sexta-feira, 23 de maio de 2025

Humberto de Campos ("Gigolô")


Na pequena mesa redonda, em que havia lugar para três, D. Georgina comentava com a liberdade das suas maneiras, o capítulo de uma revista parisiense sobre um termo de criação recente, que tem, já, uma aplicação universal.

- Eu não sei, nem compreendo, afinal, a prevenção contra esse vocábulo.

- Que vocábulo, minha senhora? - inquiri, intrigado.

- Que vocábulo? O "gigolô", masculino de "gigolete", que toda a gente emprega, hoje, nos salões, nas festas, nos passeios, nos cinemas, sem o menor constrangimento. Uma das minhas amigas, Mme. Perez, tem uma cadelazinha a que deu o nome de "Gigolete", e chama-a por essa forma, em qualquer parte, sem o menor escândalo dos que a ouvem. As moças, hoje, andam à "gigolete", vestem-se à "gigolete", fantasiam-se de "gigolete" no Carnaval, e dizem-no sem rebuços, sem temores, sem que se engasguem com a aspereza da expressão. Não se pode, entretanto, falar em "gigolô", nem mesmo entre íntimos, sem que haja uma estranheza, um arrepio em todas as almas, principalmente nas que se dizem limpas de pecado. Por que essa diferença, essa disparidade, essa prevenção?

Eu olhei o Dr. Moraes, esposo da ilustre senhora, e, como o visse impassível, dirigi-me à mulher:

- E que é "gigolô", D. Georgina?

- O senhor, então, não sabe, conselheiro? Não sabe, mesmo?

E como lesse a ignorância estampada na minha fisionomia, explicou, virando-se para mim:

- "Gigolô" é o indivíduo adorado por uma mulher que tem outro homem que a ama, e que ela sustenta, à custa do último. Geralmente moço, o "gigolô" é tratado pela mulher que o adora com todos os requintes da paixão. Para ele são os seus melhores beijos, os seus melhores mimos, os seus maiores cuidados. O marido, ou o amante, ordinariamente idoso, fornece-lhe tudo, cercando-a de conforto, de luxo, de abundância, à custa, às vezes, dos maiores sacrifícios. Ela passa, entretanto, tudo isso ao "gigolô", que é, enfim, o único a lucrar com os amores e com o trabalho do outro.
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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Arthur Thomaz (Pescando Fantasia)


Em algum rio do centro-oeste brasileiro. Enfim a tão esperada pescaria com o grupo de amigos e a certeza de 10 mágicos dias.

No deck de uma pousada à beira do rio que omitirei o nome para evitar que consortes com espírito investigativo possam rastrear a inocente aventura dos maridos, embarcaram em um Boat-hotel e seguiram na busca dos peixes que o “pacote” da operadora de turismo prometera. Descontraídos, apreciavam as lindas paisagens, cada um tomando sua bebida. Conforme aumentava o consumo dos aperitivos, também elevava o teor das mentiras sobre pescarias anteriores e conquistas amorosas.

Algumas horas depois, o comandante do barco informou que haveria a primeira parada.

Alvoroçados, prepararam o material de pesca, quando avistaram, na margem direita, uma construção que lembrava um castelo.

Entreolharam-se surpresos quando ouviram a voz do capitão informando que deveriam descer e adentrar ao local.

O suntuoso cabaré da Eny estava preparado para receber os desavisados pescadores. Pista de dança, palco aparelhado com som de alta qualidade, um bar com Girls- Tender servindo drinks finíssimos.

Solícitas, as garçonetes seminuas e em grande número nunca deixavam os copos esvaziarem.

No lado de fora, uma churrasqueira manejada por um mestre na arte da carne e uma linda piscina com um quiosque, rodeado de bancos, e outra bar-girl especialista em bebidas exóticas.

Em determinado horário, o DJ começa a tocar uma música suave e surgem mulheres trajando vestidos longos, com discreta maquiagem, generosos decotes, que começaram a desfilar no palco, descendo em seguida, passeando entre as mesas e oferecendo companhia aos homens do grupo.

Logo formam-se os pares e todos dirigem-se à parte de trás do castelo, onde há magníficas suítes totalmente equipadas para estimular a imaginação.

