terça-feira, 21 de agosto de 2012

Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela)

Escrita por Jorge Amado em 1958, a obra Gabriela Cravo e Canela, um romance regionalista, rendeu ao autor cinco importantes prêmios e uma excepcional aceitação pelo público, sendo também êxito no estrangeiro, tendo sido traduzida em quinze línguas. Este sucesso deve se principalmente a maneira do autor, com seu espírito jovial, de escrever e trabalhar tão bem suas personagens.

Ao lermos o livro percebemos duas principais vertentes que ocorrem paralelamente e que conduzem todo o romance:

a.. O amor entre a mulata Gabriela e o sírio Nacib. O campo amoroso da narrativa.

b.. A chegada do progresso em Ilhéus, local onde se passa a história. O campo social e político da narrativa.

Personagens

Iremos a seguir mostrar os personagens principais e secundários divididos de acordo com seus papéis.

a.. Personagens Protagonistas (no campo amoroso).

Consideramos Gabriela e o turco Nacib os protagonistas da história devido ao romance vivido entre eles e a importância deste no romance.

Gabriela- Moça de grande vitalidade que reúne grandes características do biótipo nortista do interior, sendo retirante fugida da seca. Animada, bem disposta, era bonita e por onde passava chamava atenção dos homens, provocando inveja nas mulheres. Não era mulher de relacionamentos mais sérios como o casamento nos quais se sentia "presa". A traição na sua relação com Nacib ocorreu devido a este fato. Importante: é Gabriela que dá ênfase à trama.

"Caído o braço roliço, o rosto moreno sorrindo no sono, ali, adormecida na cadeira, parecia um quadro. Quantos anos teria? Corpo de mulher jovem, feições de menina."

Este trecho exemplifica e exalta a beleza física de Gabriela.

Nacib- O personagem é fundamental não só pela sua relação com Gabriela mas também pelo fato de ser dono do mais importante ponto de encontro da região, o Bar Vesúvio. Era imigrante vindo da Síria e não gostava de fazer parte de nenhum laço político. Pensava ele que se fizesse parte da política poderia perder clientela em casos de desentendimento, já que todos da sociedade freqüentavam seu bar. É ele o primeiro homem, na narrativa, a se encantar com a beleza de Gabriela. Era, de acordo com o próprio livro, "um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido..." Possuía ainda frondosos bigodes, um rosto gordo e bonachão, além de uma boca grande de sorriso fácil.

"Do que não se recordava mesmo era da Síria, não lhe ficara lembrança da terra natal tanto se misturara ele à nova pátria e tanto se fizera brasileiro e ilhense."

Trecho da narrativa referente a Nacib e sua nacionalidade.
2.Personagens Antagonistas (no campo amoroso)

Para considerarmos uma personagem antagonista devemos analisá-la e assim ver o seu verdadeiro papel na narrativa. No caso deste romance consideramos a personagem Tonico Bastos como a antagonista. Pelo fato de ele ser o fator determinante na traição entre Gabriela e Nacib.

Tonico Bastos- Filho do coronel Ramiro Bastos, possuía a fama de conquistador. Sua razão de viver era esta, o de ser o irresistível. Andava sempre bem vestido, e com um andar despreocupado. Tinha muito sucesso com as mulheres e as opiniões sobre ele variavam em Ilhéus, uns o consideravam bom rapaz e inofensivo. Outros achavam ele burro, covarde e preguiçoso.

Foi este seu jeito que conquistou Gabriela, fazendo com que ela se esquecesse de Nacib por um momento.

"De nenhum outro temera tanto Nacib a concorrência, ao contratar Gabriela, quanto de Tonico. Não era ele o conquistador sem rival, o tombador de corações?"

Trecho que mostra a preocupação de Nacib em relação a seu amor Gabriela e o conquistador Tonico Bastos.

3. Personagens Secundários (no campo amoroso)

São personagens da conturbada vida amorosa e doméstica de Ilhéus ou ainda personagens relacionados ao cotidiano de Gabriela, Nacib ou de Tonico Bastos. A seguir citaremos algumas personagens neste campo.

As irmãs dos Reis- Duas grandes cozinheiras de Ilhéus, Quinquina e Florzinha eram também muito conhecidas por terem construído um enorme presépio. Neste encontravam-se além de imagens santas, imagens de personalidades que foram importantes na história do Brasil.

Malvina- Por ser jovem e mulher era muito controlada pelo pai, o que era muito comum na época. Por outro lado era a única que possuía coragem para requerir seus direitos. Acabou fugindo de Ilhéus para não ter que casar com quem não queria.

Filomena- Empregada de Nacib desde que ele comprara o bar, acaba indo embora para morar com o filho Vicente. Abrindo então uma vaga que posteriormente será ocupada por Gabriela.

No campo político os personagens estão divididos em duas principais alas: a ala dos que querem e estimulam o tão falado progresso e aqueles que são contra os desejos desta ala progressista. Através da leitura podemos perceber que os progressistas são (no campo político) os protagonistas. O antagonismo está na maneira conservadora de pensar da outra ala, anti-progressista. Os membros desta ala são os antagonistas neste campo.

Alguns protagonistas (campo social e político).

Mundinho Falcão- Raimundo Falcão, exportador de cacau. O seu principal objetivo era aumentar a produção de cacau, e possibilitar que o cacau fosse exportado sem ter que antes passar pelo porto da Bahia. Era o símbolo do progresso.

"Mundinho Falcão chegou aqui outro dia, como diz Amâncio. E veja quanta coisa já realizou: abriu a avenida ...Trouxe os primeiros caminhões, sem ele não saía o Diário de Ilhéus nem o clube Progresso."

Este trecho define bem o espírito progressista de Mundinho Falcão.

Capitão- Miguel Batista de Oliveira, o Capitão, era aliado a Mundinho Falcão nas disputas políticas. Possuía um nariz grande e curvo, era moreno e estava sempre vestido de impecável roupa branca. Era uma das grandes personalidades da cidade.

