domingo, 25 de janeiro de 2015

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Soneto, Poesia e Trovas)




Aurora Desbotada
Antonio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis “Cidade Poema”

Desperta a aurora fria e desbotada,
Em mais um dia que precede o fim,
E essa minha alma frágil e tão cansada,
Já não suporta a dor que dói em mim.

A noite avança, rompe a madrugada,
Eu já não sinto o aroma do jasmim
Que andava no meu quarto e na sacada
E perfumava todo o meu jardim.

Dia morto... noite morta... tudo é nada...
Viver só por viver não me consola
Se a aurora só é bela colorida.

Sinto que irei sem ti nessa jornada,
E a suportar a angústia que me assola,
Prefiro não viver - isso não é vida!

Diálogo do Silêncio
Astir’Carr
São Paulo

Olhar cravado no infinito neste céu azul de nuvens escasso
vazio da parede nua perscruto no calor deste deserto
vivo o silêncio de você, e o calor imenso não responde
Nesse parto de solidão, sufoca-me o que parece transição
não há dor ou lágrima. Há um amor eterno em solidão
Tomo sua mão envelhecida, sinto minha mão em sua mão
afago seu cabelo grisalho, embranquecidos pelo tempo na saudade
beijo sua boca ardente, lábios trêmulos de tanta ansiedade
abraço seu abraço terno. Que quase esqueceram o que é abraço.

Não há queixa na voz, só saudade no coração
que chama seu nome no escuro. Minha voz se perde na distância
Há apenas esse ardor amante nas lembranças doces da minha vida
de ser agora e sempre, o maior amor da minha existência
de ser a primeira novamente: no filme que se repete diariamente
de ser a marca do seu traço, quando tudo começou no primeiro abraço
o passo do seu caminho; meu caminho com seus passos
de ser o desejo forte de uma magia que escasseia
que afoga meu peito de um olhar, de um meneio.

Olhar cravado no imponderável pois assim de olhos fechados o vejo
silêncio na parede nua, na flor branca e simples que o representa
meu peito, seu apoio, meu sonho, minha esperança
meu braço, seu amparo, a luz final neste túnel escuro
seu abandono impotente para transpor tamanha solidão
minha esperança rogo que nossas pegadas continuem juntas

Não exatamente perdida mas unidas na nossa esperança
mas desgarrada num desespero de retomada
de razões, da paixão maior da minha vida
motivos, tenho todos para gritar te amo
alentos.. na esperança que não morre
vivo o silêncio de você! vivo o silêncio de você.

Trovas
Todas as trovas aqui apresentadas foram extraídas da Revista Virtual Trovia
Coordenada pelo grande trovador A.A. de Assis
Revista virtual de trovas
Ano 13 – n. 152 – Agosto de 2012

Dentre os bens que o filho espera
receber por transmissão,
tesouro nenhum supera
o exemplo que os pais lhe dão.
A. A. de Assis - PR

Praia... Sentado na areia,
sem nuvens de tempestade,
enquanto a mente vagueia
alguém chora de saudade!
Diamantino Ferreira – RJ

Na gaveta do meu peito
tranquei a dor da saudade,
para ela saber direito...
o que é sofrer de verdade!
Ademar Macedo – RN

Mamãe, tua idade avança
e eu, triste, não me consolo,
porque sou sempre a criança
que precisa do teu colo!...
Maria Nascimento – RJ

Criança não é brinquedo,
é inocente criatura;
se às vezes ela tem medo,
é por falta de ternura.
Neiva Fernandes – RJ

Vivo em constante conflito,
entre o delírio e a razão:
– meu sonho alcança o infinito...
meus pés... tropeçam no chão.
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Em vez de mel, chocolate,
restou-me um outro sabor:
nos meus lábios, mertiolate
"curando" beijos de amor...
Jeanette De Cnop – PR

Fonte:
O Autor

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Dorothy Jansson Moretti ( Baú de Trovas) 19


Machado de Assis (O Diplomático)

A preta entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma coisa urgente, porque a senhora levantou-se logo.

- Ficamos esperando, D. Adelaide?

