quarta-feira, 9 de abril de 2025

Asas da Poesia * 1 *


 Poema de 
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa (1919 – 2004) Porto

Cantata de paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietnam
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
= = = = = = 

Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema (III)

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.
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Poema de
WASHINGTON DANIEL GOROSITO PÉREZ
Irapuato/ Guanajuato/ México

Poeta

A noite me pede um poema
é indulgente com este bardo,
ferido pelo silêncio.
Faz minha caneta dançar,
meu ritmo, minhas palavras.
Letras noturnas, letras na solidão.
Escrevo algumas na minha mão esquerda,
Elas serão o início de um poema.
Há folhas que não admitem poesia
e armazenam palavras escondidas.
Você sente o aroma do verbo.
Letras que saltam,
para construir poemas para loucos
como a balada de Ferrer,
com espírito insurrecional
versos de vaga-lume,
iluminam
Morre a noite
e também o poeta,
um pouco a cada verso,
que derrotará a ferrugem do tempo,
e a poeira do esquecimento,
escreve poesia.

(tradução do espanhol por José Feldman)
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (VII)

Avozinha Garoa vai contando
Suas lindas histórias, à lareira.
"Era uma vez... Um dia... Eis senão quando..."
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando
O pezinho da Gata Borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro inda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um' outra história principia,
Para embalar meu coração dorido
Que está pensando, sempre, em outra cousa…
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Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Saudade – no fim do dia, 
já sei por que me dói tanto: 
aumenta a melancolia, 
dobra as dores do meu pranto! 
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Poema de 
JOSÉ PEDRO DA SILVA CAMPOS D’OLIVEIRA
Moçambique (1847 – 1911)

A Uma Virgem
(Improviso)

Motora dos meus martírios!
Causa da minha saudade!
Ingênua e casta deidade!
Minha terna inspiração!
Condói-te da triste sorte
Do jovem que te ama tanto,
Que por ti verte agro pranto
Gerado no coração!
Rasga-me o peito, se queres,
E vê nele a intensa chama,
Que há três anos o inflama
Em cruas dores, sem fim...
De padecer já cansado
Vou sentindo a morte dura
Arrastar-me à sepultura,
E na flor da idade assim!...

E podes ser tão tirana,
Que possas ver indif´rente
D´anos de´nove somente
Morrer o teu trovador?!
Ai! Não! Alenta-me a vida,
Reprime esta dor infinda
Dando-me só, virgem linda,
O teu puro e casto amor!...

(obs: foi mantida a grafia original)
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Poema de
OLIVER FRIGGIERI
Floriana/Malta

Somos água viva

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

(Tradução do Maltês e Espanhol por José Feldman)
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Poema de
LUCIANA SOARES CHAGAS
Rio de Janeiro/RJ

Iara, menina do encanto

Na praia dourada, a menina a brincar,
Iara, com olhos negros a brilhar.
Sorriso faceiro, de encanto sem par,
Sua alegria faz o mundo dançar.

Cabelos cacheados, como ondas do mar,
Bailam no vento, livres a sonhar.
Inteligente e doce, um brilho especial,
Sua presença é luz, um dom celestial.

Amiga querida, sempre a cativar,
Com um toque de rosa, um sonho a criar.
Unicórnios encantam seu mundo infantil,
Irmã e companheira, de amor tão gentil.

Toda charmosa com suas vestes de bailarina,
Iara, sua risada é melodia divina.
Um poema pra ti, menina...
És estrela brilhante, de alma cristalina.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Esperança

Enquanto há vida, eu sei, há esperança
que é uma das virtudes teologais,
foi isso que aprendi desde criança
e na verdade não esqueci jamais.

As outras são: o amor que não se cansa,
e a fé, que todo dia eu tenho mais!
E aí, querida, está minha confiança:
juntos faremos nossos esponsais!

Vou esperar o quanto for preciso,
certo de que não perderei o juízo,
até o dia que você me amar.

E nesse dia eu serei tão feliz,
que vou levar você até a Matriz,
e sob bênçãos, vamos nos casar!
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Hino de 
SÃO TOMÉ/PR

Quando os homens rasgaram um dia
Os mistérios do velho sertão
Entenderam por certo que havia
Um poder incomum neste chão
Visionários, a voz da esperança.
Numa luta de ardor e de fé
Na paisagem da verde pujança
Projetaram à luz São Tomé

ESTRIBILHO
Na mata virgem deslumbrante,
Rio dos Índios o solo a irrigar
A cachoeira borbulhante
Um poema de amor a entoar,
É tão belo, neste recanto.
Outro igual asseguro não há
São Tomé que eu amo tanto,
É orgulho do meu Paraná.

A riqueza brotando imponente
Desta terra de cor peculiar
A mostrar o valor de tua gente
No labor de uma faina invulgar
Na cadência marcada dos passos
Deste povo que ruma seguro
Carregando alegria nos braços
Para um grande soberbo futuro.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Tu nasceste nesta rua,
eu nasci além dos mares,
mas foi sempre a mesma lua
que juntou nossos olhares!
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Recordando Velhas Canções
SOLIDÃO 
(samba-canção, 1961) 
Adelino Moreira

Não, não quero mais o seu amor
Chega de amar, chega de dor
E de esperar em vão

Quando desperto
E vejo o leito vazio
Eu sinto frio no coração

Não, não quero mais ficar sozinha
Já Estou cansada de esperar
Acalentando a promessa
De que um dia
Você vem para ficar

Quem não tem direito ao amor
Não deve amar
Para não sofrer
Para não chorar

Veja meus Deus
A triste sorte minha
Na solidão do quarto
Eu beijo o seu retrato
E vou dormir sozinha
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Contos das Mil e Uma Noites (O homem que queria ser califa por um dia)

Conta-se, ó rei afortunado, que havia em Bagdá um jovem solteiro chamado Abu-Hassan. Seus vizinhos nunca o viram convidar alguém por dois dias seguidos ou convidar alguém de sua própria cidade. Todos os que visitavam sua casa eram estrangeiros. Não compreendendo seu comportamento, chamaram-no Abu-Hassan o Excêntrico. 

Todas as tardes, ia esperar na ponte de Bagdá. Quando avistava um estrangeiro, rico ou pobre, jovem ou velho, apresentava-se a ele com um sorriso urbano e rogava-lhe aceitar a hospitalidade na primeira noite de sua permanência em Bagdá. Levava-o para sua casa, tratava-o  com generosidade e distinção e agradava-o com sua conversação viva e espirituosa. Mas na manhã seguinte, dizia-lhe: “Jurei nunca convidar um estrangeiro por dois dias seguidos, fosse o mais encantador dos filhos dos homens. Por isso, vejo-me obrigado a separar-me de ti e até peço-te, se alguma vez nos encontrarmos nas ruas de Bagdá, que finjas que não me conheces.” Com essas palavras, Abu-Hassan conduzia o hóspede a um khan da cidade e despedia-se dele para sempre. 

