domingo, 9 de março de 2025

Eduardo Martínez (O Leitor)

Lia tudo! Sempre leu, antes mesmo de ser alfabetizado, quando ainda desconhecia a ordem certa das letras nas palavras. Era desse tipo que gostava de ler até nas entrelinhas, mesmo que elas fossem apenas espaços vazios para a maioria. Mesmo aquelas letras minúsculas nos rótulos de cosméticos eram minuciosamente exploradas. 
       
Ele se entretinha com tudo que possuía letras, palavras, frases pequenas e enormes. Não que ligasse para o tamanho delas, haja vista conseguia vislumbrar beleza em qualquer bula de remédio. Sua mãe não se conformava, parecia até falta de educação. Quantas e quantas vezes havia sido repreendido por ela: "Largue esse livro, menino! Não vê que temos visita?"

As crianças na rua corriam de um lado para outro, enquanto a sua mente viajava o mundo nas páginas, muitas vezes amareladas, dos livros da estante da avó. Não que ele também não brincasse com a galerinha, pois o suor chegava a pingar da sua testa, caía nos olhos e ardia. Ele esfregava as vistas com o dorso da mão, balançava a cabeça e, então, algo parecia guiá-lo para a leitura, mesmo que na imaginação. Nessa idade já trocava algumas figurinhas com o Machado de Assis, com o Lima Barreto, arriscava até umas investidas na Clarice Lispector.

A adolescência foi entrando, os interesses aumentaram, começou a namorar. Quando ia ao cinema com a namorada, ele não queria sair após o final da película. Ah, os letreiros eram o máximo para ele. A namorada tentava arrastá-lo pelo braço, mas ele, firme, resistia. "Quem é que se importa com os créditos de um filme?", insistia a namorada. Ah, para ele era a parte principal, seus olhos corriam a tela na frustrada tentativa de captar todas as palavras. 
    
Tanto é que, já caminhando pela calçada, ele tentava adivinhar o que era aquilo que ele deixou de ler. "George de quê? Produzido por quem?" Nem prestava atenção no som que cismava em continuar saindo da boca da namorada. Ele apenas olhava aqueles lábios vermelhos se abrindo e se fechando, pois, pensava, talvez as respostas para os seus questionamentos pudessem sair dali a qualquer momento. Mas nada! 

Quando já estava na sua cama, muitas vezes a madrugada lhe fazia companhia. Todavia, a sua mãe, sempre a sua mãe, lembrava-o que a hora de ir para a escola havia chegado. "Que sono!!!" Seus pés, quase pregados, arrastavam-no até o banheiro, já que os olhos pareciam que ainda estavam fincados no cinema na frustrada tentativa de captar todas as letrinhas, por mais miúdas que fossem, cismavam em correr pela telona.

Chegou a vida adulta! E como chegou rápido esse tempo de tantos compromissos inadiáveis! Não tinha carro, ia a pé pro trabalho. Lia todas as placas, todas as ruas, mal entrava no trabalho, uma montanha de papéis lhe eram atiradas na mesa pela chefe: "Leia tudo e me faça um relatório!". Ela era carrancuda, ele se divertia com a montanha de palavras espalhadas à sua frente. Todos os outros empregados olhavam com pena para aquele infeliz. Nem desconfiavam que aquilo era seu oásis.

Acabou se casando. Não foi com aquela namorada que cismava em puxá-lo pelo braço. Não que ligasse para isso. Os filhos vieram com o tempo, seus cabelos foram perdendo a cor, sua barriga não cresceu como a da maioria dos maridos, pois ele se alimentava principalmente de palavras, frases, orações subordinadas, verbos transitivos e intransitivos, vocativos. Até que um dia, sentado na cadeira de balanço da varanda, suas mãos fraquejaram e soltaram o volume, que despencou sem qualquer cerimônia no piso gelado. A cabeça pendeu para o lado, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz. 

O enterro foi breve, não havia muita gente, a chuva era fina. Todos foram embora antes mesmo do coveiro começar a jogar a terra sobre o caixão. O silêncio tomou conta do cemitério São João Batista, até mesmo os passarinhos pararam de cantar. Lá embaixo, seu corpo rijo e gelado parecia se incomodar com algo. Tentou se mexer, mas sem sucesso. "Cadê meus óculos?", A angústia o tomava por inteiro. Ele não conseguia decifrar as palavras na sua lápide.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
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José Feldman (Desabafo)

PRÓLOGO

A madrugada é um abrigo. Resumir uma vida inteira em poucas linhas é como tentar capturar o infinito em um frasco. Cada experiência, emoção e aprendizado é uma camada complexa que não pode ser reduzida à simplicidade das palavras. As nuances das relações, os desafios enfrentados e os sonhos cultivados se entrelaçam de maneiras únicas. Uma vida é um mosaico de momentos que, juntos, formam uma história rica e intricada. Assim, qualquer resumo sempre deixará de lado a profundidade da verdadeira experiência humana.

O sol se põe no pequeno quintal onde um homem de cerca de 70 anos, se encontra. O céu, tingido de laranja e roxo, parece refletir as cores de sua vida: um espectro de emoções, alegrias e tristezas, que se entrelaçam como as nuvens que passam lentamente. Ele respira fundo, sentindo a brisa suave que traz consigo o cheiro dos jasmins que florescem no jardim. Com sua cadela, Raio de Sol, deitada aos seus pés, decide que era hora de desabafar.
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DESABAFO

Desde a infância, fora moldado por pais que, embora judeus, não eram religiosos. Eles lhe ensinaram a importância dos valores, mas sempre o fizeram sob a rígida ótica dos mandamentos bíblicos. Cresceu ouvindo que deveria ser um homem de bem, mas em algum ponto, perdeu de vista o que realmente significava ser ele mesmo. A vida lhe deu rasteiras, e ele aprendeu a se levantar, mas a cada queda, um pedaço de sua essência se despedaçava.