O russo Jacob e seu sócio Moacir Estrela- Foram eles que organizaram uma empresa de transportes para explorar a ligação rodoviária entre as duas principais cidades de produção de cacau. Isto foi um progresso já que a viagem rodoviária através das marinetes era muito mais rápida e barata que através da ferrovia, a mais comum na época.

"Que coisa! Quem diria! Trinta e cinco quilômetros em hora e meia...Antigamente a gente levava dois dias, a cavalo..."

Percebe-se por este trecho da narrativa a vantagem da viagem por rodovias através das marinetes.

Alguns membros da Igreja podem aqui ser incluídos (Padre Basílio), já que muitos deles possuíam terras sendo interessante a chegada do progresso.

Antagonistas (campo social e político)

Coronel Ramiro Bastos
- Considerado um verdadeiro cacique local, por ser um dos mais antigos moradores de Ilhéus. Era contra a política progressista de Mundinho Falcão, com o qual disputava o poder político da região.

Coronel Amâncio Leal- Era um homem calmo, porém que já havia lutado muito por terras da região, era um célebre chefe de jagunços. A ele pouco interessava todas aquelas inovações do progresso.

Na verdade podemos dizer que praticamente todos os coronéis, os homens com origem naquela terra e que lutaram por ela, não queriam o progresso, não queriam que seu tipo de vida mudasse.

Principais Momentos

Por ser um romance percebemos dentro do enredo várias "sub-histórias" podendo então se localizar pequenos conflitos e até pequenos desfechos caracterizando um pequeno universo. Mas de qualquer forma podemos dividir a obra de acordo com seus principais acontecimentos.

1.Apresentação

A apresentação ocorre na parte inicial do livro (todo o primeiro capítulo), quando o autor descreve o local que onde se passa a trama. Ele apresenta e cita algumas personagens que serão importantes no desenrolar da história. Além disso deixa bem claro os hábitos e costumes das pessoas da época, apresentando personagens bem estereotipadas.

"Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado..."

"O Doutor não era doutor, o Capitão não era capitão. Como a maior parte dos coronéis não era coronéis. Poucos, em realidade, os fazendeiros que nos começos da República e da lavoura haviam adquirido patentes de coronel da Guarda Nacional."

"A cultura do cacau dominava todo o sul do Estado da Bahia, não havia lavoura mais lucrativa, as fortunas cresciam, crescia Ilhéus, a capital do cacau."


Trechos retirados da apresentação do romance.

2.Complicação

Nesta parte da trama, posterior a apresentação, temos novamente que dividi-la em dois campos: o social e político, e o amoroso. Neste momento da história é que surgem os conflitos das personagens. Conflitos entre as personagens e entre elas e o meio em que vivem..

No campo amoroso a complicação tem início a partir do momento em que Gabriela é admitida por Nacib como sua nova empregada. Quando depois eles acabam estabelecendo uma relação amorosa. Tem seu fim quando Nacib flagra Gabriela o traindo em sua cama na companhia de Tonico Bastos (é o Clímax).

"Voltou a examiná-la, era forte, por que não experimentá-la?

-- Sabe mesmo cozinhar?

-- O moço me leva e vai ver..."


Trecho em que Nacib analisa Gabriela para depois admiti-la como empregada.

"Gabriela não enxergava mais nada além do terno de reis, das pastoras com suas lanternas, Nilo com seu apito, Miquelina com o estandarte. Não via Nacib, não via Tonico, não via ninguém..."

Trecho em que Gabriela abandona sua vida "presa", e vai a festa de Reis.

No campo social e político a complicação tem seu início a partir do momento em que o progresso começa a modificar Ilhéus. Passam a existir certas discordâncias em relação a este progresso que chegava na cidade. O confronto de idéias dos progressistas e os conservadores. A construção de avenidas e o aprimoramento de rodovias caracterizam bem o progresso que chegava a Ilhéus. Buscava-se a exportação direta do cacau e o aumento da produção.

" Pois é: põem dificuldades a obras indispensáveis à cidade. Uma estupidez sem nome. Ramiro Bastos cruza os braços, não tem visão, os coronéis o acompanham"
Trecho da fala de Capitão (progressista) sobre a reprovação dos conservadores em relação a obras que seriam benéficas a cidade.

" Forasteiro !"

Maneira como o coronel Ramiro Bastos se referia a Mundinho Falcão, o símbolo do progresso.
a.. Um detalhe importante é que esses conflitos continuam até o fim do livro, não sendo interrompidos no clímax deste campo.

3.Clímax

O clímax é o momento marcante de qualquer livro, em "Gabriela Cravo e Canela" existem vários momentos marcantes, porém podemos estabelecer os dois principais em seus respectivos universos.

Clímax (amoroso)- O clímax deste campo ocorre, como dito anteriormente no momento em que Nacib flagra Gabriela o traindo em sua cama em companhia do sedutor Tonico Bastos.
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" Não me mate , Nacib! Só estava dando uns conselhos..."

Fala de Tonico Bastos ao ser descoberto por Nacib junto com Gabriela.

Clímax (social e político)- Neste campo o clímax ocorre quando Mundinho Falcão ganha a batalha política do coronel Ramiro Bastos, e acaba então se elegendo. Mostrando que a força do progresso só crescia.

4.Desfecho

A parte de conclusão dos acontecimentos da trama, que depende dos acontecimentos do clímax.

Desfecho (amoroso)- Apesar de ser traído, Nacib sente a falta de Gabriela, tanto no lado profissional (Gabriela enquanto cozinheira), quanto no lado sentimental, a falta de sua amada. Então Nacib acaba perdoando Gabriela, e eles passam a viver como antes do casamento.

"E aqui termina a história de Nacib e Gabriela quando renasce a chama do amor de uma brasa dormida nas cinzas do peito."

Esse trecho é retirado no final do livro, no seu desfecho.

Desfecho (social e político) - Com a vitória de Mundinho Falcão nas eleições o progresso chegou de vez à Ilhéus, sendo quebrado os tabus dos coronéis e iniciando-se novas obras em prol da cidade.