- Não espere, não, Sr. Rangel; vá continuando, eu entro depois. Rangel era o leitor do livro de sortes. Voltou a página, e recitou um título: "Se alguém lhe ama em segredo." Movimento geral: moças e rapazes sorriram uns para os outros. Estamos na noite de S. João de 1854, e a casa é na Rua das Mangueiras. Chama-se João o dono da casa, João Viegas, e tem uma filha, joaninha. Usa-se todos os anos a mesma reunião de parentes e amigos, arde uma fogueira no quintal, assam-se as batatas do costume, e tiram-se sortes. Também há ceia, às vezes dança, e algum jogo de prendas, tudo familiar. João Viegas é escrivão de uma vara cível da corte.

- Vamos. Quem começa agora? disse ele. Há de ser D. Felismina. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.

D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa quarentona, sem prendas nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das pálpebras devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e mansas, que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou os dados com um ar de complacência incrédula. Número dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo da página, viu a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que sim, que havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando fosse à missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina que sorriu com desdém, mas interiormente esperançada.

Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia, - ou por ser cambraia, - ou por exalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira, e ali chamavam-lhe "o diplomático".

- Ande, seu diplomático, continue.

Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namorava alguma? Vamos por partes.

Era solteiro, por obra das circunstâncias, não de vocação. Em rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo apareceu-lhe a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato até os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma noiva superior a ele e à roda em que vivia, e gastou o tempo em esperá-la. Chegou a frequentar os bailes de um advogado célebre e rico, para quem copiava papéis, e que o protegia muito. Tinha nos bailes a mesma posição subalterna do escritório; passava a noite vagando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras, devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e talhes graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado e resoluto. Em falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver algumas das primeiras moças da cidade. Também era certo no saguão do paço imperial, em dia de cortejo, para ver entrar as grandes damas e as pessoas da corte, ministros, generais, diplomatas, desembargadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna.

O pior é que entre a espiga e a mão, há o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Chegou ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no Largo do Paço; imaginou para isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura benéfica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era pacato e discreto.

Aos quarenta anos desenganou-se das ambições; mas a índole ficou a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva. Mais de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas à força de circunspecção. Um dia, reparou em Joaninha, que chegava aos dezenove anos e possuía um par de olhos lindos e sossegados, - virgens de toda a conversação masculina. Rangel conhecia-a desde criança, andara com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas noites de fogo da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as relações dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou este ou nenhum outro.

Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava esticar o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé. Rangel andava neste trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha alguém, disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a esticá-lo, acontecia que uma lufada de vento meneava a espiga ou algum passarinho andava ali nas folhas secas, e não era preciso mais para que ele recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe, causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre melhores esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor, disposto a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espaçando; a noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes, com a solenidade de um ángur.

Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam ao mesmo tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda da mesa com uma pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas está ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se meteria o Calisto?

- Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.

Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ela foi à janela, por alguns instantes, enquanto se preparava um jogo de prendas, e ele foi também; era a ocasião de entregar-lhe a carta. Defronte, numa casa grande, havia um baile, e dançava-se. Ela olhava, ele olhou também. Pelas janelas viam passar os pares, cadenciados, as senhoras com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos e elegantes, alguns condecorados. De quando em quando, uma faísca de diamantes, rápida, fugitiva, no giro da dança. Pares que conversavam, dragonas que reluziam, bustos de homens inclinados, gestos de leque, tudo isso em pedaços, através das janelas, que não podiam mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o resto. Ele ao menos, conhecia tudo, e dizia tudo à filha do escrivão. O demônio das grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no coração do nosso homem, e ei-lo que tenta seduzir também o coração da outra.

- Conheço uma pessoa que estaria ali muito bem, murmurou o Rangel.

E Joaninha, com ingenuidade:

- Era o senhor.