Na juventude, enquanto trabalhava num laboratório, se apaixonou por Yasmin, uma mulher árabe, cujo sorriso iluminava até os dias mais sombrios. Juntos, enfrentaram o preconceito e a guerra que cercava suas vidas numa época de intolerância entre árabes e judeus, criando uma filha que, por um breve momento, trouxe luz ao seu mundo. Mas o destino, sempre cruel, não lhes deu tempo para sonhar. A menina foi tragicamente assassinada por assaltantes, e Yasmin, em um ato de desespero, tirou a sua própria vida, deixando ele em um abismo de dor e solidão.

Ele se lembra da noite em que tentou tirar a própria vida, atormentado pela crença de que Deus o condenara por amar alguém fora de suas crenças. A culpa e o luto se tornaram sombras que o acompanharam, enquanto buscava ajuda em terapias que nunca tocavam a raiz de sua dor. E assim, a vida passou, sem que ele conseguisse concluir nenhum projeto, sem que a sociedade e sua família entendesse a profundidade de suas cicatrizes.

Sozinho, se fechou em uma redoma e se lançou na literatura e na música, buscando preencher o vazio que parecia se alargar a cada dia. Mas, por mais que estudasse e se dedicasse, um sentimento de vazio o acompanhava. O olhar desaprovador dos outros, que viam sua falta de formação acadêmica como um fracasso, só alimentava sua frustração.

A literatura, a música e outras paixões foram as âncoras que o mantiveram à tona durante suas tempestades emocionais. Quando a dor da perda de Yasmin e da filha Samara, se tornava insuportável, ele encontrava refúgio nas páginas de livros que o transportavam para mundos distantes. Autores o ajudaram a explorar as profundezas da condição humana, refletindo sobre a dor, a culpa e a busca por sentido. Cada página virada era um passo a mais em seu processo de luto, permitindo-lhe externalizar sentimentos que, de outra forma, teriam permanecido aprisionados em seu coração.

A literatura ofereceu não apenas uma fuga, mas também a capacidade de dar voz ao seu sofrimento. Ele começou a escrever, não como um autor, mas como um catarse*. Poemas e contos curtos se tornaram diários de sua dor, em que registrava suas lembranças, seus medos e suas esperanças. As palavras se tornaram um espaço seguro onde ele podia chorar, gritar e, eventualmente, aceitar a realidade de sua perda.

A escrita se transformou em um refúgio e um processo terapêutico essencial em sua jornada de luto. Desde o momento em que a dor da perda se instalou em seu coração, ele percebeu que precisava de uma forma de liberar suas emoções e dar voz ao que sentia. A caneta se tornou sua aliada, e o papel, seu confidente. Cada palavra escrita era uma liberação. Começou a escrever como uma forma de catarse; suas emoções, antes sufocadas pelos traumas, encontravam espaço para serem expressas. Ao registrar suas lembranças, lágrimas e angústias, ele não apenas falava sobre a dor, mas também a confrontava. A escrita ofereceu um meio de transformar o sofrimento em algo tangível, permitindo que ele olhasse para sua dor de uma nova perspectiva.

Ao escrever, se viu mergulhado em um processo de reflexão. As páginas tornaram-se um espelho onde ele podia observar suas lutas internas. Ele começou a questionar suas crenças, suas decisões e as influências que moldaram sua vida. Começou a construir narrativas que lhe permitiram ressignificar suas experiências. Ele escrevia para Yasmin e Samara, não apenas como figuras trágicas, mas como partes essenciais de sua história. Ao recontar suas memórias, ele pôde celebrar os momentos felizes que viveram juntos, transformando a dor da perda em uma homenagem ao amor que compartilhavam. Ao escrever sobre essa experiência, ele conseguiu explorar sua dor e sua luta interna. Através das palavras, ele começou a libertar-se do fardo da culpa, compreendendo que o amor não era um pecado, mas uma força poderosa que transcendia barreiras.

Em suas reflexões, começou a escrever cartas que nunca seriam enviadas, endereçadas a Yasmin e à sua filha. Essas cartas, embora não destinadas a serem lidas, tornaram-se uma forma de diálogo com aquelas que ele perdera. Essa prática o ajudou a sentir uma conexão contínua com elas, como se pudesse compartilhar seus pensamentos e sentimentos, mesmo na ausência física.

A música, por sua vez, era como um bálsamo para a alma. Encontrou consolo nas melodias de compositores clássicos, cujas sinfonias pareciam compreender sua tristeza. As notas de Chopin e Beethoven ecoavam em sua casa, preenchendo o ar de uma beleza que contrastava com sua dor. Ele aprendeu a tocar saxofone, cada som se tornando uma extensão de seu coração partido. Quando a melancolia o envolvia, ele se entregava à música, permitindo que as emoções fluíssem através de suas mãos.

A música também o conectava a memórias de Yasmin. Havia uma canção que ela costumava cantar para a filha, Acalanto, de Caymmi; ao tocá-la, sentia como se estivesse revivendo aqueles momentos e as lágrimas vertiam por sua face como cachoeiras. Essa conexão o ajudou a navegar pela dor, transformando-a em algo mais palatável. Em vez de ser um mero espectador de sua tragédia, ele se tornou o protagonista de uma sinfonia de luto e amor.

Através da literatura e da música, ele encontrou um propósito renovado, um modo de honrar a memória de Yasmin e de Samara. Ele entendeu que a vida continuava, e que, apesar das cicatrizes, ainda havia espaço para o amor àqueles que lhe foram caros na vida.

