sexta-feira, 7 de junho de 2024

Beatrix Potter (Conto do Sr. Tod)


Já fiz muitos livros sobre pessoas bem-comportadas. Agora, para variar, vou fazer uma história sobre duas pessoas desagradáveis, chamadas Tommy Brock e Sr. Tod.

Ninguém poderia chamar o Sr. Tod de “legal”. Os coelhos não o suportavam; eles podiam sentir seu cheiro a meia milha de distância. Ele tinha hábitos errantes e tinha bigodes de raposa; eles nunca sabiam onde ele estaria em seguida.

Um dia ele estava morando em uma casa de pau no matagal, causando terror à família do velho Sr. Benjamin Bouncer. No dia seguinte, ele se mudou para um salgueiro perto do lago, assustando os patos selvagens e os ratos d’água.

No inverno e no início da primavera, ele geralmente pode ser encontrado em uma terra entre as rochas no topo de Bull Banks, sob o campo de aveia.

Ele tinha meia dúzia de casas, mas raramente estava em casa.

As casas nem sempre estavam vazias quando o Sr. Tod se mudava; porque às vezes Tommy Brock se mudava para lá (sem pedir licença).

Tommy Brock era um texugo gordo, baixinho e eriçado com um sorriso; ele sorria em todo o rosto. Ele não era bom em seus hábitos. Ele comia ninhos de vespas, sapos e vermes; e ele gingava ao luar, desenterrando coisas.

Suas roupas estavam muito sujas, e como ele dormia durante o dia, sempre ia para a cama de botas. E a cama em que ia dormir era geralmente do Sr. Tod.

Agora, Tommy Brock ocasionalmente comia torta de coelho; mas eram apenas muito pequenos, quando outros alimentos eram realmente escassos. Ele era amigo do velho Sr. Bouncer; eles concordaram em não gostar das lontras perversas e do Sr. Tod; eles frequentemente conversavam sobre esse assunto doloroso.

O velho Sr. Bouncer foi ferido anos atrás. Ele se sentou ao sol da primavera fora da toca, em um cachecol, fumando um cachimbo de tabaco de coelho.

Ele morava com seu filho Benjamin Coelho e sua nora Flopsy, que tinham uma família jovem. O velho Sr. Bouncer estava encarregado da família naquela tarde, porque Benjamin e Flopsy haviam saído.

Os coelhinhos-bebês tinham idade suficiente para abrir os olhos azuis e chutar. Eles estavam deitados em uma cama fofa de lã e feno de coelho, em uma toca rasa, separada da toca principal do coelho. Para dizer a verdade, o velho Sr. Bouncer os havia esquecido.

Sentou-se ao sol e conversou cordialmente com Tommy Brock, que estava passando pela floresta com um saco e uma pequena batata que usava para cavar, e algumas armadilhas para toupeiras. Ele reclamou amargamente da escassez de ovos de faisão e acusou o Sr. Tod de caçá-los. E as lontras haviam limpado todos os sapos enquanto ele dormia no inverno.

– “Não como uma boa refeição há quinze dias, estou vivendo de nozes. Terei de me tornar vegetariano ou jantar meu próprio rabo!” disse Tommy Brock.

Não era bem uma piada, mas fez o velho Sr. Bouncer rir, porque Tommy Brock era tão gordo, atarracado e sorridente.

Então o velho Sr. Bouncer riu, e pressionou Tommy Brock a entrar, para provar uma fatia de bolo de sementes e “uma taça do vinho prímula de minha filha Flopsy”. Tommy Brock se espremeu na toca do coelho com entusiasmo.

Então o velho Sr. Bouncer fumou outro cachimbo e deu a Tommy Brock um charuto de folha de repolho que era tão forte que fez Tommy Brock sorrir mais do que nunca, e a fumaça encheu a toca. O velho Sr. Bouncer tossiu e riu, e Tommy Brock bufou e sorriu.

E o Sr. Bouncer riu e tossiu, e fechou os olhos por causa da fumaça do repolho. . .

Quando Flopsy e Benjamin voltaram, o velho Sr. Bouncer acordou. Tommy Brock e todos os filhotes de coelho haviam desaparecido!

O Sr. Bouncer não confessou que havia admitido alguém na toca do coelho. Mas o cheiro de texugo era inegável, e havia pesadas pegadas redondas na areia. Ele estava em desgraça; Flopsy torceu as orelhas e deu um tapa nele.

Benjamin Coelho partiu imediatamente atrás de Tommy Brock.

Não houve muita dificuldade em rastreá-lo; ele havia deixado a marca dos pés e subia lentamente a trilha sinuosa através da floresta. Aqui ele havia arrancado o musgo e a azeda da madeira. Lá ele cavou um buraco bem fundo e armou uma armadilha para toupeiras. Um pequeno riacho cruzava o caminho. Benjamin saltou levemente sobre o pé seco, os passos pesados do texugo apareciam claramente na lama.

A trilha levava a uma parte do matagal onde as árvores haviam sido derrubadas, haviam tocos de carvalho frondosos e um mar de jacintos azuis – mas o cheiro que fez Benjamin parar não era o cheiro de flores!

A casa de pau do Sr. Tod estava diante dele e, pela primeira vez, o Sr. Tod estava em casa. Não havia apenas o cheiro de raposa como prova disso – havia fumaça saindo do balde quebrado que servia de chaminé.

Benjamin Coelho sentou-se, olhando, seus bigodes estremeceram. Dentro da casa de pau, alguém deixou cair um prato e disse alguma coisa. Benjamin bateu o pé e saiu correndo.

Ele não parou até chegar ao outro lado da floresta. Aparentemente, Tommy Brock virou da mesma maneira. No topo da parede, havia novamente as marcas do texugo, e alguns pedaços de um saco ficaram presos em uma sarça.

Benjamin escalou o muro, em um prado. Ele encontrou outra armadilha para toupeiras recém-armada, ele ainda estava no encalço de Tommy Brock. Estava ficando no final da tarde. Outros coelhos estavam saindo para aproveitar o ar da noite. Um deles, sozinho, de casaco azul, estava ocupado caçando dentes-de-leão. — “Primo Pedro! Pedro Coelho, Pedro Coelho!” gritou Benjamin Coelho.

O coelho de casaco azul sentou-se com as orelhas em pé.

“Qual é o problema, primo Benjamin? É um gato? Ou John Stoat Ferret?”

“Não, não, não! Ele colocou minha família, Tommy Brock, em um saco, você o viu?”

“Tommy Brock? Quantos, primo Benjamin?”

“Sete, primo Pedro, e todos eles gêmeos! Ele veio por aqui? Por favor, diga-me rápido!”

“Sim, sim; não faz dez minutos desde… ele disse que eram lagartas; eu realmente pensei que eles estavam chutando muito forte, para lagartas.”

“Para que lado? Para que lado ele foi, primo Pedro?”

“Ele tinha um saco com algo vivo nele; eu o observei armar uma armadilha para toupeiras. Deixe-me usar minha mente, primo Benjamin, conte-me desde o início.” 

Benjamim o fez.

“Meu tio Bouncer demonstrou uma lamentável falta de noção para a sua idade;” disse Pedro pensativamente, “mas há duas circunstâncias esperançosas. Sua família está viva e chutando, e Tommy Brock deve estar cansado. Ele provavelmente irá dormir e ficará com eles para o café da manhã.” 

“Qual caminho?” 

“Primo Benjamin, comporte-se. Eu sei muito bem qual caminho. Como o Sr. Tod estava na casa de pau, ele foi para a outra casa do Sr. Tod, no topo de Bull Banks. Eu sei em parte, porque ele ofereceu para deixar qualquer recado na casa da irmã Rabo de Algodão; ele disse que estaria passando por lá.” (Rabo de Algodão casou-se com um coelho preto e foi morar no morro).

Pedro escondeu seus dentes-de-leão e acompanhou o pai aflito, que era todo ansioso. Atravessaram vários campos e começaram a subir a colina, os rastros de Tommy Brock eram claramente visíveis. Ele parecia ter largado o saco a cada dez metros, para descansar.

