quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Arthur de Azevedo (O 15 e o 17)


(IMPRESSÃO DA LEITURA DE UM CONTO FRANCÊS)

- Com efeito, Francelina! Que tempo levaste para ires ali à venda! Querias lá ficar?.

- Não, senhora; é porque estas casas novas parecem-se todas umas com as outras, e por isso, em vez de entrar no 15, entrei no 17. Varei por ali adentro até a cozinha!

- Que estás dizendo?

- A verdade, patroa. De agora em diante não entro em casa sem olhar para o número da porta!

- Depois te habituarás. Isso aconteceu porque estás na casa há oito dias apenas. Bom. Compraste o que tinhas de comprar?

- Sim, senhora.

- Não falta mais nada?

- Não, senhora.

- Então, até logo. Fecha a porta da rua e trata de preparar o jantar. As cinco horas estarei de volta.

E D. Isabel, que já estava pronta para sair, passou para o corredor, desceu a escada e desapareceu.

A Francelina fechou a porta da rua, conforme a patroa lhe recomendara, e foi para a cozinha.

Não havia passado meia hora, quando a mulata (a Francelina era mulata) ouviu bater levemente à porta da rua. Correu à janela da sala de visitas para ver quem era, e deu com uma senhora idosa, bastante idosa, pequenina, curvada, esperando que lhe abrissem a porta.

A criada não a conhecia, mas pensou consigo que não haveria inconveniente em abrir a porta a uma velha, e por isso fez-a entrar.

- Ora, graças! Julguei que me deixassem ao sol durante uma hora! Dá cá a mão, rapariga! Ajuda-me a subir a escada! Bem sabes que já não tenho olhos!

- Que deseja a senhora? - perguntou Francelina quando chegaram à sala de visitas.

- Escusas de falar baixo! Bem sabes que já não tenho também ouvidos! Nem olhos, nem ouvidos, nem pernas! E por isso leva-me à cadeira de balanço. Onde está ela?... Já mudou de lugar! Que mania a de minha sobrinha! Está sempre com os móveis daqui para ali.

A Francelina levou a velhota para a cadeira de balanço, onde a instalou comodamente.

- Ora, espera! Parece-me que eu não a conheço! Você é nova na casa?

- Sim, senhora! Estou aqui há oito dias.

- Grite!

- Estou aqui há oito dias.

- Grite mais alto!

- Estou aqui há oito dias,

- Há oito dias? Então não me conhece, porque há um mês que eu cá não venho. Sou tia da sua patroa. Onde está ela?

- Saiu.

- Hem?

- Saiu.

- Mais alto!

- Saiu.

- Saiu? Também aquilo não faz senão saracotear! Então agora que veio morar na cidade! Olha, ó... como te chamas?

- Francelina.

- Hem?

- Francelina.

- Olha, Marcelina, vai buscar uma xícara de café bem quente, com uma gotinha de conhaque, mas antes disso descalça-me estas botinas, e traz-me os chinelos da sua patroa, e também um dos travesseiros da cama. Enquanto ela não vem, vou passar pelo sono.

A Francelina fez tudo quanto ordenou a velha, e deixou-a adormecida na sala, com os pés e a cabeça metidos nos chinelos e no travesseiro de D. Isabel.

Quando esta chegou da rua, às cinco horas da tarde, a criada disse-lhe:

A tia da patroa está dormindo lá na sala. A minha tia? Mas eu não tenho tia!

- Como não tem tia?

E a Francelina contou-lhe tudo quanto se passara.

- Ora essa! - exclamou D. Isabel, e correu para a sala, acompanhada pela criada.

A velha dormia profundamente.

- Mas eu não conheço, não sei quem é esta senhora! Que quer isto dizer?... Que mistério será este?... Vou acordá-la.

E D. Isabel começou a sacudir a velha, que não acordava.

A Francelina teve uma frase estúpida:

- Sacuda com força, patroa, porque ela é surda!

D. Isabel sacudiu com mais força, e nada!.

- Meu Deus! Esta rigidez!... Esta rigidez!...

E a dona da casa soltou um grito estridente.

- Que é, patroa?

- Esta velha está morta!

- Morta?!

Efetivamente, a pobre velhinha, durante o sono, sem se sentir, passara desta para melhor.

Imagine-se a aflição das duas mulheres diante daquele cadáver misterioso; mas D. Isabel, que era inteligente, pensou:

- Quem sabe se a velha não entrou no 15 pensando que era o 17?

E pelo muro do terraço chamou a vizinha:

- Ó vizinha? Vizinha?...

- Que é?

- A senhora não tem uma tia velha, surda e catacega*?

- Tenho, sim, senhora.

D. Isabel respirou.

- Pois mande buscá-la, porque ela está na minha casa. Entrou aqui por engano.

- Ela que venha; não é preciso mandar buscá-la.

- Isso é, porque está... doente... Adoeceu aqui...

Meia hora depois a pobre velha era removida.... para o Necrotério.
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Glossário:
Catacega - Diz-se de pessoa com dificuldades para ver nitidamente, que tem problemas de vista.
 
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 12


JÁ NEM SEI…
Glosando Benedito Camargo Madeira

MOTE:
Viver assim… te adorando..
já nem sei o que fazer…
- Se é melhor viver te amando;
ou te deixar e… sofrer!


GLOSA:
Viver assim… te adorando..
é sempre tudo que eu quis,
é gostoso estar gostando,
pois te amando, sou feliz!

Mas quando aperta a saudade,
já nem sei o que fazer...
se sou feliz de verdade,
ou se te amar, faz sofrer!

Fico, então, me questionando,
responde, meu coração:
- Se é melhor viver te amando,
ou viver sem emoção?

Não sei se sigo a sonhar,
não sei que devo fazer,
se continuar a te amar,
ou te deixar e… sofrer!
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VERSOS DE AMOR
Glosando Cidoca da Silva Velho

MOTE:

Quando de mim te aproximas
com semblante sonhador,
minha alma flutua em rimas,
compondo versos de amor!


GLOSA:
Quando de mim te aproximas,
dispara o meu coração
e, vejo em tudo, obras primas
no meu mundo de emoção!

É lindo quando apareces
com semblante sonhador,
teus olhos me lembram preces,
preces de sonho e de cor!

Com teu jeitinho, me mimas,
trazes contigo a alegria!
Minha alma flutua em rimas,
num mar de pura poesia!

Tornas feliz meu viver,
por não conhecer a dor,
eu passo a vida a escrever,
compondo versos de amor!
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ENCONTRO
Glosando Clênio Borges

MOTE:

Num encontro repentino,
sem promessa, nem espera,
tu foste o meu desatino
e nosso amor foi quimera…


GLOSA:
Num encontro repentino,
nós ficamos frente à frente;
nem sei bem como defino
esse encontro diferente!

Foi um encontro bonito,
sem promessa, nem espera,
em momentos de infinito
que lembrar, sempre, eu quisera.

Ouvi sons de violino,
enlouqueci de paixão,
tu foste o meu desatino
e a minha desilusão!

Foi assim o nosso amor;
que fosse real ,quem dera,
sobrou ilusão e dor,
e nosso amor foi quimera...
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UM AMIGO
Glosando Clenir Neves Ribeiro

MOTE:

Amigo é o que na verdade
vendo fraco o seu irmão,
mostra a força da amizade,
e firme lhe estende a mão!


GLOSA:
Amigo é o que na verdade
fica sempre junto a nós
pois nossa emoção, invade!
E nunca nos deixa a sós!

Um amigo verdadeiro,
vendo fraco o seu irmão,
com um amor feiticeiro
faz feliz seu coração!

Com enorme lealdade,
ajuda, consola e anima,
mostra a força da amizade,
com sua força de estima!

Para amigo, não há hora,
em qualquer situação,
manda os problemas embora,
e firme lhe estende a mão!
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NOSSOS ERROS
Glosando Clevane Pessoa

MOTE:

Nossos erros nos apontam
novas trilhas nos caminhos
e os acertos só despontam
se afastarmos os espinhos.


GLOSA:
Nossos erros nos apontam
a direção a tomar,
e muitas vezes, nos contam
o porquê do nosso errar!

Nós devemos descobrir
novas trilhas nos caminhos
para poder ir e vir,
evitando os descaminhos!

Quebra-cabeças se montam,
desafiando a razão
e os acertos só despontam
se ouvirmos o coração!

Seremos muito felizes,
não ficaremos sozinhos,
veremos novos matizes,
se afastarmos os espinhos.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2007.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Tupinambá: Maire-Monan e os Três Dilúvios)


Os tupinambás creem que houve, nos primórdios do tempo, um ser chamado Monan. Segundo alguns etnógrafos, ele podia não ser exatamente um deus, mas aquilo que se convencionou chamar de um “herói civilizador”.