A solidão tornou-se sua única companheira, até que encontrou um amor inesperado nos animais.

Seus cães e gatos tornaram-se irmãos, preenchendo o vazio que a vida lhe deixara. Raio de Sol, uma cadela resgatada das ruas, entrou em sua vida como um sopro de esperança. Com ela, redescobriu a capacidade de amar. Ela é a razão de seu sorriso, o motivo de suas caminhadas e as tardes de sol. Com ela ao seu lado, ele se sente menos sozinho, mesmo que a dor da perda ainda o assombre, mesmo após 50 anos.

Agora, sentado no quintal, olha para Raio de Sol, que o observa com aqueles olhos cheios de amor incondicional. Ele sente que, apesar de tudo, ela é a sua salvação. Com diversos problemas de saúde e o tempo se esvaindo entre os dedos, ele reza diariamente. Não por um Deus que o abandonou, mas por uma vida mais longa para Raio de Sol. Que sua cadela tenha o tempo que ele não pôde dar à sua filha, que possa sentir o amor que ele não pôde oferecer à Yasmin.

“Se eu tiver que partir”, pensa, “quero que seja ao lado dela. Que minha alma a acompanhe, onde quer que vá.” A paz verdadeira parece distante, mas ele sente que, ao menos, não estará sozinho na partida.

O amor que ele dá e recebe de Raio de Sol, que, mesmo em meio à dor, lhe proporciona momentos de pura felicidade. E assim, ele sorri, no silêncio, sabendo que, apesar de tudo, tinha vivido um amor que transcendeu todas as barreiras e preconceitos.

Ele fecha os olhos, desejando que o amor que sente por sua cadela seja o último legado que deixará ao mundo.
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EPÍLOGO

A madrugada é a mais fiel companheira, é ela que abraça e envolve em seu cobertor.

Madrugada, suave manto,
que me envolve em teu calor,
teu silêncio é um canto,
que acalma minha profunda dor.

Em teus braços a solidão se esconde,
e as estrelas, testemunhas do meu sofrer,
a lua, amiga que responde,
a cada lágrima que insiste em verter.

Teus sussurros são bálsamo e abrigo,
enxugando as dores que venho a sentir,
teu cobertor um carinho antigo,
que me ensina a esperar e a resistir.

A noite tece sonhos em meio ao pranto,
e na escuridão encontro a luz.
Madrugada… teu amor é um canto,
que me abraça, que me conduz.

Em cada pensamento que flutua,
teu silêncio se torna um lar.
Madrugada… doce e nua,
é em ti que aprendo a amar.

E quando a aurora, tímida, chega,
leva com ela o peso da dor,
mas em ti, ó madrugada, o mundo se aconchega, 
pois é em ti que vive o amor.
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* Catarse = em psicologia, liberação de emoções ou tensões reprimidas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sábado, 8 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 24 *

 

Giuseppe Paolo Dell’ Orso (Memórias de um Vinhedo)

Na Itália dos anos 70, a luz do sol dançava sobre as colinas da Pieve di Soligo, cidade do no interior da Itália, criando um espetáculo que parecia pintado à mão. Giovanni, um jovem de espírito livre, acordava ao amanhecer, quando a neblina ainda abraçava a terra. O aroma da terra molhada e o canto dos pássaros eram a sinfonia que lhe dava bom dia. A vida nos vinhedos era dura, mas cheia de beleza e significado.

Giovanni cresceu entre as videiras, aprendendo com seu pai os segredos do cultivo. As mãos calejadas do velho eram um testemunho de anos de trabalho árduo, e cada uva colhida era um pedacinho de história que se entrelaçava com a tradição familiar. As tardes eram passadas entre risadas e cantos, enquanto a família se reunia para a colheita. A alegria do trabalho em conjunto era contagiante e, para Giovanni, não havia lugar mais encantador no mundo.

A conexão com a natureza era profunda. Giovanni entendia que a terra não era apenas um recurso; era um lar. Ele via cada estação como uma parte do ciclo da vida — a primavera trazia o renascimento, o verão a abundância, o outono a gratidão, e o inverno, a pausa necessária. Essa harmonia era um reflexo de sua própria existência, onde cada desafio e cada conquista se entrelaçavam como as raízes das videiras.

Com o passar dos anos, Giovanni encontrou o amor em Isabella, uma jovem com olhos que brilhavam como as estrelas. Juntos, sonharam em construir uma família e cultivar não apenas uvas, mas também memórias. A cerimônia de casamento foi celebrada sob as videiras floridas, com amigos e familiares ao redor, dançando e rindo, enquanto o vinho escorria como um rio de felicidade.

A vida seguiu seu curso, e logo vieram os filhos. Cada um deles crescia correndo pelos vinhedos, brincando entre as folhas e aprendendo a amar a terra. Giovanni os ensinava a respeitar a natureza, a entender o valor de cada planta e cada animal que cruzava seu caminho. Para ele, a preservação ambiental não era apenas uma ideia; era um legado que ele desejava deixar.

Mas os anos 70 também trouxeram mudanças. A modernização começou a ameaçar o modo de vida tradicional. Máquinas pesadas substituíam as mãos calejadas, e vinhedos exuberantes davam lugar a monoculturas. Giovanni observava preocupado enquanto as colinas que antes eram vibrantes se tornavam mais áridas. O que aconteceria com o futuro dos seus filhos se a natureza fosse esquecida?

Em um dia especialmente claro, Giovanni decidiu que precisava agir. Reuniu a família e compartilhou suas preocupações. “A natureza nos deu tudo”, disse ele, com a voz embargada pela emoção. “Precisamos protegê-la, não apenas para nós, mas para aqueles que virão depois de nós.” 