De manhã ouvem o apito da embarcação chamando o grupo para reiniciar a viagem. Muito a contragosto, todos sobem ao convés e trocam poucas palavras. Ao chegar ao primeiro local onde cardumes esperam para ser fisgados, poucos tiveram ânimo para jogar as iscas.

O capitão já conhecendo essa reação, inicia um churrasco precedido de caipirinhas elaboradas com uma cachaça que ele reservava para levantar o astral dos hóspedes.

Aos poucos, todos retornaram às atividades de pesca.

Os mais desinibidos foram ao comandante aventar a hipótese de abreviar o tempo de pescaria e retornar ao Castelo da Eny. Chegaram a um acordo e tomaram o caminho de volta ignorando os peixes. Ao chegar ao Castelo, tiveram mais uma noite sem igual, onde o DJ colocou músicas típicas da ocasião, como Boate Azul, Eu vou tirar você deste lugar e sucessos de Nelson Ned, Waldick Soriano e Reginaldo Rossi. Todos cantaram com muita emoção. Novamente, formaram-se os pares e foram às suítes.

De manhã, soou o apito da embarcação e após as despedidas reuniram-se no convés. Repararam a falta de dois deles e foram checar o acontecido. Encontraram os dois agarrados aos pés da cama, quase em histeria, gritando que jamais iriam embora dali.

Eny, com muitos anos de experiência no ramo, foi chamada e pediu para ficar a sós com a dupla.

Assim, com ar professoral, disse que ninguém pode eternamente viver em uma só fantasia, que voltassem para casa e construíssem novos sonhos.

No caminho de casa estabeleceram um tácito acordo em que jamais falariam sobre aquelas duas noites.

Passado um ano, os dois recalcitrantes compraram novo pacote de viagem para o mesmo destino.

Embarcaram e, quando foram se aproximando do local do Castelo, mal podiam conter a ansiedade.

Não contiveram a ansiedade e ao ver que o comandante não diminuía a velocidade para atracar, gritaram desesperadamente, o que fez com que ele encostasse na margem do rio no local indicado pelos dois histéricos passageiros.

Ao não enxergar o Castelo, embrenham-se na mata para tentar achá-lo. Nada encontrando, voltaram desolados ao barco, sem entender o que poderia ter acontecido. Pescaram furiosamente como se os cardumes fossem responsáveis pela frustração.

Eny, no alto de sua experiência e sabedoria, tinha razão: somente insanos vivem dentro de uma fantasia.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, úblicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor 
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quarta-feira, 21 de maio de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 32 *

 

Leon Eliachar (Vida nova)


Há vinte e cinco anos que Alcebíades vinha sempre na mesma batida. Chegava em casa, dizia pra mulher:

— Estou exausto.

Ela servia o jantar, tentava com toda habilidade:

— Vamos ao cinema, meu bem? Ele respondia com voz melancólica:

— Deixa pra manhã, meu amor. Hoje eu trouxe serviço pra fazer em casa.

Era a rotina infalível. Trabalhava o dia todo, chegava morto de cansado, trancava-se no escritório e trabalhava até de madrugada. Há vinte anos que Matilde não punha o pé num cinema, a última fita que viu foi com Shirley Temple, no tempo que ainda era menina. Quando se falava em cinema, Matilde dava os maiores vexames, relembrando Jean Harlow, Mae West, Carole Lombard, Greta Garbo, Alice Faye, Myrna Loy.

— Você está mais por fora que rótulo de garrafa — dizia um primo seu que trabalhava na tevê.

Matilde era paciente e cultivava a sua paciência com amor e carinho. Passava as noites sem dormir, bolando uma fórmula de afastar Alcebíades do trabalho. Pelo menos do trabalho em casa. Ele era compreensivo, tinha a maior boa vontade com a mulher, mas o tempo era curto demais, nunca dava pra terminar o crescente acúmulo de serviço. Despejava a pasta em cima da mesa, folheava aquela papelada toda, mergulhava no mundo dos cálculos, somava, multiplicava, dividia, subtraía, escrevia cartas, deixava tudo arrumadinho, de manhã cedo levava tudo pronto, pra voltar logo mais à noite com nova carga.

— Estou exausto. Trouxe serviço pra fazer em casa.

Matilde teve uma ideia, há cinco meses vinha martelando na cabeça de Alcebíades:

— Você precisa treinar um pouco de boxe.