Deus ou não, o fato é que Monan criou os céus e a Terra, e também os animais. Ele viveu entre os homens, num clima de cordialidade e harmonia, até o dia em que eles deixaram de ser justos e bons. Então, Monan investiu-se de um furor divino e mandou um dilúvio de fogo sobre a Terra.

Até ali a Terra tinha sido um lugar plano. Depois do fogo, a superfície do planeta tornou-se enrugada como um papel queimado, cheia de saliências e sulcos que os homens, mais adiante, chamariam de montanhas e abismos.

Desse apocalipse indígena sobreviveu um único homem, Irin-magé, que foi morar no céu. Ali, em vez de conformar-se com o papel de favorito dos céus, ele preferiu converter-se em defensor obstinado da humanidade, conseguindo, após muitas súplicas, amolecer o coração de Monan.

Segundo Irin-magé, a terra não poderia ficar do jeito que estava, arrasada e sem habitantes.

– Está bem, repovoarei aquele lugar amaldiçoado! – disse Monan, afinal.

A história, como vemos, é tão velha quanto o mundo: um ser superior cria uma raça e logo depois a extermina, tomando, porém, o cuidado de poupar um ou mais exemplares dela, a fim de recomeçar tudo outra vez.

E foi exatamente o que aconteceu: Monan mandou um dilúvio à Terra para apagar o fogo (aqui o dilúvio é reparador) e a tornou novamente habitável, autorizando o seu repovoamento.

Irin-magé foi encarregado de repovoar a Terra com o auxílio de uma mulher criada especialmente para isto, e desta união surgiu outro personagem mítico fundamental da mitologia tupinambá: Maire-monan.

Esse Maire-monan tinha poderes semelhantes aos do primeiro Monan, e foi graças a isto que pôde criar uma série de outros seres – os animais –, espalhando-os depois sobre a Terra.

Apesar de ser uma espécie de monge e gostar de viver longe das pessoas, ele estava sempre cercado por uma corte de admiradores e de pedintes. Ele também tinha o dom de se metamorfosear em criança. Quando o tempo estava muito seco e as colheitas tornavam-se escassas, bastava dar umas palmadas na criança-mágica e a chuva voltava a descer copiosamente dos céus. Além disso, Maire-monan fez muitas outras coisas úteis para a humanidade, ensinando-lhe o plantio da mandioca e de outros alimentos, além de autorizar o uso do fogo, que até então estava oculto nas espáduas da preguiça.

Um dia, porém, a humanidade começou a murmurar.

– Este Maire-monan é um feiticeiro! – dizia o cochicho intenso das ocas. – Assim como criou vegetais e animais, esse bruxo há de criar monstros e Tupã sabe o que mais!

Então, certo dia, os homens decidiram aprontar uma armadilha para esse novo semideus. Maire-monan foi convidado para uma festa, na qual lhe foram feitos três desafios.

– Bela maneira de um anfitrião receber um convidado! – disse Mairemonan, desconfiado.

– É simples, na verdade – disse o chefe dos conspiradores. – Você só terá de transpor, sem queimar-se, estas três fogueiras. Para um ser como você, isso deve ser muito fácil!

Instigado pelos desafiantes, e talvez um pouco por sua própria vaidade, Maire-monan acabou aceitando o desafio.

– Muito bem, vamos a isso! – disse ele, querendo pôr logo um fim à comédia.

Maire-monan passou incólume pela primeira fogueira, mas na segunda a coisa foi diferente: tão logo pisou nela, grandes labaredas o envolveram. Diante dos olhos de todos os índios, Maire-monan foi consumido pelas chamas, e sua cabeça explodiu. Os estilhaços do seu cérebro subiram aos céus, dando origem aos raios e aos trovões que são o principal atributo de Tupã, o deus tonante dos tupinambás que os jesuítas, ao chegarem ao Brasil, converteram por conta própria no Deus das sagradas escrituras.

Desses raios e trovões originou-se um segundo dilúvio, desta vez arrasador. No fim de tudo, porém, as nuvens se desfizeram e por detrás delas surgiu, brilhando, uma estrela resplandecente, que era tudo quanto restara do corpo de Maire-monan, ascendido aos céus.
* * *
Depois que o mundo se recompôs de mais um cataclismo, o tempo passou e vieram à Terra dois descendentes de Maire-monan: eles eram filhos de um certo Sommay, e se chamavam Tamendonare e Ariconte.

Como normalmente acontece nas lendas e na vida real, a rivalidade cedo se estabeleceu entre os dois irmãos, e não tardou para que a fogueira da discórdia acirrasse os ânimos na tribo onde viviam.

Tamendonare era bonzinho e pacífico, pai de família exemplar, enquanto Ariconte era amante da guerra e tinha o coração cheio de inveja. Seu sonho era reduzir todos os índios, inclusive seu irmão, à condição de escravos. Depois de diversos incidentes, aconteceu um dia de Ariconte invadir a choça de seu irmão e lançar sobre o chão um troféu de guerra.

Tamendonare podia ser bom, mas sua bondade não ia ao extremo de suportar uma desfeita dessas. Erguendo-se, o irmão afrontado golpeou o chão com o pé e logo começou a brotar da rachadura um fino veio de água.

Ao ver aquela risquinha inofensiva de água brotar do solo, Ariconte pôs-se a rir debochadamente.

Acontece que a risquinha rapidamente converteu-se num jorro d’água, e num instante o chão sob os pés dos dois, bem como os de toda a tribo, rachou-se como a casca de um ovo, deixando subir à tona um verdadeiro mar impetuoso.

Aterrorizado, o irmão perverso correu com sua esposa até um jenipapeiro, e ambos começaram a escalá-lo como dois macacos. Tamendonare fez o mesmo e, depois de tomar a esposa pela mão, subiu com ela numa pindoba (uma espécie de coqueiro).

E assim permaneceram os dois casais, cada qual trepado no topo da sua árvore, enquanto as águas cobriam pela terceira vez o mundo – ou, pelo menos, a aldeia deles.

Quando as águas baixaram, os dois casais desceram à Terra e repovoaram outra vez o mundo. De Tamendonare se originou a tribo dos tupinambás, e de Ariconte brotaram os Temininó.

Fonte:
A. S. Franchini. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Humberto de Campos (A Noiva do Donato)


- Foi um caso espantoso, único, inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".

E puxando o relógio, para ver se ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de luxo:

- "Era no sítio do "Pau d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado, naquele dia, o Donato e a Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não imagina. A Vila, as cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de Ubatuba! Calcule!"

Uma olhadela ao relógio, e continuou, telegráfico:

"Violeiro: o Chico Messias. Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira* uma coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."

E acrescentou, num parênteses:

"O caiçara diverte-se sem sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma hipótese triste, socavada de ancilóstomos*."

E reatou, descritivo, unindo o gesto à palavra, dando voltas no meio do alpendre:

- "Damas e cavalheiros vão e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se*, numa choréa que tem passos de lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."

Outra interrupção, para um surto histórico:

"D. Pedro Fernandes Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a paulovices muito semelhantes."

E tornando, com uma soberba vivacidade de descrição:

"Ela, a noiva, dentro do vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a fatiota* de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da gravata escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão"*.

E descreve a festa:

- "Ambos assistem sem apetite o apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em pântano adormecido. Comem! E comem!

Nova consulta ao relógio, e a descrição despenhou-se, para ganhar tempo:

"Hora da sobremesa. O Inocêncio, professor publico, vai falar! Recuo de cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. - Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."

Como se estivesse na festa, eu próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:

"Vai falar o Inocêncio. E começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a família, e o tugúrio*, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola, engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado* coletivo, pesado como um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste gorgolões de cerveja."

Noutro parênteses, o meu amigo sentencia, outra vez:

- "Há situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"

E engatando, de novo, com os olhos no trem, desabou, história abaixo:

- "Coitado do Inocêncio! Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:

- "Viva a noiva!

"O viva desonerou aquele constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.

- "Viva!...

"E o Dito prosseguiu, vitorioso:

- "Viva os óio da noiva!

- "Vivôooo!

- "Viva os dente biturado da noiva!

- "Viva!

- "Viva o pescoço da noiva!

- "Viva!

- "Viva os peito da noiva!

- "Viiiiva!