As crianças, com seus olhinhos curiosos, prometeram ajudar. Juntos, plantaram novas árvores, criaram um pequeno pomar e começaram a aprender sobre as práticas sustentáveis.

Os anos passaram, e a família de Giovanni se tornou um exemplo na comunidade. Outros vinhedos começaram a seguir seu caminho, buscando um equilíbrio entre tradição e inovação. A conexão com a natureza foi reestabelecida, e a beleza das colinas voltou a brilhar. A luta pela preservação não era apenas uma batalha, mas uma dança entre os seres humanos e a terra, onde cada passo importava.

Giovanni olhava para seus filhos, agora crescidos, e sentia um orgulho imenso. Havia algo mágico em ver a continuidade da vida, em saber que suas lições foram passadas adiante. As risadas que ecoavam pelo vinhedo eram um lembrete de que a natureza e a família estavam entrelaçadas, como as raízes das videiras.

Hoje, ao recordar aqueles dias, Giovanni entende que a verdadeira riqueza não está apenas na colheita abundante, mas na conexão que cultivamos com o mundo ao nosso redor. A preservação ambiental é um ato de amor, um compromisso com o futuro. E, enquanto a luz do sol se põe sobre as colinas da Pieve di Soligo, ele sabe que, assim como as videiras, a vida é um ciclo contínuo de crescimento, amor e respeito pela natureza. Que as futuras gerações possam sempre encontrar beleza e sabedoria nas lições da terra.
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GIUSEPPE PAOLO DELL’ORSO nasceu em 1927, em Pieve di Soligo, na Itália. Desde jovem, demonstrava um profundo amor pela literatura, influenciado por seu avô, um poeta local. Foi para Roma estudar Literatura Italiana na Universidade La Sapienza. Destacou-se como um aluno excepcional, recebendo diversos prêmios acadêmicos. Após obter seu diploma, se mudou para a Inglaterra, onde fez pós-graduação em Literatura Comparada na Universidade de Harvard, cuja pesquisa lhe rendeu um doutorado com honras e o prêmio Harvard Literary Fellowship, um reconhecimento pela contribuição significativa ao campo da literatura. Em 2001, foi convidado a lecionar Literatura Italiana em uma universidade no Brasil, no estado do Paraná. No Brasil, se envolveu profundamente com a comunidade literária, fazendo amizade com muitos escritores locais. Organizou encontros literários e oficinas de poesia, promovendo um intercâmbio cultural que unia vozes italianas e brasileiras. Defensor ativo de causas sociais, contribuiu para várias entidades filantrópicas tanto no Brasil, quanto na Itália, focando em projetos que promovem a educação e a inclusão social, ajudando a criar bibliotecas comunitárias e programas de alfabetização em áreas carentes.  Aposentado, perpetua a ideia de que a literatura é uma ponte que conecta pessoas, independentemente de fronteiras. Em 2005 criou uma conexão com o gestor cultural José Feldman. Conheceu o trabalho deste na Biblioteca de Parma onde há trovas e poemas da autoria de Feldman. Juntos, iniciaram diversos projetos que visavam fomentar a literatura e a troca cultural entre Brasil e Itália.
“A influência de Feldman na minha carreira literária é inegável. Através de suas iniciativas, não só ajudou a promover minhas obras, mas também contribuiu para a criação de uma comunidade literária vibrante, ao mesmo tempo que eu trazia uma nova perspectiva à cena literária, enriquecendo o diálogo cultural com nossas experiências e visões. A nossa amizade é um exemplo de como a literatura pode unir pessoas de diferentes culturas e origens. Juntos, promovemos a poesia e a literatura, mostrando que a arte é uma ponte que conecta corações e mentes, independentemente das fronteiras. A admiração mútua e a colaboração entre nós é um testemunho do poder transformador da amizade na literatura.” (GP Dell’Orso)
Autor de diversos livros, tanto em italiano quanto em português, com destaque para a poesia. Seus textos e poemas refletem a fusão entre a tradição literária italiana e as influências culturais brasileiras.

Fontes:
Giuseppe Paolo Dell’Orso. Cantos da Terra. Enviado pelo autor.
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Vereda da Poesia = 223


Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

MANHÃ

A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede  dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.

Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.

Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência

num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
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Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

CAMINHOS DO CORAÇÃO

Quando tudo acaba no coração da gente,
Ficamos em meio a um deserto,
Sem direção, tudo é vazio,
A alma treme exposta ao incerto.

Na ânsia louca de preencher o espaço,
A alma aflita pede socorro,
O corpo balança cai em qualquer braço,
Assim começa tudo de novo,

A falsa esperança mostrou o caminho,
Em seus braços findou-se o medo,
Enganou-se de novo com falsos carinhos.

Seguiu os passos para linda miragem,
Pisou as flores, morreu nos espinhos,
E o amor começa no mesmo caminho.

De novo o deserto,
De novo o incerto,
De novo os espinhos…
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

VEM TER COMIGO, À NOITE, À MINHA CAMA
(Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21)

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.

No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.

Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.

Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
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Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

LOUCURA VERDE

Nas longas noites em que eu me enveneno,
cigarro a espiralar sobre cigarro,
traz-me a saudade o teu perfil bizarro,
que eu não sei mais se é louro ou se é moreno.

Não é bem um perfil, mas um pequeno
alvoroço de névoas, um desgarro
de linhas onde, surpreendido, esbarro
com o teu olhar a me sorrir, sereno...

Depois teu vulto se dilui aos poucos,
mas teus olhos heris, como os dos loucos,
ficam parados, mortos, ante os meus.

— Verdes, curvos cristais, por onde eu vejo
monstros verdes passando num cortejo,
sob um sol verde como os olhos teus.
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

CAMINHADA

A caminhada é longa, nós sabemos
que é difícil vencer este caminho,
mas a fé nos ajuda, assim nós cremos,
melhor lutar do que ceder ao espinho.