— Na minha idade?

— Cinquenta anos é a metade de uma vida. Você passou a metade metido entre papéis. Agora precisa se dedicar um pouco ao esporte.

A doçura com que Matilde falava, a ingenuidade com que argumentava, impediam que Alcebíades a chamasse de criança. Mas era justamente isso que ela era: uma criança de quase quarenta anos.

— Você não percebe, meu bem, que não tenho mais resistência para essas coisas?

— Faça um esforço, meu amor. Será para o bem de nós dois.

Alcebíades acabou se convencendo. Meteu na cuca que passou a vida inteira sem dar muita atenção a Matilde, não custava lhe satisfazer esse desejo. Entrou para uma academia de boxe, começou o seu treininho:

— Me acorda cedo, amanhã.

— Por quê?

— É uma surpresa.

Passou dois meses treinando, pulando corda, dando murros em saco, correndo a pé, tomando ducha.

— Vamos ao cinema hoje, meu bem?

— Hoje não posso, preciso levantar cedo amanhã.

— Mas que mistério é esse, Alcebíades?

— Já lhe disse que é uma surpresa. Você vai gostar.

Uma noite, Alcebíades chegou em casa com outra disposição. Veio acompanhado de um senhor alto e forte, apresentou-o à mulher. Pediu um jantar com muita salada e vitamina. De sobremesa, só frutas. Depois foram para o living, tomaram cafezinho, conversaram algum tempo, o assunto não saiu de Jack Dempsey, Joe Louis e Cassius Clay. Finalmente, veio a surpresa:

— Querida, agora sou boxeador profissional. Matilde sorriu, vitoriosa:

— Ah, quer dizer que este senhor é o seu empresário?

— Não, querida, este é o meu treinador.

— Que ótimo, então vamos todos ao cinema?

— Hoje não posso, querida.

Meteram-se dentro do quarto e começaram a se esmurrar. Alcebíades não havia perdido o hábito de trazer serviço pra casa.
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Leon Eliachar nasceu no Cairo/Egito, em 1922 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1987. Jornalista de humor e escritor brasileiro. Veio para o Brasil muito pequeno e viveu quase toda a sua vida no Rio de Janeiro. Jornalista desde os 19 anos de idade, Trabalhou em diversos jornais e revistas, entre elas, “Manchete”, “Cruzeiro”, “Fatos & Fotos”, “Cigarra”, “Revista da TV”, “Fon-Fon”, “Pif-Paf”, “Diário de Notícia” e “Ùltima Hora”, onde mantinha uma página com o título de “Penúltima Hora”. Justificava o nome da página com a legenda "um jornal feito na véspera". Foi colaborador dos roteiros de dois filmes carnavalescos, e autor de programas de rádio e secretário da revista Manchete. Também foi colunista da revista O Cruzeiro. Em 1956 foi laureado com o primeiro prêmio na IX Exposição Internacional de Humorismo realizada na Europa, em Bordighera, na Itália. Segundo notícias da época, ele foi assassinado a mando de um rico fazendeiro paranaense com cuja esposa o autor vinha mantendo um romance. Leon morreu com um tiro no rosto, em seu apartamento. Escreveu O Homem ao Quadrado (1960); O Homem ao Cubo (1963); A Mulher em Flagrante (1965); O Homem ao Zero (1967); 10 em Humor (1968, em conjunto com Millôr Fernandes, Stanislaw Ponte Preta, Fortuna, Ziraldo, Jaguar, Claudius, Zélio, Henfil e Vagn) e O Homem ao Meio (1979)

Fontes:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado originalmente em 1965.
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José Feldman ("Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos" – download gratuito)


Quero compartilhar meu novo e-book intitulado "Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos". Com páginas repletas de contos e crônicas, a obra explora o humor em diversas situações do cotidiano, muitas delas vivenciadas por mim.
 
Após o e-book anterior, em que algumas páginas foram de intensa tristeza, este meu novo é em contrapartida, o qual fará você chorar… de tanto rir.

A maioria destes contos foram publicadas neste blog.
 
Ficaria muito feliz se você pudesse dar uma olhada, compartilhar suas impressões e divulgar entre seus contatos.