Tomando fôlego, o narrador continuou, elétrico:

- "Os vivas desciam, conselheiro, assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela cinta, toma da garrucha trochada*, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:

- "Oie, seus convidado: não é por nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"

Último apito. Um pulo do meu amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o trem desapareceu.
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Glossário:
Adão -
(alquimia) pó medicinal considerado a quintessência do universo; adamo.
Desnalgam-se – remexem exageradamente as nádegas ou os quadris, especialmente ao dançar; rebolar-se.
Fatiota – traje; vestuário.
Socavada de ancilóstomos – escavada de vermes.
Toeira – corda de viola.
Trochada – diz-se de cano que foi torcido para ficar mais forte.
Tugúrio – abrigo; refúgio; casebre.
Vágado – vertigem.
(Dicionário Houaiss)

Fonte:
Humberto de Campos. Contos.

Luiz Poeta (Escama e Pele)


Olhava a lâmpada. A cabeça apoiada sobre o travesseiro, recostada, o cigarro entre os dedos, a caneta indecisa, riscando o ar, paralítica.

No peito, um vácuo inexplicável, espécie de vazio inexprimível por gesto ou palavra; na cabeça, porção de coisas ora amorfas, vez nebulosas; noutras, vivas, móveis, sufocantes.

Na janela, mudez soturna, nudez sem medo das estrelas pálidas, trêmulas, fetos sozinhos no líquido amniótico de metileno, fundo, profuso, profundo, profanável somente por olhos maus, insensíveis, inumanos.

O vento assobiava silêncios e um inflexível veleiro de neve percorria-o, tornando fluvial cada ramificação de artéria, capilar ou veia, penetrando-lhe como um punhal, estalactite, adaga de gelo no mar sanguíneo das emoções que o inundavam.

Repentinamente, o sono e o sonho. Era um planeta longínquo, tonalizado de verde, dourado e azul. Na areia lívida das margens dos rios, o rastro, a pegada, o vestígio, o resquício da imagem que varou as águas no rumo da cachoeira... ele, fitando a escuma nas pedras escorregadias, aparando a eterna, misteriosa e mansa pressa das vertentes.

Num átimo, o salto de um impetuoso peixe assustando o seu sonâmbulo enlevo... Do peixe... a pele... o corpo, a humana forma de mulher que lhe cingiu o pescoço num toque mágico de braços longos, dedos finos, pernas infinitas... o tépido ventre na umidade do seu sexo... depois, os beijos de lábios que se percorriam mansos, macios, velozes, provocando a lágrima de felicidade de tão puros na sua essência e tão passional na sua prazerosa e sinestésica ocorrência.,.

Todavia, no mesmo torpor que saltara da alma do peixe e da ânsia do homem, os movimentos esfumaram-se lentos, esvoaçantes, voláteis, num surrealismo que se metamorfoseava em abstratas imagens... ele, desesperado, tentando conter a imagem que se diluía nebulosamente etílicas em suas mãos... numa loucura de ansiar um todo, percebeu-se fundamente solitário e triste, num abandono de grãos minúsculos que o vento frio da manhã arrebatou-lhe gelidamente, vindo talvez da nascente daquele planalto de picos solitários furando a eterna, insensível e metilênica pele do céu.

Despertou no quarto: a tela dos cavalos selvagens galopando eternamente em sua direção, a chama do cigarro ardendo-lhe nos dactilos e a caneta caída, inerte, sem perspectiva de poesia ou de palavras aleatórias confessando segredos inconfessáveis... o etéreo punhal eólico das nevascas rasgando-lhe as artérias nervosas como aquele rio onírico despejando corpos abstratos no espumante precipício de lágrima e de sangue...

Fitou o teto novamente. Uma aranha tecelã bordava silêncios no canto entre duas paredes e um inseto vulgar e inexpressivo bebia-lhe a expectativa bem próximo, pousado, despreocupadamente num lavar de patas aleatório ao perigo de viver num mundo limitado por territórios e revezes, como o dele. Aturdido ainda, tentou resgatar o êxtase produzido pelo sublime pesadelo, mas a metálica luz do sol provocava-lhe a vida existente em cada uma de suas sonolentas retinas. Dobrou caprichosamente o cobertor, guardou-o no armário junto com o travesseiro molhado pelo suor das ansiedades, alisou afetuosamente as dobras do lençol, cerrou a janela sobre os raios matinais tagarelando brilhos dourados. Enxugou uma lágrima das tantas que ainda choraria e saiu no rumo de uma vaga perspectiva desenhada pela trajetória dos sentimentos e cerrou cuidadosamente a porta.

Lembrava-a agora. Recordava o sonho, o rio, os grãos, o peixe tornado ela, neve na pele de sua solidão, fogo na lágrima descendo sinuosa, limpa à luz da lua espraiada sobre o espelho das poças, olho fundo, sugado pela insônia, mirando, pedindo, esperando, implorando o desespero do contato nervoso das peles.

Caminhava. Ruas entrelaçavam-se unidas pelo abandono, trançadas sob seus letárgicos passos, o coração batendo mais alto que o próprio rebuliço das calçadas repletas de transeuntes alheios ao seu silencioso abandono. Sem que se desse, estava na antiga casa. Parou. Percorreu-a com o olhar súplice de uma única presença. Arriscou um primeiro passo na direção do aparentemente imutável. Atravessou nostalgicamente o misterioso quintal verde-negro, protegido apenas por um portão de ferro, enferrujado como suas esperanças que rangiam desesperos, afastando, no caminhar, as ramagens pendentes dos velhos troncos de árvores seculares, fragilizadas pelas intempéries climáticas.

Num galope, o mesmo cão veio até ele receptivo. Era a realidade que latia exibindo um riso que se exprimia mais pelo abanar de uma cauda do que pela saliva pulando dos caninos. Um afago no animal em festa, uma melancólica alegria, e o sapato estalando esperanças, esmagando lentamente o tempo, no ritmo de cada passada embalada pelo fúnebre compasso do improvável...

Afastou as cortinas de mais uma lágrima, mirando a remota arquitetura da sua vida tão carente de companhia: a mesma janela do sobrado, o mesmo galho seco sobre a varanda... a mesma gaiola suspensa e o canário piando, buscando os acordes de um trinado sem perspectiva de um canto ideal.

Subiu. As solas dos sapatos tocavam cautelosamente o assoalho de cada um dos degraus de madeira. Contou-os um a um; eram doze... o mesmo número do dia em que se ausentou para uma nova vida que se tomou tão sem perspectiva.

Abriu a porta do quarto. Tropeçou na própria insegurança.

- Quem está aí? – Ela mirava-o com seriedade. O semblante percorrendo-o com perplexidade e mansidão.

Os olhos dele eram o limite entre o medo e a vontade. Um riso seminu afastou lentamente os lençóis da timidez. Com ele, uma minúscula gota de pranto parava no trampolim da emoção... mas... para onde saltar? O vago precipício da incerteza estava dentro dele... precisava escolher...

Na dúvida, veio-lhe o abismo passional. Suas lágrimas diluíram-se lânguidas nos olhos dela. Lábios e línguas não conseguiram conter a aflita volúpia mandibular, cujos dentes foram se tomando afetuosas adagas sangrando a víscera anímica de duas prazerosas bocas que se fundiam na epidérmica umidade dos desejos.

O peixe tornado mulher saltou novamente do rio e mergulhou com ele nas aquáticas turbulências da passionalidade... julgou que despertaria... que o sonho fugiria... e agarrou-se nele com força e afeto... a miragem foi desvanecendo gradativa, sonolenta... cósmica...

- Beije-me de novo! - ele suplicou.

Na manhã seguinte, no quarto onde dormira na casa dos parentes mais próximos, o grito da empregada, o desmaio da mãe, o vitupério do pai e... o bilhete: Papai e mamãe. Amo vocês. Suas bênçãos. Um dia volto. Quem sabe...

A motocicleta violentou a nebulenta mudez da madrugada. Ela presa nele, a mochila nas costas; o amor vibrando forte, superando o ronco do motor. Escama e pele voando no rastro da liberdade.

Sob a ponte, a cachoeira continuaria eternizando um espumante beijo de amor na epidérmica solenidade das pedras escorregadias.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro entregue pelo autor.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Raul Pompéia (O Fruto da Formosura)


Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dois anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.

Foi crescendo... crescendo...

Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.

Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.

Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma coisa indigna.

Este escrúpulo avultava com o tempo.

Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...

Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.

Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...

Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.

Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...

E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!

Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!

A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.

Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.

O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.

O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.

O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.

Está amando, o pobre...

Por fim, expande-se.

Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dois lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.

Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.

Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...
..................................................................

Então começa a decadência.

O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...

Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...

É quase a história comum de todos os frutos.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos.

Odenir Follador (Poemas Avulsos) 2


ALMEJADA AMADA

Amar é sentirmos o coração
pulsar em nosso âmago, intensamente...
Inflar-se na volúpia da paixão
queimando toda alma, impetuosamente!