Rangel sorriu lisonjeado, e não achou que dizer. Olhou para os lacaios e cocheiros, de libré, na rua, conversando em grupos ou reclinados no tejadilho dos carros. Começou a designar carros: este é do Olinda, aquele é do Maranguape; mas aí vem outro, rodando, do lado da Rua da Lapa, e entra na Rua das Mangueiras. Parou defronte: salta o lacaio, abre a portinhola, tira o chapéu e perfila-se. Sai de dentro uma calva, uma cabeça, um homem, duas comendas, depois uma senhora ricamente vestida; entram no saguão, e sobem a escadaria, forrada de tapete e ornada embaixo com dois grandes vasos.

- Joaninha, Sr. Rangel...

Maldito jogo de prendas! Justamente quando ele formulava, na cabeça, uma insinuação a propósito do casal que subia, e ia assim passar naturalmente à entrega da carta... Rangel obedeceu, e sentou-se defronte da moça. D. Adelaide, que dirigia o jogo de prendas, recolhia os nomes; cada pessoa devia ser uma flor. Está claro que o tio Rufino, sempre gaiato, escolheu para si a flor da abóbora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao trivial, comparou mentalmente as flores, e quando a dona da casa lhe perguntou pela dele, respondeu com doçura e pausa:

- Maravilha, minha senhora.

- O pior é não estar cá o Calisto! suspirou o escrivão.

- Ele disse mesmo que vinha?

- Disse; ainda ontem foi ao cartório, de propósito, avisar-me de que viria tarde, mas que contasse com ele; tinha de ir a uma brincadeira na Rua da Carioca...

- Licença para dois! bradou urna voz no corredor.

- Ora graças! está aí o homem!

João Viegas foi abrir a porta; era o Calisto, acompanhado de um rapaz estranho, que ele apresentou a todos em geral : - "Queirós, empregado na Santa Casa; não é meu parente, apesar de se parecer muito comigo; quem vê um, vê outro..." Toda a gente riu; era uma pilhéria do Calisto, feio como o diabo, - ao passo que o Queirós era um bonito rapaz de vinte e seis a vinte e sete anos, cabelo negro, olhos negros e singularmente esbelto. As moças retraíram-se um pouco; D. Felismina abriu todas as velas.

- Estávamos jogando prendas, os senhores podem entrar também, disse a dona da casa. Joga, Sr. Queirós?

Queirós respondeu afirmativamente e passou a examinar as outras pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou três palavras com elas. Ao João Viegas disse que desde muito tempo desejava conhecê-lo, por causa de um favor que o pai lhe deveu outrora, negócio de foro. João Viegas não se lembrava de nada, nem ainda depois que ele lhe disse o que era; mas gostou de ouvir a notícia, em público, olhou para todos, e durante alguns minutos regalou-se calado.

Queirós entrou em cheio no jogo. No fim de meia hora, estava familiar da casa. Todo ele era ação, falava com desembaraço, tinha os gestos naturais e espontâneos. Possuía um vasto repertório de castigos para jogo de prendas, coisa que encantou a toda a sociedade, e ninguém os dirigia melhor, com tanto movimento e animação, indo de um lado para outro, consertando os grupos, puxando cadeiras, falando às moças, como se houvesse brincado com elas em criança.

- D. Joaninha aqui, nesta cadeira; D. Cesária, deste lado, em pé, e o Sr. Camilo entra por aquela porta... Assim, não: olhe, assim de maneira que...

Teso na cadeira, o Rangel estava atônito. Donde vinha esse furacão? E o furacão ia soprando, levando os chapéus dos homens, e despenteando as moças, que riam de contentes: Queirós daqui, Queirós dali, Queirós de todos os lados. Rangel passou da estupefação à mortificação. Era o cetro que lhe caía das mãos. Não olhava para o outro, não se ria do que ele dizia, e respondia-lhe seco. Interiormente, mordia-se e mandava-o ao diabo, chamava-o bobo alegre, que fazia rir e agradava, porque nas noites de festa tudo é festa. Mas, repetindo essas e piores causas, não chegava a reaver a liberdade de espírito. Padecia deveras, no mais íntimo do amor-próprio; e o pior é que o outro percebeu toda essa agitação, e o péssimo é que ele percebeu que era percebido.