Não temer o perigo é o que queremos,
porque o mundo se torna tão mesquinho
que às vezes é preciso que busquemos
um punhado de amor e de carinho.

E enquanto a vida nos disser prossiga,
buscaremos obter na fé amiga
os pomos que a vitória nos conduz.

Almas gêmeas seremos pela vida,
unidas pelo amor – missão cumprida
para o destino que nos leva à luz!
= = = = = = = = =  

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

DESEJOS

Queria ser 
o seu “tudo” na vida...
o caminho a percorrer,
os perigos a enfrentar,
o amanhã por nascer,
o sorriso 
do seu olhar.

Queria 
ser o seu 
agora;
o seu melhor 
momento 
de felicidade
e encantamento...

Queria, 
ser também,
a sua, 
esperança.
A sua alegria,
a sua ilusão, 
e fantasia.

Queria, 
finalmente,
estar em seu coração...
ser seu momento
de reflexão
na calma tarde 
refletida lá fora.
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Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

DESENCANTO
(Primeiro sonho de amor, 1944)

Personagens esparsos… pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham… o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!

E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!

– Errei! Tinha as mãos de amores cheias…
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,

pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
“ sem nunca ter começo, teve fim”. (*)
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(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
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Cantiga Infantil de Roda
SAMBA LELÊ 

   Samba Lelê tá doente
Tá com a cabeça quebrada
Samba Lelê precisava
É de uma boa lambada

Samba, samba, samba, ô Lelê
Samba, samba, samba, ô Lalá
Samba, samba, samba, ô Lelê
Pisa na barra da saia, ô Lalá
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Abrigo de todo o mundo,
tens, quarto, testemunhado
exaltação do feliz
e queixas do desgraçado.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

VENTO MENINO

Vento menino
Despenteia meus cabelos
Brinca de Destino
E espalha as reticências...
Vento Menino
Faz com que eu viaje em sonhos
E reencontre meu  Amor...
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Luciana Soares (O Mistério do Pastel Desaparecido)

Toda sexta-feira era sagrada, na casa do Espanhol e de sua esposa Lulu, um rodízio de pastéis! E quem comandava a fritura (pilotava o fogão), era Dona Luiza, a sogra, uma verdadeira autoridade em massas crocantes e recheios generosos.

Os sabores eram variados: queijo, palmito, carne, camarão etc., mas o queridinho da família era o pastel de banana. 

Aquela semana, resolveram inovar e ousaram investir na versão: banana com queijo. Espanhol, que torceu o nariz no início, foi o primeiro a se render. Lulu deu a ideia de fazer meia dúzia, já prevendo a disputa.

Quando os pastéis ficaram prontos, o cheiro dominou a casa. Dona Luíza organizou tudo na mesa e, entre goles de suco e mordidas crocantes, chegou a vez de degustarem o “sexteto”, nome que deram aos pastéis. Dos seis pastéis de banana com queijo, cinco foram devorados em tempo recorde. Mas, e o sexto?

Espanhol, com a boca cheia, jurou que só comeu um. Lulu levantou suspeitas, mas estava certa de ter pegado apenas dois. Luiza, indignada, alegou que só deu uma mordida no dela.

A tensão pairou no ar. Reviraram a travessa, olharam embaixo da mesa, até checaram o “dog” da vizinha que apareceu na porta. Nada do pastel.

A tradição das sextas-feiras se manteve, mas desde então, toda vez entre uma mordida e outra, a pergunta ressurge: "Cadê o pastel que sumiu?"

E até hoje ninguém assumiu.
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LUCIANA SOARES CHAGAS é do Rio de Janeiro/RJ. Doutoranda em Educação, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Especialista em Gestão de Recursos Humanos. Formação em Pedagogia Empresarial. Especialização em Mídias e Tecnologia na Educação pela Universidade Veiga de Almeida e Licenciatura em Pedagogia. Docente há mais de 10 anos dos cursos de MBAs do Núcleo de Negócios e das Pós Graduação de Educação. Palestrante nas Jornadas presenciais para os alunos da EaD. Atuou como Instrutora comportamental em empresas como ABRADECONT, Marinha de Brasil-EMGEPRON, Miriam S.A., CIPA Administradora (BKR-Lopes e Machado), IBEF, Casa de Cultura (SevenStarmarketing). Diretora e sócia da Prassos Treinamento Empresarial. Autora de diversos E-books de disciplinas da área de Pedagogia na Universidade Veiga de Almeida e Organizadora do Livro E-Book da Coletânea de textos sobre inclusão escolar: Pedagogia.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
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sexta-feira, 7 de março de 2025

Adega de Versos 130: Silmar Bohrer

 

Monsenhor Orivaldo Robles (O desperdício)

Faz anos, era véspera do aniversário de meu afilhado, criança dos seus quatro ou cinco anos. A comadre surpreende-o atirando ao lixo um monte de brinquedos. “Que é isso, filho?”. A resposta desconcerta-a: “Ah, mãe, amanhã é meu aniversário. Vai vir tudo novo”. A comadre não alisa. Faz desabar sobre o pequeno um sermão a respeito de crianças pobres, que se sentiriam felizes com um só daqueles brinquedos que ele estava jogando fora. O compadre reforça a bronca. Conta de sua infância na zona rural. Com os irmãos fabricava os próprios brinquedos utilizando carretéis de linha usados, sarrafos de madeira, vidros de remédio vazios e outras peças. “O pai e os tios, meu filho, nem sonhavam com um brinquedo desses que enchem o seu quarto. Um só já nos tornaria felizes. Mas a gente não tinha dinheiro”. Confrange-se o coraçãozinho do garoto. Ele cai num pranto sentido, que pai e mãe precisam consolar.