Você pode baixar no link abaixo
 
abraços fraternos,
José Feldman

Asas da Poesia * 24 *

 

Trova de
A. A. DE ASSIS 
Maringá/PR

Para espalhar, num momento,
uma notícia qualquer,
não há melhor instrumento
que o rádio, a imprensa e a mulher...
= = = = = =

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Não há distância entre um nada e outro nada
(Narciso Alves Pires in "Para Além do Adeus")

Não há distância entre um nada e outro nada
Já que todos os nadas são iguais
Mas o nada que dizes me dói mais
Do que a mágoa que fosse a mais pesada,

Já sei que a minha sorte foi traçada
Para morar num barco preso ao cais
Sem provar o mar chão e os temporais
E não tive, sequer, uma largada.

Ê tudo igual nos tempos que medeiam
As horas destes dias que semeiam
No meu peito uma ausência de porto.

Confinado ao tão pouco que hoje sou
Fico aqui, sei que não chego nem vou
No ponto de partida eu já estou morto.
= = = = = = = = =  

Triverso de
MARIA HELENA LOURENÇO TAVARES
São Vicente/SP

Lua

Só uma metade…
Quem foi que escondeu
O resto da Lua?
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

As mãos que colheram as uvas...

Feito, finas rendas que com o tempo
Tornaram-se translúcidas e, aos poucos
Desapareceram,
As mãos que colheram as uvas,
Permanecem vivas, pulsando
Nas lembranças de outras mãos
Colhendo uvas em um antiga ritual
Árduo e encantado,
Mantendo a tradição de colher com cuidado e,
Carinho, e assim extrair
Dos doces cachos, o vinho...
As mãos que colheram as uvas,
Vivas permanecem em vinícolas,
E na solitária garrafa escura, ao lado do queijo.
E também, em telas
E no olhar de quem, curioso
As observa ao alcance das mãos
Em um fim de tarde, repleta
De cores, amor e silêncio...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Cheguei tarde para a festa...
De véu, grinalda e um sorriso,
ela é a imagem que me resta
de um pretenso paraíso.
= = = = = = 

Poema de
PIA TAFDRUP
Copenhague/Dinamarca

Qual a Hora, Qual o Momento?

Uma falha na vida é às vezes castigada
com a morte
- veneno – gás – choque – tiros – ou enforcamento –
mas o que é a morte
senão um castigo?
Uma recompensa ou não?
Condenados a morrer
já nós estamos
- mesmo sem castigo.
Ou será a morte
apesar de tudo uma prenda
que nos impede de viver demais?
Isso sim, seria um castigo!
para nós e para os outros.
Difícil é ver a morte
como prenda
no momento de deitar fora o papel
com a morada de um amigo
que morreu,
tenho que me lembrar
de não mandar mais cartas, 
não fazer mais telefonemas,
talvez desistir de conversar em sonhos…
Devo guardar o papel amarrotado
ou recordar o que ele diz?
Há silêncio
na sombra…
Destruo o endereço que ele escreveu
- mas porquê?
Porque o céu com as brasas que se erguem
brilha vermelho – Herodes –
ou porque um pica-pau neste momento
anda por um ramo de pernas para o ar
e cabeça para baixo,
mas o olhar vagueia
pelo céu matinal do abismo.
= = = = = = = = = 

Trova de
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Pergunta a neta, sentida:
"Vovó, como era a mãezinha?"
- Olha no espelho, querida,
tinha esta mesma carinha...
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Vinha de Nabot

Maldito aquele dia, em que abriste em meu seio,
Cruel, esta paixão, como, ampla e iluminada,
Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio
Da espessa escuridão de uma selva cerrada!

Ah! três vezes maldito o amor que me avassala,
E me obriga a viver dentro de um pesadelo,
Louco! por toda a parte ouvindo a tua fala,
Vendo por toda a parte a cor do teu cabelo!

De teu colo no vale embalsamado e puro
Nunca descansarei, como num paraíso,
Sob a tenda aromal desse cabelo escuro,
Olhando o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.