“Ele deve estar muito inchado, estamos logo atrás dele, pelo cheiro. Que nojento!” disse Pedro.

O sol ainda estava quente e inclinado nas pastagens da colina. No meio do caminho, Rabo de Algodão estava sentada em sua porta, com quatro ou cinco coelhinhos meio crescidos brincando ao seu redor; um preto e os outros marrons.

Rabo de Algodão tinha visto Tommy Brock passando à distância. Questionada se o marido estava em casa, ela respondeu que Tommy Brock havia descansado ali enquanto ela o observava.

Ele agradeceu e apontou para o saco, parecendo doer-se de tanto rir.

“Vamos embora, Pedro; ele vai cozinhá-los; vamos mais rápido!” – disse Benjamin Coelho.

Eles subiram e subiram; – “Ele estava em casa; vi suas orelhas negras espiando pelo buraco.” “Eles moram muito perto das pedras para brigar com os vizinhos. Vamos, primo Benjamin!”

Quando chegaram perto da floresta no topo de Bull Banks, foram com cautela. As árvores cresciam entre rochas amontoadas; e ali, debaixo de um rochedo – o Sr. Tod tinha feito uma de suas casas. Estava no topo de uma encosta íngreme; as rochas e os arbustos pairavam sobre ele. Os coelhos subiram com cuidado, ouvindo e espiando.

Esta casa era algo entre uma caverna, uma prisão e um chiqueiro em ruínas. Havia uma porta forte, que estava fechada e trancada.

O sol poente fazia as vidraças brilharem como uma chama vermelha, mas o fogo da cozinha não estava aceso. Estava bem arrumado com gravetos secos, como os coelhos podiam ver, quando espiavam pela janela.

Benjamin suspirou de alívio.

Mas havia preparações na mesa da cozinha que o fizeram estremecer. Havia um imenso prato de torta vazio com padrão de salgueiro azul, uma grande faca de trinchar e um garfo e um picador.

Na outra ponta da mesa havia uma toalha parcialmente aberta, um prato, um copo, uma faca e um garfo, saleiro, mostarda e uma cadeira – em suma, os preparativos para o jantar de uma pessoa.

Não havia ninguém à vista, nem coelhos jovens. A cozinha estava vazia e silenciosa, o relógio estava parado. Pedro e Benjamin encostaram o nariz na janela e olharam para dentro.

Então eles contornaram as pedras para o outro lado da casa. Era úmida e mal cheirosa, coberta de espinhos e sarças.

Os coelhos estremeceram em seus sapatos.

“Oh, meus pobres bebês coelhos! Que lugar horrível, nunca mais os verei!” suspirou Benjamim.

Eles se arrastaram até a janela do quarto. Estava fechado e trancado como a cozinha. Mas havia sinais de que essa janela havia sido aberta recentemente, as teias de aranha estavam remexidas e haviam pegadas sujas recentes no parapeito da janela.

A sala lá dentro estava tão escura que a princípio não conseguiram distinguir nada, mas eles podiam ouvir um barulho – um ronco lento, profundo e regular. E quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, eles perceberam que alguém estava dormindo na cama do Sr. Tod, enrolado sob o cobertor. – “Ele foi para a cama de botas”, sussurrou Pedro.

Benjamin, que era todo ansioso, puxou Pedro do parapeito da janela.

Os roncos de Tommy Brock continuaram, grunhidos irregulares vindos da cama do Sr. Tod. Nada podia ser visto da jovem família.

O sol havia se posto, uma coruja começou a piar na floresta. Havia muitas coisas desagradáveis por aí, que seria melhor terem sido enterradas, ossos e crânios de coelho, pernas de galinha e outros horrores. Era um lugar chocante e muito escuro.

Eles voltaram para a frente da casa e tentaram de todas as maneiras mover o ferrolho da janela da cozinha. Eles tentaram enfiar um prego enferrujado entre os caixilhos das janelas; mas era inútil, especialmente sem luz.

Sentaram-se lado a lado, do lado de fora da janela, sussurrando e ouvindo.

Em meia hora a lua surgiu sobre a floresta. Brilhava forte, claro e frio, sobre a casa entre as rochas e na janela da cozinha. Mas, infelizmente, nenhum coelhinho foi visto!

Os raios da lua brilhavam na faca de trinchar e no prato de torta, e faziam um caminho de brilho pelo chão sujo.

A luz revelou uma portinha numa parede ao lado da lareira da cozinha — uma portinha de ferro pertencente a um forno de tijolos, daqueles antigos que se aqueciam com lenha.

E no mesmo instante, Pedro e Benjamin perceberam que sempre que eles balançavam a janela, a portinha oposta balançava em resposta. A jovem família estava viva, fechada no forno!

Benjamin estava tão excitado que foi uma sorte não ter acordado Tommy Brock, cujos roncos continuavam solenemente na cama do Sr. Tod.

Mas realmente não havia muito conforto na descoberta. Eles não podiam abrir a janela, e embora a jovem família estivesse viva – os coelhinhos eram incapazes de sair, eles não tinham idade suficiente para engatinhar.

Depois de muito cochichar, Pedro e Benjamin decidiram cavar um túnel. Eles começaram a cavar um ou dois metros abaixo da margem. Eles esperavam poder trabalhar entre as grandes pedras sob a casa, o chão da cozinha estava tão sujo que era impossível dizer se era de terra ou de lajota.

Eles cavaram e cavaram por horas. Eles não podiam fazer um túnel direto por causa das pedras, mas no final da noite eles estavam sob o chão da cozinha. Benjamin estava de costas, cavando para cima. As garras de Pedro estavam gastas, ele estava fora do túnel, arrastando a areia para longe. Ele gritou que era manhã – nascer do sol, e que os gaios estavam fazendo barulho lá embaixo na floresta.

Benjamin Coelho saiu do túnel escuro, sacudindo a areia das orelhas, limpou o rosto com as patas. A cada minuto o sol brilhava mais quente no topo da colina. No vale havia um mar de névoa branca, com as copas douradas das árvores aparecendo.

Novamente dos campos lá embaixo, na névoa, veio o grito furioso de um gaio – seguido pelo uivar agudo de uma raposa!

Então aqueles dois coelhos perderam completamente a cabeça. Eles fizeram a coisa mais tola que poderiam ter feito. Eles correram para seu novo túnel curto e se esconderam na extremidade superior dele, sob o chão da cozinha do Sr. Tod.

O Sr. Tod estava chegando a Bull Banks e estava no pior dos humores. Primeiro ele ficou chateado por quebrar o prato. Foi sua própria culpa, mas era um prato de porcelana, o último serviço de jantar que pertencera à sua avó, a velha Vixen Tod. Então os mosquitos estavam muito irritantes. E ele falhou em pegar um faisão em seu ninho, e continha apenas cinco ovos, dois deles estragados. O Sr. Tod teve uma noite ruim.

Como sempre, quando estava de mau humor, ele decidiu mudar de casa. Primeiro ele experimentou o salgueiro, mas estava úmido, e as lontras haviam deixado um peixe morto perto dela. O Sr. Tod não gostava das sobras de ninguém além das suas.

Ele subiu a colina, seu temperamento não melhorou ao notar marcas inconfundíveis de texugo. Ninguém mais arranca o musgo de forma tão arbitrária quanto Tommy Brock.

O Sr. Tod bateu com sua bengala na terra e fungou, ele adivinhou para onde Tommy Brock tinha ido. Ele ficou ainda mais irritado com o pássaro gaio que o seguia persistentemente. Ele voou de árvore em árvore e repreendeu, avisando a todos os coelhos que pudessem ouvir que um gato ou uma raposa estava subindo na plantação. Certa vez, quando voou gritando sobre sua cabeça – o Sr. Tod agarrou e uivou.

Ele se aproximou de sua casa com muito cuidado, com uma grande chave enferrujada. Ele fungou e seus bigodes se eriçaram. A casa estava trancada, mas o Sr. Tod tinha dúvidas se estava vazia. Ele girou a chave enferrujada na fechadura, os coelhos abaixo podiam ouvi-lo. O Sr. Tod abriu a porta com cautela e entrou.