"Pela primeira vez , na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante."

Trecho extraído do final do romance mostrando a perda de poderes dos coronéis.

O Narrador, como ele vê e apresenta a cultura baiana Embora seja um romance regionalista da Segunda Fase Modernista (1930-45), "Gabriela Cravo e Canela" ainda conserva elementos da narrativa do séc. XIX. No livro podemos observar a grande ênfase que o autor dá ao local onde se passa a trama, podemos dizer que como no séc. XIX ocorre o realce da cor local. As personagens são nesta trama extremamente relacionados ao meio, ou seja, a influência do meio social, que é outra característica do Romantismo.

"... saiu de casa ainda quase noite, às quatro da manhã, e viu o céu despejado num azul fantasmagórico de aurora desabrochando, o sol a anunciar-se num clarão alegre sobre o mar..."

Trecho exaltando a beleza de um nascer do Sol em Ilhéus.

Comentários sobre o Narrador

A narração é feita de um ponto de vista externo. O narrador é onisciente ou seja tem conhecimento de tudo que se passa na trama e se encontra terceira pessoa, ele também não participa da história.

O fato da narração ser feita de um ponto de vista externo prejudica a riqueza das personagens já que elas se tornam mais estereotipadas não havendo aprofundamento psicológico da identidade destas.

Problemas sociais e psicológicos presentes na Narrativa

1. Os Coronéis X as Forças Progressistas


Este conflito ocorre em plano político. Os coronéis extremamente conservadores são contra o progresso que chegava em Ilhéus, pois temiam perder seus poderes locais.

Com o progresso aumentaria o comércio diminuindo assim a importância dos grandes latifundiários da região.

2. Exploração dos lavradores

O meio que os coronéis encontravam para manter suas riquezas era a super-exploração dos lavradores. Devido as terras se concentrarem nas mãos de poucos latifundiários ficando uma grande massa de trabalhadores passando fome e por não terem escolha aceitam as miseráveis condições impostas por estes.

3. As relações sociais

A mulher não possuía direitos como os do homem, suas opiniões não eram consideradas pela sociedade, possuía apenas o papel de cuidar dos afazeres domésticos e terem filhos. As vezes eram tratadas como objetos assim como a alguns trabalhadores braçais, verdadeiras mercadorias. Isso denomina-se reificação.

4. O adultério

O livro divulga bem esta questão. Nesta época o adultério era extremamente comum porém punido com severidade, era normal o homem traído matar a mulher e o amante para manter sua imagem limpa perante a sociedade, isto era chamado de defesa da honra. No caso da traição de Gabriela, ela acabou perdoada por Nacib destoando dos demais casos da época e acabando com este "tabu".

Fonte:
SOS Estudante

Nilton Manoel (Didática da Trova) Parte 10 – Entrevista com Luiz Otávio

ANEXOS

 1. Entrevista

Via Correios, entrevistamos Luiz Otávio, a 10 de junho de 1975, cujas perguntas obtiveram as seguintes respostas:

(P= pergunta, R= resposta)

P.: Luiz Otávio, qual a importância  principal do Movimento Trovadoresco na  literatura Brasileira?
R.: O principal valor, eu diria melhor, uma das características fundamentais do Movimento Trovadoresco é a sua espontaneidade.Nasceu, brotou espontaneamente como uma planta. A te mesmo os que o plantaram não se aperceberam bem, no momento, o que estavam fazendo, E,aí, este Movimento difere, essencialmente, de tantos outros movimentos, sub-movimentos e hipo-sub-movimentos que tem surgido e,  as vezes, morrem antes do nascedouro. Alguns pretensos “gênios” se reúnem ( não muitos), fazem manifestos, deitam plataformas, conseguem suplementos-literários, querem destruir tudo que encontram (é outro “cacoete” destes pseudos-gênios), e ... no fim, a  “coisa” dura muito pouco... Eles  mesmos não se entendem... Citar exemplos? São inúmeros. Mas não  há tempo, nem espaço. Já o nosso Movimento Trovadoresco  nasceu, aos poucos, sem saber que viria a ser um Movimento. Espontâneo, genuinamente brasileiro, popular, moderno (porque comunicativo, rápido e direto) e que, em poucos anos, cresceu muito e continua a crescer. Tudo isto, reunido e dito em poucas palavras demonstram a importância do Movimento Trovadoresco. Diria mais que ele, tal como aquele anúncio de óleo, excede  os limites da literatura brasileira. Tem sido também um movimento social e turístico. Para explicar tudo isto só mesmo um Ensaio ou uma crônica...

P.: O trabalho que a UBT vem realizando todos estes anos, sabemos que está marcando a história da literatura nacional do futuro; Perguntamos: por que os tratados literários atuais teimam em deixar de fora toda a grandiosidade deste trabalho?
R.: A pergunta é simples e boa, mas a resposta não é fácil e seria complexa. Respondo com perguntas: Quem sabe  se certos professores e críticos andam pouco afastados da realidade e não se aperceberam que há, em suas portas, um Movimento poético vivo,  palpitante,  popular:?  Quem sabe se eles têm certo receio ou  constrangimento para reconhecer e divulgar  esta verdade? Quem sabe se tem faltado a nós, os dirigentes ou mais antigos do Movimento, tempo, oportunidade, para ir às escolas, faculdades e suplementos e dizer,  bem alto: “Minha gente, há um movimento de Trovadores que poetas, povo, associações, comércio, indústria, já tomaram bastante conhecimento... Chegou a vez de vocês saberem que nós existimos. Mas, meu caro Nilton, já há uma reação. Já há professores que nos convidam a falar sobre trovas em seus colégios ou faculdades, outros que, em seus livros, já dedicam páginas aos trovadores e outros ainda, como um professor sacerdote, que nos últimos Jogos Florais de Friburgo, num belíssimo sermão, reclamava justamente isto que é o tema de sua pergunta: de algumas esferas literárias ou professores ainda ignorarem o valor da Trova e do Movimento Trovadoresco.