Desvairas-me a razão, tiras-me a calma e o sono!
Nunca te possuirei, bela e invejada vinha,
Ó vinha de Nabot que tanto ambiciono!
Ó alma que procuro e nunca serás minha!
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Meu momento mais doído 
foi perder quem tanto adoro, 
por isso eu choro escondido 
para ninguém ver que eu choro!
= = = = = = 

Poema de 
AMÉRICO TEIXEIRA MOREIRA
Armamar/Alto Douro/Portugal

Como se fosse um punhal doce

Foi quando senti a tua nudez mais perto
que um cais aqueceu o meu corpo.
Foi quando tentei cantar teus olhos perdidos
que a imensidão da tua boca se fechou.
Foi quando louco e escorraçado do teu barco
que as águas do oceano vieram percorrer
com violência o silêncio da tua partida.
Foi quando vindo do infinito da tua pele inundada
que as minhas verdades se desmoronaram
e dissidentes se perderam no equilíbrio
da tua recusa em seres um pântano.
Foi quando no meio de um matagal de vozes
a minha se exasperou na fervura de tantos olhares.
Foi quando os fragmentos de um mundo irônico e
doente de sonho matou de morte o prazer das veias.
Foi quando uma tarde perdida no tempo a
inconstância quis correr mais forte e viscosa,
secreta de raiva, ainda mais sofrida de fogo
que a frescura da razão caiu em mim calada
e triste, o absoluto da solidão me trespassou
como se fosse um punhal doce.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

" O trabalho é que enobrece!" 
Dizem todos ao Raul.
E ele responde: - "Acontece, 
que eu detesto sangue azul!"
= = = = = = 

Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Águas Passadas

Essa mulher que você vê, já foi um dia
muito mais do que é hoje em minha vida.
Já foi a musa que inspirou toda a poesia,
e a razão de cada noite mal dormida.

Essa mulher eu quis, mas nada dela tive,
a não ser toda a desilusão que virou dor,
uma dor que no meu peito ainda vive
quando alguém me pergunta sobre amor.

Essa mulher, que me olha indiferente,
que mostra que por mim mais nada sente
e se despede assim, com naturalidade,

não nota que eu procuro, e não consigo
vê-la apenas com os olhos de um amigo,
pois esse olhar é o retrato da saudade.
= = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Na loucura dos meus versos,
e em quase todos seus traços,
há pedacinhos dispersos
do amor que tive em teus braços.
= = = = = = 

Hino de
IBIPORÃ/ PR

Foi fundada no bruto sertão
Pouco às margens do Rio Tibagi
E crescendo tornou-se o brasão
Deste povo que vibra e sorri.

Tu exalas perfume no ar
Há em ti um gorjeio de prece
Sua história é um hino a cantar
As grandezas que a pátria enaltece.

Salve, salve Ibiporã.
Terra de audazes bandeirantes
Teus cafezais heróico afã
São teus preciosos diamantes.

Vem dos rios, vem dos lares e florestas.
Vem da alma da infância senil
Sussurrando uma brisa de festas
Ao beijar o pendão do Brasil.

Da mais bela e grandiosa matriz
Linda imagem da Virgem da Paz
Abençoa a cidade feliz
E serena-lhes os dias que traz.

Salve, salve Ibiporã.
Terra de audazes bandeirantes
Teus cafezais heróico afã
São teus preciosos diamantes
= = = = = = = = =  

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

É madrugada... e eu proponho
que esta solidão me esqueça,
ante os versos que componho
até que o dia amanheça!
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Meu eterno namorado

Esta imensa saudade que ficou,
dos momentos felizes que vivemos,
dos planos para os filhos que tivemos,
tudo isso meu amor concretizou.

A pequenina  casa ainda teremos,
onde possa lembrar o que restou,
dessa história de amor que aqui chegou
e em nossos descendentes viveremos.

Meu coração se aflige ao recordar,
aquele nosso sonho anos sessenta,
sente tua presença ali no altar.

