segunda-feira, 29 de julho de 2024

Vereda da Poesia = 70 =


Trova Humorística de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Teu beijo, pela Internet,
vem sempre com tal calor,
que qualquer dia derrete
meu pobre computador!
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Poema de Lisboa/Portugal

FERNANDO PESSOA
(Fernando António Nogueira Pessoa)
(1888 – 1935)

Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta
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Aldravia de São Caetano do Sul/SP

FRANCISCO NUNES

não
enviei
condolências;
preferem
minha
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Soneto Paulista

GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP, 1890-1969, São Paulo/SP

Nós, III

Estas e muitas outras cousas, certo,
eu julgava sentir, quando sentia
que, descuidado e plácido, dormia
num inferno, sonhando um céu aberto.

Mas eis que, no meu sonho, luzidia
passas e me olhas muda. E tão de perto
me olhas, tão junto passas, que desperto,
como se em teu olhar raiasse o dia.

Data de então a página primeira
da nossa história, sem a mais ligeira
sombra de mágoas nem de desenganos.

Bastou-nos, para haver felicidade,
a pujança da minha mocidade
e a flor de carne dos teus verdes anos.
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Trova Premiada em Maringá

SÔNIA MARIA DITZEL MARTELO
Ponta Grossa/PR, 1943 – 2016

Das cordas de minha lira
ouço uma bela canção
que na saudade suspira
qual prece de uma oração!...
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Poema de Ribeirão Preto/SP

ELISA ALDERANI

Vida de poeta

Faz alguns dias que perdi a poesia.
Não tenho fantasia,
não tenho argumentos.
Será que meu coração está ficando lento?
Vamos tomar providências.
A primeira coisa é colocar alegria...
Aonde vou achar não sei dizer.
Olhando pela janela?
Ou dentro da minha panela?
Na geladeira, na cozinha, no quarto...
Na rua? Vai saber!
Paro, respiro fundo,
sinto a vida pulsar...
Estou viva devo me alegrar
e a poesia de novo encontrar!
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Quadra de Vila Real de Santo António/Portugal

ANTÓNIO ALEIXO
(António Fernandes Aleixo)
1899 — 1949, Loulé/França

Quem trabalha e mata a fome,
não come o pão de ninguém,
mas quem não trabalha e come,
come sempre o pão de alguém.
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Soneto do Ceará

FRANCISCA CLOTILDE
Tauá/CE (1862 – 1935) Aracati/CE

Ceará

Ave, Terra da Luz, Ó pátria estremecida,
Como exulta minha alma a proclamar-te a glória,
Teu nome refugastes inscreve-se na história,
És bela, sem rival, no mundo, engrandecida!

A dor te acrisolou a força enaltecida,
Conquistaste a lutar as palmas da vitória
Hoje és livre e de heróis a fúlgida memória
Jamais se apagará e a fama enobrecida.

O sol abrasa e doura os teus mares que anseiam
Em vagas que se irisam, que também se alteiam
A beijar com ardor teus alvos areais.

Eia! Terra querida, sempre avante!
Deus te guie no futuro em ramagem brilhante
Nas delícias do bem, nos júbilos da paz!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

Quem confunde hiato e ditongo,
não sabe o que é diapasão;
mistura a língua do congo
com dialeto alemão.
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Poema de Volta Redonda/RJ

ANTÔNIO OLIVEIRA PENA

Poeta é aquele que vê
A Márcio Marinho Nogueira

Poeta é aquele que vê
o belo e o feio do mundo;
que capta, com suas antenas,
toda a essência das coisas
e em seus versos a traduz.
Poeta é aquele que sabe
colher com seus dedos longos,
pelas margens dos caminhos,
flores, e ninhos, e salmos.
Poeta é aquele a quem cabe
distribuir os seus dons
e, estando à sombra ou ao sol
de suas aspirações,
faz aos poucos uma história.
Poeta é aquele que crê
e proclama esta verdade:
só o amor tem fundamento;
o ódio, a cobiça, o ciúme
não têm, não, razão de ser.
Poeta é quem dá, afinal,
través daquilo que escreve,
das palavras de sua boca,
água a quem reclama sede,
pão a quem lhe diz ter fome,
o que cobrir ao que está nu,
e flores — a este, àquele —
flores a toda a gente,
indiscriminadamente,
mesmo a quem, ah! sobretudo
àquele que lhe atira pedras.
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Foi o par pro beleléu...
e o fantasma, em tom moderno:
- Venho, à noite, aqui no céu,
ou você vai lá no inferno?
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Soneto de Maia / Porto / Portugal