P.: Qual a preocupação do Movimento Trovadoresco, atualmente, em relação à classe estudantil universitária? O que os trovadores brasileiros tencionam fazer para demonstrar a originalidade do “Movimento” que é nacional e não importado como o Romantismo, Parnasianismo,Simbolismo, etc?
R.: A pergunta é comprida e profunda. Verei se resumo a resposta. Já temos procurado levar a Trova não só à esfera Universitária mas, também aos outros graus anteriores. Já fizemos palestras e concursos  nos meios ginasiais, colegiais e universitários, em muitas cidades que evitarei de citar os nomes para não omitir algumas. Quanto à preocupação de demonstrar isto ou aquilo, de atacar ( mesmo o que nos atacam), de mostrar as nossas qualidades ou virtudes, não tem havido. Nós temos vencido  porque realmente é bela  a nossa rosa e porque temos trabalhado muito, com amor e autenticidade, a fim de que ela sobreviva e se multiplique. Se outros cultivam ou camélias ou cravos de defunto ou couve-flor, não temos nada com isto... Podem até cultivar flores de papel, importadas... Que nos deixem em paz cultivando a nossa rosa...

P.: Na antiguidade os Jogos Florais foram lançados para propiciar o não desaparecimento da produção poética, no Brasil, segundo  o Sr. mesmo já escreveu, nossos concursos de Trovas e Jogos Florais apareceram com a finalidade preponderante de selecionar democraticamente as produções literárias brasileiras. Sendo experimentado, promovendo, participando, concorrendo, publicando tratados e livros com suas produções trovadorescas, por que ainda no Brasil têm-se um imenso déficit de publicações por editoras de nomeadas?
R.: Há anos notei e escrevi a seguinte curiosidade ou paradoxo: Na Idade Média, quando caiu a Poesia Trovadoresca, tiveram a idéia dos Jogos Florais, em Toulouse, em 1.322, para  revitalizá-la. No Brasil, só  após a Poesia dos Trovadores ter alcançado certo nível ou progresso é que senti condições propícias para lançar em 1960 os Primeiros Jogos Florais de Nova Friburgo. Sim, na verdade tenho afirmado que estes concursos foram um meio útil e democrático para lançar grandes trovadores no Brasil. Quanto aos livros, acho que tem havido muitas publicações. Se o interesse das editoras é pequeno, tem acontecido o mesmo com outros gêneros mais vendáveis como o romance e o conto.

P.: Quantos anos temos de Movimento Trovadoresco? Ou  o que melhor propiciou a corrente literária trovadoresca?
R.:Quanto à primeira parte, se aceitarmos como um marco  de nosso Movimento, como li na apresentação desta entrevista, a publicação do livro “Meus Irmãos, os Trovadores”,temos, então, que, no ano próximo completaremos 20 anos de Movimento. É claro que, antes disto, já eram feitas trovas e alguns livros eram publicados. Mas, trata-se  aqui de marcar um ponto de partida para algo que significasse aglutinação, propaganda maior, estudo mais profundo,etc. Embora sendo o autor do livro e não o autor da proposta de transforma-lo como um marco, acho  -  modéstia à parte  -  perfeitamente válida a idéia.

Quanto ao que melhor propiciou  esta corrente, além do que já ficou dito, de autenticidade, popularidade, atualidade, etc., e das finalidades culturais, sociais e turísticas, queria ainda apontar algo que considero de muita importância e que resumo: depois do Movimento Modernista, passado o fogo inicial, parecia  que a poesia tinha morrido. Tornara-se tão difícil, tão hermética, que apenas alguns iniciados ou alguns pretensos entendidos, apreciavam e entendiam esta Poesia. Depois vieram grupos e subgrupos. Cada  vez mais discussões,cada vez mais originalidade e menos entendimento. O público ia cada vez ficando desconfiado e retraído... Se, em todas as antigas Escolas – dos Clássicos, Românticos, Parnasianos, Simbolistas, houve sempre grandes intérpretes do sentimento popular, - do Povo das várias camadas sociais – com o Movimento Modernista tudo mudou. Somente as elites intelectualizadas, ou as pseudo-elites, compreendiam aquelas mensagens poéticas herméticas e muitas vezes sem melodia, sem ritmo e sem sentido... Vieram os trovadores e, modesta mas autenticamente, deram aquele grito da fábula: “O Rei está nu!” Apenas, ao invés  de dar este grito diretamente e de entrar em debate, começaram a fazer trovas, aperfeiçoar esta singela forma da poesia popular, a realizar concursos e festas, a fundar associações, a pronunciar palestras, a escrever artigos e livros, enfim, a Trova veio mostrar, com êxito, que a Poesia não morrera, veio restabelecer aquele elo destruído entre o Povo e o Poeta.

P.: O título de “Magnífico Trovador” com o qual o Sr. foi agraciado após tantos anos de idealismo, de dedicação, contribuindo para a integração nacional através da poesia, sabemos que é internacional através de convênio com entidades culturais de Portugal; fale-nos sobre isto.
R.: Acredito que haja uma pequena confusão do caro repórter. O título com o qual fui agraciado devido ao meu trabalho em Prol da Trova e dos Trovadores foi o de  “ Príncipe dos Trovadores Brasileiros”  - por um Congresso Nacional de Trovadores, em 1.960, em São Paulo. O outro – o de” Magnífico”  dos Jogos Florais de Nova Friburgo (RJ) é um título muito honroso e difícil. Outros dez trovadores o obtiveram nestes 15 anos. Não tem nada com o trabalho pela Trova ou pela classe. Está relacionado a uma vitória, três anos consecutivos, entre os dez primeiros lugares, nos Jogos Florais. Mas repito: é um título muito honroso e difícil. Os dez que o obtiveram – e por ética permita tirar o meu nome – demonstraram talento,inspiração, fibra e, também, um pouco de sorte. Constituem uma verdadeira  seleção de trovadores, vitoriosos em várias cidades do Brasil. Para atingir este título não adiantam posição social, financeira, tentativa de protecionismo ou de corrupção. Nem simpatias ou troca de gentilezas como acontece na eleição de muitas academias... Com os “Magníficos” entraram em julgamento apenas as trovas, escondidas num pseudônimo. E chegaram quatro mil ou cinco mil ou mais trovas! E é preciso repetir  a vitória três anos consecutivos!