Durante muito tempo, Abu Hassan procedeu assim, hospedando um estrangeiro diferente cada noite. Uma tarde, estava na ponte de Bagdá quando viu chegar um rico mercador vestido à maneira dos mercadores de Mossul e seguido por um escravo de aspecto imponente. Tratava-se nada menos que do califa Harun Al-Rachid disfarçado. Pois ele gostava de examinar pessoalmente, escondido pelo anonimato, o que se passava em Bagdá.

Abu-Hassan, ignorando quem ele era, convidou-o para sua casa, conforme seu hábito; e o estrangeiro aceitou. Jantaram os excelentes pratos preparados pela mãe de Abu-Hassan, e este escolhia os melhores pedaços e oferecia-os ao hóspede. Beberam vinho e conversaram. Harun Al-Rachid, encantado, disse a Abu-Hassan: “Peço-te como lembrança desta noite memorável, que exprimas um desejo; e comprometo-me, sobre a Kaaba sagrada, a satisfazê-lo. Fala com sinceridade e não receies que teu pedido seja grande demais, pois Alá me cumulou com seus benefícios e não há nada que não possa realizar.” 

Abu-Hassan afirmou que lhe bastava a alegria da presença de seu hóspede. Mas o califa insistiu, dizendo que se sentiria ofendido se seu anfitrião não atendesse a seu desejo. 

Disse Abu-Hassan: “Agradeço tua generosidade, mas como não tenho desejo a satisfazer nem ambição a concretizar, sinto me perplexo... a menos que te dirija um pedido louco que só Harun Al-Rachid poderia atender... Seria que me tornasse califa por um dia.” 

- O que farias, se fosses califa por um dia? perguntou o hóspede. 

– “Deves saber, ó forasteiro, que a cidade de Bagdá é dividida em bairros, sendo cada bairro administrado por um xeique. Desgraçadamente, o xeique de meu bairro é uma criatura tão horrível que deve ter nascido da cópula de uma hiena e de um porco. Emite um cheiro pestilento, e sua boca parece o buraco de uma latrina. Não há doença que não tenha atacado aquele corpo. “É precisamente este ignóbil libertino que lança a desordem em todo o bairro com a ajuda de dois outros devassos, um dos quais é filho de uma prostituta e de um cão que se faz passar por nobre muçulmano, quando não passa de um cristão da mais baixa extração, e o outro é uma espécie de bobo gordo que parece prestes a cada palavra a vomitar as tripas. Se fosse Príncipe dos Crentes por um dia, não procuraria enriquecer ou favorecer parentes e amigos, mas apressar-me-ia a libertar o bairro desses três desprezíveis canalhas.” 

O califa elogiou seu anfitrião por preocupar-se com o interesse geral mais do que com o seu próprio e disse-lhe: “Vou agora encher a tua taça, pois até então tens sido tu que encheste a minha.” 

E o califa misturou uma pitada de benj (anestesiante) com o vinho do anfitrião. Este, antes de perder a consciência, disse ao califa: “Sinto que vou dormir. Por favor, ao sair pela manhã, não esqueças de fechar a porta atrás de ti.” 

E Abu-Hassan adormeceu profundamente. O califa chamou então seu escravo e mandou-o carregar Abu-Hassan nas costas. E foram todos embora, deixando a porta aberta apesar da recomendação. 

Entraram no palácio por uma porta secreta. Harun Al-Rachid mandou tirar a roupa que Abu-Hassan vestia, substituí-la por vestes do próprio califa e deitá-lo na sua própria cama. Depois, reuniu os dignitários do palácio e deu-lhes ordens severas para que, no dia seguinte, tratassem Abu-Hassan como se fosse o califa e executassem todas as suas ordens e satisfizessem todos os seus desejos. 

Na manhã seguinte, Harun Al-Rachid colocou-se por trás de uma cortina no quarto onde dormia Abu-Hassan para tudo ver e observar sem ser visto. Então, entraram os dignitários, as damas de honra, os escravos e escravas, e um eunuco aproximou-se de Abu-Hassan e acordou-o. Abu-Hassan abriu os olhos e achou-se num leito estranho cujas cobertas eram feitas de brocado vermelho e de pérolas. Viu-se numa grande sala com as paredes revestidas de cetim. Rodeavam-no jovens mulheres e escravas de cativante beleza e uma multidão de vizires, emires, dignitários, altos funcionários, todos inclinados respeitosamente diante dele. E ao lado da cama, viu, estendido sobre um tamborete, o inconfundível vestuário do Emir dos Crentes. 

Persuadido de que estava sonhando, voltou a fechar os olhos. Mas o grão-vizir Jafar aproximou-se dele e, depois de beijar o chão três vezes, disse-lhe: “Ó Emir dos Crentes, permiti a vosso escravo acordar-vos, pois é hora das preces matinais.” 

No mesmo instante, a um sinal de Jafar, os tocadores de instrumentos fizeram ouvir um concerto de harpas, alaúdes e violas, e as vozes dos cantores soaram harmoniosamente. 

Abu-Hassan gritou: “Onde estou? E quem sou eu?” 

Masrur respondeu num tom cheio de deferência: “Vós sois nosso amo e senhor o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, e estais em vosso palácio, rodeado por vossos servidores e escravos. E eu sou Masrur, um deles.” 

Voltando-se então para uma das jovens escravas, Abu-Hassan fez-lhe sinal que se aproximasse. Estendeu um dedo e pediu-lhe: “Morde este dedo! Só assim saberei se estou sonhando ou não.” 

A escrava mordeu o dedo até o osso. Abu-Hassan soltou um grito de dor e disse: “Ai! agora vejo que estou acordado.” E perguntou à rapariga: “E tu, me conheces? Quem sou eu?” 

Respondeu a jovem: “O nome de Alá esteja sobre o califa e à sua volta! Vós sois nosso amo e senhor, o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, vigário de Alá.” 

Pouco a pouco, Abu-Hassan foi convencendo-se de que algo extraordinário lhe tinha acontecido. E pensava: “Por Alá, não é uma coisa maravilhosa! Ainda ontem, eu era AbuHassan, e hoje sou Harun Al-Rachid!” 

Depois de o terem lavado e perfumado, vestiram-no com as vestes reais, coroaram-no com o diadema, puseram-lhe nas mãos o cetro de ouro e conduziram-no ao trono. E Abu-Hassan pensou: “Califa ou não, vou comportar-me como califa.” 

E conseguiu manifestar toda a autoridade e dignidade do cargo. Na sala do trono, diante da multidão de dignitários, cortesãos e homens do povo, Jafar tirou um rolo de papel e pôs-se a enumerar os assuntos do dia. E embora fossem todos novos para Abu-Hassan, pronunciou-se sobre cada caso com tamanho tato e propriedade que o califa, que estava escondido na sala, ficou maravilhado.

Quando Jafar terminou o relatório, Abu-Hassan mandou vir o chefe da polícia e deu-lhe a seguinte ordem: “Leva dez guardas e vai à casa tal na rua tal no bairro tal. Lá encontrarás um horrível porco que é o xeique daquele bairro, sentado entre dois canalhas não menos ignóbeis que ele. Prende os três e começa por dar a cada um quatrocentas bastonadas nas plantas dos pés. Depois, manda empalar o xeque pela boca e atira seu corpo aos cães. Faze o mesmo com o homem glabro de olhos amarelos. Quanto ao terceiro, sendo ele mais bobo que perverso, manda-o passar a vida sentado na mesma cadeira. Assim estarão punidos os caluniadores, maculadores de mulheres, destruidores da ordem pública que agridem as pessoas honestas e apoderam-se do que não lhes pertence. E volta com as provas de que cumpriste tua missão.” 