JOSÉ CARLOS MOUTINHO

Sonetos atrevidos

Saí para a rua, com outro espírito,
O mundo é meu, ninguém me tira,
Sou único no mundo, sem atrito
Tenho a alegria, que nunca sentira!

As ruas são minhas e toda a sua luz,
Com o perfume das flores que as ladeiam,
Toda esta beleza, com alegria me conduz
À paz que todos neste mundo anseiam!

Como estou feliz e sou teimoso,
Nem com a métrica me importo,
Porque não quero ser famoso

Deixo a análise para os entendidos,
Levo a estrutura com desporto,
Insisto em fazer sonetos atrevidos.
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Enxugando em meu poente
muita lágrima sofrida,
você se fez, de repente,
alvorada em minha vida!
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Spina de São Paulo/SP

ARTUR JOSÉ CARREIRA

Tortos 

Poema em vazio,
seu conteúdo só
sem seus versos.

Estrofes em desordem na rima 
tropeçam por entre letras, sons,
sentidos tortos em pele imersos.
Esses sons, meio loucos varridos,
descem pela alma, meio inversos!
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

Num eclipse inesperado,
ficando só a espiar,
o sol se esconde ofuscado
pelo brilho em teu olhar.
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Soneto de Santos/SP

VICENTE DE CARVALHO
(1866 – 1924)

Esperança

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
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Trova Premiada em Caicó/RN, 2008

NEWTON VIEIRA
(Curvelo/MG)

São tantas encruzilhadas!…
Por isso eu me perco assim,
ao trafegar nas estradas
que existem… dentro de mim!…
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Poema de Curitiba/PR

PAULO WALBACH PRESTES
1945 – 2021

Atrás do tempo...

A hora que passa, o tempo que voa, 
igual ao pardal, que belisca à toa
a manga do meu quintal, e com o bico ainda sujo, põe-se a voar...

Eu espero assim...
Andando no tempo, tomando friagem na garoa gelada 
atrás de quimeras da doce primavera do botão da rosa... a desabrochar.
É o tempo correndo e a vida trazendo um novo amanhã...
no meu despertar...

Arranco um botão de minha camisa, pois chega o verão...
E eu ainda vestido de manga comprida num dia de sol, 
Que mede o tempo, arranhando o céu...

Com o corpo desnudo e a pele morena à beira do mar...
É tempo de amar...
...o ser que me envolve na ternura do cheiro, no perfume do ar.  

E a folha caída da velha mangueira no outono da vida
no caderno que leio a poesia que fiz...
Releio a folha marcada, já tão desbotada...
Pensei ser feliz...

E no sopro do vento que leva a folha e o tempo...
 e eu a esperar...
o encontro da espuma na gulosa areia o beijo do mar.

Mas o frio ardido do vento sulino começa a soprar...
E no fundo da alma, o inverno me acalma...
A noite me cobre, aquece meu corpo...
 me ponho a sonhar...

Acordo...
E ao ver no relógio o ponteiro girando, girando... 
Eu fico a pensar... 
...Na dura partida do amor e do tempo,
Que a vida nos faz... 
(Poesia classificada em 4º lugar no Concurso Internacional de Poesias Primavera 2003/2004 - S.Paulo/SP)
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Triverso de  Santos/SP

FRANCISCO ASSIS DOS SANTOS

Caminhos da infância…
As patas do cavalo
Na geada do campo.
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Pantum de São José dos Campos/SP

MIFORI
(Maria Inez Fontes Rico)

Navegando contra o vento 

Navegando contra o vento
sem levar mercadoria,
o seu barco sonolento
bordejava em agonia.

Sem levar mercadoria
num mar bravio e revolto
bordejava em agonia
um dos barcos, leve e solto.

