam e escreviam em árabe.

"Pode-se juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões quentes. Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

O Brasil importava da África não somente o animal de tração que fecundou os canaviais, mas também técnicos para as minas, donas de casa para os colonos, criadores de gado e comerciantes de panos e sabão.Os negros vindos das áreas de cultura africana mais adiantada eram um elemento ativo, criador e pode-se dizer nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela condição de escravos. O negro escravo e a cana-de-açúcar fundamentavam a colonização aristocrática e a estrutura básica do mundo dos coronéis se repetiria nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, com o mesmo fundamento: a ocupação da terra.

Na sociedade escravocrata e latifundiária que se formava, os valores culturais e sociais se misturavam à revelia de brancos e negros. Sua convivência diária favorecia o intercâmbio de culturas e gerava sadismos e vícios, que influenciavam a formação do caráter do brasileiro. A escravatura degradava senhores e escravos.

"Na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça de qualquer povo se fundam, parte nas sua instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia, por assim dizer doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o Brasil quando o consideramos debaixo desses dois pontos de vista?"
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

O senhor de engenho, um homem extremamente rico e poderoso, passava a maior parte do tempo deitado na rede, cochilando e copulando. Quando saía, a passeio ou em viagem, o negro era seus pés e mãos. O sinhô não precisava levantar-se da rede para dar ordens aos negros, bastava gritar. Os negros veteranos, os ladinos, iniciavam os recém-chegados na moral e nos costumes dos brancos. Ensinavam a língua e orientavam nos cultos religiosos sincretizados. Eram ainda os ladinos que ensinavam aos boçais a técnica e a rotina na plantação da cana e no fabrico do açúcar.

A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares. Além dos trabalhos forçados, ele era usado como reprodutor de escravos: era preciso aumentar o rebanho humano do senhor de engenho. As crias nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A Igreja, esteio dos poderosos, agia da mesma forma no tratamento dado ao negro. A mulher escrava fazia a ponte entre a senzala e o interior da casa-grande e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas e domésticas. Objeto dos desejos sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra sofria por parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá-los. A escrava adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, mas cumpria as tarefas que normalmente estariam destinadas à mãe de família. As damas da sociedade se casavam entre os doze e os quinze anos com homens muito mais velhos. O conhecimento que tinham da vida de casada, os acontecimentos de fora do engenho e outras histórias - nem sempre românticas - elas ouviam da boca das mucamas. As sinhazinhas sentadas à mourisca, tecendo renda ou deitadas na rede e as escravas a lhes catar piolho ou fazendo cafuné. Cedo se casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos ou se tornavam matronas aos dezoito anos. O ócio e a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas. E ignorantes: era raro encontrar uma que soubesse ler e escrever. A presença da negra na vida do menino vinha desde o berço, quando ela o amamentava e acalentava o seu sono. A ama de leite ensinava as primeiras palavras num português errado, o primeiro "pai nosso", o primeiro "oxente", e amaciava com a própria boca a comida do menino de engenho. Os sofrimentos da primeira infância - castigos por mijar na cama e purgante uma vez por mês os meninos descontariam tornando-se pequenos diabos. O moleque, o pequeno escravo, companheiro do sinhozinho em brincadeiras e aventuras, servia também de saco de pancadas. Tornava-se objeto do prazer mórbido de tratar mal os inferiores e os animais, prazer de todo menino brasileiro filho do sistema escravocrata. Criança mimada e educada para ser o herdeiro todo-poderoso, o menino desde o início da adolescência era entregue aos cuidados eróticos da fulô.

"Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens sobrinhas; exagerava-se, então, o sentimento da propriedade privada. As heranças eram disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Aos filhos bastardos, gerados nas casa-grande e paridos na senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer os libertava. Nomes e sobrenomes se confundiam: os escravos mais próximos, que ganhavam a simpatia do senhor, conseguiam adotar o sobrenome dos brancos. Na tentativa de ascensão social, os negros imitavam dos senhores as formas exteriores de superioridade. Mas muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos apelidos indígenas e africanos das propriedades rurais - a terra recriava os nomes dos proprietários à sua imagem e semelhança.