Um amor platônico que buscamos
encontrar, em nossa almejada amada;
e, sob as estrelas nos entregarmos
lascivos, à bruma da madrugada...

Cáustica chama do amor a sentirmos
no lampejo de uma nova alvorada!
E, num fiel anseio prosseguirmos...

Em desejos frementes, sensuais...
Entregarmo-nos à relva orvalhada
ao brilho das estrelas magistrais!

COMPARAÇÃO

Fazendo comparação
entre a canção e uma flor:
numa produz emoção
e noutra produz amor.

O momento encantador
ficará sempre guardado;
canção, amor e uma flor,
que oferece enamorado.

E o poeta à sua bela,
dedica-lhe com ternura
uma seresta à janela.

Brotando do coração,
lindos versos com candura
só de amor e sedução!

FOLHA DE PAPEL EM BRANCO

Em uma folha de papel em branco
eu escrevo contos e poesias;
descrevo a natureza e seu encanto,
inda as ocorrências do dia a dia!

Todas as folhas em branco contêm
muitos textos escritos ao leitor...
Cuja destinação vai muito além,
da mente criativa do escritor!

Folhas rabiscadas que não dão certo
são amassadas e vão para o cesto;
mas, uma irá ao leitor ou leitora...

Uma por todas e todas por uma,
diz-nos um adágio épico, em suma,
após muito trabalho... “A vencedora”!

NOSSA SENHORA DOS NAVEGANTES
E IEMANJÁ


A Nossa Senhora dos Navegantes,
Iemanjá, na fé afro-brasileira...
Cultuada por fiéis simpatizantes
praticando homenagem derradeira.

Seu dia é festejado em fevereiro
movimentando imensas multidões;
em muitas urbes do Brasil inteiro
festejam nas ruas em procissões!

Salve Nossa Senhora protetora...
Nos rios e nos mares és benfeitora
dos navegantes de nossa nação!

Também na crença afro-brasileira,
eles preparam a semana inteira
a festa de Iemanjá, com oblação.

O MAR

Observando o mar, o seu movimento...
O vai e vem das ondas agitadas
quebrando na praia, a todo momento,
esparramando espumas prateadas.

Avisto um pescador, que destemido...
Lança seu barco no mar agitado
com coragem,  não receia o perigo!
São suas redes que o tem sustentado.

Vejo gaivotas, com olhar atento...
A planarem sobre as ondas do mar,
ávidas, a procura de alimento!

À tarde, o sol deitava no ocidente,
derradeiros raios, para adornar
seus últimos brilhos, para o poente.

SALVADOR - BAHIA

Falam muito de ti frequentemente,
Salvador de belezas naturais...
Os poetas te exaltam fartamente
em versos, teus valores culturais!

Falam também de ti, principalmente:
do Dique Tororó , Orixás e Axé,
do Elevador Lacerda... , especialmente
das comidas: vatapá e acarajé!

Quisera decantar-te em muitos versos.
Exaltar toda a tua exuberância
do passado, e de hoje, os teus  progressos!

Quem já te conheceu, feliz professa...
Que cantará em versos tua importância
ao Senhor do Bom Fim..., Uma promessa!

SEU OLHAR

Uma breve esperança, em seu olhar,
simula apenas amar, e mais nada;
não é mais, que uma esperança, a brilhar,
por uma grande paixão, revogada.

O perene olhar, de um amor desfeito,
olhar que torna pura, a alma inquieta,
é um desejo feliz, meio sem jeito;
que arde, e queima, toda a alma, irrequieta.

E num olhar de amor, nós almejamos,
reatar a paixão, com que sonhamos,
íntegra, pura e branca em densas brumas.

E num olhar apenas, alcançamos,
a felicidade que nós deixamos
que voasse, como douradas plumas.

Fonte:
Sonetos enviados pelo poeta.

Alcântara Machado (Tiro de Guerra n. 35)


No Grupo Escolar da Barra Funda, Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:

– Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.

Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.

Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.

E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Linguiça) casou com um chofer de praça na policia.

Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.

Sua linha: Praça do Patriarca – Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.

E não queria mesmo outra vida.

Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle. Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:

"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata…"

Fosse Mlle. Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da pátria.

E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n. 35.

– Companhia! Per… filar!

No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.

– Meia volta! Vol… ver!

O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela  rapaziada.

– Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!

De novo não prestou.

– Firme!

Pareciam estacas.

– Meia volta!

Tremeram.

– Vol… ver!

Volveram.

– Abém!

Aristodemo era o base da segunda esquadra.

Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.

Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens.

– Você conhece o hino nacional, criatura?

– Puxa, se conheço, Seu Sargento!

– Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.

Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias.

E o primeiro ensaio foi logo à noite.

Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas…

– Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!

Ou-viram do I-piranga as margens plácidas Da Inde-pendência o brado re-tumbante!

– Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?… é palavra… ah!… onomatopaica: RETUMBANTE!

E o hino rolou ribombando:

… a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te! E o sol da li-berdade em raios ful…

De repente um barulho na segunda esquadra.

– Que isbregue é esse aí, criaturas?

Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.

– Está suspenso o ensaio. Podem debandar.

– Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!

– Que é que você está me dizendo, Aristodemo?

– Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era… um… eu chamei ele de… eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser… o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.

– Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.

"Ordem do Dia

De conformidade com o ordenado pelo Exmo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n. 81, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n. 81, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n. 117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partir desta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n. 117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das intenções.

Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!

São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."

Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d’Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.

Na mesma linha: Praça do Patriarca – Lapa.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

António Lobo Antunes (Elogio do Subúrbio)


Cresci nos subúrbios de Lisboa, em Benfica, então quintinhas (casa de campo), travessas, casas baixas, a ouvir as mães chamarem ao crepúsculo

- Víiíiíííítor

num grito que, partido da Rua Ernesto da Silva, alcançava a cegonhas no cume das árvores mais altas e afogava os pavões no lago sob os álamos. Cresci junto ao castelito das Portas que nos separava da Venda Nova e da Estrada Militar, num país cujos postos fronteiriços eram a drogaria do senhor Jardim, a mercearia do Careca, a pastelaria do senhor Madureira e a capelista Havaneza do senhor Silvino, e demorava-me à tarde na oficina de sapateiro do senhor Florindo, a bater sola num cubículo escuro rodeado de cegos sentados em banquinhos baixos, envoltos no cheiro de cabedal e miséria que se mantém como o único odor de santidade que conheço.

A dona Maria Salgado, pequenina, magra, sempre de luto, transportava a Sagrada Família, numa caixa de vivenda em vivenda, e os meus avós recebiam na sala durante quinze dias essas três figuras de barro numa redoma embaciada que as criadas iluminavam de pavios de azeite. Cresci entre o senhor Paulo que consertava com guitas e caniços as asas dos pardais, e os Ferra-a-Bico cuja tia fugiu com um cigano e lia a sina nas praias, embuçada de negro como a viúva de um marujo que nunca deu à costa. Os meus amigos tinham nomes próprios tremendos (Lafaiete, Jaurés) e habitavam rés-do-chão de janelas ao nível da calçada onde distinguiam aparelhos de rádio gigantescos, vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. O cão da fábrica de curtumes acendia latidos fosforescentes nas noites de julho, quando o pólen me chovia nas pálpebras, eu, morto de amores pela mulher de Sandokan, descobria-me unicórnio trancado na retrete (vaso sanitário) da escola, e o brigadeiro Maia, de boina basca, descia à Adega dos Ossos a gesticular contra o regime. Na época em que aos treze anos me estreei no hóquei em patins do Futebol Benfica, o guarda-redes enchumaçado como um barão medieval apontou-me ao pasmo dos colegas

- O pai do ruço (grisalho, desbotado) é doutor.

No que constituiu de imediato a minha primeira glória desportiva e a primeira tenebrosa responsabilidade, a partir do momento em que o treinador, a apalpar-me os músculos com os olhos, preveniu numa careta de dúvida

  - Sempre estou para ver se lhes chegas, ó ruço, que o teu pai no ringue era lixado para a porrada.

   O dono da Farmácia União jogava o pau, a esposa do proprietário da Farmácia Marques era uma grega suntuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas, que me fazia esquecer a mulher de Sandokan ao vê-la aos domingos a caminho da igreja, o sineiro a quem chamavam Zé Martelo e que tocava o Papagaio Louro na Elevação da missa do meio-dia em vez do A treze de Maio obrigatório, possuía uma agência funerária cujo prospecto-reclame começava "Para que teima Vossa Excelência em viver se por cem escudos pode ter um lindo funeral?", e eu escrevia versos nos intervalos do hóquei, fumava às escondidas, uma das minhas extremidades tocava Jesus Correia e a outra Camões, e era indecentemente feliz.