Dias depois, na pia da cozinha aparece aberto um potinho de iogurte quase cheio. A repreensão vem na hora: “Filho, se você não aguentava tomar um inteiro, por que abriu? Quantos pobrezinhos desejam um iogurte...” Rápido, ele corta o discurso: “Ih, pai, não vem de novo com esse papo dos pobres, que outro dia eu fui obrigado a chorar por causa deles”.

A cena acontece todos os dias numa infinidade de lares brasileiros. Infelizmente, nem todos os pais são educadores como o compadre e a comadre. Boa parte se preocupa com cortinas, camas, sofás e roupas. Cuidam que restos de comida ou bebida não os emporcalhem. Cuidado cosmético, beleza externa para os outros verem, só isso.

O desperdício é hábito generalizado, que importa combater desde cedo. A criança não tem ideia do uso correto das coisas. Não sabe se está gastando muito ou pouco. Precisa de orientação sobre o sentido exato de quantidades e valores. Senão, vai se acostumar com o esbanjamento. Se os pais não transmitem, também no consumo, noções de disciplina – pior, se eles mesmos dão exemplo de gastança irresponsável –, será difícil corrigir vícios arraigados no povo.

O opúsculo “Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome”, publicado em abril de 2002 (Documentos da CNBB – 69), ensina, já no subtítulo: “Alimento, dom de Deus, direito de todos”. O acesso à comida de qualidade e em quantidade suficiente é direito de toda pessoa, de qualquer condição, em qualquer lugar do planeta. Como se tornar gente, na plenitude do termo, sem poder se alimentar?

A este absurdo chegamos: países cheios de pessoas doentes por comerem em excesso, enquanto em outros a população vem sendo exterminada pela fome. Dentro do Brasil convivemos com ambas as situações. Temos gente desperdiçando, ao lado de quem não possui o necessário para comer.

O problema vem de longe. Não será resolvido da noite para o dia. Mas é preciso que todos se sintam comprometidos. Não adianta ficar lançando a culpa nas costas dos outros. Para o faminto pouco importa quem provocou a fome. O que ele quer é comida.

Nas propostas concretas, sugerem-se medidas possíveis, algumas bem simples, como “educar para o melhor aproveitamento do alimento produzido, evitando todo o desperdício”.

É urgente começar dentro de casa, educando as novas gerações. Como, desde muito, fazem os compadres.
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MONSENHOR ORIVALDO ROBLES nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

Fontes:
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Antonio Brás Constante (Você sabe distinguir entre o certo e o errado?)

O ser humano é capaz de agir de acordo com um princípio moral coerente? E você? Você acredita ter a capacidade necessária para resolver seus próprios dilemas éticos? Outro dia li sobre um estudo feito por um pesquisador chamado Hauser, através do livro “Deus, um Delírio”, do escritor Richard Dawkins, onde foram colocados alguns dilemas morais a uma série de indivíduos, buscando respostas para estas perguntas.

No primeiro dilema haviam cinco pessoas presas aos trilhos de uma ferrovia, e você (sim, você leitor) tinha acesso ao centro de comandos dos trilhos. Um trem desgovernado vinha em direção a essas pessoas, e somente você poderia desviá-lo para uma linha secundária salvando a vida dessas pessoas, porém, na linha secundária também havia uma pessoa presa aos trilhos, ou seja, salvando as cinco pessoas você mataria o infeliz que estava sozinho, sabe-se lá fazendo o quê, nos outros trilhos. De acordo com o livro de Dawkins, diante deste dilema, aproximadamente 90% dos entrevistados, optou por sacrificar aquela pessoa solitária para salvar as outras cinco.

No segundo dilema havia cinco pacientes em um hospital que precisavam de transplante, cada um necessitava de um órgão diferente, você era o médico-cirurgião responsável pelo hospital, e descobriu que havia uma pessoa na sala de espera que era compatível com aqueles cinco pacientes, a pergunta agora é, se não existissem complicações jurídicas, apenas morais, você sacrificaria essa pessoa para salvar as outras cinco? Em torno de 97% dos entrevistados disse que era imoral matar alguém para salvar os pacientes.

Agora vamos misturar tudo e colocar os cinco pacientes no trilho principal do trem e o homem da sala de espera no trilho secundário, neste caso haveria ou não problemas na morte do homem sozinho para salvar os outros? Pode-se notar que no primeiro caso o arauto da morte é um fator externo (o trem) e que todos são vítimas sem qualquer conexão com o artefato, já no segundo caso o fator “morte” está intrínseco a cada um dos cinco doentes, como uma espécie de sina destinada a eles, neste caso pareceria injusto que outro indivíduo fosse sacrificado para salvá-los.

Na reflexão sobre estes dilemas o peso da decisão tende a se alterar quando novos elementos são apresentados, tais como: E se algum dos cinco pacientes fosse próximo a você (mãe, irmão, sogra, namorado cabeludo e tatuado da sua filha, etc), e o homem sozinho fosse um total desconhecido, ou quem sabe um corrupto, ou até sua ex-mulher? E se fosse o contrário? No caso dos trilhos, e se os cinco indivíduos fossem procurados pela polícia? E se a pessoa sozinha fosse uma criança? E se você tivesse que arremessar a pessoa nos trilhos para salvar as outras? E se essa pessoa fosse Madre Tereza de Calcutá? Ou Hitler? Ou se fosse seu filho...