Ouço  ainda teu passo a caminhar
em cada filho nosso, após quarenta
anos o nosso sonho acalentar.
= = = = = =

Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

É um velho lar meu legado 
onde o amor gerou bonança
e pôs um filho ao meu lado 
multiplicando essa herança.
= = = = = =

Poema de 
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Porto/Portugal, 1919 – 2004, Lisboa/Portugal

Retrato de uma princesa desconhecida

      Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
 Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
      Para que a sua espinha fosse tão direita
         E ela usasse a cabeça tão erguida
    Com uma tão simples claridade sobre a testa
 Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
     De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
     Servindo sucessivas gerações de príncipes
         Ainda um pouco toscos e grosseiros
            Ávidos cruéis e fraudulentos

         Foi um imenso desperdiçar de gente
        Para que ela fosse aquela perfeição
           Solitária exilada sem destino
= = = = = =

Triverso do
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ

A maré alta devolve
plásticos e pneus,
mas não devolve a "vergonha"!
= = = = = = = = =  

Poema do
ANDRÉ CARNEIRO
(André Granja Carneiro)
Atibaia/SP, 1922 – 2014 , Curitiba/PR

Florestas queimadas

0 correto é sinuoso.
Atravessar o asfalto de olhos fechados
economiza tardias agonias sem alvo.
Cada palavra gritada
tem dicionário diverso.
Letras deslizam pelos olhos,
o som o dente mastiga,
a vogal mordida perfura o tímpano,
o ‘não’ salta dos lábios
como um rato assassino.
Há um jeito de perfumar sentenças,
mostrar o mel de virgens letras obscenas.
Como os caninos das serpentes,
há letras molhadas
com o ácido corrosivo
do olhar sem brilho.
Calada, sei quando ela
pensa em nuvens macias
ou estrangula insetos
com os pés em curva.
Faço versos com verbetes alheios.
Arrisco confundir
finjo com pretendo,
loucura com a doçura
do momento em segredo,
o espelho no teto e a porta fechada.
Alienígenas sem lábios, canetas e livros
transmitem o que pensam.
Nossas palavras ditas ou escritas
são ininteligíveis fora deste uni
verso de primatas solitários,
sem dinossauros nas
florestas queimadas.
= = = = = = = = =  

Uma Aldravia de
GILBERTO MADEIRA PEIXOTO
Belo Horizonte/MG

amar
é
buscar
um
novo
horizonte
= = = = = = = = =  

Poema do
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

Este quarto... 
(para Guilhermino César)

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...
= = = = = = = = =  

Haicai de
SONIA REGINA ROCHA RODRIGUES 
Santos/SP

Borboleta

Encantada, eu paro –
Migração de borboletas
esconde a paisagem.
= = = = = = = = =  

Soneto do
FRANCISCO NEVES DE MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

A trova

Momento maior de qualquer trovador
é quando ele faz uma trova inspirada,
e evoca a paixão da mulher, a sua amada,
com versos perfeitos falando de amor.

Esteja onde esteja, vá aonde ele for,
a trova será sua luz, sua estrada...
É faixa de luz de si mesmo emanada,
ciência suprema que vem do Senhor!

São só quatro versos com rimas perfeitas
Cruzadas, reais, pelos vates eleitas,
o amor burilado com plena emoção.

Sem trova a poesia seria incompleta,
e o bom trovador tão somente poeta...
Enorme vazio no meu coração!
= = = = = = = = =  

Soneto de
JOSÉ TAVARES DE LIMA 
Juiz de Fora/MG

Poesia, meu refúgio 

Sinto a tua presença nos meus passos,
a tua sombra acompanhar a minha;
e nas horas de insônia e de cansaços,
que a tua mão furtiva me acarinha…
 
Quando curvado ao peso dos fracassos,
a dor dos desenganos me espezinha,
eu te chamo inquieto, abrindo os braços
como quem de loucura se avizinha!
 
E, se a chamar-te quase sempre vivo
é porque sabes ser o lenitivo
que suaviza aquela dor medonha…
 
E acho em ti, poesia benfazeja,
o refúgio feliz que o aflito almeja,
e o mundo alegre que o poeta sonha!…
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Epigrama de
PADRE CELSO DE CARVALHO
Curvelo/MG, 1913 – 2000, Diamantina/MG

Se toda ilusão frustrada
se tornasse assombração,
que casa mal assombrada
não seria o coração!
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Poema da
SUELY BRAGA
Osório/RS

A gota

A gota rola na face
não é colírio
não é orvalho
A gota é uma 1ágrima
vertida
sentida
que expressa dor
ou alegria.
A gota mergulha no oceano
das emoções
das angústias
dos corações
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Quadra Popular
AUTOR  ANÔNIMO

Com pena peguei na pena
para com pena escrever,
com pena escrevi penas,
com penas hei de morrer.
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