Hoje, se vou a Benfica não encontro Benfica. Os pavões calaram-se, nenhuma cegonha na palmeira dos Correios já não existe a palmeira dos Correios, a quinta dos Lobo Antunes foi vendida, o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob marquises e sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota de vivenda em vivenda com a Sagrada Família na sua redoma embaciada, o Lafaiete e o Jaurés jogam ao Virinhas na Calçada do Tojal cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. Não há avezões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o Papagaio Loiro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que junto do seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei de ouvir a voz da minha mãe chamar - Antóóóóóóóónio!

E um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver e sumir-se-á lá em cima no quarto, a sonhar que ao menos a mulher de Sandokan não o obrigaria nunca a comer purê de batata nem sopa de nabiças* durante o tormento do jantar.
__________________________
Nota:
Nabiça é a folha comestível de uma planta cuja raiz é o nabo.

Fonte:
António Lobo Antunes. Livro de Crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

Professor Garcia (Trovas do Meu Cantar) III


Alguém me bateu no peito,
de um jeito tão sedutor..,
Que o coração, sem ter jeito,
virou mocambo do amor!

Ao ver tantos esplendores,
das nuvens brancas, ao léu...
Comparo a velhos pastores,
tangendo sonhos, no céu!

Ao ver-te, ó velha tapera,
senti, na dor dos teus ais...
Meus sonhos de primavera
e o silêncio de meus pais!

Canta Iguaçu!... Que os teus cantos,
feitiços das verdes matas,
afastam mágoas e prantos,
no canto das Cataratas!

Chega a idade!... E eu já sem graça,
na ousadia dos meus planos,
finjo que o tempo não passa
e escondo os meus desenganos!

Mãe que tem fé, não se esquece,
de orar pelos filhos seus!...
Pois, no silêncio da prece,
toda mãe fala com Deus!

Na manjedoura, em Belém,
nasce um mistério profundo:
Uma luz vinda do além,
que se fez a Luz do mundo!

Não há pior desconforto
nem um crime mais tirano,
que aquele, de um filho morto,
no ventre de um ser humano!

Nosso amor guarda, em segredo,
dois escrutínios fatais;
Na primavera, foi cedo,
no outono, tarde demais!

O amor guarda a sutileza,
de uma taça de cristal,
que quando trinca, a beleza
perde o encanto original!

O artista que a tarde pinta,
mostra aos ateus e ao descrente,
que alguém, sem pincel nem tinta,
pinta a cor do sol poente!

O beija-flor pequenino,
astucioso artesão…
Tece, no galho mais fino,
o altar de sua mansão!

O ocaso chega, de leve,
toda tarde, e vem me ver!...
Sutil, no meu peito escreve:
Ama o teu entardecer!

Prendi-me, aos braços da cruz,
por seus laços fui tomado,
tentando encontrar a luz
que ofusque a luz do pecado!

Quando enfim, tu te ajoelhas,
e o teu perdão te refaz:
Serás luz entre as centelhas
do fogo aceso da paz!

Rompe a aurora, o galo canta,
o sol põe riso na flor;
e o sabiá, da garganta,
liberta um hino de amor!

Se a brisa cai, sorrateira,
e arrasta a flor que morreu...
Deixa mais triste a roseira,
chorando a flor que perdeu!

Se a cruz redime o pecado,
seu peso, nos leva à Luz.,.
Eu quero o peso dobrado,
nos braços de minha cruz!

Se em silencio, ó primavera,
partiste, sem dar adeus...
Sei que o silêncio me espera,
no outono dos dias meus!

Tapera - foste o meu rancho!
E hoje, apesar da distância...
Tu guardas, num velho gancho,
molambos de minha infância!

Tenho um jardim diferente...
E entre nós, há uma aliança:
Por mais que eu mude a semente,
só nasce a flor da esperança!

Vejo, em dois braços abertos,
o meu viver peregrino:
Se um me aponta os rumos certos,
o outro indica o meu destino!

Venci marés violentas,
ondas e mares sem fim...
Só não venci as tormentas
que existem dentro de mim!

Vivi tão pouco ao teu lado!
Mamãe!... Contigo sonhei...
Devia ter te beijado,
bem mais do que te beijei!

Vivo entre a paz e o temor
de uma dúvida malvada:
Ter tudo, sem teu amor,
ou teu amor, sem ter nada!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Edwaldo Camargo Rodrigues (Passageiros da Noite)


    Desde que o sol se pusera, era o terceiro espírito errante com que se deparava naquela estrada maldita. Já nem se assustava mais, havia-se acostumado com o fenômeno. Mais esta vez, lívida, a aparição acenou, surgida como que do nada, interpondo-se de repente à frente dos cavalos, que estacaram em pânico, corcoveando. Relincharam dolorosamente e escarvavam com os cascos ferrados o solo duro e pedregoso, com fúria, até produzir faísca; mas foi em vão, tiveram enfim de acalmar-se e submeter-se, bufando, os olhos esbugalhados a brilharem na escuridão da noite.

    Este último, pelo menos, comportou-se educadamente, ao contrário dos anteriores, que simplesmente se apoderaram da brida com um gesto desabrido das mãos descarnadas, cujos ossos alvejavam à luz da lua para, em desabalada carreira, conduzirem eles próprios a parelha alvoroçada até onde lhes interessava, apeando em seguida sem proferir uma única palavra e desaparecendo em meio às trevas da noite, tragados pelas as portas do Inferno, talvez. Pois ele, ainda que o instigasse a curiosidade, prudentemente não os seguiu, a fim verificar seu fatídico paradeiro.

    - Em nome de Cristo, permita-me subir, meu senhor, pois vou cansado – solicitou, polido. – Minhas velhas pernas já não conseguem conduzir-me, e é imperativo que chegue a meu destino antes do alvorecer. – A voz gutural provinha de algum ponto qualquer situado entre as costelas agudas que o albornoz puído mal encobria e as vértebras expostas do longo pescoço, em torno do qual pendiam frouxos os restos encardidos de uma golilha de gorgorão*.

    Porém, seu aspecto geral não era melhor que o das almas penadas anteriores. Os olhos, amolecidos e pegajosos, flutuavam soltos, e seus movimentos descoordenados dentro das órbitas negras faziam lembrar gemas de ovos que se fritam em óleo, a contrastar com o fundo requeimado da frigideira. Era nojento.

    - Por favor... – respondeu entretanto o viajante. E suspirou conformado, desferindo palmadinhas sobre o assento do banco ensebado de madeira, indicando o lugar junto de si na boleia. – Desde que a Vossa Senhoria não aborreça sentar-se aqui comigo, ao lado deste homem rústico, já que a caçamba vai repleta de esterco para o replantio das cepas. – E acrescentou: – Minha viagem é longa e espero em Deus que o itinerário lhe seja conveniente, prezado andarilho. Pois é meu dever avisar que meu patrão não permite, em nenhuma hipótese, qualquer desvio na rota estabelecida por ele; muito menos toleraria atrasos que isto viesse acarretar a seus negócios, se o senhor me compreende. O homem é enérgico e não hesitaria em castigar-me, caso lhe desobedecesse.

    Aceita essa condição, o convidado acomodou-se e pôs-se logo à vontade. Descalçou as botas e arriou o capuz, que lhe velava parcialmente a carantonha* feroz. Que bruto camarada, louvado fosse o Senhor! A ossatura do crânio mostrava-se totalmente exposta e parecia esfarinhar. E por toda a superfície, viam-se interstícios esverdinhados, como se a criatura tivesse há pouco se erguido de um pântano qualquer em que se espojara, e através dos quais despontavam, aqui e ali, falripas mucilaginosas* com a aparência exata de algas apodrecidas. Quanto aos dentes então, restavam-lhe apenas alguns dos incisivos, o que lhe dava, em tudo, o aspecto de uma caveira de burro. E pior: emanava-se dele um mau cheiro execrável de ratazana apodrecida, que nem a brisa da noite que circulava ao redor e tampouco o movimento da velha traquitana* conseguiam dispersar por completo. De todos os seus passageiros, aquele, sem dúvida, prometia ser o mais incômodo, apesar dos modos corteses que exibia.

    Entretanto, uma vez instalado, suspirou e pareceu aquietar-se. – Chamam-me Dom Antônio Alonso – fez ele, estendendo a mão, gesto que o condutor, protegido pela obscuridade que os envolvia, afetou não perceber, hirto de pavor mediante a iminência de um contato com o sinistro desconhecido. Apenas um simples toque daqueles dedos de esqueleto poderia ser fatal, drenando-lhe a alma do corpo, sabia-se lá, e que Deus o protegesse ao longo daquela jornada.