Nossa mente vai dançando conforme as situações que vão se apresentando, onde o certo e o errado vão mudando de lado a cada nova informação, mas no fundo o resultado final é sempre o mesmo, trocar cinco vidas por uma ou vice-versa. Outro fator interessante é que quando apresentado em pequenas proporções, muitas vezes não nos damos conta do que podem representar tais escolhas, mas quando multiplicamos os números, nossa percepção muda, por exemplo, ao invés de cinco pessoas aumente para cinquenta milhões, e troque o indivíduo solitário por uma minoria de alguns milhões de habitantes, e perceberá como estas escolhas soam parecidas com aquelas difundidas pelas tiranias, para justificar seus genocídios históricos.

Dispomos em nossa herança genética de vínculos relacionados ao senso moral inerente a cada indivíduo. Algo forjado nos mesmos primórdios que definiram os sentimentos e sentidos de autopreservação de nossas vidas. Apesar de entendermos muitas de nossas escolhas como emocionais, elas acabam tendo raízes bem mais profundas e desconhecidas dentro de nossa frágil cabeça, do que podemos imaginar.

Somos um produto da evolução, que nos moldou tal qual um boneco de barro para se chegar até onde nós chegamos. E apesar de ser desprovida de qualquer mágica, o resultado de toda esta ciranda existencial é algo verdadeiramente encantador em seu produto atual e não final, pois assim como o universo, nós também somos obras inacabadas do ponto de vista macro de nosso desenvolvimento como raça, porém, finalizados diante de nossa finita condição humana.
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ANTONIO BRÁS CONSTANTE é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração, escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas ideias, seus pontos de vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores).

Fontes:
Recanto das Letras. 16 agosto 2009.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1756856
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terça-feira, 4 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 23 *


 

Manuel de Oliveira Paiva (Pobre Moisés que não foste!)

A janela estava aberta ao luar: porém, de uma grande amendoeira, que subia quase apegada aos altos muros da casa, caíam sombras negras fazendo lavores imensos no pano do caiamento, e assim, era numa grande mancha, preta como uma nuvem de chuva, que a janela emoldurava-se, adquirindo as parecenças de um remendo quadrilongo, de um tampo de fogo, sobre um pano de trevas. Uma cabecinha loira despontou do ambiente luminoso, e rapidamente fechou-se. Ficou tudo no escuro cá fora, a não ser a face dos corpos onde batia o luar. O murmurejo das ondas ressoava como a escoar pelo chão.

O regato achatava-se morno e quase invisível sob rijos golpes de sombra. Um corpo alvo se encaminhava por ele acima, e ouvia-se o chape-chape dos pés.

A intervalos, o corpo resplendia de luar.

Depois, a janela abriu uma greta, como uma larga fita de fogo, e a fita fez-se mais larga, e em seguida, de modo que rasgou-se e desapareceu. Ficou tudo no escuro outra vez, a não ser a face dos corpos onde batia o luar.

No dia seguinte, a noite estava zangada. A lua, que ontem era a princesa de pezinhos pequenos, hoje era a Maria Borralheira; tudo era cinza no seio do luar, nem as lindas sombras negras e nem os coloramentos mágicos porejando encantos de poesia e saudosa tristeza. O céu queria chover, o céu queria chorar, o céu queria mais proteger a virgem que lhe confidenciara na janela aberta.

Virgem?!

Pois quem é que não conhece na vila o velho Antônio Faraó? É aquele que habita no sítio cheio de canaviais. Ele é o senhor da mulher loura que apareceu na janela. É um homem sem mácula. Jesus, então, por que é que a janela não se tornou a abrir? Pois aquilo não era a alegria dos raios da luz e a predileção das sombras da amendoeira? A amendoeira? Cortaram-na!

E quem era aquele que subia a corrente fazendo chape-chape? Ele amava muito a mulher loura. Um dia ela disse-lhe: — Quando vires a luz na minha janela, sobe a amendoeira, e apega-te ao lençol que penderá da sacada.

E ele viera; mas, quando tornou a desaparecer na corrente, fazendo chape-chape, jurou a si que ali não voltava mais. "Tu me enganaste! dissera ele, ao despedir-se dela. — Meu pai só planta em roçado novo. A capoeira é para se dar aos cavalos."

"Não compreendo" — respondera-lhe a amante. — E logo desatou a chorar.

O homem tinha o coração de fogo, porém a decepção apagou. E ficou de gelo. Assim, para nunca mais, desapareceu na corrente, fazendo chape-chape.

— O velho Antônio Faraó quase endoideceu. A mulher loura botou-se a ele como uma fera e disse-lhe:

— "Desgraçado!"

E calou-se. Não disse mais, porque estava toda cheia, desde o cérebro até ao ventre. Caiu para trás, e pediu veneno a ele — que pelo amor de Deus matasse-a! Mas, neste ponto, ajoelhou-se, pôs as mãos, e pediu-lhe, cheia de lágrimas, que a deixasse viva, porque, santo Deus, no seu corpo de mulher palpitavam dois corações vivendo um da vida do outro.

Contudo, era tremendo e feroz o olhar que ela flechava para o pai de seu filho. E achava horrível a ideia dele, a de ter aberto a janela para a entrevista de um inexperiente mancebo, afim de salvar a honra.

"E então? blasfemara o velho, chacoteando, a remexer num saco de dinheiro — Porventura José não é o pai de Jesus?..."

Hediondo!

E os meses corriam, bem como as águas do riacho. Uma vez, vinha rompendo a aurora, e foi a primeira vez que a janela se abriu, desde que o mancebo veio e foi para nunca mais. Foi também a primeira vez que a mulher loura sorriu, desde aquela cena com o António Faraó. Agora ela podia morrer, porque os dois corações que palpitavam no mesmo corpo se tinham separado: o seu filhinho nascera! E foi por isso que o sorriso da mocidade reabriu-lhe os lábios secos de mártir.