A visão que encontrou o Sr. Tod na cozinha deixou-o furioso. Lá estava a cadeira do Sr. Tod, e o prato de torta do Sr. Tod, e sua faca e garfo e mostarda e saleiro e sua toalha de mesa que ele havia deixado dobrada na cômoda – tudo preparado para o jantar (ou café da manhã) – sem dúvida para aquele odioso Tommy Brock.

Havia um cheiro de terra fresca e texugo sujo, que felizmente superava qualquer cheiro de coelho.

Mas o que absorveu a atenção do Sr. Tod foi um ruído – um ronco regular, profundo e lento, vindo de sua própria cama.

Espiou pelas dobradiças da porta entreaberta do quarto. Então ele se virou e saiu de casa com pressa. Seus bigodes se eriçaram e a gola do casaco se arrepiou de raiva.

Durante os vinte minutos seguintes, o Sr. Tod continuou entrando cautelosamente na casa e saindo apressadamente de novo. Aos poucos, ele se aventurou ainda mais – direto para o quarto. Quando estava fora de casa, arranhava a terra com fúria. Mas quando ele estava lá dentro, ele não gostou da aparência dos dentes de Tommy Brock.

Ele estava deitado de costas com a boca aberta, sorrindo de orelha a orelha. Ele roncava pacificamente e regularmente, mas um olho não estava perfeitamente fechado.

O Sr. Tod entrava e saía do quarto. Duas vezes ele trouxe sua bengala e uma vez ele trouxe o balde de carvão. Mas ele pensou melhor e os levou embora.

Quando ele voltou depois de remover o balde de carvão, Tommy Brock estava deitado um pouco mais de lado, mas ele parecia ainda mais profundamente adormecido. Ele era um texugo incuravelmente indolente, ele não tinha o menor medo do Sr. Tod, ele era simplesmente muito preguiçoso e confortável para se mover.

O Sr. Tod voltou mais uma vez ao quarto com um varal. Ele ficou um minuto observando Tommy Brock e ouvindo atentamente os roncos. Eles eram realmente muito altos, mas pareciam bastante naturais.

O Sr. Tod virou as costas para a cama e abriu a janela. Ele rangeu, se virou com um salto. Tommy Brock, que abrira um olho — fechou-o apressadamente. Os roncos continuaram.

Os procedimentos do Sr. Tod foram peculiares e um tanto inquietos (porque a cama ficava entre a janela e a porta do quarto). Ele abriu um pouco a janela e empurrou a maior parte do varal para o peitoril da janela. O resto da linha, com um anzol na ponta, ficou em sua mão.

Tommy Brock roncava conscienciosamente. O Sr. Tod parou e olhou para ele por um minuto, então ele saiu da sala novamente.

Tommy Brock abriu os dois olhos, olhou para a corda e sorriu. Houve um barulho do lado de fora da janela. Tommy Brock fechou os olhos com pressa.

O Sr. Tod saiu pela porta da frente e deu a volta nos fundos da casa. No caminho, ele tropeçou na toca do coelho. Se ele tivesse alguma ideia de quem estava dentro, ele os teria retirado rapidamente.

Seu pé passou pelo túnel quase em cima de Pedro e Benjamin Coelho, mas felizmente ele pensou que era mais um trabalho de Tommy Brock.

Ele pegou o rolo de linha do parapeito, escutou por um momento e então amarrou a corda em uma árvore.

Tommy Brock o observava com um olho só, pela janela. Ele estava intrigado.

O Sr. Tod pegou um balde grande e pesado de água na fonte e cambaleou com ele pela cozinha até seu quarto.

Tommy Brock roncava diligentemente, bufando bastante.

O Sr. Tod largou o balde ao lado da cama, pegou a ponta da corda com o gancho – hesitou e olhou para Tommy Brock. Os roncos eram quase apopléticos, mas o sorriso não era tão grande.

O Sr. Tod cuidadosamente subiu em uma cadeira perto da cabeceira da cama. Suas pernas estavam perigosamente perto dos dentes de Tommy Brock.

Ele estendeu a mão e colocou a ponta da corda, com o gancho, sobre a cabeceira da cama, onde as cortinas deveriam cair.

(As cortinas do Sr. Tod foram dobradas e guardadas, devido à casa estar desocupada. Assim como a colcha. Tommy Brock estava coberto apenas com um cobertor.) O Sr. Tod, de pé na cadeira instável, olhou para ele atentamente, ele realmente era um dorminhoco de primeira categoria! Parecia que nada iria acordá-lo – nem mesmo a corda balançando na cama.

O Sr. Tod desceu são e salvo da cadeira e tentou levantar-se novamente com o balde de água. Ele pretendia pendurá-lo no gancho, acima da cabeça de Tommy Brock, para fazer uma espécie de banho de chuveiro, amarrado por uma corda, através da janela.

Mas, naturalmente, sendo uma criatura de pernas finas (embora vingativa e com bigodes cor de areia), ele foi incapaz de erguer o peso pesado até o nível do gancho e da corda. Ele quase se desequilibrou.

Os roncos tornaram-se cada vez mais apopléticos. Uma das patas traseiras de Tommy Brock estremeceu sob o cobertor, mas ele ainda dormia pacificamente.

O Sr. Tod e o balde desceram da cadeira sem acidente. Depois de pensar bastante, ele esvaziou a água em uma bacia e jarro. O balde vazio não era muito pesado para ele; ele o pendurou balançando sobre a cabeça de Tommy Brock.

Certamente nunca houve alguém mais dorminhoco! O Sr. Tod subia e descia, descia e subia na cadeira.

Como não conseguia erguer todo o balde de água de uma só vez, ele pegou uma jarra de leite e despejou litros de água no balde aos poucos. O balde ficava cada vez mais cheio e balançava como um pêndulo. Ocasionalmente, uma gota espirrou; mas ainda assim Tommy Brock roncava regularmente e nunca se movia – exceto um olho.

Por fim, os preparativos do Sr. Tod foram concluídos. O balde estava cheio de água; a corda estava bem esticada por cima da cama e pelo parapeito da janela até a árvore do lado de fora.

“Vai fazer uma grande bagunça no meu quarto; mas eu nunca mais conseguiria dormir naquela cama sem uma limpeza de primavera de algum tipo”, disse o Sr. Tod.

O Sr. Tod deu uma última olhada no texugo e saiu silenciosamente da sala. Ele saiu de casa, fechando a porta da frente. Os coelhos ouviram seus passos no túnel.

Ele correu atrás da casa, pretendendo desfazer a corda para deixar cair o balde d’água sobre Tommy Brock…

“Vou acordá-lo com uma surpresa desagradável”, disse o Sr. Tod.

No momento em que ele saiu, Tommy Brock levantou-se apressadamente; ele enrolou o roupão do Sr. Tod em uma trouxa, colocou-o na cama debaixo do balde de água em vez de si mesmo e também saiu do quarto – sorrindo imensamente.

Ele foi até a cozinha, acendeu o fogo e ferveu a chaleira, por enquanto não se deu ao trabalho de cozinhar os coelhinhos.

Quando o Sr. Tod chegou à árvore, descobriu que o peso e a tensão haviam puxado o nó com tanta força que era impossível desamarrá-lo. Ele foi obrigado a roer com os dentes. Ele mastigou e roeu por mais de vinte minutos. Por fim, a corda cedeu com um puxão tão repentino que quase arrancou seus dentes e o derrubou para trás.

Dentro da casa houve um grande estrondo e respingo, e o barulho de um balde rolando sem parar.

Mas sem gritos. O Sr. Tod ficou perplexo, ele sentou-se bem quieto e ouviu atentamente. Então ele espiou pela janela. A água pingava da cama, o balde rolara para um canto.

No meio da cama, sob o cobertor, havia algo achatado e úmido – muito amassado, no meio onde o balde o pegara (como se estivesse atravessado na barriga). Sua cabeça estava coberta pelo cobertor molhado e ele não roncava mais.

Não havia nada se mexendo e nenhum som, exceto o pingar, pingar, pingar, pingar da água escorrendo do colchão.

O Sr. Tod assistiu por meia hora, seus olhos brilhavam.