Rangel, assim como sonhava os bens, assim também as vinganças. De cabeça, espatifou o Queirós; depois cogitou a possibilidade de um desastre qualquer, uma dor bastava, mas cousa forte, que levasse dali aquele intruso. Nenhuma dor, nada; o diabo parecia cada vez mais lépido, e toda a sala fascinada por ele. A própria Joaninha, tão acanhada, vibrava nas mãos de Queirós, como as outras moças; e todos, homens e mulheres, pareciam empenhados em servi-lo. Tendo ele falado em dançar, as moças foram ter com o tio Rufino, e pediram-lhe que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só, não se lhe pedia mais.

- Não posso, dói-me um calo.

- Flauta? bradou o Calisto. Peçam ao Queirós que nos toque alguma coisa, e verão o que é flauta... Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o Queirós. Não imaginam como ele saudoso na flauta!

Queirós tocou a Casta Diva. Que coisa ridícula! dizia consigo o Rangel; - uma música que até os moleques assobiam na rua. Olhava para ele, de revés, para considerar se aquilo era posição de homem sério; e concluía que a flauta era um instrumento grotesco. Olhou também para Joaninha, e viu que, como todas as outras pessoas, tinha a atenção no Queirós, embebida, namorada dos sons da música, e estremeceu, sem saber porquê. Os demais semblantes mostravam a mesma expressão dela, e, contudo, sentiu alguma coisa que lhe complicou a aversão ao intruso. Quando a flauta acabou, Joaninha aplaudiu menos que os outros, e Rangel entrou em dúvida se era o habitual acanhamento, se alguma especial comoção... Urgia entregar-lhe a carta.

Chegou a ceia. Toda a gente entrou confusamente na sala, e felizmente para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de Joaninha, cujos olhos estavam mais belos que nunca e tão derramados, que não pareciam os do costume. Rangel saboreou-os caladamente, e reconstruiu todo o seu sonho que o diabo do Queirós abalara com um piparote. Foi assim que tornou a ver-se, ao lado dela, na casa que ia alugar, berço de noivos, que ele enfeitou com os louros da imaginação. Chegou a tirar um prêmio na loteria e a empregá-lo todo em sedas e jóias para a mulher, a linda Joaninha, - Joaninha Rangel, - D. Joaninha Rangel, - D. Joana Viegas Rangel, - ou D. Joana Cândida Viegas Rangel... Não podia tirar o Cândida...

- Vamos, uma saúde, seu diplomático... faça uma saúde daquelas...

Rangel acordou; a mesa inteira repetia a lembrança do tio Rufino; a própria Joaninha pedia-lhe uma saúde, como a do ano passado. Rangel respondeu que ia obedecer; era só acabar aquela asa de galinha. Movimento, cochichos de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca ouvira falar o Rangel:

- Não? perguntou com pasmo. Não imagina; fala muito bem, muito explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos modos...

Comendo, ia ele dando rebate a algumas reminiscências, frangalhos de ideias, que lhe serviam para o arranjo das frases e metáforas. Acabou e pôs-se de pé. Tinha o ar satisfeito e cheio de si. Afinal, vinham bater-lhe à porta. Cessara a farandulagem das anedotas, das pilhérias sem alma, e vinham ter com ele para ouvir alguma coisa correta e grave. Olhou em derredor, viu todos os olhos levantados, esperando. Todos não; os de Joaninha enviesavam-se na direção do Queirós, e os deste vinham esperá-los a meio caminho, numa cavalgada de promessas. Rangel empalideceu. A palavra morreu-lhe na garganta; mas era preciso falar, esperavam por ele, com simpatia, em silêncio.

Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao dono da casa e à filha. Chamava a esta um pensamento de Deus, transportado da imortalidade à realidade, frase que empregara três anos antes, e devia estar esquecida. Falava também do santuário da família, do altar da amizade, e da gratidão, que é a flor dos corações puros. Onde não havia sentido, a frase era mais especiosa ou retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados, que ele despachou em cinco, e sentou-se.

Não era tudo. Queirós levantou-se logo, dous ou três minutos depois para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais pronto e completo. Joaninha meteu os olhos no regaço, vexada do que ele iria dizer; Rangel teve um arrepio.

- O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel, - disse Queirós, - bebeu às duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo àquela que é a santa de todos os dias, a D. Adelaide.

Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e D. Adelaide, lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não ficou em cumprimentos. - Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e foi abraçá-la e beijá-la três e quatro vezes; - espécie de carta para ser lida por duas pessoas.

Rangel passou da cólera ao desânimo, e, acabada a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, causas de uma noite, namoro de S. João; afinal, ele era amigo da casa, e tinha a estima da família; bastava que pedisse a moça, para obtê-la. E depois esse Queirós podia não ter meios de casar. Que emprego era o dele na Santa Casa? Talvez alguma coisa reles... Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queirós, enfiou-se-lhe pelas costuras, escrutou o bordadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças, a ver-lhe o uso, e os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas provavelmente gastava tudo consigo, e casar era negócio sério. Podia ser também que tivesse mãe viúva, irmãs solteiras... Rangel era só.

- Tio Rufino, toque uma quadrilha.

- Não posso; flauta depois de comer faz indigestão. Vamos a um víspora.

Rangel declarou que não podia jogar, estava com dor de cabeça; mas Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de sociedade. - "Meia coleção para o senhor, e meia para mim", disse ela, sorrindo; ele sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro. Joaninha falava-lhe, ria, levantava para ele os belos olhos, inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados. Rangel sentiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. Ia marcando à toa, esquecendo alguns números, que ela lhe apontava com o dedo, - um dedo de ninfa, dizia ele consigo; e os descuidos passaram a ser de propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar: "O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso dinheiro..."

Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas não estando declarados, era natural que ela a recebesse com espanto e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos os rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente os números. Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos cartões de Joaninha, como para verificar alguma coisa.

- Já tem duas quadras, cochichou ele.

- Duas, não; tenho três.

- Três, é verdade, três. Escute...

- E o senhor?

- Eu duas.

- Que duas o quê? São quatro.

Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada, roçando quase a orelha pelos lábios dele; depois, fitou-o rindo e abanando a cabeça: "O senhor! o senhor!" Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão doce, e a expressão tão amiga, que ele esqueceu tudo, agarrou-a pela cintura, e lançou-se com ela na eterna valsa das quimeras. Casa, mesa, convivas, tudo desapareceu, como obra vã da imaginação, para só ficar a realidade única, ele e ela, girando no espaço, debaixo de um milhão de estrelas, acesas de propósito para alumiá-los.

Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para a janela ver sair os convidados do baile fronteira. Rangel recuou espantado. Viu um aperto de dedos entre o Queirós e a bela Joaninha. Quis explicá-lo, eram aparências, mas tão depressa destruía uma como vinham outras e outras, à maneira das ondas que não acabam mais. Custava-lhe entender que uma só noite, algumas horas bastassem a ligar assim duas criaturas; mas era a verdade clara e viva dos modos de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e até da saudade com que se despediram de manhã.

Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em casa, aonde chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas para romper em soluços. Só consigo, foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já não era o diplomático, era o energúmeno, que rolava na cama, bradando, chorando como uma criança, infeliz deveras, por esse triste amor do outono. O pobre-diabo, feito de devaneio, indolência e afetação, era, em substância, tão desgraçado como Otelo, e teve um desfecho mais cruel.

Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao Queirós, quando este se casou com Joaninha, seis meses depois.

Nem os acontecimentos, nem os anos lhe mudaram a índole. Quando rompeu a guerra do Paraguai, teve ideia muitas vezes de alistar-se como oficial de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas e acabou brigadeiro.

sábado, 30 de agosto de 2014

Machado de Assis (Marcha Fúnebre)

O deputado Cordovil não podia pregar olho uma noite de agosto de 186... Viera cedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do Imperador, e durante o baile não tivera o mínimo incômodo moral nem físico. Ao contrário, a noite foi excelente; tão excelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez horas, e a notícia chegou ao Cassino pouco depois das onze.

Naturalmente concluis que ele ficou alegre com a morte do homem, espécie de vingança que os corações adversos e fracos tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal; não foi alegria, foi desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que não acabam mais, e moem, mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dos padecimentos do adversário. Alguns amigos, para o consolar de antigas injúrias, iam contar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de braços, vivendo as noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem esperanças, nem as tardes desenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra de compaixão, que o alvissareiro anotava, e repetia, e era mais sincera naquele que neste. Enfim acabara de padecer; daí o desabafo.