    - Prazer... – gaguejou depois de algum tempo, sem afrouxar as rédeas, que empunhava com firmeza, e sem desgrudar os olhos da estrada, cuja superfície de cascalhos frouxamente embranquecida sob um luar indeciso serpeava adiante. – Meu nome é Pedro Valdez, conhecido também como Pedro, o Troca, pois que atualmente ando por este mundo a mercadejar. Na verdade, trabalho a soldo para um adelo* espertalhão; segundo comentam, um foragido da lei que se homiziou lá para as bandas do meu povoado, um fim de mundo esquecido por Deus. O biltre, apesar de paralítico e avarento, é mais ladino que uma raposa, que nem mesmo o diabo o engabela. Mas é a ele e mais ao meu suor que devo o pão do meu sustento. 

    E após pigarrear um pouco, informou ainda: – Outrora fui também tanoeiro*, ofício aprendido de meu falecido mestre e compadre, o artesão João Dorta, vassalo dos senhores de Valdez, proprietários das quintas de Valdez, e de quem adotei o nome ao sair evadido de seus domínios, lá nas províncias mais ao norte, já que o de um de pai ou de uma mãe não possuo, por desconhecer quem a mim me gerou. Em pequeno, fui colocado na roda, conforme se diz dos enjeitados.

    O homem tinha esse temperamento: quando tenso, disparatava; refugiava-se talvez no som da própria voz, sem conceder muita importância ao significado do que dizia. Não era seu intento falar tanto assim de si, revelar sua vida de supetão, despejando tudo mais ou menos sem propósito, quanto mais a um completo estranho. Amaldiçoou-se por isso, mas era tarde, cumpria conter-se dali em diante, e manter a boca fechada.

    Mas o outro não demonstrou a mais leve perturbação. Pareceu nada ter escutado de toda aquela eloquência despropositada. Aristocrático, com sua voz vácua e quase ininteligível, emitiu comentários imprecisos a respeito do clima, talvez para dissipar qualquer constrangimento pressentido entre os dois, conforme procederia um autêntico cavalheiro.

    Depois de perscrutar a paisagem, negra e indecifrável, prognosticou finalmente chuvas, a virem pela madrugada, com certeza. E assim, aprumando-se com galhardia, sem desmantelar-se aos solavancos do veículo, voltava a cada instante a cabeça para os lados e para o céu, aparentemente sem dar conta do incômodo rangido provocado pelas vértebras ressequidas que se atritavam com aspereza e que se repetia a cada movimento, enquanto falava.

    - Pouco além desta colina junto à qual agora passamos – disse e apontou com o indicador amarelecido, semelhante a uma antiga batuta entalhada em marfim, uma massa escura apenas perceptível em meio à vegetação intrincada que margeava o caminho –, avistaremos em seguida um frondoso sicômoro*. Rogo-lhe que paremos um pouco sob suas ramagens. De modo que os cavalos poderão descansar – justificou. Mas logo a seguir, inclinou-se para o outro, acrescentando em tom confidente, as mandíbulas trêmulas a tatalarem com enleio: – E é lá também que espero encontrar uma pessoa que me é muito cara, se o senhor não se opõe, é claro.

    Tão logo ali chegaram, abrigaram-se sob a vasta copa da árvore, pois, conforme previra a distinta assombração, uma tempestade ameaçadora, anunciada pelos graves ribombos das trovoadas, aproximava-se rapidamente. Sob os lívidos clarões de relâmpagos intermitentes, Pedro Valdez entreviu, em sucessivos relances, um vulto encaminhar-se em direção a eles. Pareceu-lhe uma mulher. Vinha trilhando uma vereda inculta, desviando-se de túmulos e capelas que mal se podiam distinguir, tal a confusão de urzes, heras e mandrágoras, que medravam por tudo, incontroláveis e bravias, compondo um cenário desolador de abandono e ruína.

    Os animais, que até então, aproveitando a pausa, roçagavam* a relva em sossego, pressentiram aproximar-se a desconhecida e assustaram-se novamente, reagindo irrequietos, nutrindo com sofreguidão desconfiada. – Calma, Penedo! Quieto Ferrabrás! – sofreava-os o dono, empunhando a brida com energia.

    - Permita-me que lhe apresente, senhor Valdez – interveio, nesta manobra difícil, o muito solícito Dom Antônio, exibindo a palma estendida num meneio gracioso, como quem oferece um ramo florido, amparando-o entre o polegar e o indicador –, eis aqui a senhora dona Risoleta Alonso y Olavarria, minha falecida esposa e companheira perpétua. – E, sem esperar por resposta, estendeu os braços, ajudando-a a embarcar, fazendo com que ela se sentasse, apertando-se, com artríticos estralejos*, no exíguo espaço que restava entre os dois na estreita boleia.

    Era arriscado supor que a mulher sorrisse, pois nenhum vestígio de pele se lhe restava aderido ao carão escaveirado, de forma que a única expressão facial possível para a infeliz era aquele esgar impudico a expor permanentemente os dentes arreganhados. Os quais, entretanto, permaneciam em excelente estado de conservação, condição que permitia com que a maxila e a mandíbula, quando unidas, se ajustassem mutuamente com admirável elegância, sem que se percebesse a mínima falha ao longo das arcadas.

    Em todo caso, relanceou o condutor e acenou altivamente com a cabeça, em cuja fronte, ocupando as cavidades que em vida contiveram olhos provavelmente belos, lampejaram momentaneamente, bem lá no fundo, dois minúsculos glóbulos esverdeados, ambos semelhantes a vaga-lumes feridos que agonizassem, quase ocultos em meio à vegetação sombria. E – mais inacreditável! – no cocuruto daquele crânio limpo e alvadio*, equilibrava-se uma touça* de cabelos ressequidos como palha, sobre a qual a vaidade feminina havia espetado um largo pente de tartaruga cujas pontas sustinham a orla de uma mantilha negra e rendada, que descia abundante e cascateava-lhe pelas costas e em redor da figura esquálida da morta, chegando-lhe às ancas, no melhor estilo andaluz, nobre e suntuoso.

    Uma vez colocados os três em seus respectivos lugares, nenhuma alternativa lhes restava senão espremerem-se entre si, caso desejassem prosseguir viagem. Apesar disso, a dama recuava tentando evitar a proximidade do humilde carroceiro, cujo contato parecia repugná-la. De modo que, com gestos impacientes de repulsa e desdém, cosia-se o mais possível junto ao marido, agarrando-se-lhe aos braços, inclinada sobre ele a protestar com um murmúrio cavo e continuado, que se escapava provavelmente através dos desvãos da grade torácica.

    - Não, vida minha – replicava-lhe o conciliador Dom Antônio aos cochichos, tentando a custo conter as diatribes da companheira e, ao mesmo tempo, não ser ouvido pelo outro –, desista, por favor, não é possível viajar lá atrás. Transporta-se estrume do gado, compreende?... Porque é assim mesmo, é a estação, é para o plantio das vides*... – E ensinava paciente: – Recorda-se de como acontecia em nossa herdade e na quinta de seu pai, no início da primavera? Pois é igual; acredito que as práticas não mudaram desde aquele tempo, e é com certeza o procedimento que ainda hoje utilizam os labregos* na lide das glebas.

    A mulher todavia inquietava-se, não compreendia, salmodiava sem parar sua queixa exaltada, quase incorpórea, provinda do além. – Você está confusa, meu bem – ponderava o esposo –; provavelmente ainda não despertou por completo de seu longo sono – cogitou ele, segurando-lhe carinhosamente o queixo pontudo. E esclareceu: – O homem não é um salteador, um birbante*... Trata-se apenas de um camponês, um trabalhador, e está nos ajudando sem nada exigir em contrapartida. Isto é mais do que se pode esperar de um rústico cristão.

    E, após ouvir-lhe uma modulação sibilante, que deveria expressar ainda alguma dúvida que a atormentava, garantiu-lhe em tom cabal, no qual se percebia uma leve ponta de contrariedade, o osso do polegar direito a indicar perfurante para trás: – Não, é claro... Não é dele. O cheiro provém do maldito carregamento que o coitado tem de distribuir por aí, pelos campos, por dever de ofício, conforme já lhe expliquei, ou por outras razões que apenas a ele dizem respeito, sei lá, mulher.

    Entrementes, seguia o grupo, madrugada adentro, assim composto: o arrieiro*, muito inteiriçado e esgazeado, e o heteróclito* casal entrelaçando reciprocamente as mãos alvacentas, ambos coniventes a respeito de seu destino sobrenatural, que somente eles conheciam. E seus corpos chocalhavam a cada solavanco da viatura, que rolava estrídula*, as rodas resvalando sobre a via tortuosa, atapetada de seixos irregulares. Era de admirar que as duas múmias não se desconjuntassem de todo, esfacelando-se de uma vez por todas, como um jogo de varetas sobre um tabuleiro, ou que se reduzissem finalmente a pó.