Mas era preciso salvar a honra de Antônio Faraó. A mulher loura desmaiara num frouxo de sangue. Nesse ínterim, desapareceu o seu filho. Ela acorda, ergue-se pálida, grita por ele, e acima de suas forças, corre à janela donde sentia-se cheiro do rosicler da aurora, se debruça, estira o pescoço, aflita...

Nas praias do riacho cavava um homem, com a ponta de um facão, uma covinha onde se poderia sepultar um botão de rosa.

Com as suas praias lavadas, o riacho parecia um poço comprido e interminável, manso, com uma correnteza que lhe esflorava apenas, e umas tremulações de quando um líquido quer abrir a fervura; de modo que as ondulações eram antes efeito de um ventinho que a ameaçava engrossar. As águas, em si, aparentavam uma quietude, uma pachorra admiráveis.

O lugar, onde o homem cavara uma covinha, era sob o dossel de uma bananeira. O sol, no limbo de uma larga folha de tinhorão, avivava transparências, desenhava-lhe velames como em fina cútis de moça, e projetava embrazinhas, que o vento movia tremendo, para o pequeno cômoro que entupira a covinha onde sepultar-se-ia um botão de rosa.

Por cima do bosque o dia empoeirava deslumbramentos sem par. As flores se destacavam nas polpas enormes da folhagem, e pareciam rir de inocência.

Mais tarde caiu a chuva e o riacho encheu, subiu, trepou, até as moitas do bananeiro. Agora, mourejava nas areias do leito a ação de uma volumosa corrente, improvisando cômoros e os desfazendo.

Nos tapumes, ao passar entre as estacas, a água se abria como dedos, a espumar e a marulhar. Escavava canais, espraiava e revolvia-se no polme (massa líquida) do enxurro. A superfície líquida não era mais uma casquinha de espelho que em seu seio recebia um paraíso ideal pintado para debaixo do chão a golpes de sol e de claridade.

O turbilhão montava. E parecia um rio de lama, chicoteado pelos cordõezinhos da chuva. Caía sobre a natureza uma zoada infernal.

O sol, pé ante pé, rasgando uma brechinha entre as altas nuvens de repouso, furava pelo dossel do bananeiro e descia até ao lugar do cômoro que encobria a covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. "Nada. Aqui não está coisa alguma." O sol falava consigo mesmo, gesticulando como um espião, na pontinha dos pés, com um olhar tão vivo que abria transparências no limbo das grandes folhas. Foi adiante.

O riacho tomara juízo, recolhendo-se ao seu leito modesto e voltando à pacatez de bom colega. Recebeu o sol com todas as cortesias. Acendeu rebrilhamentos à tona, encheu-se de imagens que pareciam um paraíso debaixo do chão, mostrou que imensamente amava aos seus amigos a ponto de conservar dentro de si o retrato vivo do bananeiro, e dos tinhorões verdes e púrpuros, e das touceiras de borboletas, de tudo e de tomos, até do próprio céu que bem alto mora.

Porém ambos se retraíram quando avistaram, passando o caule do coqueiro caído que servia de ponte, a mulher loura que habitou a janela do castanheiro cortado. A imagem caía de águas a fundo com a cabeça para baixo. Aqui o sol acendeu-se mais, a fim de que o riacho gozasse da aparição, e pintasse grandes segredos, e fartasse o peito nela toda. Ela passou e foi direitinha ao lugar onde vira o homem cavando com um facão uma covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. E deu um grito, abugalhou os olhos, e caiu de joelhos, mãos postas para o céu:

— Ah! Ela olha para cima, o seu olhar se parece comigo, os seus cabelos são meus irmãos. Implora para cima, é a mim que ela pede, porque aqui quem manda sou eu — disse o sol, incandescendo raios de alegria.

— O que ela quer sei eu, que vi tudo — respondeu o riacho. — E cochichou com o sol, que se estendia sobre ele, num amplexo dourado.

Vamos, protejamos a pobre mãe!

— Mas olha, não vês tu aquele sujeito que atravessa a ponte e segue os mesmos passos da mulher loura?

— Que importa! Protejamos a pobre mãe! Ela é a judia cativa, tu és o Nilo, e eu sou o grande Deus dos oprimidos! Anda! Revolve-te!

Sobre a água estendiam-se natas de claridade trêmula ao fremor da corrente. Folhas maduras do bananeiro e tudo o mais ao redor, como que era chupado para o fundo, em perspectiva. E as águas em comoção pareciam de bronze dourado, pareciam de seda furtiva entre verde e cor de fogo. E esse manto com modos que se ia rasgando. O zéfiro soprava embalamentos doces na folhagem. O sol tremia paternalmente. E num grande riso de luz e de marulhos, o riacho apresentou ao sol, de repente, no chamalote encantador das águas, o corpo encantador de um cupidozinho de espumas.

A mulher soltou um grito alegremente desvairado e saltou para as águas. Porém não pôde. O homem que, armado de um facão, abrira a covinha onde poder-se-ia sepultar como um botão de rosa o corpinho encantador de uma criança morta, estava ali e agarrou-a.

Ela ficou esbugalhando um olhar de pedra para a tumidez das águas. Ele também olhava assim. E a corrente lhes parecia membrana viva de um animal, de modo que o lombo chato de uma cobra que não acabava de passar, de uma cobra insinuante, fascinadora, que hipnotiza.

Assim, deslizava o riacho por entre a vegetação, como uma serpe. E ali, estava a mulher loura tolhida pelo homem do facão, semelhante um jacaré sob as garras de uma onça.

E o cupidozinho foi, foi, foi, e sumiu-se nas águas onde quando a gente andava fazia chape-chape.

Fontes:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. Publicado originalmente em 1888. Disponível em Domínio Público.
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