Este sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em política, não gostava do mal alheio. Quando rezava, ao levantar da cama: "Padre Nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores"... não imitava um de seus amigos que rezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de língua; esse chegava a cobrar além do que eles lhe deviam, isto é, se ouvia maldizer de alguém, decorava tudo e mais alguma coisa, e ia repeti-lo a outra parte. No dia seguinte, porém, a bela oração de Jesus tornava a sair dos lábios da véspera com a mesma caridade de ofício.

Cordovil não ia nas águas desse amigo; perdoava deveras. Que entrasse no perdão um tantinho de preguiça, é possível, sem aliás ser evidente. Preguiça amamenta muita virtude. Sempre é alguma coisa minguar força à ação do mal. Não esqueça que o deputado só gostava do mal alheio em política, e o inimigo morto era inimigo pessoal. Quanto à causa da inimizade, não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida.

- Coitado! descansou, disse Cordovil.

Conversaram da longa doença do finado. Também falaram das várias mortes deste mundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de César, não por motivo do ferro, mas por inesperada e rápida.

- Tu quoque? perguntou-lhe um colega rindo.

Ao que ele, apanhando a alusão, replicou:

- Eu, se tivesse um filho, quisera morrer às mãos dele. O parricídio, estando fora do comum, faria a tragédia mais trágica.

Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile com sono, e foi cochilando no carro, apesar do mal calçado das ruas. Perto de casa, sentiu parar o carro e ouviu rumor de vozes. Era o caso de um defunto, que duas praças de polícia estavam levantando do chão.

- Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que descera da almofada para saber o que era.

- Não sei, não, senhor.

- Pergunta o que é.

- Este moço sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava a outros.

O moço aproximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe então em poucas palavras o acidente a que assistira.

- Vínhamos andando, ele adiante, eu atrás. Parece que assobiava uma polca. Indo a atravessar a rua para o lado do Mangue, vi que estacou o passo, a modo que torceu o corpo, não sei bem, e caiu sem sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de um sobradinho, examinou o homem e disse que "morreu de repente". Foi-se juntando gente, a patrulha levou muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto?

- Não, obrigado. Já se pode passar?

- Pode.

- Obrigado. Vamos, Domingos.

Domingos trepou à almofada, o cocheiro tocou os animais, e o carro seguiu até à Rua de S. Cristóvão, onde morava Cordovil.

Antes de chegar à casa, Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em si mesma, era boa; comparada à do inimigo pessoal, excelente. Ia a assobiar, cuidando sabe Deus em que delícia passada ou em que esperança futura; revivia o que vivera, ou antevia o que podia viver, senão quando, a morte pegou da delícia ou da esperança, e lá se foi o homem ao eterno repouso. Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acaso brevíssima, como um relâmpago que deixa a escuridão mais escura.

Então pôs o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? Não seria dançando; os seus quarenta anos não dançavam. Podia até dizer que ele só dançou até aos vinte. Não era dado a moças, tivera um afeição única na vida, - aos vinte e cinco anos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar mais. Não é que lhe faltassem noivas, - mormente depois de perder o avô, que lhe deixou duas fazendas. Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas viagens à Europa, continuou a política e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas não tendo em que matar o tempo, não abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma vez, creio que da Marinha, não passou de sete meses. Nem a pasta lhe deu glória, nem a demissão desgosto. Não era ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento.

Mas se lhe tivesse sucedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha, entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil compôs de imaginação a cena, ele caído de bruços ou de costas, o prazer turbado, a dança interrompida... e dali podia ser que não; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, a orquestra continuando por instantes a oposição do compasso e da confusão. Não faltariam braços que o levassem para um gabinete, já morto, totalmente morto.

"Tal qual a morte de César", ia dizendo consigo.

E logo emendou:

"Não, melhor que ela; sem ameaça, nem armas, nem sangue, uma simples queda e o fim. Não sentiria nada."

Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir, alguma coisa que afastava o terror e deixava a sensação da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que após longos dias ou longos meses e anos, como o adversário que perdera algumas horas antes. Nem era morrer; era um gesto de chapéu, que se perdia no ar com a própria mão e a alma que lhe dera movimento. Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um só defeito, - o aparato. Essa morte no meio de um baile, defronte do Imperador, ao som de Strauss, contada, pintada, enfeitada nas folhas públicas, essa morte pareceria de encomenda. Paciência, uma vez que fosse repentina.

Também pensou que podia ser na Câmara, no dia seguinte, ao começar o debate do orçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de algarismos e citações. Não quis imaginar o caso, não valia a pena; mas o caso teimou e apareceu de si mesmo. O salão da Câmara, em vez do do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vasto silêncio. Cordovil em pé começaria o discurso, depois de circular os olhos pela casa, fitar o ministro e fitar o presidente: "Releve-me a Câmara que lhe tome algum tempo, serei breve, buscarei ser justo..." Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a língua pararia, o coração também, e ele cairia de golpe no chão. Câmara, galerias, tribunas ficariam assombradas. Muitos deputados correriam a erguê-lo; um, que era médico, verificaria a morte; não diria que fora de repente, como o do sobradinho do Aterrado, mas por outro estilo mais técnico. Os trabalhos seriam suspensos, depois de algumas palavras do presidente e escolha da comissão que acompanharia o finado ao cemitério...

Cordovil quis rir da circunstância de imaginar além da morte, o movimento e o saimento, as próprias notícias dos jornais, que ele leu de cor e depressa. Quis rir, mas preferia cochilar; os olhos é que, estando já perto de casa e da cama, não quiseram desperdiçar o sono, e ficaram arregalados.

Então a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, ao abrirem-lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de urna noite ruidosa para outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma de luta ou resistência. O estremecimento que teve fez-lhe ver que não era verdade. Efetivamente, o carro entrou na chácara, estacou, e Domingos saltou da almofada para vir abrir-lhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas, e entrou pela porta lateral, onde o aguardava com um castiçal e vela acesa o escravo Florindo. Subiu a escada, e os pés sentiam que os degraus eram deste mundo; se fossem do outro, desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou para a cama; era a mesma dos sonos quietos e demorados.

- Veio alguém?

- Não, senhor, respondeu o escravo distraído, mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor; veio aquele doutor que almoçou com meu senhor domingo passado.

- Queria alguma coisa?

- Disse que vinha dar a meu senhor uma boa notícia, e deixou este bilhete - que eu botei ao pé da cama.

O bilhete referia a morte do inimigo; era de um dos antigos que usavam contar-lhe a marcha da moléstia. Quis ser o primeiro a anunciar o desenlace, um alegrão, com um abraço apertado. Enfim, morrera o patife. Não disse a coisa assim por esses termos claros, mas os que empregou vinham a dar neles, acrescendo que não atribuiu esse único objeto à visita. Vinha passar a noite; só ali soube que Cordovil fora o Cassino. Ia a sair, quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas linhas. Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do outro. Fez um gesto de melancolia e exclamou a meia voz:

- Coitado! Vivam as mortes súbitas!

Florindo, se referisse o gesto e a frase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrepender da canseira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu as últimas ordens e despediu-se. Cordovil deitou-se.

- Ah! suspirou ele estirando o corpo cansado.

Teve então uma ideia, a de amanhecer morto. Esta hipótese, a melhor de todas, porque o apanharia meio morto, trouxe consigo mil fantasias que lhe arredarem o sono dos olhos. Em parte, era a repetição das outras, a participação à Câmara, as palavras do presidente, comissão para o saimento, e o resto. Ouviu lástimas de amigos e de fâmulos, viu notícias impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho. Não era. Chamou-se ao quarto, à cama, a si mesmo: estava acordado.