Então ele deu uma cambalhota e ficou tão ousado que até bateu na janela, mas o pacote nunca se moveu.

Sim – não havia dúvida – tinha saído ainda melhor do que ele planejara; o balde atingiu o pobre velho Tommy Brock e o matou!

“Vou enterrar aquela pessoa nojenta no buraco que ela cavou. Vou trazer minha cama e secá-la ao sol”, disse o Sr. Tod.

“Vou lavar a toalha de mesa e estendê-la na grama ao sol para branquear. E o cobertor deve ser pendurado ao vento; e a cama deve ser completamente desinfetada e arejada; e aquecida com um banho quente de garrafa de água.”

“Vou conseguir sabão macio, e sabão de macaco, e todos os tipos de sabão; esponjas e escovas; e pó persa; e carbólico (benzeno) para remover o cheiro. Preciso de um desinfetante. Talvez eu tenha que queimar enxofre.”

Ele correu pela casa para pegar uma pá na cozinha – “Primeiro vou arrumar o buraco – depois vou arrastar aquele texugo no cobertor…”.

Ele abriu a porta…

Tommy Brock estava sentado à mesa da cozinha do Sr. Tod, servindo chá do bule do Sr. Tod na xícara dele. Ele próprio estava bastante seco e sorridente, e jogou a xícara de chá escaldante em cima do Sr. Tod.

Então o Sr. Tod avançou sobre Tommy Brock, e Tommy Brock lutou com o Sr. Tod entre a louça quebrada, e houve uma batalha terrível por toda a cozinha. Para os coelhos embaixo, parecia que o chão cederia a cada estrondo de móveis que caíam.

Eles rastejaram para fora do túnel e ficaram pendurados entre as rochas e arbustos, ouvindo ansiosamente.

Dentro de casa o barulho era assustador. Os bebês coelhos no forno acordaram tremendo, talvez tenha sido uma sorte que eles estivessem trancados lá dentro.

Tudo estava bagunçado, exceto a mesa da cozinha.

E tudo estava quebrado, exceto a lareira e o guarda-lamas da cozinha. A louça foi esmagada em átomos.

As cadeiras estavam quebradas, a janela e o relógio caíram com estrondo, e havia punhados de bigodes cor de areia do Sr. Tod.

Os vasos caíram da lareira, as latas caíram da prateleira, a chaleira caiu do fogão. Tommy Brock colocou o pé em um pote de geleia de framboesa. E a água fervendo da chaleira caiu no rabo do Sr. Tod.

Quando a chaleira caiu, Tommy Brock, que ainda sorria, estava em primeiro lugar, e ele rolou o Sr. Tod repetidamente como um tronco, para fora da porta. Então os rosnados e as preocupações continuaram lá fora, e eles rolaram pela margem e desceram a colina, batendo nas rochas. Nunca haverá nenhum amor perdido entre Tommy Brock e o Sr. Tod.

Assim que a costa ficou limpa, Pedro e Benjamin Coelho saíram dos arbustos.

“Agora vamos! Corra, primo Benjamin! Corra e pegue-os! Enquanto eu fico de olho na porta.”

Mas Benjamin estava com medo.

“Oh, oh! eles estão voltando!”

“Não, eles não estão.”

“Sim, eles estão!”

“Que terrível palavrão! Acho que eles caíram na pedreira.”

Ainda Benjamin hesitou, e Peter continuou empurrando-o.

“Seja rápido, está tudo bem. Feche a porta do forno, primo Benjamin, para que ele não perceba.”

Decididamente, havia atividades animadas na cozinha do Sr. Tod!

Em casa, na toca do coelho, as coisas não eram muito confortáveis.

Depois de brigar no jantar, Flopsy e o velho Sr. Bouncer passaram uma noite sem dormir e brigaram novamente no café da manhã. O velho Sr. Bouncer não podia mais negar que havia convidado companhia para a toca do coelho, mas ele se recusou a responder às perguntas e censuras de Flopsy. O dia passou pesadamente.

O velho Sr. Bouncer, muito mal-humorado, estava encolhido em um canto, protegido por uma cadeira. Flopsy havia tirado o cachimbo e escondido o tabaco. Ela estava fazendo uma limpeza completa e limpeza de primavera, para aliviar seus sentimentos. Ela tinha acabado. O velho Sr. Bouncer, atrás de sua cadeira, se perguntava ansiosamente o que ela faria a seguir.

Na cozinha do Sr. Tod, entre os destroços, Benjamin caminhou nervosamente até o forno, em meio a uma espessa nuvem de poeira. Ele abriu a porta do forno, tateou dentro e encontrou algo quente e se contorcendo. Ele o ergueu com cuidado e se juntou a Pedro.

“Eu os peguei! Podemos fugir? Devemos nos esconder, primo Pedro?”

Pedro aguçou os ouvidos, sons distantes de luta ainda ecoavam na floresta.

Cinco minutos depois, dois coelhos ofegantes vieram correndo por Bull Banks, meio carregando meio arrastando um saco entre eles, solavancos na grama. Eles chegaram em casa com segurança e invadiram a toca do coelho.

Grande foi o alívio do velho Sr. Bouncer e a alegria de Flopsy quando Pedro e Benjamin chegaram triunfantes com a jovem família. Os bebês-coelhos estavam um tanto caídos e com muita fome, eles foram alimentados e colocados na cama. Eles logo se recuperaram.

Um longo cachimbo novo e um novo suprimento de tabaco para coelhos foram apresentados ao Sr. Bouncer. Ele estava bastante arrependido e envergonhado, mas ele aceitou.

O velho Sr. Bouncer foi perdoado e todos jantaram. Então Pedro e Benjamin contaram sua história – mas não esperaram o suficiente para poder contar o final da batalha entre Tommy Brock e o Sr. Tod.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto do sr. Tod. Publicado originalmente em 1912 como “The Tale of Mr. Tod”. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 37

 

Fabiane Braga Lima (Reflexos)

Tudo que um dia amei, virou lembranças boas, muitas das vezes abstratas, mas como amei a cada segundo, enquanto eu pude. 

Hoje olhando para trás, pela janela da vida, vendo as estrelas brilharem no céu das memórias retidas, noto que bem no fundo de minha alma, todo amor se esvaindo. 

Preciso me segurar, mas não consigo, porque vejo o dia clareando e tudo esfumaçando. Nesta hora, penso nos amores prometidos, e eles parecem adormecidos, não querem acordar. 

Lembro-me dos pactos, marcas no corpo como digitais, tudo desapareceu no ar. E a abstrata e complexa neblina no ar, aos poucos, cobre-os! Não consigo ver seus rostos, apenas lembro-me de alguns momentos de euforia apenas.

Sinto que há tempos viraram lembranças então somente, nas quais insisto em buscar e nunca os ter aqui. O amor deve ser isto, poder ver no espelho da vida, ainda que esfumaçado, recordações que se partiram, ou nunca existiram. Não, talvez o amor seja o reflexo daquilo que imaginamos...!

Fonte: Enviado por Samuel C. da Costa

Recordando Velhas Canções (Porto Solidão)


Compositores: Gincko e Zéca Bahia

Se um veleiro repousasse
Na palma da minha mão
Sopraria com sentimento
E deixaria seguir sempre
Rumo ao meu coração

Meu coração, a calma de um mar
Que guarda tamanhos segredos
De versos naufragados e sem tempo

Rimas, de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando contra o cais

Rimas, de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando contra o cais

A solidão que fica e entra
Me arremessando
Contra o cais
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegando pela Solidão de Jessé
A música "Porto Solidão" interpretada por Jessé é uma verdadeira viagem pelas águas da introspecção e da melancolia. A letra utiliza a metáfora de um veleiro para representar a jornada da vida e os sentimentos do eu lírico. O ato de soprar o veleiro na palma da mão sugere um desejo de controle sobre o próprio destino, uma tentativa de guiar a vida em direção ao coração, ou seja, aos sentimentos mais verdadeiros e íntimos.