Depois, mandou levantar o divã, pensando: “ Agora, não posso mais duvidar. Sou realmente o Emir dos Crentes.” 

Momentos depois, chegou o chefe da polícia e entregou-lhe as provas de que tinha cumprido sua missão. Abu-Hassan ficou tão satisfeito que o apetite lhe voltou e fez com alguns dignitários uma lauta refeição.

Harun Al-Rachid, que tinha assistido a tudo, rejubilava-se por ter o destino posto no seu caminho um homem como aquele. Mas o sonho tinha que acabar. Uma das jovens acompanhantes, obedecendo às ordens, disse a Abu-Hassan: “Ó Emir dos Crentes, suplico-vos que bebais mais esta taça de vinho à saúde de todos.” 

Abu-Hassan bebeu a taça de um trago. Nela, a moça havia instilado o anestesiante benj. Abu-Hassan perdeu imediatamente os sentidos, e caiu no chão.

O califa mandou o escravo que havia retirado Abu-Hassan de sua casa carregá-lo para lá de volta e depositá-lo na sua cama. Quando Abu-Hassan acordou no dia seguinte, achou-se num quarto o menos parecido possível com o palácio onde dava ordens na véspera como se fosse o senhor do mundo. Certo de que estava sonhando, pôs-se a gritar para acordar e a chamar Jafar e Masrur para junto de si. A única pessoa que acorreu foi sua mãe, que procurou acalmá-lo. 

Abu-Hassan quis saber quem o havia destronado. E como ela ficou atônita e não respondeu, insultou-a com tamanha violência, tentando até agredi-la, que a pobre mulher teve que chamar os vizinhos para contê-lo. 

No dia seguinte, suas alucinações aumentaram contra os que o haviam destronado, inclusive sua mãe e os vizinhos, a quem ameaçava de morte. A mãe foi obrigada a apelar para um médico. O médico diagnosticou que Abu-Hassan tinha enlouquecido e devia ser internado num hospício. Lá foi necessário amarrá-lo e submetê-lo a diversos tratamentos.

Somente três semanas depois, começou a voltar à normalidade e a reconhecer que era mesmo Abu Hassan. Sua mãe levou-o então de volta para casa e procurou consolá-lo: “Meu filho, nada do que aconteceu é culpa tua. Todo o mal se deve àquele mercador estrangeiro que convidaste por último e que partiu pela manhã sem sequer fechar a porta atrás de si. Ora, todos sabem que cada vez que a porta de uma casa é deixada aberta antes do nascer do sol, o chaitan (diabo) entra nessa casa e toma conta do espírito de seus habitantes. Agradeçamos a Deus por não ter permitido desgraças maiores”.

Abu-Hassan concordou. O califa, que acompanhara todo o drama por intermédio de informantes, censurou-se por sua conduta e procurou compensar as aflições causadas. Recebeu Abu-Hassan no palácio real. Casou-o com a jovem Cana-de-Açúcar que fazia parte das escravas de Abu-Hassan como califa e que lhe havia particularmente agradado. E para manifestar a retidão e o senso de responsabilidade de seu caráter, estabeleceu uma renda vitalícia a Abu-Hassan e Cana-de-Açúcar, que lhes permitiu viverem felizes e seguros até o último de seus dias.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Dia da mentira”


Você sabia que o peixe é o único animal que continua a crescer mesmo depois de morto? Então pergunte a qualquer pescador... Seguindo a tradição, nenhum pescador que se preze conta que pescou alguma coisa do tamanho exato que veio no anzol, na tarrafa ou na rede, porque sempre ele dirá que foi bem maior do que aquilo que realmente foi pescado. 

No Brasil, o primeiro registro do “Dia da mentira” foi há quase dois séculos, em 1828, quando o jornal mineiro curiosamente intitulado “A Mentira”, trouxe falsamente em sua primeira edição a notícia da morte de Dom Pedro I, justamente no dia 1º de abril. Descoberta a patranha, surgiu a afirmação de que "A mentira tem pernas curtas" ou, em sentido figurativo, a afirmação de que “É mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo”. 

Embora possam ser danosas as consequências de uma história mendaz (falsa, mentirosa), no Dia da Mentira pessoas de todo o mundo brincam umas com as outras, pregando peças e contando balelas. Algumas antológicas, tanto que deram origem aos concursos de mentiras espalhados Brasil afora. 

Certame mundialmente famoso é o Festival da Mentira de Nova Bréscia, no Rio Grande do Sul, considerada a capital nacional da mentira, realizado a cada dois anos, em que atua uma banca julgadora integrada por jornalistas, publicitários, professores e coordenadores culturais, que escolhe a mentira vencedora, dentre as mais cabeludas que são contadas, premiando o vencedor com uma recompensa em dinheiro.

“Eu não gosto do mentiroso que mente para prejudicar os outros, eu gosto de mentiroso que mente por amor à arte”, dizia o impagável Ariano Suassuna, que tinha um verdadeiro repertório sobre a mentira e os mentirosos. Também na literatura brasileira, outro personagem se destaca. Mistura de poeta, escritor, folclorista, compositor, conferencista e contador de causos, Cornélio Pires arriscou um elenco de mentiras bem boladas.

Em um de seus vinte livros sobre a vida e os costumes da roça, contou sobre o pai de família que para festejar os 15 anos de sua filha mais velha, preparou um festão na qual a principal atração entre as fartas iguarias oferecidas aos convivas, estava um vistoso e caríssimo queijo suíço, que ele entretanto não permitiu que fosse cortado nem servido aos que compareceram justamente de olho nele. Todo mundo saiu com água na boca, desfrutaram da comilança que foi servida, mas foram impedidos de sequer provar o tal queijo, que pelo seu poder de atração de público, passou a ser alugado pelo dono para motivar com maciças presenças, todas as festas de 15 anos do lugar.

Outra assertiva é que “para mentir precisa ter boa memória” e disso sabem muito bem advogados, promotores e magistrados, pois nos interrogatórios judiciais as testemunhas às vezes distorcem os fatos e mais adiante, esquecidas do que disseram, acabam por revelar inteiramente a verdade caindo em notória contradição. 

Na música popular brasileira, no já distante ano de 1981, Erasmo Carlos nos brindou com “Pega na Mentira”, parece que feita sob medida para o dia 1.º de Abril, mas surpreendentemente atual, mesmo passados mais de 40 anos:

“Zico tá no Vasco, com Pelé
Minas importou do Rio, a maré
Beijei o beijoqueiro, na televisão
Acabou-se a inflação
Barato é o marido da barata
Amazônia preza a sua mata
Pega na mentira, pega na mentira
Corta o rabo dela, pisa em cima
Bate nela, pega na mentira (...)”