A presente entrevista, datada de 10/6/1975,Santos (SP) tem a assinatura de Luiz Otávio.

Continua…

Fonte:
Nilton Manoel. A Didática da Trova. Batatais, 2008.

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (S. Tomé e Príncipe – 2. Narrativa, 3. A Expressão em Crioulo)

2.    NARRATIVA

Modestíssima, quantitativa e qualitativamente, é a narrativa de S. Tomé e Príncipe. As esporádicas experiências de Viana de Almeida (Maiá Pòçon, contos, 1937) e de Mário Domingues. (O menino entre gigantes, 1960) não chegam a ser uma contribuição relevante. O primeiro, nesse tempo, prejudicado ainda por um ponto de vista subsidiário de uma época colonial; o segundo (também natural de S. Tomé e Príncipe, mas tornado escritor português pela obra e pela radicação) talvez pela carência da dramatização da personagem principal, o mulato Zezinho, nado e criado em Lisboa. De acaso teria sido o conto «Os sapatos da irmã», sem qualquer relação com S. Tomé, que Francisco José Tenreiro, em 1962, publicou na colectânea Modernos Autores Portugueses (Lisboa). Acidentais ainda, mas já com uma visão ajustada a um real africano, foram também as experiências de Alves Preto, limitada, cremos, a dois contos: «Um homem igual a tantos» e «Aconteceu no morro» [118]. E ainda o caso de Sum Marky (i. e. José Ferreira Marques), branco nascido em S. Tomé, autor de vários romances, de importância discutível, alguns no entanto parcialmente com interesse, valendo citar Vila Flogá, 1963, como testemunho acusatório da exploração colonialista.

3.      A EXPRESSÃO EM CRIOULO

Não obstante ser bilingue, visto que a população utiliza, além da língua portuguesa, o crioulo de S. Tomé, a criação literária é reduzida em dialecto, domínio que a tradição oral vem monopolizando com substancial interesse. Praticamente conheciam-se as composições poéticas de Francisco Stockler e uma experiência de Tomaz Medeiros. No entanto, após a independência nacional, parece haver sintomas de uma revitalização no uso literário do crioulo, ao nível popular, pelo menos a partir de agrupamentos musicais. Exemplo são os casos dos caderninhos de Sangazuza e o caderno do Agrupamento da Ilha, 1976, compostos de músicas revolucionárias e, de um modo geral, vertidos em nimbas, sambas, marchas, valsas, boleros e sòcòpés.
––––––––-
Nota
[118] Alves Preto, «Um homem igual a tantos» in Mensagem. Lisboa, Casa dos Estudantes de Lisboa, ano II, n.° 2, fevereiro de 1959, pp. 21-23. «Aconteceu no morro», idem, ano II, n.°s 5-6,1960, pp. 2-6.


Continua…Guiné-Bissau

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

Carol Ryrie Brink (Belita)

 O inverno estava começando quando Rogério Moura chegou a Campo Florido, no Rio Grande do Sul, com um rebanho de cerca de mil carneiros. Pretendia ir mais para o oeste, onde os campos abertos eram ótimos pastos; mas, naquela época, as estradas não eram boas e, por esse motivo, o inverno o alcançou em meio da viagem. Naquela manhã havia chovido muito, por isso o dia se tinha conservado sombrio. Mesmo assim, quando chegou, restava ainda um pouco de claridade vinda da luz solar que, rasgando as densas nuvens, dourava levemente a triste paisagem; mas a noite não tardaria a chegar. Era preciso, portanto, arranjar urgentemente um abrigo.

Celina Vieira e o irmão mais novo, Augusto, estavam empoleirados na cerca que demarcava a fazenda de seus pais apreciando o entardecer, enquanto esperavam a ceia. Ronaldo, irmão mais velho de Celina, estava de pé, com os cotovelos apoiados na cerca e junto dele, sentado, o cãozinho Piloto.

- Céu vermelho à tarde, sol de manhã - disse Ronaldo, abanando a cabeça como um previsor do tempo.

- A tarde esta linda - disse Augusto - mas esta noite será muito fria. Preferia morrer a ter de passar a noite ao relento.

- Ouçam! – disse Celina, levantando o dedo. – Que barulho esquisito lá no morro! Vocês não ouviram?

- Parece de badalos, disse Augusto. Não nos faltou nenhuma vaca esta tarde, faltou?

- Não - respondeu Ronaldo. - E... nossos badalos não soam assim. Além disso, Piloto não deixaria que nenhuma vaca se extraviasse, mesmo que nós deixássemos.

Piloto geralmente abanava a cauda quando seu nome era mencionado; mas desta vez não se mexeu. Com as orelhas de pé, estava preocupado pelo estranho ruído.

- São carneiros! - disse Celina, depois de algum tempo. - Ouçam o balido! Mé... mé... mé...! Se não for um rebanho, comerei meu chapéu novo.

- Aquele que tem uma pena? - perguntou Augusto, incredulamente.

- Devem ser carneiros! - concluiu Ronaldo.

Instantes depois surgiram na estrada, como uma enchente, os mil carneiros de Rogério Moura. À frente vinha um casal de cães irlandeses, felpudos que, latindo, procuravam conservar o rebanho reunido. Era um espetáculo desolador! Mil carneiros magros, cansados e tristonhos, baliam incessantemente, num protesto contra a longa viagem. O condutor do rebanho cavalgava atrás, em um cavalo coxo, que não estava em melhores condições. O pastor era alto, de rosto magro e queimado pelo sol; os olhos eram azuis e brilhavam de maneira estranha nas órbitas fundas. Parecia exausto e esfomeado.