Num mar bravio e revolto
num balanço tempestuoso
um dos barcos, leve e solto,
seguiu trajeto tortuoso.

Num balanço tempestuoso
naquele dia cinzento
seguiu trajeto tortuoso
Navegando contra o vento.
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Trova de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Cada um para o seu lado...
ninguém entende ninguém...
Quando o respeito é quebrado,
o amor se quebra também!
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Hino de São João Del Rei/MG

Salve, Terra gentil que fulguras,
No regaço da Terra de Minas,
Como um cofre das glórias mais puras,
Como um alvo das bênçãos mais divinas.

És estância de grato repouso
Aos que chegam cansados da luta!...
O teu seio é oásis formoso,
Onde uma alma o descanso desfruta!...

Há nas rochas de tuas montanhas
Um poema de glórias escrito:
Teu denodo em grandes campanhas
Teu amor no trabalho bendito.

Tua história de sempre, aparece
Circundada de um halo de luz
Pois se a glória o teu nome enobrece,
De bondade o teu nome reluz.

As muralhas das tuas igrejas
Sào proclamas da Fé que tu tens,
Fé que anima o fervor das pelejas,
Fé que abranda da vida os vaivéns.

Salve Terra!… Entre terras mineiras
Tens um posto de grande fulgor
Foram tuas as vozes primeiras
Contra o mal de um governo opressor.

Salve, terra querida e formosa!...
Salve terra de São João del-Rei!...
Sê tu sempre feliz e gloriosa,
Sentinela da Crença e da Lei!
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Poetrix de Curitiba/PR

ÁLVARO POSSELT

peregrinação

Como o poeta sofre
Faz o caminho in-verso
para chegar na estrofe
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Soneto de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

Pra quem quer fazer Soneto!

Soneto, peça rara da poesia,
tem rima, ritmo, métrica e estrutura,
motivo muitas vezes de agonia
pra quem, fazer soneto, se aventura.

A rima dá o tom da “melodia”,
a métrica mostra sua “escultura”,
no ritmo está sua “sonoplastia”,
e na estrutura a sua “assinatura”!

Composto de tercetos e quartetos,
depois dos dois quartetos, atenção,
os dois tercetos fecham o soneto.

Aviso: pode o Poeta, nos tercetos,
ser livre pra rimar. Pronta a “lição”, 
agora é só botar no branco o preto!
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Trova de São José dos Campos/SP

NADIR GIOVANELLI

Que tristeza ver o rio,
era lindo e caudaloso,
agora escasso e sombrio,
perigo tão nebuloso!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O burro e os donos

O burro de um hortelão
À Sorte se lamentava,
Dizendo que madrugava,
Fosse qual fosse a estação,
Primeiro que os resplendores
Do sol trouxessem o dia.
«Os galos madrugadores,
— O néscio burro dizia —
Mais cedo não abrem olho.
E porquê? Por ir à praça
Com uma carga de repolho,
Um feixe de aipo, ou labaça,
Alguns nabos e berinjelas;
E por estas bagatelas
Me fazem perder o sono.»
A Sorte ouviu seu clamor,
E deu-lhe em breve outro dono,
Que era um rico surrador.
Eis de couros carregado,
Sofrendo um cruel fedor,
Já carpia ter deixado
O seu antigo senhor:
«Naquele tempo dourado, —
Dizia — andava eu contente;
Cada vez que ia ao mercado,
Botava à cangalha o dente,
Lá vinha a couve, a nabiça,
A chicarola, o folhado,
E outras castas de hortaliça;
Mas se hoje, fraco do peito,
O meu dente à carga deito,
Em vez da viçosa rama
Da acelga, do grelo, ou nabo,
Só acho dura courama
Que fede mais que o diabo!»

Prestando às queixas do burro
A Sorte alguma atenção,
Lhe deu por novo patrão
Um carvoeiro casmurro.
Entrou em nova aflição
O desgostoso jumento.
Vendo faltar-lhe o sustento,
E em negro pó de carvão
Andando sempre afogado,
Tornou a carpir seu fado.
«Que tal! — diz a Sorte em fúria —
Este maldito sendeiro,
Com sua eterna lamúria,
Mais me cansa, mais me aflige
Que um avaro aventureiro
Quando fortunas me exige!