O escritor Jorge Fallorca, publicou em 1983 um livro de poucas páginas mas com um sugestivo nome: “Aqui se reúnem políticos, pescadores e outros mentirosos”. Cabia mais gente, claro, mas ele generosamente não deixou de fora os políticos...

Em sites e redes sociais, a mentira hoje se banalizou de tal forma que ninguém acredita de primeira em muitas notícias divulgadas, modernamente conhecidas como Fake News e que nos assolam e nos inquietam a todo minuto. Exemplo típico é recente falácia de que o Governo Federal passaria a cobrar impostos sobre as operações financeiras realizadas por Pix, sobre a compra de dólares e sobre os animais domésticos de estimação, o que, neste último caso, foge a qualquer lógica, de vez que os tutores provavelmente abandonariam seus vira-latas para se eximirem de mais um imposto, entre os tantos que já são pagos. Prova evidente que convivemos com a mentira todo dia o ano todo e não apenas em 1.º de abril, quando ela é tradicionalmente comemorada.

Lembro, a propósito, das ingênuas petas do saudoso mateiro e caçador apelidado de “Mata Onça”, caboclo da região quilombola do Mondongo no Baixo Amazonas, que desbravou o setentrião (norte) como membro da Comissão Demarcadora de Limites onde viveu mil peripécias, uma espécie de Pinóquio ribeirinho que costumava brindar seus ouvintes, sem que crescesse o seu achatado nariz, com mirabolantes pataratices (mentiras) urdidas por sua fértil imaginação, como certa pescaria que ele fez com um amigo, em que sofreram o contratempo de ter a tarrafa enroscada nos galhos submersos do rio, que tinha cerca de três metros de profundidade. O parceiro mergulhou para resgatar a tarrafa, passaram-se dez minutos e nem sinal dele retornar. 

Preocupado, nosso herói pulou na água para ver o que havia acontecido e chegando ao fundo, ficou perplexo ao encontrar seu parceiro calmamente sentado numa pedra consertando a tarrafa, que fora seriamente danificada com o engate. Esse divertido campeão da invencionice afirmava que aquele sujeito tinha um fôlego descomunal, capaz de aguentar mais uns quinze ou vinte minutos submerso, sem qualquer problema. E queria que a gente acreditasse...

Mais famoso que ele foi Pantaleão, inesquecível personagem do genial Chico Anysio no programa Chico City, humorístico que ficou no ar durante toda a década de 1970. No programa, Pantaleão era casado com Terta (interpretada pela atriz Suely May) e de pijama, barbas longas e brancas, cabelos grisalhos e usando óculos cuja lente escura cobria apenas o olho direito, contava suas façanhas se balançando numa cadeira, cada qual a mais inverossímil, alegrando-nos intensamente nas noites em que era exibido, com invejável índice no Ibope, deixando muitas saudade quando foi extinto.

Pela parte que me toca, depois dessas ternas e gostosas lembranças, preciso encerrar este texto por aqui, pois tenho que conferir, cédula por cédula, a polpuda grana que recebi hoje por ter acertado sozinho o último sorteio da mega sena acumulada. Não é verdade Terta?... 
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
Fontes:
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terça-feira, 8 de abril de 2025

José Feldman (Nino)



Aparecido Raimundo de Souza (Segredos ocultos)

NA CAMA DO HOSPITAL, dona Pureza do Amor Perfeito, a mulher quase a se apagar levada pelos braços frios da morte, sussurra para seu marido Pedro Antônio, companheiro de mais de trinta anos de convivência, (que aliás, num gesto de profundo pesar e lástima segura fortemente a mão gelada e sem pulso de sua consorte), um pedido de última hora, e o faz como um clamor meio estranho e inusitado para aquele momento:

— Antônio... meu grande e único amor... preciso lhe fazer uma confissão... pelo amor de Deus, não me odeie por isso...

Pedro Antônio, o rosto frio, os olhos distantes, a voz embargada procura acalmá-la e, nesse tom, aconselha:

— Não, minha princesa amada. Não há nada para confessar. Está tudo bem, tudo em paz. Olhe a sua volta. Aqui estão nossos seis filhos, suas noras e genros, seus netos e netas. Como pode ver, toda a nossa família se fez reunida para seu último adeus... 

Dona Pureza do Amor Perfeito, todavia, insiste:

— Amor, amor da minha vida, eu sei que estão todos aqui. Eu os vejo. Capturo cada rosto, sinto cair sobre as minhas faces as lágrimas de nossos filhos... percebo a agonia das netas Glorinha, Silvinha e Clarissa, bem ainda dos meninos Flavinho e Adalgiso, como você disse, nossas netas e netos.  Da mesma forma, também me invade a alma o padecimento dos demais consanguíneos que viveram ao nosso lado e fizeram a alegria contagiante da nossa honrada casa.  

A moribunda faz uma trégua, para tomar fôlego, e usando as suas forças derradeiras, insiste no tal desabafo:

— Pedro Antônio, preciso dizer o que está entalado. Não partirei sem antes lhe fazer um relato que considero importante. Me ouça...

Por conta desse tal entrave, segue a enfraquecida batendo na tecla com perseverança. Dona Pureza do Amor Perfeito, realmente, se vê às garras do precipício. 

A voz quase imperceptível, volta a protestar deixando qualquer outra coisa de lado, no esquecimento. Pedro Antônio, por seu turno, persevera para que ela se mantenha calada, compenetrada, os pensamentos voltados para os aconchegos daquele momento sem volta: 

— Não se esforce – diz ele. – Feche os olhos e curta esses minutos fascinantes. Olhe que felicidade... toda a nossa família está aqui... os amigos, vizinhos, o que mais deseja, meu amor?

Dona Pureza do Amor Perfeito, parece agarrada aos poucos minutos que lhe sopram pelas narinas. Num esforço sobre-humano tenta, num fio de voz desesperado se fazer ouvir. O som sai moído e ofegante:

— Meu príncipe, não quero partir com a consciência pesada... preciso falar... confessar um deslize... meu amor, me perdoa... chegue o ouvido mais perto... eu... eu... fui infiel a você...

Pedro Antônio teve vontade de pular na garganta de sua cônjuge, mas se conteve. Toda a família reunida, vizinhos e amigos... se partisse para a ignorância, nenhum dos que ali se achavam, o perdoaria. Finge um espanto, longe de ser real. Escarnece, mascarando uma estuporação:

— É mesmo, minha fofa? Com quem?

— Interessa agora?

— Claro que não, minha garota. Só para saber... mera curiosidade.

— Ok! Eu falo. Foi com o...   foi com o Fausto, nosso genro, esposo de nossa filha Margarida...

Pedro Antônio se mostra sereno, tranquilo e dono da situação. Por dentro, o sangue ferve de puro ódio. Sua vontade maior..., cortar a jugular da sem vergonha com uma faca bem afiada:

— Fique tranquila, minha linda e adorada esposa dona Pureza do Amor Perfeito. Eu sabia de tudo. E não se desespere. Aliás, eu sempre desconfiei dele com você, desde o início – falou também aos cochichos. Esquece. Já passou. Vá, porém, com as amarguras dos meus desencantos e repouse a sua traição nos cafundós do capiroto...