O coração é comparado ao mar, um lugar profundo que guarda segredos, versos perdidos e momentos que se foram com o tempo, como naufrágios que deixam vestígios no fundo da alma. A repetição das palavras 'rimas', 'ventos' e 'velas' evoca a ideia de que a vida é feita de ciclos, de coisas que vêm e vão, mas a solidão é o elemento constante que permanece, impactando o eu lírico de forma avassaladora, como as ondas que arremessam contra o cais.

A solidão descrita na música é quase tangível, e o cais representa o ponto de encontro entre a imensidão dos sentimentos e a realidade concreta. A música de Jessé, com sua melodia suave e ao mesmo tempo carregada de emoção, convida o ouvinte a refletir sobre a própria existência, as escolhas feitas e o peso da solidão que, por vezes, acompanha cada um de nós em nossa jornada pessoal.

Estante de Livros (“Bom crioulo”, de Adolfo Caminha)

A narrativa concisa, além da elaboração da linguagem, são elementos que conferem a Bom-Crioulo um lugar de destaque em nossa literatura. No entanto, seu maior mérito é conseguir alargar nosso campo de visão, primeiro por mostrar que o Naturalismo não está só nas mãos de Aluísio Azevedo. Em segundo lugar, por possibilitar uma discussão interessante no que se refere ao Determinismo e como o homem age em relação ao seu destino.

À primeira vista, esse debate poderia ser inspirado pelo que mais chama a atenção em sua história: o homossexualismo. No entanto, o autor não resvala por dois dos aspectos mais comuns desse assunto. Não há a questão de se levantar ou se esconder a bandeira da condição sexual. Além disso, não há a crise de identidade tão comum em tantas obras de mesma temática. Muito pelo contrário – a descoberta da preferência sexual deu ao protagonista mais força de viver.

Cabe aqui uma observação. Constantemente se diz que o homossexualismo é tratado nessa obra de forma crua e imparcial. De fato, o primeiro adjetivo pode estar correto, pois o sexo, na obra, faz-se de forma carnal, não havendo sublimação, o que é típico do Naturalismo, escola que apresenta o homem como animalizado, prisioneiro dos próprios instintos. No entanto, imparcialidade é um conceito questionável, pois a maneira como o narrador se refere aos atos íntimos de suas personagens – “atentado contra a natureza” – por si constitui um juízo negativo de valor.

No entanto, o homossexualismo não é a pedra de toque do romance, mas uma ponte para que se reflita sobre algo maior: até que ponto somos livres para decidir sobre nossa vida? Praticamente tudo na narrativa inspira essa questão.

De início, deve-se lembrar que Amaro, personagem principal, é escravo fugido. Quer ser dono de seu próprio destino. Até que num golpe de sorte (nem lhe perguntam sua procedência) é aceito como marinheiro, o que ampliará os horizontes. A possibilidade de viajar, conhecer mundo, faz com que alcance sua bem-aventurança, tanto que recebe o apelido de “Bom-Crioulo”, graças à sua benevolência que contrasta com seu porte físico – sempre descrito, é importante notar, como algo olímpico, superior ao físico dos brancos.

No entanto, a disciplina a que está submetido é outra prisão, que só vai ser percebida quando o protagonista conhece Aleixo, adolescente que trabalha como grumete na mesma corveta em que está Amaro.

Interessante é ter em mente que o protagonista ganha identidade graças ao outro. Entende por que suas duas experiências com mulheres foram fracassadas. Entende o que é ao descobrir do que gosta, o que o faz desencantar-se do meio em que está. Deixa de ser o marinheiro submisso. Tanto que o livro inicia-se com o relato das chibatadas que Amaro recebeu, justo por ter arranjado briga em defesa do menino. Detalhe: com essa técnica de sedução, o que Amaro consegue é mais gratidão do que amor.

Com a necessidade de reforma da corveta em que trabalham, os dois marinheiros são autorizados a descer no Rio de Janeiro. Amaro arranja um quarto na pensão de D. Carolina, antiga prostituta e que também colhe pelo protagonista uma enorme gratidão – ele a havia salvado de uma tentativa de assalto. Revela-se, mais uma vez, o espírito bondoso do Bom-Crioulo.

Aqui cabe mais uma observação. Não há reprovação nenhuma por parte da mulher quanto ao relacionamento que vê diante de si, ainda mais por Amaro ter mais de 30 e Aleixo pouco mais de 15. Ela entra no mesmo esquema do livro: não faz julgamentos nítidos. Tudo se passa meio torto, pela observação tangencial, indireta, do narrador sobre o que outras personagens falam. As questões morais não estão no cerne da obra. Esse mesmo toque tangente é visto no que se refere a sexo. Tem-se a coragem – pelo menos para os padrões da época – de se citar o que está ocorrendo, mas na hora de relatar, descrever, narrar o que de fato acontece, corre-se uma cortina de reticências.

Enfim, é criada uma estabilidade matrimonial efêmera. É digno de nota o que acontece entre os dois, quando se fecham no sujo quartinho de pensão. Amaro mais se delicia em admira o corpo do seu amado do que com o prazer sexual. Parece que o menino, além de dar ao protagonista identidade, dá também um sublime senso estético, ou algo próximo disso. É uma evolução, de certa forma.

Como já se disse, o equilíbrio da união é temporário. Em primeiro lugar, já se notam indícios de que não há amor, ou mesmo atração, mas gratidão de Aleixo por Amaro. Talvez isso justifique a impaciência do menino com a rotina do Bom-Crioulo admirar seu corpinho branco. Além disso, Amaro é transferido de navio, cujo capitão, extremamente rígido, só lhe dá folga uma vez por semana, ocasionando horários desencontrados entre os amantes – não se vêem mais, pois. E, para piorar, D. Carolina determina, como último capricho de senhora, seduzir o rapazinho, no que é vitoriosa. Estabelece-se, dessa forma, o mais estranho triângulo amoroso de nossa literatura, pois o elemento desestabilizador é uma mulher, que rompe justo a união de dois homens.

Insatisfeito, Amaro chega a beber, o que altera sua personalidade – é o único ingrediente que o faz radicalmente deixar de ser o Bom-Crioulo. Desequilibrado, arranja confusão e por causa disso recebe uma quantidade inominável de chibatadas. Baixa, portanto, a um hospital-prisão, em que mergulha no tédio da recuperação e do abandono. Chega a mandar um bilhete, pedindo a visita de seu amado, mas Dona Carolina inutiliza-o.

Solitário e frustrado, Amaro começa a ficar inquieto quando sabe, por meio de um companheiro que passa pelo hospital, que Aleixo estava de caso novo. Realiza, pois, mais uma fuga – sempre o tema da busca da liberdade – em direção da pensão. No caminho, a verdade é completada, o que o deixa mais furibundo, aspecto que se agrava pelo fato de já estar bebendo.

Então, o desfecho. De forma extremamente rápida, em meio à multidão, Amaro encontra Aleixo, mata-o e acaba sendo levado preso. O interessante é observar, neste momento, a movimentação da coletividade, acompanhando com curiosidade sórdida a cena para depois cair na apatia. Uma tragédia que mergulhava na anestesia do esquecimento.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 30

 

A. A. de Assis (O Pijama)

Esnobar um pijama elegante, tecido fino, com o monograma bordado no peito, era um luxo de truz

Nos outroras da vida, os homens eram vidrados em pijamas. De noite, depois do banho, os varões da casa vestiam o listrado, jantavam, sentavam-se numa cadeira de vime, as mulheres ao lado fazendo tricô, os compadres e vizinhos em volta contando casos, falando de política, de negócios, eventualmente de futebol, ou contando anedotas de papagaio.

Esnobar um pijama elegante, tecido fino, com o monograma bordado no peito, era um luxo de truz. Havia, claro, quem reparasse nisso, dizendo que pijama era coisa íntima, para usar no quarto de dormir, e não para se ficar vestido nele na sala, diante de senhoras e das visitas.

Mas os guapos janotas não resistiam à tentação de embrulhar-se na macia indumentária e tirar proveito das noites de verão para os seus compridos papos.

Com o tempo essa moda foi acabando. Porém existem ainda alguns amantes do conforto que até hoje não conseguem entender o ato de dormir sem o simultâneo ato de se empijamar. Até para a cochilada após o almoço, quinze minutos que sejam, acham indispensável trocar a calça e a camisa pelo pijama, sem o qual o repouso não parece repouso.