- Quer dizer a seu pai que preciso falar-lhe... - pediu a uma das crianças, assim que as viu.

Ronaldo deu um gritinho alegre e saiu à procura do pai. Em pouco tempo todas as pessoas da casa vieram contemplar o curioso espetáculo. Ali no vale criavam-se vacas, cavalos e bois; mas, nenhum dos fazendeiros tinha ainda experimentado a criação de carneiros.

Celina e Augusto ficaram de pé em cima da cerca, fazendo perigosas acrobacias para contar os carneiros

Piloto corria em redor dos cães, sem saber se os devia tratar como amigos, pois estava profundamente impressionado com o balido dos carneiros.

De repente, Celina deu um pulo no meio da carneirada.

- Veja, senhor! Aconteceu alguma coisa a esta ovelha.

Realmente, uma ovelha havia caído e parecia estar morrendo. O Sr. Moura e o pai das crianças conversavam animadamente e por isso não lhe deram atenção.

- Celina! Ronaldo! Augusto! - chamou o pai. Venham ajudar o Sr. Moura a encontrar esta noite um abrigo para os carneiros. Corram às fazendas vizinhas e perguntem aos amigos se podem desocupar parte do celeiro e do curral para colocar estes animais. Perguntem, também, se querem vir ajudar nesse serviço.

As três crianças partiram imediatamente em direções diferentes.

Embora Rogério Moura fosse completamente estranho naquele lugar, todos os homens das fazendas vizinhas, em pouco tempo reuniram-se e vieram em seu auxilio, salvar o rebanho fatigado da inclemência do tempo. Em meio de gritos, latidos e balidos, foram divididos os carneiros em pequenos grupos e levados para as diferentes fazendas, onde os abrigaram até mesmo junto aos montes de feno e embaixo de telheiros improvisados.

Quando o último carneiro estava sendo levado, Celina lembrou-se da ovelha doente, e então correu para ver o que lhe teria acontecido. Ela ainda estava estendida no mesmo lugar, os olhos meio fechados e a respiração tão fraca que parecia próxima a sua morte.

- Oh, veja, Sr. Rogério! - gritou Celina. O Sr. precisa atendê-la ou ela morrerá.

- Hum! - disse o pastor. - Não posso perder tempo com uma ovelha quase morta, quando tenho centenas vivas, enregeladas, precisando de auxilio imediato.

- Se o senhor não tem tempo, eu tenho - ofereceu-se voluntariamente Celina.

- Muito bem - disse o Sr. Rogério. - Ela será sua, menina, se salvá-la.

- Realmente? - gritou Celina. - Está feito!

Em pouco tempo, a menina recrutou os serviços de Ronaldo e Augusto. Juntos transportaram cambaleando, a ovelha doente para dentro do cercado. O pai das crianças observava aquela cena assombrado.

- Que é que vocês vão fazer com esta ovelha? - perguntou-lhes.

- Nada, ela está morrendo; mas Celina pensa que pode salvá-la.

- Oh, papai - gritou Celina. – Posso colocá-la no celeiro e lhe dar alguma coisa para comer? É disso que ela está precisando.

O pai sorriu e balançando a cabeça deu o seu consentimento.

- Irei vê-la, mais tarde – disse-lhe.

Só muito mais tarde, foi que o pai das crianças teve tempo para visitar a ovelha doente. Encontrou Celina sentada, ao lado de um candeeiro, contemplando a ovelha. Nunca o Sr. Vieira vira a filha tão triste!

- Papai, - disse a menina - estou certa de que ela está com fome, mas não consigo que coma. Não sei mais o que fazer.

O Sr. Vieira ajoelhou-se ao lado do animal; apalpou-lhe o corpo para ver se encontrava algum ferimento. Depois abriu-lhe a boca, correndo os dedos delicadamente nas suas gengivas.

- Bem, Celina, acho que você terá de fazer uma dentadura postiça para ela.

- Dentadura postiça! - exclamou Celina. E, passando os dedos nas gengivas do animal, disse: - Ela não tem nenhum dente! Não era de admirar que não pudesse mastigar o feno! Que resta fazer agora?

O Sr. Vieira olhou para o rosto aflito da filha, pensou durante alguns segundos e disse:

- Bem, vai ser uma trabalheira; não sei se você quer encarregar-se disso.

- Quero, sim, disse Celina. Diga-me o que devo fazer.

- Mamãe recebeu uma grande remessa de batatas. Peça-lhe para cozinhar algumas, mas não as deixe ficarem cozidas demais, misture-as com farelo, leite e faça um pirão. Você verá como este pobre animal o comerá facilmente. Isto deve ser feito todos os dias; acho, porém, que você se cansará depressa deste trabalho.

- Não me cansarei, papai. É preciso que alguém o faça; não podemos deixá-la morrer de fome.

Naquela tarde, o Sr. Rogério ficou com para cear com a família Vieira. Papai e Mamãe sentaram-se nas cabeceiras da mesa e, em volta, os seis filhos e mais o Sr. Rogério, Roberto Gonçalves, o capataz, e Catarina Machado, a governanta. Havia, portanto, um auditório apreciável; por isso, o Sr. Rogério começou a contar prazenteiramente a história de sua longa viagem. Contou como vagabundos e as onças lhe tinham roubado alguns carneiros; pormenorizou como um pastor que vinha em sua companhia apanhara uma febre e morrera no caminho, sendo enterrado próximo a um povoado, e explicou como tinha atravessado rios e escapado de um furacão.

Guando terminou a ceia, o pastor colocou Teodora e Rosinha nos joelhos e lhes falou sobre os mais estranhos casos que encontrara pelos caminhos. Abriu depois uma sacola que trazia por baixo do blusão de couro e lhes mostrou um verdadeiro tesouro. Nesse momento todos o rodearam. Mostrou, então, um trevo de quatro folhas amarelado pelo tempo.