— Meu príncipe, como é que é? De quem? Repete... do ca... do ca...  o quê?  — Me diga, amor, você sabia? Fala sério? Você?! ... 

Ela faz um esforço ainda maior para conseguir chegar ao fim do que pretendia deixar esclarecido e ter a convicção se em verdade, o marido estava ou não brincando... 

— Todo esse tempo e você?  Meu Deus!

— Sim minha querida mulherzinha safada. Eu tinha pleno conhecimento – repete o cônjuge tartamudeando. 

— Meu Deus, meu amor... me perdoa? Você me perdoa?

— Está perdoada. Também tenho que lhe confessar uma ação reservada que só eu guardo dentro do coração. Você, minha doce amada, mãe de meus filhos e filhas... a senhora não está morrendo de morte natural... 

— Na... na... não...  em... enten... não enten...

Num fio de voz, o traído revela, sem piedade:

— Eu... eu... en... ve... ne... nei... você.... vá... para os quintos... 

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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segunda-feira, 31 de março de 2025

Adega de Versos 145: Mamede Gilford de Meneses

 

Renato Frata (Decisão)

Escrevi no quadro negro da tristeza que, a partir daquele instante eu seria outro: sorriria com os olhos apenas, se os lábios, emperrados na amargura, não ajudassem.

Quando a testa franze e a boca se fecha, sorrir com olhos é uma saída.

Ao fazê-lo, estarei como a mulher - qualquer mulher - que é fraca e forte e que sorri enquanto sua "alma se estorce amargurada," (Florbela Espanca) e segue altiva sobre os saltos a se dizer bela, a se mostrar e a se sentir como tal. A força que lhe dá a performance brota onde nascem os sentimentos, e se gadanha no espaço que sua coragem constrói.

Deve ela ser copiada, absorvida e usada, já que para lhe descobrir os sentimentos basta que olhemos em seus olhos. Se estiverem brilhantes como sol a iluminar densamente os pensamentos estará feliz, se não, como não existe meia–felicidade, sorrirá com eles marejados em opacidade.

Pois escrevi dessa maneira com o giz da consciência fincando uma a uma as letras na lousa e vi, depois, que deixei ali na decisão, uma confissão desenhada pela dor de um sofrimento que sempre senti, nunca o havia assumido.

Não sabia que a coragem da confissão eleva o valor do testemunho e que as palavras grafadas, geralmente, seriam um alerta só meu, feito para meu eu de olhadelas de queijo embolorado que servirão para quando, nesse quadro voltar a pousar os olhos comprovando que a decisão de não sofrer foi um dia tomada.

E por que a tomei?

Pela tristeza, por causa dela que compõe rostos tristes, macera-os, carcome-os com as carquilhas que riscam semblantes em acinzentado.

Não, não mais lamentarei o passado que é irmão da tristeza. Esse não mais me morderá por dentro, não deixará machucados ou cicatrizes, nem me arrancará tremores ou suores. Não deixarei que escarafunche o ontem ou que se alimente da própria comida. A partir dessa decisão o deixarei no pó da longa estrada a quem chamo esquecimento, para que fique largado num canto qualquer do coração. Será uma rastejante vaga que não fere a areia; antes, alisa-a para que a água da realidade passeie solta nos pensamentos a determinar o fim da tortura. E uso aqui, nesse fim de decisão, um ponto final do recomeço a determinar o espanto do lamento, o esquecimento de noites não dormidas que esgarçam quereres, impedem afazeres e infundem pesares...

Mas... sempre existirá um mas... conjunção ou restrição que vem contra o que se afirma. Tudo não passou de um conto de fadas - que trouxe a vontade do esquecimento nas mãos formatadas em pétalas, e que em gestos ondulantes se quebrou no crepúsculo da realidade.

Não se consegue espantar o lamento que o passado produz, nem transformar saudade em ténue lembrança: é como cinza que guarda a quentura, a ardência da brasa que o vento sopra ao desnudar o hoje, o que me leva a dizer que contra a tristeza, sim, se pode e se deve sorrir com os olhos, lábios e tez, dando á feição a melhor aparência.

Porém, é de se saber que seu efeito contra o ontem terá efemeridade de flor de mandacaru que se abre pomposa e maravilhada à lua, mas que desfalece rapidamente perante a inclemência do primeiro sol do amanhã.
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RENATO BENVINDO FRATA, trovador e escritor, nasceu em Bauru/SP, em 1946, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Além de atuar com contador até 1998, laborou como professor da rede pública na cadeira de História, de 1968 a 1970, atuou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, (hoje Unespar), atualmente aposentado. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da paranaense Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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José Feldman (Dilema)



Olavo Bilac (O recruta)

Era um rapaz de vinte e dois anos, criado à solta, no campo. Desde pequenino, habituara-se à vida ao ar livre. Mal rompia a aurora, já ele andava, ao sol e à chuva, descalço, pulando e correndo, como cabrito montês. Aos oito anos, já montava em pelo os cavalos mais bravos. Com essa existência de exercícios fortes, fizera-se um colosso. Tinha a face corada, os cabelos negros e duros, uma musculatura possante, espáduas largas, pulso de abater um touro com um soco. 

Não aprendera a ler. Fora criado para, de enxada em punho, lutar com a terra, para lidar com os bois, para arcar com os trabalhos fortes da lavoura. Nada tinha de seu. 

O pai, ao morrer, deixara-lhe, como única herança, a saúde, a força e uma enxada. E era com isso que ele vivia, indo de roça em roça, à procura de emprego. E empregos nunca lhe faltavam, porque não havia, em toda aquela redondeza, quem com mais justiça ganhasse o pão de cada dia. Era sempre o primeiro a sair para o trabalho, e o último a recolher.

Nunca ninguém o vira triste. Com o grande chapéu desabado, atirado para a nuca, ou estivesse curvado sobre a terra cavando-a, ou pela estrada, ao sol ardente, viesse, de aguilhada em punho, guiando os bois morosos, — o Anselmo cantava sempre, com a sua larga voz alegre, que animava os companheiros, e tornava mais leve a canseira da tarefa. Os velhos, quando o viam passar, perguntavam sempre:

“Como vai essa mocidade, Anselmo?” E não havia quem não o amasse.

Também, não tinha dinheiro junto. O que ganhava gastava. Ninguém como ele sabia, nas noites de festa, tirar da viola as modinhas ternas. E era feliz, sem ambições, contentando-se com tão pouco.

Quando chegou ao sertão a notícia da guerra do Paraguai, o terror ganhou toda aquela gente simples, para quem o mundo se limitava àquelas léguas de terra, de cujos limites nunca havia saído. O recrutamento! — falava-se nisso, como na morte, com espanto e medo.

Dizia-se que ninguém seria recrutado. Mas a alma desconfiada do caipira bem adivinhava que essa declaração das autoridades era uma astúcia... Soube-se um dia que chegara ao lugar um destacamento de soldados, comandados por um cabo. Houve quem fugisse. Anselmo não fugiu. Mas quando se viu recrutado, um desespero terrível lhe encheu o coração.