    Não obstante, passados alguns momentos, rouquejou o nobre, apontando os restos de uma edificação que se erguia um pouco recuada, apenas vislumbrada a assomar entre a vegetação espessa, talvez um antigo portal ou peristilo*, cujos fragmentos branquejavam ainda por um instante sob o luar evanescente da madrugada:

    - Eis acolá onde desejamos finalmente ficar, meu amigo; e o senhor, depois disto, poderá prosseguir em paz, sob as bênçãos do Céu.

    - Oooo! – Ouviu-se na paisagem silente. E, mais alguns passos, a parelha estacou, homem e bestas aparentemente aliviados.

    - Estamos muito agradecidos – disse o falecido, ajudando apear a sua cara metade, que, naquela simples operação, cambaleava a cada movimento, muito indecisa, enroscando-se na trama dos seus complicados véus. E, infaustamente, apesar das atenções e cuidados com que a cercava o devotado esposo, alguma coisa saíra errada, talvez que enganchasse os pés quebradiços no estribo enferrujado, resultando com que a infeliz tropeçasse e se estatelasse inteira contra a lama do chão, todo encharcado da chuva recente. A brava senhora reduziu-se instantaneamente a uma ruma* de ossos, de cambulhada* com rendas e tecidos que se esgarçavam desfibrados, tudo aquilo se confundindo numa patética mixórdia, asquerosa e irreconhecível.

    - Aqui residimos e vivemos os melhores dias das nossas vidas – explicou Dom Antônio, em sua fleuma incorrigível, acenando com um gesto abrangente a seu redor, tão amplo que então indicaria o próprio céu, estrelado e prenunciador da aurora. Porém, humilde, agachou-se em seguida, e via-se que tentava com seus dedos, quebradiços e desajeitados, organizar uma trouxa transportável daquela massa confusa que se espalhava pelo solo à sua frente, os despojos de sua amada. O companheiro fez menção de acudi-lo naquela tarefa penosa, porém o cavalheiro não lho permitiu. Afastou-o com um meneio da mão impositiva, declarando, formalizado: – Vou levá-la para nossa alcova, onde repousará – justificou, erguendo-se lentamente, a sobraçar com dificuldade o volume amorfo. – Lá, eu a recomporei, pedaço por pedaço, e ela ressurgirá da maneira exata como a conheci, tão jovem e fascinante, e cuja lembrança, passado tanto tempo, ainda agora me deslumbra e me faz perder o fôlego, emocionado. – E após um suspiro profundo, completou, contemplativo: – Seremos felizes novamente, pode ter certeza. A morte ainda não nos venceu, nem poderá separar-nos definitivamente.

    E, voltando-se, afastou-se com seu fardo precioso, penetrou entre as ramagens hirsutas dos tojos* retorcidos e das tanchagens* peçonhentas que bordejavam o caminho e foi corajosamente transpor a barreira formada por partes de empenas* e colunas que, em meio à penumbra indecisa da alvorada, divisavam-se além, derrocadas sobre a relva, espalhadas em confusão, e atrás da qual, amparando-se precariamente, desapareceu por fim, enquanto o pipilar dos primeiros pássaros despertados ecoava pelas frondes sombrias das árvores em redor.

    Pedro Valdez suspirou, uma comoção indefinível picou-lhe o coração piedoso. Desatrelou os machos e estapeou-lhes as ancas, amistosamente, dando-lhes liberdade, a fim de que debandassem e se apascentassem finalmente tranquilos, depois daquela noite extenuante.

    Um regato oculto entre a vegetação rumorejava por perto. Descobriu-o sem muito esforço. E, bebendo da água fresca, viu refletir-se na superfície encrespada que resvalava buliçosa sobre claros seixos, iluminado pelo sol da manhã, que surgia radiante, seu semblante cansado. Também este se desfazia, o rosto cadavérico parecendo diluir-se, puxado pelo movimento borbulhante da modesta corredeira.

    Lembrou de seu patrão, o Abílio Tornado, que lhe parecia o próprio demônio, da primeira mulher, a Aldonça, e dos filhos pequenos, cujos nomes restavam apenas nas lápides mesquinhas em que haviam sido talhados, em algum lugar, remoto e esquecido, e viu-se morto, de repente morto, só não sabia desde quando e por que ainda vagava sobre a terra.
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Glossário em Ordem Alfabética:
Adelo – aquele que compra ou vende roupas e objetos usados.
Alvadio – alvacento, esbranquiçado.
Arrieiro – arreeiro, tropeiro.
Birbante – que ou aquele que vagueia, sem pouso ou trabalho certos; vagabundo, viajante, vadio.
Cambulhada – reunião de coisas diversas; mistura.
Carantonha – cara fechada; cara feia; carranca.
Diatribe – discurso escrito ou oral, em tom violento e geralmente afrontoso, em que se ataca alguém ou alguma coisa.
Empenas – qualquer parede lateral, especialmente as construídas nas divisas do terreno.
Estralejo – o mesmo que estalejo, estalar.
Estrídula – som agudo, ruidoso, penetrante,
Falripas mucilaginosas – cabelos curtos e ralos viscosos.
Golilha – Gola.
Gorgorão – tecido encorpado de seda, com relevos formando finos cordões, originalmente fabricado na Índia.
Heteróclito – pouco comum; bizarro, extravagante, excêntrico, singular.
Labrego – certo tipo de arado, munido de um varredouro entre as aivecas com que limpa da terra as raízes.
Peristilo – pátio rodeado por colunas.
Plantio das vides – plantio das videiras.
Roçagar – passar levemente por; roçar, arrastar-se.
Ruma – pilha, montão.
Sicômoro – árvore de até 20 m (Acer pseudoplatanus) da família das aceráceas, nativa da Europa e Oeste da Ásia, de folhas com cinco lobos e flores pêndulas, cultivada como ornamental, pela madeira branca, especialmente usada em instrumentos musicais e mobiliário, como melífera, dando ao mel cor esverdeada, e pela tintura vermelha que se extrai da raiz.
Tanchagem – design. comum a diversas plantas do gênero Plantago, da fam. das plantagináceas, de ervas ou arbustos geralmente de uso medicinal e cujo pólen é notoriamente um causador da febre do feno.
Tanoeiro – aquele que fabrica tonéis, pipas, barris etc.; toneleiro.
Tojo – arbusto de até 2 metros.
Touça – conjunto, agrupamento.
Traquitana – automóvel velho, maltratado, de mau aspecto; lata-velha.
(Fonte do glossário: Dicionário Houaiss)


Fonte:
Texto enviado por João Libero

domingo, 24 de novembro de 2019

Luiz Poeta (Texto para um Natal)


É tempo de Natal. Das vitrines mais sofisticadas aos ambulantes mais simplórios, os chamarizes natalinos convidam as pessoas que passam, para ornamentarem suas salas, ambientando-as para a celebração do nascimento de Jesus. Para os comerciantes, mais do que falar do nascimento do menino de Belém, é preciso vender porque, afinal, o cliente está com dinheiro e comprar é o verbo mais conjugado e qualquer presente orçamentário é sempre uma bênção.

As propagandas para fomentar a aquisição de produtos do gênero são específicas: ou exibem o glamour de uma delicatessen, cujas sofisticadas cestas de vime expõem gêneros importados sob o brilho de neon das luminárias cuidadosamente preparadas para esse fim, ou espalham-se pelos luminosos corredores dos shopping centers repletos de gorduchos e sorridentes papais noéis - artificiais - cujo movimento para trás e para frente, mecanicamente repetitivo, parece reverenciar o dinheiro do gastador compulsivo diante de tantas ofertas em cada uma das lojas.

Aleatórias à inteligente metodologia das vendas, do outro lado da rua movimentada, precisamente nas calçadas, as instigantes e estridentes vozes dos camelôs, mais do que convidar, intimam o comprador. Eles espalham seus produtos geralmente contrabandeados sobre enormes plásticos e dão logo o seu recado: - Aí, freguesa: Papai Noel a bateria! Pisca-pisca! Árvores de natal de todos os tamanhos! Leva duas e paga uma! Seu filho vai adorar!

Mas quando se trata de vender e comprar - ressalvada a natural hipocrisia para cada caso - povo é povo em qualquer situação. A premente necessidade de adquirir e exibir o objeto conquistado, mesmo quando os recursos são ínfimos, é irrevogável. É preciso mostrar mostrando-se, presentear e presenteando-se. O resultado das compras natalinas é diversificado, mas o cenário é único para cada celebração.