Enquanto o desconhecido narrava sua história, Celina pensava na ovelha doente, e uma idéia acalentava-lhe o íntimo: "Ela comeu o pirão de batata. Logo, se eu lhe prestar toda a assistência de que necessita, por certo viverá e isto será devido à minha dedicação. Gosto mais dela do que de todos os outros animais de estimação, exceto, naturalmente, Piloto".

No dia seguinte Rogério foi ao centro da "vila" vender os carneiros. Era preciso desfazer-se deles o mais rápido possível. Como já sabemos, o inverno começara de repente e, embora estivesse viajando havia muito tempo, encontrava-se ainda longe dos pastos para onde se dirigia. Campo Florido era apenas um lugarejo e ele só pôde vender parte de seu enorme rebanho. Por isso, fez um acordo com o Sr. Vieira e com os outros fazendeiros: eles poderiam guardar tantos carneiros quantos pudessem alimentar e abrigar. Em troca, ele queria na primavera a metade da lã que os carneiros produzissem.

- E da minha ovelha? - perguntou-lhe Celina.

O Sr. Rogério riu e respondeu:

- Não quero nada, mocinha. Você ganhou a ovelha por direito e tudo que a ela pertencer.

A ovelha já ficava de pé; balia e cheirava as mãos de Celina sempre que a menina dela se aproximava.

Aquele inverno foi trabalhoso para Celina. Todos os dia pela manhã, antes de ir à escola e, à tarde, quando voltava, preparava o pirão de batata com farelo e leite para Belita.

- Qualquer dia, você desistirá, disse Ronaldo.

- Belita! - zombou Augusto. - Isto não é nome próprio para uma ovelha. Você devia chamá-la de Biti.

- Nada disso - retrucou Celina, com firmeza. - Belita é o nome da ovelha de Celina Vieira e vocês verão que não desistirei de preparar sua comida.

Quando os dias começaram a se alongar e a ficar mais quentes, Celina passou a levar Belita para pastar com os outros carneiros. No começo ela amarrava-lhe uma fita vermelha no pescoço porque todos os carneiros se parecem e Celina não queria trocar sua ovelha. Na realidade tal precaução era desnecessária, porque assim que aparecia com o prato de pirão, Belita abandonava os outros carneiros e tirava uma linha reta de onde estava para alcançar Celina mais depressa. À noite voltava para o celeiro e esperava que a menina a deixasse entrar.

Numa manhã de outubro, como de costume, Celina levantou-se cedo para dar de comer a Belita. Quando se aproximava do celeiro, viu que Roberto saía e, minutos depois, defrontou-se com ele. Celina havia posto o xale de sua mãe por cima do avental e trazia nas mãos o prato com o pirão de batata ainda quente, próprio para aquela manhã fria de primavera.

Pela primeira vez Celina viu que Roberto não cantava nem assobiava; reparando bem, Celina notou na fisionomia do honesto capataz uma mistura de tristeza e contentamento que a menina não pôde compreender.

- Aconteceu alguma coisa a Belita? - perguntou-lhe.

- Sim mas, por Deus, não maldiga o sucedido – respondeu Roberto seriamente.

O coração de Celina quase parou. Algo terrível tinha acontecido à querida Belita! Correu imediatamente para o celeiro.

- Não adianta se afligir agora, queridinha - disse Roberto quando alcançou a menina. Você fez por ela mais do que qualquer outro ter feito.

As palavras de Roberto nada significaram naquele momento para Celina, porque aquele frágil fio de vida que a menina tinha conseguido conservar durante todo o inverno, acabava de ser arrebentado. Belita estava morta!

Celina jogou fora o pirão que trazia e ajoelhou-se diante da ovelha. Não podia falar nem fazer outra coisa qualquer, mas as lágrimas que corriam  queimavam-lhe as faces e salgavam-lhe os lábios. O coração de Celina estava prestes a sucumbir diante de tanta tristeza!

- Hurra! Hurra! Hurra! - gritou Roberto inclinando-se e olhando aquela cena com simpatia. - Nem tudo está tão mal. Por que não procura ver se a morte de Belita não lhe trouxe algum conforto?

Celina sacudiu a cabeça, apertando os olhos para conter as lágrimas que corriam abundantemente.

- Veja! - insistiu ele.

Roberto aproximou-se e colocou uma coisa macia e quente nas mãos da menina. No mesmo instante, uma vozinha fraca baliu:

- é... é...!

- Veja! - disse Roberto, - a mãe dela está morta mas ela escolheu você para substituí-la! E sabe por que o fez.

Celina abriu os olhos e as lágrimas pararam de correr porque Roberto havia colocado em seus braços um ser tão pequenino, tão adorável, que fez desaparecer sua tristeza como por encanto.

- É uma ovelhinha! - disse Celina para si mesmo, e depois para Roberto: - É filha de Belita, não é?

- É - respondeu Roberto. - E continuou: - Belita estava cansada para poder criá-la. "É melhor eu dormir e deixar Celina cuidando dela”, pensou com certeza Belita. "porque Celina é uma mãezinha extraordinária”.  

Celina enrolou o xale na ovelhinha e embalou nos seus braços aquele pequeno e friorento ser.

- Pirão de batata não serve - disse ela para si mesma. - Leite morno é do que ela precisa e talvez mamãe me possa dar uma mamadeira do Zequinha para eu poder alimentá-la melhor.

A ovelhinha encontrou nos braços de Celina o agasalho e a proteção de que necessitava e, como num agradecimento, baliu mais uma vez:

- Mé!... Mé!...

 Fonte:
O Mundo da Criança - "Magical Melons".

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Florbela Espanca (Cavalgada de Poemas) v.1

CHARNECA EM FLOR

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

VERSOS DE ORGULHO

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém!

Porque o meu Reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos céus,
E os oiros e os clarões são todos meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços:
Via Láctea fechando o Infinito!...

REALIDADE

Em ti o meu olhar fez-se alvorada,
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho.

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada,
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho.

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo,
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei, se te perdi...