Ouvi falar de um que todo dia, no meio da tarde, fechava a sala dele no escritório por dez minutos e se empijamava para tirar uma pestana.

O mais ilustrativo, entretanto, é o caso de um ultracaprichoso muito simpático que morou durante alguns anos em Maringá. Um bem-humorado engenheiro, bastante conhecido, cujo nome vou omitir por mera e óbvia discrição. Quem me contou a história foi um amigo dele, que viajou em sua companhia num roteiro turístico pela Europa.

Para ganhar tempo, quem sabe também para economizar um pouco evitando pagar diárias de hotéis, costumavam deslocar-se à noite de um país para outro em ônibus-leito.

Acontece que, assim que o ônibus partia e se apagavam as luzes, o engenheiro abria a pasta 007, pegava um pacote muito bem arrumadinho e se trancava no sanitário de bordo. Voltava minutos depois vestido num belo pijama.

O companheiro de viagem, conhecedor das suas idiossincrasias, começava logo a fazer gozação e inevitavelmente os demais passageiros acabavam também botando cara de ponto de exclamação. Numa dessas ocasiões, até o ajudante do motorista veio lá da cabine perguntar se estava havendo algum problema.

O ilustre, contudo, nem te ligo. Esticava a poltrona, dava boa noite, cobria-se com o cobertor e roncava em dó sustenido, como se estivesse em casa. “Isto não é um carro-leito? Pois é, se é leito, é pra gente dormir… e se é pra dormir tenho que vestir pijama”.

Certo ele? Claro que sim. Não sei se eu teria a coragem de fazer a mesma coisa, mas fica aqui a ideia para o primeiro desinibido que for viajar de leito para São Paulo ou Balneário Camboriú. Creio que não haja nenhuma lei proibindo o uso de pijama no ônibus.

Contos das Mil e Uma Noites (A justiça de Karakouss)

Karakouss foi um dos déspotas mais esquisitos da história.

Seu nome tornou-se símbolo da injustiça, e a sua injustiça tinha um cunho especial, como mostra a seguinte história:

Quando Karakouss era governador do Cairo, um ladrão tentou entrar numa casa para roubar. Escalou a parede até a janela. Mas a moldura da janela cedeu, e o ladrão caiu na rua, quebrando a perna. 

No dia seguinte, o ladrão se apresentou perante o governador e disse: “Vossa Excelência, eu sou um ladrão de profissão. Ontem, tentei entrar numa casa para roubar, mas a moldura da janela era muito fraca; cedeu, e caí e quebrei a perna.” 

Karakouss ordenou aos seus guardas que trouxessem o proprietário da casa. O proprietário chegou, trêmulo. O governador repetiu-lhe a narração do ladrão e acrescentou: “Por que fizeste a moldura da tua janela tão fraca que cedeu e levou este pobre ladrão a quebrar a perna?” 

O homem empalideceu; mas ele conhecia o governador. Refletiu rapidamente e disse: “Excelência, não foi culpa minha. Eu paguei ao carpinteiro o bastante para que ele fizesse uma moldura resistente. Por que a fez fraca, não sei.” 

- Bem pensado, disse o governador. Trazei-me o carpinteiro. 

Quando o carpinteiro se apresentou, Karakouss lhe disse: “Este homem diz que te pagou o suficiente para que instalasses uma boa janela em sua casa. Por que fizeste a moldura da janela fraca demais para aguentar o peso desse pobre ladrão, que caiu e quebrou a perna?” 

O carpinteiro respondeu: “Excelência, não foi culpa minha. Quando estava instalando a moldura, uma moça bonita e vestida de vermelho passou na rua; distraí-me e esqueci de colocar os pregos necessários.” 

Karakouss mandou averiguar quem era a beldade e ordenou que a trouxessem. 

Quando ela chegou disse-lhe: “Foi por causa da tua beleza e do teu vestido vermelho que este carpinteiro não fixou bem a moldura da janela e, por consequência, este pobre ladrão caiu e quebrou a perna.” 

A moça respondeu: “Excelência, a minha beleza é de Alá, e o meu vestido, do comerciante da esquina.” 

-Trazei-me o comerciante, gritou Karakouss na sua procura da justiça absoluta. 

Quando o comerciante chegou, Karakouss lhe disse: “Tu, miserável comerciante! Por que vendeste um vestido vermelho a essa moça fazendo-a distrair o carpinteiro no seu trabalho e causando a infelicidade desse pobre ladrão?” 

O comerciante não soube o que responder, e Karakouss ordenou aos seus guardas: “Levai-o e enforcai-o na porta da prisão.” 

Mas o comerciante era muito alto para a porta da prisão. Os guardas inteiraram o governador do fato. 

Karakouss tinha resposta para tudo. Ordenou: “Procurai um comerciante baixinho e enforcai-o no lugar deste.” 

Os  guardas procuraram um comerciante baixinho, trouxeram-no apesar dos seus protestos e enforcaram-no na porta da prisão.

Assim, foi cumprida a justiça de Karakouss.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Mestre Sala dos Mares)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o Navegante Negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas

Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas
E por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história

Não esquecemos jamais
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas salve
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas faz muito tempo
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegação pela História: A Ode a João Cândido em 'Mestre Sala dos Mares'
A música 'Mestre Sala dos Mares', composta por João Bosco e Aldir Blanc, é uma homenagem a João Cândido, figura histórica brasileira conhecida como 'O Almirante Negro'. A letra faz referência à Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, quando marinheiros se rebelaram contra os castigos físicos, então comuns na Marinha Brasileira. João Cândido liderou essa revolta, lutando pela dignidade e contra as condições desumanas a que eram submetidos os marinheiros, em sua maioria negros e pobres.

A canção utiliza metáforas náuticas e imagens festivas para descrever a figura de Cândido, comparando-o a um 'mestre-sala', personagem tradicional do carnaval brasileiro, que com sua elegância e liderança, guia a escola de samba. A menção às 'regatas' e ao aceno pelo mar simboliza a liderança e o respeito que Cândido conquistou. As 'rubras cascatas' podem ser vistas como uma representação do sangue derramado pelos revoltosos e a resistência dos oprimidos, que mesmo em condições adversas, encontravam motivos para celebrar a vida e a liberdade.

A música também faz uma crítica social ao mencionar que o 'Navegante Negro' tem como monumento apenas 'as pedras pisadas do cais', uma referência à falta de reconhecimento e valorização dos heróis populares na história oficial. A repetição do verso 'Mas faz muito tempo' no final da música sugere que, apesar dos anos, as lutas e injustiças sociais continuam presentes e não devem ser esquecidas.

Teófilo Braga (O Evangelho da desgraça)

Era uma criança linda, linda como os amores. Os movimentos impensados da infância davam-lhe a cada instante uma nova expressão de candura, faziam ama-la, beija-la. Ela não sabia que estava sozinha no mundo; a pomba não tinha a asa maternal sob que se ocultasse, quando viesse o abutre pairando para arrebata-la. Ria, descuidada.

A graça com que saltava! Parecia um pequeno gato quando brinca.

Faltava-lhe pai e mãe que lhe soubessem interpretar todos os requebrados, a meiguice das palavras apenas balbuciadas, adivinhar seus medos, aspirar-lhe os risos, unir-se às suas alegrias, beber-lhe as lágrimas sem motivo.

Era uma florzinha nascida á beira da estrada, exposta aos ventos da noite, ao rigor das calmas, ao tropel dos que passam, banhada de perfumes que ninguém vem respirar, derramados ao capricho das virações. Pobre filha! Como estas plantas que se estiolam e secam, mal rebenta o gomo que as há de substituir, a mãe morrera ao traze-la à luz; com ela se foram para a cova todos os carinhos que nos embalam e fazem esquecer as dores por onde se nos dá a conhecer a vida.

Sem mãe!