Não era covarde! Muitas e muitas vezes ele, sozinho, lutara contra dois e três... nas brigas de arraial, nunca fugira das facas, que alumiavam na escuridão. Não sabia de perigo que o amedrontasse. E costumava dizer que só tinha medo de si mesmo, daquele gênio arrebatado, que não aturava afrontas. Não era covarde, não: o que o desesperava era o abandono forçado daquela existência, em que nascera e crescera, o apartamento daqueles lugares amados, daquele trabalho que era um hábito velho, daquela gente toda que era a sua família, a sua gente, o seu povo.

Para a sua alma inculta e primitiva de filho da roça, a Pátria não era o Brasil: era o pedaço de terra que ele regava com o suor de seu rosto. Fora daquilo não havia mais nada. Que tinha ele com o resto do mundo? Por que havia ele de vestir uma farda, e ir morrer abandonado e desconhecido, sem uma amizade, sem uma simpatia, numa terra estrangeira, por causa de gente que nunca vira, por causa de questões que não entendia e que não eram suas?

Nunca saíra do seu sertão. Aos vinte e dois anos, ainda não imaginava o que seria o mar. Se os paraguaios viessem até suas roças, então sim: ele e os outros saberiam repelir os invasores; seria o seu dever, a defesa do seu ganha-pão, do seu trabalho, dos seus hábitos. Mas, ir defender a Corte, ir defender o Sul, ir defender o Imperador!... que tinha ele com tudo isso?

Todas essas reflexões lhe passavam pela cabeça, à noite, recolhido, com uma dúzia de outros, à cadeia do lugar, como se fosse um criminoso... e já, antes de partir, tinha saudades daquele céu querido, daqueles matos tão conhecidos, daquela gente com quem se criara. E tinha medo, — tinha medo, ele tão valente! — de morrer crivado de balas paraguaias, longe dos seus... depois, ao seu caráter independente, à sua alma livre repugnava a escravidão da vida militar. Não ter vontade própria, ser governado com uma máquina, caminhar para a morte ao simples aceno de um chefe, sem ver a utilidade desse sacrifício, — tudo lhe parecia uma grande desgraça e uma terrível injustiça.

No dia seguinte os recrutas seguiram para o Rio de Janeiro. Havia pressa. A guerra ia acesa ao Sul, e o Brasil precisava das vidas de todos os seus filhos. Os companheiros de Anselmo iam, como ele, com a alma enlutada de tristeza. Também como ele, não compreendiam a violência do recrutamento, nem reconheciam à Pátria o direito de assim se apoderar da sua mocidade, para a atirar aos horrores do campo de batalha.

Triste viagem! Alguns, homens feitos, robustos e valentes, choravam como crianças. A gente do lugar assistiu à partida.

Havia mães que amaldiçoavam a guerra, gritando, torcendo os braços desesperadamente. Havia noivas que desmaiavam. Quantos daqueles voltariam?...

A chegada ao Rio de Janeiro foi uma tortura. Os recrutas estavam tontos, com aquele barulho, com aquele movimento. Como estava longe a tranquilidade da vida rústica! E que rigor, e que tormento no quartel! Na primeira noite, quando se viu, já fardado, estendido sobre a dura tábua da tarimba, Anselmo teve uma revolta.

Sentiu desejos de fugir dali, ainda que para isso fosse preciso matar alguém. Agitava-se, sacudia-se, mordia os pulsos, afogava na garganta os gritos de cólera e as imprecações. Por fim, essa crise terminou por um choro convulsivo. Dormiu, cansado: e ainda era noite escura, quando o acordou um toque de clarim. Era a hora do primeiro exercício.

Começou então a sua aprendizagem militar. O oficial inferior, que comandava as manobras, era brutal. A sua voz tinha asperezas que ofendiam como bofetadas. Quando um dos recrutas errava, dizia-lhe palavras duras, insultos pesados. Uma vez, como Anselmo não o ouvisse, porque estava pensando na sua roça tão calma e tão bonita a essa hora de sol ardente, o oficial deu-lhe no peito, com a folha da espada, uma pranchada forte. O rapaz sentiu o sangue subir à cabeça. Mas a infelicidade já o tornara submisso. Conteve-se, e obedeceu.

Já no terceiro dia, porém, sentiu-se mais resignado com a sua sorte. Familiarizara-se com os exercícios. Já se ia habitando ao rigor da disciplina. Já se interessava pelas manobras. Já prestava atenção às vozes de comando. Já ia compreendendo que, sem a brutalidade do comandante, nada se poderia conseguir de homens como ele, que nunca tinham visto aquilo, e cuja inteligência era refratária à compreensão daquelas palavras e daqueles movimentos calculados.

Depois, no quartel, começou a conviver com os soldados antigos. Tomou parte nas conversas, que se tratavam no “corpo da guarda”. E principiou a operar-se no seu espírito uma transformação radical. A convivência fazia-o sentir por aqueles homens um afeto de irmão. E tanto ouvia amaldiçoar os paraguaios, que principiou a amaldiçoá-los também, odiando-os de longe. Via agora bem o engano em que estava, quando acreditava que a Pátria era o seu sertão, e nada mais. Aqui, tão longe do sertão, vinha achar o mesmo céu, a mesma língua, quase os mesmos costumes. Em torno dele, só se falava na guerra. Lopes era odiado. Lopes aparecia aos seus olhos como um monstro, cuja única ocupação era matar e torturar os brasileiros. E um dia, Anselmo surpreendeu-se a dizer, com os olhos brilhantes de ódio: “Ah! Quando chegará o dia de irmos dar cabo daquele malvado!...”

O dia chegou. O seu batalhão ia partir. Dia de sol. Ninguém reconheceria naquele esbelto moço que ali ia, marchando com garbo entre os outros, o bisonho caipira, que tanta repugnância tinha outrora pelas coisas da guerra.

Anselmo marchava. E, ao compasso da marcha, ia cantando baixinho, entre dentes, uma daquelas mesmas alegres modinhas da roça, que a sua voz soltava na imensa extensão dos campos, quando, curvado sobre a terra, a cavava, ou quando, pela estrada ao sol ardente, vinha, com a aguilhada ao ombro, guiando os bois morosos.

As ruas estavam cheias de povo. Das janelas, senhoras acenavam com os lenços. Uma banda de música precedia o batalhão. Tocava uma marcha de guerra. Os instrumentos de metal giravam alto, entre as pancadas secas dos tambores. Que sol! Que entusiasmo! Anselmo tremia. Parecia-lhe que o inimigo estava ali perto, ao alcance da sua espingarda: parecia-lhe que ia encontrar, ao dobrar uma esquina, os exércitos paraguaios. E ambicionava cair imediatamente em pleno combate.

No cais, a multidão abria alas. E quando o batalhão estacou, quando se calou a música, o povo prorrompeu em vivas. À espera, perfilados, muitos oficiais, cujas fardas, cobertas de galões, brilhavam ao sol, examinavam a tropa disciplinada, bem disposta, garbosa no seu fardamento novo. De repente, a música tocou os primeiros compassos do hino nacional. Um vento brando, vindo do mar, agitou a bandeira brasileira, que estava no centro do pelotão. A bandeira desdobrou-se, palpitou no ar, espalmada, com um meneio triunfal. Parecia que o símbolo da Pátria abençoava os filhos que iam partir, para defendê-la.