Nas casas mais luxuosas, os anfitriões exibem suas mesas enormes, modeladas caprichosamente por cozinheiros e maitres contratados, repletas de iguarias que parecem posar para o paladar mais exigente, num delicioso mosaico desenhado por talheres e travessas de prata e pratos de porcelana contendo o melhor bacalhau, perus, chesteres, pernis, tortas, bolos e pudins, além das cerejas, tâmaras, figos, pêssegos, nozes, castanhas, amêndoas, avelãs, frutas cristalizadas e afins, cujos nobres obeliscos de toda aquela deliciosa panorâmica da ceia são garrafas e cálices de vinhos do Porto e champanhas franceses.

Sem a menor cerimônia, dão-se ou trocam presentes valiosos: casas, carros, iates, colares de pérolas e diamantes, pingentes, cordões, anéis, alianças e pulseiras de ouro do mais nobre quilate, passagens para cruzeiros com destino às ilhas fiscais, além de uma infinidade de essências importadas, roupas, bolsas, cintos e sapatos de grife.

Sem grandes cômodos que possibilitem a movimentação natalina, um número expressivamente maior de cidadãos comuns comemora este evento à sua maneira, contentando-se com suas cervejas, feijoadas, farofas, refrescos, rabanadas, pastéis e aletrias, realizando seus alvoroçados e espumantes brindes às vezes no próprio quintal, onde é exibido um portentoso churrasco de asas e coxas de frango e carnes de segunda. Tudo é festa!

Sua troca de presentes é modesta: camisas, blusas, lenços, edredons, toalhinhas-de-mão, meias, perfumes baratos, panelas e móveis de questionável durabilidade, mas o que importa mesmo é a reciprocidade produzida pela alegria do dar e receber.

Porém, longe do fogo do carvão que assa carne ou da lareira que conforta os pés, tendo por cama apenas os papelões que embalam os melhores presentes, e por telhado o brilho das estrelas que desconhecem Belém, os ditos miseráveis amargam a solidão de mais um dia sem calendário, sem mesa posta... sem presentes, sem Natal.

Enquanto o Jesus verdadeiro teima em nascer sublimemente no melhor e mais fervoroso silêncio das pessoas mais sensíveis... em várias casas, no aconchego das líricas manjedouras, os aparentemente eternos sorrisos desenhados nos rostos de gesso e louça de diversos menino Jesus artificiais parecem demonstrar, em lugar da compreensão por cada um dos sentimentos humanos, um divino enlevo diante do atraente marketing produzido pelo premiadíssimo vendedor e simpaticíssimo herói natalino Santa Claus.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Nilto Maciel (Eles têm Olhos Azuis?)


Eu lia Jorge Garstman, quando ouvi gritos vindos da rua. Preocupado, fechei o livro e, enquanto me dirigia à janela, repetia o nome de Jacó Rabbi, como se do outro lado da parede ele estivesse sendo assassinado. O doido Manuel açoitava o tempo com os braços, pregando à pequena multidão de moleques e vagabundos do bairro.

– Os holandeses vão chegar. Já estão nas proximidades de Jacaúna – bradava o orador.

Vaias estrondavam em meio a gargalhadas escandalosas e assobios estridentes. O pregoeiro ria um riso de satisfação, olhos além da plateia, do casario, como se alcançasse a praia distante, escondida pela cidade. Decerto orgulhava-se de ser o primeiro a dar a notícia.                         

Ao me avistar, aproximando em zum os olhos para pouco além do foco dos canalhas, avançou em minha direção, rompendo o cerco caçoísta.

– Você é filho do Clemente?

Disse sim e o convidei a entrar. Não me importava estivesse em dia de insânia. Ele sabia mais do que todos aqueles cegos que só viam guerras nos cinemas e o mar aos domingos. E eu nutria uma admiração estranha por aquele sábio menosprezado e insultado, aquele irmão vindo não sei de onde, talvez neto de cariris, de adoradores do Boi Santo, ensandecido por herança. Imagino seus ancestrais dizimados a ferro frio pelos Amaro Maciel Parente e caterva.

Dirigiu-se à porta, que fui abrir, apressado, como se atendesse ordem sua. A multidão acercava-se da casa, sequiosa de novo espetáculo, saudosa do palhaço fugitivo. Fechei porta e janela, ciumento daqueles olhos de esquina, daquelas bocas impiedosas.

Já sob a sombra de minhas telhas, o homem era outro. Transfigurara-se, branco feito vela, trêmulo como chama, nem louco nem Manuel.

– Marina, traz um copo com água para este senhor – gritei.

Indiquei-lhe a cadeira, retirando o livro do assento, enquanto tentava copiar-lhe todas as feições. Enganara-me, de fato – não se tratava do maluco do bairro, a alegria dos que dormiam na coxia e se embriagavam de música todo santo dia.

Marina trazia em uma bandeja um copo com água quente e, oferecendo-o a Manuel, cochichou ao meu ouvido:

– Quero ver se ele é doido mesmo. Eu estava ouvindo a lengalenga dele lá da cozinha.

Não recebeu o copo. Deixasse sobre a mesinha. Apanhou meu livro, abriu-o e dirigiu-se a mim:

– Quero ver se ela não esfria hoje.

Veio-me à cabeça, de imediato, a figura acesa de minha mulher, que logo apaguei, olhos na água.

Pôs-se a ler, em voz alta: "Os nativos dessa zona solicitaram ao Conde Maurício e ao Conselho que tomassem o forte português lá existente a fim de libertá-los da opressão em que viviam."

Eu quis dizer a Marina que ela estava enganada. Fosse buscar água gelada, deixasse de rir daquele jeito de moleca. Porém, ao olhar novamente para o homem, reconheci nele o doido Manuel. Para tirar as dúvidas, interrompi-lhe a leitura:

– Não serão os alemães?

– Holandeses – gritou, ferindo-me com seus olhos de mensageiro.

– Mas eles não vêm pelo ar?

Não me deu segunda resposta e continuou a ler e rir. Voltei-me para Marina e pensei em lhe pedir desculpas. Não, não estava enganada, deixasse a água quente ali mesmo, esquecesse a geladeira, risse à vontade, assobiasse, vaiasse, molecadamente.

– Acho que vêm de Recife – respondeu-me, por fim.

Em tom de brincadeira e para forçá-lo a dizer de que estava falando, imaginei um hippie nordestino:

– Na certa, são cangaceiros de cabelos oxigenados.

Pareceu não ouvir ou não aceitar minha provocação. E, como se desse por encerrada a conversa e se tratasse de velho amigo nosso, frequentador habitual de nossa mesa, parente muito próximo, levantou-se e dirigiu-se ao corredor, sempre a ler. Tropicou na mesinha, o copo rolou e espatifou-se ao chão, enchendo a sala de água. Nem sequer olhou para o estrago e muito menos pediu desculpas.

Marina levou as mãos à cabeça e ajoelhou-se, irritada. Queria impedir que os cacos de vidro se estilhaçassem ainda mais e a água inundasse toda a sala. Conteve-se e, olhos em mim, como a pedir perdão por ter agido ao primeiro impulso, falou em ir buscar uma estopa à cozinha.

Seguimos os três pelo corredor, ele à frente, seguido dela.

– Aqui está a notícia por inteiro – gritou o visitante, já pisando a sala de jantar. – “Fundeará amanhã na enseada do Mucuripe o navio Nieuw Nederlandt, trazendo índios pernambucanos, cuja missão será a de preparar o terreno para a tomada do Siará pelos batavos.”

Não tive mais dúvidas: estávamos com um louco dentro de casa. E, pior, na cozinha, perto do fogo e das facas. Pensei em pedir socorro a Marina, mas ela voltara à sala e, ajoelhada junto aos cacos de vidro, cantarolava, mirando-se na água, que não esfriava. Talvez fosse possível esconder facas, garfos e fósforos, e convencer Manuel a publicar sua notícia caduca na esquina.

Odiei-me, chamei-me ingênuo, apiedei-me de minha piedade por aquele pobre diabo, aquele maníaco que transformava bulas em tratados de teologia. Amaldiçoei meu cristianismo tantas vezes negado da boca para fora. Desesperado, desejei a invasão imediata de minha terra por tropas estrangeiras. De preferência, holandesas. E seu primeiro ato de brutalidade atingisse Manuel.

Assim pensando, não ouvi quando me pediu água gelada. E, como não lhe atendesse, escancarou a porta da geladeira e despejou goela adentro todo o conteúdo de uma garrafa, em tempo de a engolir.

Só alertei com o vozeirão do louco, livro aberto no rumo das bananeiras do quintal, biquinho, a recitar: “Monsieur le major Garstman, ci-devant commandant de la milice à Siara...”

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.