A música, o canto e a dança dos escravos tornavam a casa-grande mais alegre. A risada do negro quebrava a melancolia e o silêncio infinito do senhor de engenho. As mães negras e as mucamas, aliadas aos meninos, às moças das casas-grandes e aos moleques, corrompiam o português arcaico ensinado pelos jesuítas aos filhos do senhor. A nova fala brasileira não se conservava fechada nas salas de aula das casas-grandes, nem se entregava de todo à maior espontaneidade de expressão da senzala. Mas o modo carinhoso do brasileiro colocar os pronomes: me diga, me espere... vem do africano. Também do seu modo de falar ficaram as formas diminutivas: benzinho, nézinho, inhozinho.

Era um novo jeito de falar, um novo jeito de andar, um novo jeito de comer... A culinária da senzala aproveitava as sobras de carnes da casa-grande, usava o aipim indígena e as verduras, misturava aos temperos africanos, principalmente o dendê e a pimenta malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá. Alimentos que combinavam com a dureza do trabalho no cativeiro. As crenças e magias trazidas pelos portugueses eram transformadas em feitiçaria nas mãos dos africanos. Aos negros feiticeiros recorriam os senhores brancos idosos a procura de afrodisíacos; as jovens sinhás, que não conseguiam engravidar; e as belas mucamas, que aprendiam a receita do café mandingueiro, um filtro amoroso feito com café bem forte, muito açúcar e sangue de mulata.

Na religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro. Nasciam então as religiões afro-brasileiras: São Jorge é o orixá Ogum e Nossa Senhora é Iemanjá.

"Esse terreiro tem 110 anos. A minha avó era descendente de escravos. Tinha uma aldeia que se chamava Catongo. Nessa aldeia ela também cultivava os orixás, quando chegavam assim os escravos chicoteados de outros lugares, fazendas, engenhos, essas coisas. Aí ela curava com aquelas difusões de ervas, né, aqueles remédios das folhas, e curava esses escravos, que ficavam gratos e acabavam ficando com ela. Quer dizer, ela era assim uma espécie de protetora desses escravos. E a minha mãe falava que era uma senzala, onde ela abrigava esses escravos."
Ilza R.P. Santos, mãe-de-santo (Ilhéus, BA) (??)

"Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O banzo - a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram, mas ficaram penando."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.

Os negros, muitos agora, libertos pela alforria, pela revolta ou pelas fugas, unidos nos quilombos, lutavam pelo fim da escravidão. Aliavam-se aos ideais libertários os filhos de poderosos senhores de engenho que se tornavam abolicionistas por motivos econômicos, humanitários ou, simplesmente, pelo apego que tinham às suas mães de leite.

" Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como no Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse na senzala."
Florestan Fernandes, cientista social.

Em 1984, numa de suas últimas entrevistas, o escritor Gilberto Freyre resumia o seu pensamento sobre a situação presente do negro, lembrando o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco:

"O problema é que a abolição da escravatura, embora tenha sido fato notável na história da formação brasileira, foi muito incompleta."

Com a abolição, os problemas do negro estariam apenas começando. Mas quem se interessou por isso? Ninguém se interessou. O negro livre deixou as fazendas e os engenhos e foi inchar as periferias das cidades. Abandonado, constituiu-se num sub-brasileiro.

"Todo mundo... não quer se encontrar com os pretos,
não quer, só quer se ligar aos brancos. Mas isso naquela época a Princesa Isabel libertou! Cabou-se, né! esse negócio de não querer se encontrar com o negro.
Porque tristes dos brancos se não fosse o sangue do negro
."
Maria Madalena Correia, cantora (Ilha de Itamaracá, PE).

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