Pensa acaso este imprudente
Que só ele é desgraçado?
Por esse mundo espalhado
Não vê tanto descontente?
Já me cansa este marmanjo!
Quer que eu me ocupe somente
Em cuidar no seu arranjo?»

Foi justo da Sorte o enfado,
Que é propensão do vivente
Lamentar-se do presente,
E chorar pelo passado:
Que ninguém vive contente,
Seja qual for seu estado.
(tradução: Curvo Semedo)

Recordando Velhas Canções (Se eu quiser falar com Deus)


Compositor: Gilberto Gil

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz

Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou

Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho

Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar

Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que, ao findar, vai dar em nada

Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
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A Busca Espiritual em 'Se Eu Quiser Falar Com Deus' de Gilberto Gil
A canção 'Se Eu Quiser Falar Com Deus', composta e interpretada por Gilberto Gil, é uma profunda reflexão sobre a busca espiritual e a comunicação com o divino. Através de uma letra poética e introspectiva, Gil explora o tema da conexão com Deus, sugerindo que para alcançá-la, é necessário um processo de despojamento e humildade.

No primeiro verso, o ato de ficar a sós, apagar a luz e calar a voz simboliza o isolamento e a introspecção necessários para a meditação ou oração. A paz e o desatar dos nós representam a libertação das amarras materiais e preocupações mundanas que impedem a comunicação espiritual. A menção de ter mãos vazias e alma e corpo nus reforça a ideia de que a verdadeira conexão com o sagrado exige simplicidade e entrega total.

A segunda parte da música aborda a aceitação da dor e das adversidades da vida, como parte do caminho para o entendimento espiritual. Comer o pão que o diabo amassou e virar um cão lamber o chão dos palácios e castelos sugere humildade e a aceitação de situações difíceis. A jornada espiritual é descrita como uma aventura sem garantias, onde é preciso subir aos céus sem cordas para segurar, simbolizando a fé e a coragem necessárias para enfrentar o desconhecido. Ao final, a estrada que 'vai dar em nada' pode ser interpretada como a compreensão de que as respostas buscadas podem não ser encontradas nos termos esperados, mas que o próprio caminho é uma forma de encontro com o divino.

Roberto Carlos pediu a Gilberto Gil uma canção, sem especificar o tema. Sabendo-o religioso, Gil fez então “Se Eu Quiser Falar com Deus”, uma longa e filosófica enumeração de atitudes e pensamentos (“Tenho que ficar a sós / (...) / tenho que apagar a luz / (...) / tenho que calar a voz / (...) / tenho que encontrar a paz...”) distribuídos por 36 versos, sobre uma melodia repetida três vezes e de grande simplicidade na parte inicial, com seus dez primeiros compassos baseando-se numa mesma célula melódica.

O seguimento, que tem um caráter de soul music, ostenta um elaborado desenvolvimento melódico, em movimento crescente, só de colcheias, que vão atingir o ápice na tônica final, depois de uma intrincada sequência harmônica. Na terceira e última volta a palavra “nada” é repetida treze vezes, sem que se produza uma sensação de monotonia, em razão dos predicados assinalados.

Entretanto, talvez pelo seu sentido mais filosófico do que religioso, “Se Eu Quiser Falar com Deus”, não foi aproveitada por Roberto Carlos. “O que chegou a mim”, afirma Gil no livro Todas as letras, “foi que ele (Roberto) disse que aquela não era a ideia de Deus que ele tem”. Então, a canção foi gravada pelo autor no citado álbum, Luar, com grande orquestra de sopros e cordas, além de um coro feminino, salientando-se como a principal faixa do disco (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).
Fontes:

domingo, 28 de julho de 2024

José Feldman (Versejando) 144


 

Mensagem na Garrafa = 130 =


MARIA DE QUEIROZ
(Rio de Janeiro/RJ)