E, então, ali, a ideia sagrada da Pátria se apresentou, nítida e bela, diante da alma de Anselmo. E ele, compreendendo enfim que a sua vida valia menos que a honra da sua nação, pediu a Deus, com os olhos cheios de lágrimas, que o fizesse um dia morrer gloriosamente, abraçado às dobras daquela formosa bandeira, toda verde e dourada, verde como os campos, dourada como as madrugadas da sua terra.
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Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro - Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias. No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.
 
Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
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domingo, 30 de março de 2025

Adega de Versos 144: Eritânia Brunoro

 

Arthur Thomas (Floriswalêne)

Florisvaldo encontrou Waldêlene em um forró na casa de amigos. E logo a conheceu, no sentido bíblico da palavra, resultando em uma “inesperada” gravidez.

Ainda como zigoto, nossa heroína iniciou as orações, pressentindo o perigo do nome que lhe seria dado.

Infrutíferas rezas, pois ao nascer, registraram-na com o singelo nome de Floriswalêne.

Começou, então, o suplício em sua vida.

Desde pequena, tentou que a chamassem de Flor, mas a maldade dos colegas de escola não deixava.

Parecia terem prazer em realçar cada sílaba de seu nome.

Em todas as chamadas para verificar a presença dos alunos, no início das aulas, era vítima da zombaria dos colegas.

Passou a adolescência pensando que deveria encontrar um par que tivesse um nome simples e que não quisesse colocar nome composto nos filhos.

Antes mesmo de se aproximar de um rapaz, procurava saber seu nome.

Rejeitou alguns pretendentes, que eram até bonitos e interessantes, mas que tinham nomes como: Devernilson, Everalderson, Marcelinelson, Wellerson, Genilteleson e tantos outros.

Ficava horrorizada somente com a ideia de ter um filho ou filha com nomes estapafúrdios.

Através de uma tia, conheceu um rapaz muito tímido, nem um pouco bonito, mas trabalhador, e o principal para ela, era conhecido pelo apelido Zé.

Encantou-se quando o rapaz a chamou de Flor, mesmo sabendo que o nome dela era Floriswalêne.

Pensando ter encontrado o par quase perfeito, namorou, noivou e marcou a data do almejado casamento.

No dia da união, no cartório, o noivo declarou seu nome como Josevertson de Souza, e como prova de amor, após assinar o livro, disse à ela e às testemunhas que os filhos seriam batizados com a junção dos nomes do casal, para eternizar o amor dos dois.

Floriswalêne teve que ser amparada pelos parentes e atendida na unidade de emergência do hospital mais próximo.

Josevertson nunca entendeu o motivo do pedido de anulação do casamento.
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ARTHUR THOMAZ é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Poeta e escritor, publicou os livros: "Rimando Ilusões", "Leves Contos ao Léu - Volume I, "Leves Contos ao Léu Mirabolantes - Volume II", "Leves Contos ao Léu - Imponderáveis", "Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios", "Leves Contos ao Léu - Insondáveis", "Rimando Sonhos" e "Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro".

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor 
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José Feldman (A Velha Chata)



Lima Barreto (Os nossos jornais)

Na Câmara (houve um jornal que registrasse a frase) o senhor Jaurès observou que os nossos jornais eram pobres no tocante a informações da vida do estrangeiro. Afora os telegramas lacônicos naturalmente, ele não encontrava nada que o satisfizesse.

Jaurès não disse que fosse esse o único defeito dos nossos jornais; quis tão somente mostrar um deles.

Se ele quisesse demorar no exame, diretor de um grande jornal, como é e, habituado à grande imprensa do velho mundo, havia de apresentar muitos outros.

Mesmo quem não é diretor de um jornal parisiense e não está habituado à imprensa europeia, pode, do pé para as mãos, indicar muitos.

Os nossos jornais diários têm de mais e têm de menos; têm lacunas e demasias.

Uma grande parte deles é ocupada com insignificantes notícias oficiais.

Há longas seções sobre exército, marinha, estradas de ferro, alfândega, etc. de nenhum interesse, ou melhor, se há nelas interesse, toca a um número tão restrito de leitores que não vale a pena sacrificar os outros, mantendo-as.

Que me importa a mim saber quem é o conferente do armazém K? Um jornal que tem dez mil leitores, unicamente para atender ao interesse de meia dúzia, deve estar a publicar que foram concedidos passes à filha do bagageiro X? Decerto, não. Quem quer saber essas coisas, dirija-se às publicações oficiais ou vá à repartição competente, informar-se.

A reportagem de ministérios é de uma indigência desoladora. Não há mais nada que extratos do expediente; e o que se devia esperar de propriamente reportagem, isto é, descoberta de atos premeditados, de medidas em que os governantes estejam pensando, enfim, antecipações ao próprio diário do senhor Calino, não se encontra.

Demais, não está aí só, o emprego inútil que os nossos jornais fazem de um espaço precioso. Há mais ainda. Há os idiotas “binóculos”. Longe de mim o pensamento de estender o adjetivo da seção aos autores. Sei bem que alguns deles que o não são; mas a coisa o é, talvez com plena intenção dos seus criadores. Mas... continuemos. Não se compreende que um jornal de uma grande cidade esteja a ensinar às damas e aos cavalheiros como devem trazer as luvas, como devem cumprimentar e outras futilidades. Se há entre nós, sociedade, as damas e cavalheiros devem saber estas coisas e quem não sabe faça como M. Jourdain: tome professores. Não há de ser com preceitos escorridos diariamente, sem ordem, nem nexo – que um acanhado fazendeiro há de se improvisar em Caxangá. Se o matuto quer imiscuir-se na sociedade que tem para romancista o psiquiatra Afrânio, procure professores de boas maneiras, e não os há de faltar. Estou quase a indicar o próprio Figueiredo, o Caxangá ou o meu amigo Marques Pinheiro e talvez o Bueno, se ele não andasse agora metido em coisas acadêmicas.

De resto, esses binóculos, gritando bem alto elementares preceitos de civilidade, nos envergonham. Que dirão os estrangeiros, vendo, pelos nossos jornais, que não sabemos abotoar um sapato ? Não há de ser bem; e o senhor Gastão da Cunha, o Chamfort oral que nos chegou do Paraguai e vai para a Dinamarca, deve examinar bem esse aspecto da questão, já que se zangou tanto com o interessante Afrânio, por ter dito, diante de estrangeiros, na sua recepção na Academia, um punhado de verdades amargas sobre a diligência de Canudos.

Existe, a tomar espaço nos nossos jornais, uma outra bobagem. Além desses binóculos, há uns tais diários sociais, vidas sociais, etc. Em alguns tomam colunas, e, às vezes, páginas. Aqui nesta Gazeta, ocupa, quase sempre duas e três.