A UM MORIBUNDO

Não tenhas medo, não! Tranquilamente,
Como adormece a noite pelo Outono,
Fecha os teus olhos, simples, docemente,
Como, à tarde, uma pomba que tem sono...

A cabeça reclina levemente
E os braços deixa-os ir ao abandono,
Como tombam, arfando, ao sol poente,
As asas de uma pomba que tem sono...

O que há depois? Depois?... O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

Que importa? Que te importa, ó moribundo?
- Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!...

PASSEIO AO CAMPO

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo! –

Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...

E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!...

TARDE NO MAR
A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...

SE TU VIESSES VER-ME...
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

MISTÉRIO

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...

Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!

O MEU CONDÃO
Quis Deus dar-me o condão de ser sensível
Como o diamante à luz que o alumia,
Dar-me uma alma fantástica, impossível:
- Um bailado de cor e fantasia!

Quis Deus fazer de ti a ambrosia
Desta paixão estranha, ardente, incrível!
Erguer em mim o facho inextinguível,
Como um cinzel vincando uma agonia!

Quis Deus fazer-me tua... para nada!
- Vãos, os meus braços de crucificada,
Inúteis, esses beijos que te dei!

Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...
Se a um gesto dos teus a sombra esconde
O caminho de estrelas que tracei...

AS MINHAS MÃOS

As minhas mãos magritas, afiladas,
Tão brancas como a água da nascente,
Lembram pálidas rosas entornadas
Dum regaço de Infanta do Oriente.

Mãos de ninfa, de fada, de vidente,
Pobrezinhas em sedas enroladas,
Virgens mortas em luz amortalhadas
Pelas próprias mãos de oiro do sol-poente.

Magras e brancas... Foram assim feitas...
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...
Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!

Pra que as quero eu - Deus! - Pra que as quero eu?!
Ó minhas mãos, aonde está o céu?
...Aonde estão as linhas do teu rosto?

NOITINHA

A noite sobre nós se debruçou...
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou...

Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora.
A noite, os olhos brandos, lhes fechou...

Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...

Tranquilidade... calma... anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...

LEMBRANÇA
Fui Essa que nas ruas esmolou
E fui a que habitou Paços Reais;
No mármore de curvas ogivais
Fui Essa que as mãos pálidas poisou...

Tanto poeta em versos me cantou!
Fiei o linho à porta dos casais...
Fui descobrir a Índia e nunca mais
Voltei! Fui essa nau que não voltou...

Tenho o perfil moreno, lusitano,
E os olhos verdes, cor do verde Oceano,
Sereia que nasceu de navegantes...

Tudo em cinzentas brumas se dilui...
Ah, quem me dera ser Essas que eu fui,
As que me lembro de ter sido... dantes!...

A NOSSA CASA
A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...

Fonte:
Florbela Espanca. Charneca em Flor.

Renato Antunes Oliveira (Cenoura, Ovo ou Café?)

Uma filha se queixou a seu pai sobre sua vida e de como as coisas estavam tão difíceis para ela. Ela já não sabia mais o que fazer e queria desistir. Estava cansada de lutar e combater. Parecia que assim que um problema estava resolvido um outro surgia.

Seu pai, um "chef", levou-a até a cozinha. Encheu três panelas com água e colocou cada uma delas em fogo alto.

Logo as panelas começaram a ferver.

Em uma ele colocou cenouras, em outra colocou ovos e, na última pó de café.

Deixou que tudo fervesse, sem dizer uma palavra.

A filha deu um suspiro e esperou impacientemente, imaginando o que ele estaria fazendo.

Cerca de vinte minutos depois, ele apagou as bocas de gás. Pescou as cenouras e as colocou em uma tigela. Retirou os ovos e os colocou em uma tigela. Então pegou o café com uma concha e o colocou igualmente em uma tigela.

Virando-se para ela, perguntou "Querida, o que você está vendo?" "Cenouras, ovos e café," ela respondeu.

Ele a trouxe para mais perto e pediu-lhe para experimentar as cenouras. Ela obedeceu e notou que as cenouras estavam macias.

Ele, então, pediu-lhe que pegasse um ovo e o quebrasse. Ela obedeceu e depois de retirar a casca verificou que o ovo endurecera com a fervura.

Finalmente, ele lhe pediu que tomasse um gole do café.

Ela sorriu ao provar seu aroma delicioso.

Ela perguntou humildemente: "O que isto significa, pai?"

Ele explicou que cada um deles havia enfrentado a mesma adversidade, água fervendo, mas que cada um reagira de maneira diferente.

A cenoura entrara forte, firme e inflexível. Mas depois de ter sido submetida à água fervendo, ela amolecera e se tornara frágil.

Os ovos eram frágeis. Sua casca fina havia protegido o líquido interior. Mas depois de terem sido colocados na água fervendo, seu interior se tornou mais rígido.

O pó de café, contudo, era incomparável. Depois que fora colocado na água fervente, ele havia mudado a água. "Qual deles é você?" ele perguntou a sua filha. - "Quando a adversidade bate a sua porta, como você responde? Você é uma cenoura, um ovo ou pó de café?"

E você?

Você é como a cenoura que parece forte, mas com a dor e a adversidade você murcha e se torna frágil e perde sua força?

Será que você é como o ovo, que começa com um coração maleável? Você teria um espírito maleável, mas depois de alguma morte, uma falência, um divórcio ou uma demissão, você se tornou mais difícil e duro? Sua casca parece a mesma, mas você está mais amargo e obstinado, com o coração e o espírito inflexíveis?

Ou será que você é como o pó de café? Ele muda a água fervente, a coisa que está trazendo a dor, para conseguir o máximo de seu sabor, a cem graus centígrados. Quanto mais quente estiver a água, mais gostoso se torna o café. Se você é como o pó de café, quando as coisas se tornam piores, você se torna melhor e faz com que as coisas em torno de você também se tornem melhores.

Como você lida com a adversidade?

Você é uma cenoura, um ovo ou café?

Fonte:
http://www.contandohistorias.com.br/historias/2004452.php