Gratidão

Diariamente eu chego a simples conclusão de que a vida é tão maravilhosa porque também é feita de colos, de feridas que cicatrizam, de amigos que celebram ou choram junto, de café coado com coador de pano, de gente que pega ônibus ou faz caminhada pela manhã, de quem planta o que se pode comer, de vizinhos que alimentam seus gatos com comida de gente. Que a vida é feita de algumas pessoas que direcionam todo o seu potencial criativo para melhorar a qualidade de vida de gente que eles nem conhecem. Que é feita de e-mails que chegam recheados de saudade e de cartas extraviadas solitárias numa gaveta de um correio qualquer. De muros e pontes e cais. De aviões que suprimem distâncias e de barcos que chegam. De bicicletas que atravessam cidades. De redes que balançam gente. De rostos que recebem beijos. De bocas que beijam. De mãos que se dão. Que existem pessoas altamente gostáveis, altamente rabugentas, altamente generosas, pessoas distraídas que perdem as coisas, mal-educadas que buzinam sem necessidade, pessoas conectadas que se preocupam com o lixo, pessoas sedutoras e seduzíveis, possíveis e impossíveis, pessoas que se entregam, pessoas que se privam, pessoas que machucam, pessoas que chegam pra curar desencadeadores de poemas, de sorrisos, de lições de vida que ficarão guardadas para sempre… A vida é tão maravilhosa porque ela nos compensa com ela mesma.

Eduardo Martínez (Os rabiscos da Ana Lúcia)

Ana Lúcia adorava fazer desenhos nos cantos dos cadernos. Sua mãe, no entanto, sempre que pegava a menina entretida com aquilo, não perdia a oportunidade de repreendê-la.

— Ana Lúcia, pare de rabiscar!

Teimosa que era, a garota, lápis na mão, parecia decidida a criar figuras diversas sobre o papel. Os amigos ficavam maravilhados, e a professora de artes, do alto de tanto conhecimento, afirmava que a aluna possuía talento incomum. Ana Lúcia sonhava acordada com o dia que seus desenhos seriam expostos em uma galeria, talvez até mesmo no Louvre, em Paris. 

O tempo passou, Ana Lúcia desenvolveu um estilo próprio. Tanto é que, não raro, alguém a convidava para ilustrar algum livro. Chegou a emoldurar alguns desenhos, que eram vendidos a preços módicos na feira do bairro, mas que a enchiam de esperanças de sobreviver da sua arte. 

Perto de completar 25 anos, a mulher conheceu João, um dos compradores dos seus quadros. O primeiro contato, apesar de agradável, não parecia nada mais do que a relação entre vendedora e cliente. Todavia, encantado com os traços produzidos por Ana Lúcia, o rapaz retornou à feira nas semanas seguintes, onde sempre comprava uma ou duas obras. 

Aconteceu no final de setembro, quando a primavera atiça os corações solitários. João, mesmo que tímido, convidou a artista para um café. Do café, foram ao cinema. Dali, foi um pulo até a cama, onde descobriram que não conseguiriam mais viver separados.

Juntaram os panos e, dois anos após, veio a pequena Lisa e, no ano seguinte, nasceram os gêmeos Francisco e José. Sem hora para desenhar, Ana Lúcia viu seus sonhos se perderem entre as pilhas de roupas e as fraldas para trocar. José, que precisou arrumar outro emprego, ainda lavava a louça, mas se sentia culpado por não poder ajudar mais a esposa. Faltavam-lhe forças.

As décadas seguintes voaram sem que Ana Lúcia tivesse tempo de perceber as rugas que se apossaram do seu rosto. Ela estava sentada no sofá, quando o marido chegou. Ele trazia um embrulho e, antes de entregá-lo à esposa, a beijou docemente nos lábios.

Que nem menina, a velha abriu o presente e se deparou com um bloco de folhas e um conjunto de lápis. Seus olhos cansados sorriram ao olhar o passado de maneira mais generosa. Tanto é que, pelos dias seguintes, Ana Lúcia voltou a desenhar compulsivamente. 

É verdade que, de vez em quando, imaginava sua saudosa mãe dizendo para ela parar de rabiscar. Seja como for, a desenhista já agendou uma exposição de seus quadros na garagem de sua casa. Parentes e amigos estão ansiosos para tal evento. 

Pois é, parece que os sonhos não têm data de validade.

Fonte: Blog do Menino Dudu. 27.02.2024