Ninguém sabe o que é ver descer a noite negra, e as crianças que brincavam conosco caírem de cansadas em um regaço que acalenta, ouvir as cantigas que as adormecem e lhes afastam o medo; e não saber por que não temos aquilo também, não haver quem nos chame, nos fale e nos conte maravilhas, e nos esconda no calor benigno de um seio que bate por nós. A orfandade! E depois quando os primeiros alvores da mocidade começam a dourar-nos a existência, a acordar a um tempo todos os sentimentos bons e santos, não ter quem nos descubra e faça pressentir as sarças que nos podem prender, as torrentes que nos podem levar, os abismos em que se pode cair. Uma mãe! Ela nos ensina a amar e nos faz bons com o seu amor.

E se o amor não considerado da glória nos arrasta, se a vertigem de alcança-la dá coragem para afrontar o impossível, sacrificar a vida por um fumo que o tempo dissipa, feliz de quem tem uma lágrima na vida que nos ensine o que ela vale, para não da-la por tão pouco.

Mas a pobre criança na sua ignorância ditosa não sabia disto; brincava sozinha, aprendia a ser mãe. Que afagos perdidos com a boneca que embalava ao seio, que beijava, vestia e despia, falando com uma ternura que ela adivinhava, porque nunca no mundo ninguém lhe a havia dado, ensinado.

Aos sete anos perdeu seu pai; era pescador. Ele e a sua barca desapareceram em uma noite de temporal. Costumada a vê-lo poucas vezes, a criança não deu pela falta; esqueceu-se de que tinha pai, como se acostumara à falta dos desvelos de sua mãe. O pescador, quando ia para a costa deixava-a sempre em casa de uma vizinha, com quem distribuía os diminutos ganhos que apurava. Esta vizinha era como todas as pessoas que rezam muito com a mira no céu, e de tal forma se tornam refratarias a todo o sentimento, sem afeição a ninguém, incapazes de uma generosidade; então para as crianças, que não compreendem, são mais aterradoras que um mestre de meninos.

Quando a vizinha soube da morte do pescador, carpiu, deplorou, sem saber como subtrair-se ao encargo da abandonada criança. Se até ali o mínimo descuido e desmazelo eram providenciais, porque ao menos não vinham atrofiar os impulsos expansivos da infância, dali em diante a vizinha arrogou-se a autoridade absoluta, expressa nesta máxima popular: quem dá o pão dá o ensino. Mas a criança tinha um dom que a defendia de todas as atrocidades brutais da prepotência irresponsável, era linda, linda! 

Quantas vezes não passou pela cabeça da desalmada vizinha ampara-la até a idade em que pudesse auferir um lucro criminoso daquela formosura angélica. Beleza funesta que vem acumular a desgraça a indigência, dar uma cor mais sinistra a miséria. Tinha sete anos apenas! custava tanto esperar. Lembrou-se então a vizinha—uma ideia luminosa que a livrou de escrúpulos de consciência e lhe asserenou o animo alvoroçado por uma caridade que a sorte lhe impusera—a criança tinha ainda um avô do lado materno, feitor de uma rica propriedade. Era a algumas léguas de distancia; em um domingo, depois da missa da madrugada, pôs-se a caminho com a pequena e foi entrega-la ao avô.

Nada mais comovente do que a infância e a velhice quando se amam e se compreendem; tem ambas uma frescura juvenil, o frescor dos orvalhos dourados da alvorada e da geada noturna, a luz e sombra formando um brando crepúsculo em que se cisma sonhando alegrias por vir e ilusões que não tornam.

Não se descreve a loucura de júbilo que o velho sentiu ao ver a criança, carne da sua carne, uma parte da sua alma, que reflorescia viçosa no engraçado renovo. Ria, chorava no seu transporte, doido, doido de contente ao beija-la. Fitava-a, esquecia-se a ver-se naquele retrato, a menina dos seus olhos, como lhe chamava quando os soluços lhe não embargavam a voz.

— Eu não podia morrer, sair deste mundo, sem te ver, minha filha! Tu bem sabias isto; foram os anjos que te o disseram, por isso quiseste vir. Trazes-me o dia mais alegre da minha vida. Quando tua mãe nasceu foi num dia como este, e eu não me alegrei tanto; não me lembrava que uma filha é o melhor encanto da velhice! Estava longe da minha aldeia, muito longe, andava na guerra havia quase um ano, e ainda não era bem um que estava casado. Quando voltei, já tua avó e tua mãe tinham morrido. Não te importam estas cousas! Tu queres brincar? Vai correr, anda a tua vontade. Como ela é tão bonita! 

Eu choro sem saber porquê! Tinha pedido tantas vezes ao pai que a trouxesse cá um dia. Eu não devo deixa-la ir; ela é minha agora.

Quando o velho soube que a criancinha estava completamente órfã no mundo, deu graças ao céu por lhe haver poupado a vida de tantos riscos que atravessara. Julgava-se o roble secular que protege o arbusto flexível, quando as rajadas retorçam na floresta. 

Queria penetrar os desígnios da providencia, que o destinara no declinar dos anos para a guarda deste tesouro de candura.

O velho, à noite, sentava-a sobre os joelhos, falava como a uma pessoa desenvolvida, contava-lhe histórias do passado, até que adormecia, e se esquecia velando ao pé dela, horas inteiras. O que lhe não contaria o velho na sua simplicidade de justo? Mutilado como estava das longas batalhas em que entrara, perguntava-lhe a criança a história de  cada cicatriz. Ela nunca vira estas deformidades nas outras pessoas e tinha medo; o velho distraía-se de contínuo pintando-lhe as pelejas, as contraminas, as cargas; às vezes não falava para ela, falava consigo, veemente, exaltado, por fim ria-se de si, e acabava por beija-la muito. Isto repetido quase sempre ao fim da tarde, quando o sol dardejava na aresta da montanha, e vinha de longe a toada dolorida e plangente da sineta de uma freguesia próxima.

A aparência do velho infundia consolação; a falta de dentes dera-lhe uma disposição aos beiços desbotados de modo que parecia ter sempre um riso de mofa, inofensivo, divertido, comunicativo. Sobretudo, o que era mais simpático na sua fealdade eram uns olhos, de pequenos, tão alegres e vivos, que pulavam, como no vigor da idade e das paixões, em umas orbitas encovadas, maceradas pela senectude. As cicatrizes das balas e espadadas, misturando-se com as rugas da velhice, em vez de o tornarem repulsivo, davam-lhe um aspecto atraente, em que o bom humor que o animava deixava refletir um fundo de bondade, que tem quase sempre as pessoas que sofreram bastante.

E quanto não tinha ele sofrido? Noivo, casado de um ano, viu-se forçado a abandonar seu lar, deixar a roupa de camponês pela farda apertada, a choça pela caserna, o nome por um número, o leito fresco, cheiroso com roupas de linho, pela tarimba, e sobretudo a vida santificada da família que acabava de formar em roda de si, pela guerra em que se ia confundir.

Fora no tempo da guerra peninsular. Uma estrela funesta o acompanhou sempre, amparando-lhe a vida para sofrimentos inauditos. Nunca entrou em ação donde não voltasse ferido; todos galardoados sempre, dele ninguém se lembrava! A jovialidade dava-lhe forças para resistir a opressão da injustiça. De uma vez levaram-lhe os dedos quase todos, porque em uma carga de cavalaria teve de fazer das mãos capacete.

Retalhado, calcado aos pés do esquadrão, ainda ali a sorte acintosa o guardou para novas provações. O pobre soldado não sabia queixar-se; por fim como não pudesse dar ao gatilho, passaram-no para a artilharia.

Aí subiu de ponto a sua infelicidade. Em uma investida a peça que descarregava esteve quase nas mãos do inimigo; era um magnifico apresamento. Exasperado de raiva encravou-lhe o fuzil, para não fazer mais fogo. Depois, que a levassem os contrários!

Nisto o pelotão foi distraído para outro lado. Julgaram então o mísero soldado traidor aos seus, e descarregou-lhe o general um golpe que o estendeu por terra. Em uma nova investida dos contrários conheceram a prudência do artilheiro, mas deixaram-no estendido por morto; as carretas passaram por sobre ele e fraturaram-lhe as pernas.