Mas, isso é querer empregar espaço em pura perda. Tipos ricos e pobres, néscios e sábios, julgam que as suas festas íntimas ou os seus lutos têm um grande interesse para todo o mundo. Sei bem o que é que se visa com isso: agradar, captar o níquel, com esse meio infalível: o nome no jornal.

Mas, para serem lógicos com eles mesmo, os jornais deviam transformar-se em registros de nomes próprios, pois só os pondo aos milheiros é que teriam uma venda compensadora. A coisa devia ser paga e estou certo que os tais diários não desapareceriam.

Além disso, os nossos jornais ainda dão muita importância aos fatos policiais. Dias há que parecem uma morgue, tal é o número de fotografias de cadáveres que estampam; e não ocorre um incêndio vagabundo que não mereça as famosas três colunas – padrão de reportagem inteligente. Não são bem “Gazetas” dos Tribunais, mas, já são um pouco Gazetas do Crime e muito Gazetas Policiais.

A não ser isso, eles desprezam tudo o mais que forma a base da grande imprensa estrangeira. Não há as informações internacionais, não há os furos sensacionais na política, nas letras e na administração. A colaboração é uma miséria.

Excetuando A Imprensa, que tem a sua frente o grande espírito de Alcindo Guanabara, e um pouco O Pal, os nossos jornais da manhã nada têm que se ler. Quando excetuei esses dois, decerto, punha hors-concours o velho Jornal do Comércio; e dos dois, talvez, só a Imprensa seja exceção, porque a colaboração de O Paiz é obtida entre autores portugueses, fato que pouco deve interessar à nossa atividade literária.

A Gazeta (quem te viu e quem te vê) só merece ser aqui falada porque seria injusto esquecer o Raul Manso. Mas, está tão só! E não se diga que eles não ganham dinheiro e, tanto ganham que os seus diretores vivem na Europa ou levam no Rio trem de vida nababesco.

É que, em geral, não querem pagar a colaboração; e, quando a pagam, fazem-no forçados por empenhos, ou obrigados pela necessidade de agradar a colônia portuguesa, em se tratando de escritores lusos.

E por falar nisso, vale a pena lembrar o que são as correspondências portuguesas para os nossos jornais. Não se encontram nelas indicações sobre a vida política, mental ou social de Portugal; mas, não será surpresa ver-se nelas notícias edificantes como esta: “A vaca do Zé das Amêndoas, pariu ontem uma novilha”; “o Manuel das Abelhas foi, trasanteontem, mordido por um enxame de vespas”.

As dos outros países não são assim tão pitorescas; mas chegam, quando as há, pelo laconismo, a parecer telegrafia.

Então o inefável Xavier de Carvalho é mestre na coisa, desde que não se trate de festas da famosa Societé d’Études Portugaises!

Os jornais da tarde não são lá muito melhores. A Notícia faz repousar o interesse da sua leitura na insipidez dos Pequenos Ecos e na graça – gênero Moça de Família do amável Antônio. Unicamente o Jornal do Comércio e esta Gazeta procuram sair fora do molde comum, graças ao alto descortino do Félix e a experiência jornalística do Vítor.

Seria tolice exigir que os jornais fossem revistas literárias, mas, isto de jornal sem folhetins, sem crônicas, sem artigos, sem comentários, sem informações, sem curiosidades, não se compreende absolutamente.

São tão baldos de informações que, por eles, nenhum de nós tem a mais ligeira notícia da vida dos estados. Continua do lado de fora o velho Jornal do Comércio.

Coisas da própria vida da cidade não são tratadas convenientemente. Em matéria de tribunais, são de uma parcimônia desdenhosa. O júri, por exemplo, que, nas mãos de um jornalista hábil, podia dar uma seção interessante, por ser tão grotesco, tão característico e inédito, nem mesmo nos seus dias solenes é tratado com habilidade.

Há alguns que têm o luxo de uma crônica judiciária, mas, o escrito sai tão profundamente jurista que não pode interessar os profanos. Quem conhece as crônicas judiciárias de Henri de Varennes, no Fígaro, tem pena que não apareça um discípulo dele nos nossos jornais.

Aos apanhados dos debates da Câmara e do Senado podia dar-se mais cor e fisionomia, os aspectos e as particularidades do recinto e dependências não deviam ser abandonados.

Há muito que suprimir nos nossos jornais e há muito que criar. O senhor Jaurès mostrou um dos defeitos dos nossos jornais e eu pretendi indicar alguns. Não estou certo de que, suprimidos eles, os jornais possam ter a venda decuplicada. O povo é conservador, mas não foi nunca contando com a adesão imediata do povo que se fizeram revoluções.

Não aconselho a ninguém que faça uma transformação no nosso jornalismo. Talvez fosse mal sucedido e talvez fosse bem, como foi Ferreira de Araújo, quando fundou, há quase quarenta anos, a Gazeta de Noticias. Se pudesse, tentava; mas como não posso, limito-me a clamar, a criticar.

Fico aqui e vou ler os jornais. Cá tenho o Binóculo, que me aconselha a usar o chapéu na cabeça e as botas nos pés. Continuo a leitura. A famosa seção não abandona os conselhos. Tenho mais este: as damas não devem vir com toaletes luxuosas para a Rua do Ouvidor. Engraçado esse Binóculo! Não quer toaletes luxuosas nas ruas, mas ao mesmo tempo descreve essas toaletes. Se elas não fossem luxuosas haveria margem para as descrições? O Binóculo não é lá muito lógico...

Bem. Tomo outro. É o Correio da Manhã. Temos aqui uma seção interessante: “O que vai pelo mundo”. Vou ter notícias da França, do Japão, da África do Sul, penso eu. Leio de fio a pavio. Qual nada! O mundo aí é Portugal só e unicamente Portugal. Com certeza, foi a república recentemente proclamada, que o fez crescer tanto. Bendita república!

Fez mais que o Albuquerque terríbil e Castro forte e outros em quem poder não teve a morte.
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AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO nasceu em 1881, na cidade do Rio de Janeiro. Era negro e de família pobre. Sua mãe era professora primária e morreu de tuberculose quando Lima Barreto tinha 6 anos. Seu pai era tipógrafo, porém sofria de doença mental. Mas tinha um padrinho com posses - o Visconde de Ouro Preto (1836-1912) -, o que permitiu que o escritor estudasse no Colégio Pedro II. Depois, ingressou na Escola Politécnica, mas não concluiu o curso de Engenharia, pois precisava trabalhar. Em 1903, fez concurso e foi aprovado para atuar junto  à Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Assim, concomitantemente ao trabalho como funcionário público, escrevia os seus textos literários.  Em 1905, trabalhou como jornalista no Correio da Manhã. Lançou, em 1907, a revista Floreal. Em 1909, o seu primeiro romance foi editado em Portugal: Recordações do escrivão Isaías Caminha. O romance Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado, pela primeira vez, em 1911, no Jornal do Comércio, em forma de folhetim. Em 1914, Lima Barreto foi internado em um hospital psiquiátrico pela primeira vez. Se candidatou três vezes a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, recebeu dela, apenas uma menção honrosa em 1921. Morreu em 1922.

Fonte:
Publicado na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, em 20 outubro 1911. Disponível em Domínio Público.  
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