Pediu debalde aos inimigos, que iam de avançada, que o acabassem de matar. Ninguém o ouviu, com o estrépito das descargas e do rodar dos trens, o ruído da cavalaria e o eco dos clarins. Depois da batalha, quando iam atira-lo na vala, pediu que lhe poupassem a vida. Doeram-se dele e levaram-no.

Passados longos anos, depois de percorrer alheias terras e ter afrontado a fome e a solidão de estrangeiro, pôde voltar a sua aldeia, desacompanhado de felicidade, sem um único sinal de reconhecimento pelos serviços. A esposa que deixara um ano quase depois de casado, tinha já morrido, deixando uma filhinha na orfandade. Ela mesma fora crescendo, fizera-se mulher; humilde, havia dias que se casara também com um pobre pescador. O velho soldado não quis ir regar com a sua presença a sociedade dos dois esposos; restava-lhe um antigo amigo, que ouviu atento as suas calamidades, e o convidou para tomar conta de uma rica herdade que possuía. Ao menos encontrava no fim da vida a suavidade dos campos, e a tranquilidade da solidão.

Quando se tem sofrido muito, cada momento está cheio de saudades da vida, porque o sofrimento é o sinal mais certo de que se tem vivido.

Estava pois nesse remanso o velhinho quando no desejo de ver a criança, filha de sua filha, passara anos e anos na doce expectativa. Só quando lhe a trouxeram e a beijou com a loucura de quem se sente duas vezes pai, é que soube dos novos desastres que o saltearam. Que havia fazer senão resignar-se! Aquela planta débil e mimosa era o que lhe restava na vida; protegia-a com afã, solícito, esmerado, como um amante, cioso de que um átomo impagável de pó a maculasse.

Em todos os momentos, em qualquer parte o velho e a criança agrupavam-se tão bem, que a natureza, por mais bela e surpreendente, era sempre acessória, o fundo do quadro em que realçavam. Neste idílio encantador a criança passou a infância mais descuidada e feliz; a liberdade dos campos, a serenidade do espírito deram-se as mãos no desenvolvimento dela.

Estava uma rapariga! Linda, linda como os amores!

Quem a via esquecia-se a olhar, contemplava. Era mais um Serafim do que uma criatura.

Os olhos tremeluziam-lhe com um fulgor metálico; pareciam nunca terem sido empanados pelas lágrimas. Cantava a toda a hora como um passarinho das balsas; mas as cantigas que modulava distraída, eram a expressão do segredo mais recôndito da sua alma. Lavando na ribeira ao som da agua corrente, ouviram-lhe uma vez cantar:

Os meus olhos são dois peixes
Que nadam numa lagoa;
Choram lágrimas de sangue
Por uma certa pessoa.

E quem seria essa pessoa, a primeira que soube arrancar uma lágrima deste olhos tão puros e meigos? Maior que todos os poetas, mais do que Deus talvez, quem soube dar forma ao sentimento daquele coração virginal em uma gota de agua, uma lágrima caída, irmã gêmea das que os anjos andam pelo mundo aparando em suas urnas cristalinas, para as engastarem como estrelas da noite saudosa no vácuo do firmamento. E ela cantava:

O coração e os olhos
São dois amantes leais,
Quando o coração tem pena,
Logo os olhos dão sinais.

Ela espalhava ao vento os seus pesares, mas ninguém os percebia; o avô alegrava-se ao vê-la sempre entrar em casa cantando; mal sabia que a harmonia sonora era o ruído de uma grande tormenta. A pobre criança sofria muito, amava! Há na vida do coração um momento em que todas as emoções, impulsos e sentimentos se alevantam a um tempo, e vão após o primeiro que os acorda. São como os perfumes derramados pela primeira brisa que chega. É como um estado nascente da paixão.

Don Juan sabia por certo este segredo, conhecia o momento em que todas as mulheres se perdem, porque se dão ao primeiro que aparece. 

Nem ela conhecia porque amava, nem tampouco o impossível que se erguia entre o seu amor e o nascimento desigual daquele que a endoidecera com as palavras balbuciadas tremendo. Amava o filho do antigo amigo de seu avô, dono da herdade em que habitava; estúpido, uma dessas almas boçais, nascidas para deturparem tudo, porque não veem, nem sonham senão o mal, mesmo no instante em que a linguagem mais intima da candura vem afagar-lhes o deserto em que o seu egoísmo as esconde. Demais, ele tinha esta regularidade de feições, de uma monotonia que enfada, chata, insignificante, mas que dizia bem com a alma que o animava, incapaz de qualquer ato generoso, de instintos vis, mas julgando-se digno de todos os respeitos diante da sociedade. Tanto mais criminoso parecia, quanto era ainda novo, também criança, em quem se espera a ingenuidade dos primeiros anos que tudo perdoa.

Aquele que a inocente rapariga amava, não pensava senão em perde-la. Era tão fácil!

Estava desprevenida, não via a traição da onça traiçoeira, onde esperava uma atração irresistível! Mal haja quem não fala verdade neste episódio mais santo e verdadeiro de toda a existência.

A pobre pequena não sabia estas subtilezas do pecado; foi após os seus sentimentos, deixou-se adormecer ao som da voz que a iludia, para acordar com a gargalhada fria e insultante no fundo de um abismo onde fora atirada para sempre. A alegria que até ali tivera, e era a sua principal beleza, perdeu-a com a inocência.

Já não cantava; andava silenciosa, desolada, como na aflição de uma dor que se não exprime. A única pessoa que a amara verdadeiramente no mundo, seu avô, não tinha alma para perguntar-lhe o que a trazia assim opressa.

Ela envergonhava-se das lágrimas, represava-as, bebia-as! Uma vez, pela volta das trindades, o velho voltava do trabalho; pousou a enxada ao canto da choça. Sentaram-se a mesa frugal; não comiam, preocupados por uma angústia que se não atreviam a confessar um ao outro.

Afinal o avô perguntou-lhe com uma doçura inexcedível:

—O que tens?

Ela irrompeu neste instante em uma torrente de lágrimas irrepreensíveis; ia para falar, os soluços entrecortaram-lhe a voz; atirou-se ao pescoço do velhinho, estreitou-o a si, sem poder falar.

Era o maior golpe que o desgraçado soldado experimentava, o último que lhe abalava a vida.

Compreendeu tudo.

Traduziu as meias palavras da queixa dolorida, e soube que o filho do seu protetor fora o seu algoz.

Não podia acusa-lo, vingar-se; era uma horrível colisão de deveres! Ficou com a imobilidade do espasmo; hirto, como Bonifácio VIII diante da multidão que ia para despedaça-lo. Sentado a mesa, com a mudez do assombro, assim permaneceu a noite toda, até que ao outro dia deram com ele regelado, cadáver!
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O desespero das imprecações do desgraçado da terra de Hus, deitado sobre o monturo, coberto de lepra, envergonhando-se da luz, desejando haver tido o sepulcro por berço e por seio que o escondesse a podridão e os vermes da terra, todo este ciclo da imensa agonia da alma que se alevanta até Deus e na sua fraqueza lhe exproba a desigualdade da luta, é uma das mais completas, a primeira manifestação do poema eterno da agonia.

Acorrentado sobre os rochedos que te serviram de leito, Prometeu vencido, a Força e a Violência guardaram os sarcasmos para a hora em que as extorsões convulsas não amedrontam os algozes; deixaram-te aos abutres famintos, fustigado dos ventos, mas ao menos o turbilhão erguia o grito da ameaça; o orvalho das noites refrescava-te o ardor da raiva, e o Oceano consolava-te porque te dizia: Prometeu, mesmo pregado contra essas rochas, sabes falar ainda com liberdade! Deus banido, os outros deuses feriram-te porque nos alentaste a vida com a esperança; se é de força o sofrimento cumpra-se a fatalidade! Eles não conheciam as dores fundas, que se não veem, que matam lentamente, as dores da alma, não as conheciam por isso não as infligiram. As grandes obras da arte, Jó e Prometeu, foram os que fizeram sentir no mundo as maiores dores; mas a dor moral, que os deuses antigos desconheceram, a dor muda, essa é uma criação do homem, o maior inimigo do homem.

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por JFeldman