A lamparina deu melhor corpo à realidade. Cordovil espancou as ideias fúnebres e esperou que as alegres tomassem conta dele e dançassem até cansá-lo. Tentou vencer uma visão com outra. Fez até uma coisa engenhosa, convocou os cinco sentidos, porque a memória de todos eles era aguda e fresca; foi assim evocando lances e rasgos longamente extintos. Gestos, cenas de sociedade e de família, panoramas, repassou muita coisa vista, com o aspecto do tempo diverso e remoto. Deixara de comer acepipes que outra vez lhe sabiam, como se estivesse agora a mastigá-los. Os ouvidos escutavam passos leves e pesados, cantos joviais e tristes, e palavra de todos os feitios. O tacto, o olfato, todos fizeram o seu ofício, durante um prazo que ele não calculou.

Cuidou de dormir e cerrou bem os olhos. Não pôde, nem do lado direito, nem do esquerdo, de costas nem de bruços. Ergueu-se e foi ao relógio; eram três horas. Insensivelmente levou-o à orelha a ver se estava parado; estava andando, dera-lhe corda. Sim, tinha tempo de dormir um bom sono; deitou-se, cobriu a cabeça para não ver a luz.

Ah! foi então que o sono tentou entrar, calado e surdo, todo cautelas, como seria a morte, se quisesse levá-lo de repente, para nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com força, e fez mal, porque a força acentuou a vontade que tinha de dormir; cuidou de os afrouxar, e fez bem. O sono, que ia a recuar, tornou atrás, e veio estirar-se ao lado deles, passando-lhe aqueles braços leves e pesados, a um tempo, que tiram à pessoa todo movimento. Cordovil os sentia, e com os seus quis aconchega-los ainda mais... A imagem não é boa, mas não tenho outra à mão nem tempo de ir buscá-la. Digo só o resultado do gesto, que foi arredar o sono de si, tão aborrecido ficou este reformador de cansados.

- Que terá ele hoje contra mim? perguntaria o sono, se falasse.

Tu sabes que ele é mudo por essência. Quando parece que fala é o sonho que abre a boca à pessoa; ele não, ele é a pedra, e ainda a pedra fala, se lhe batem, como estão fazendo agora os calceteiros da minha rua. Cada pancada acorda na pedra um som, e a regularidade do gesto torna aquele som tão pontual que parece a alma de um relógio. Vozes de conversa ou de pregão, rodas de carro, passos de gente, uma janela batida pelo vento, nada dessas coisas que ora ouço, animava então a rua e a noite de Cordovil. Tudo era propício ao sono.

Cordovil ia finalmente dormir, quando a ideia de amanhecer morto apareceu outra vez. O sono recuou e fugiu. Esta alternativa durou muito tempo. Sempre que o sono ia a grudar-lhe os olhos, a lembrança da morte os abria, até que ele sacudiu o lençol e saiu da cama. Abriu uma janela e encostou-se ao peitoril. O céu queria clarear, alguns vultos iam passando na rua, trabalhadores e mercadores que desciam para o centro da cidade. Cordovil sentiu um arrepio; não sabendo se era frio ou medo, foi vestir um camisão de chita, e voltou para a janela. Parece que era frio, porque não sentia mais nada.

A gente continuava a passar, o céu a clarear, um assobio da estrada de ferro deu sinal de trem que ia partir. Homens e coisas vinham do descanso; o céu fazia economia de estrelas, apagando-as à medida que o sol ia chegando para o seu ofício. Tudo dava ideia de vida. Naturalmente a ideia da morte foi recuando e desapareceu de todo, enquanto o nosso homem, que suspirou por ela no Cassino, que a desejou para o dia seguinte na Câmara dos Deputados, que a encarou no carro, voltou-lhe as costas quando a viu entrar com o sono, seu irmão mais velho, - ou mais moço, não sei.

Quando veio a falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria para o cemitério. Agora é que lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte súbita não acabava de entender o que era.

Encontro de Trovadores, em Porto Alegre

Therezinha D. Brisolla
DIA 30, SÁBADO,
 

15 HORAS.
 

Porto Alegre/RS
 

Mais um encontro de trovadores na vida de todos nós.

Rodas de trovas, sorteio de brindes, presença da trovadora paulista Therezinha Diegues Brisolla, autografando seu livro "A Procura de Estrelas”.
 

Comes e bebes e muita confraternização.
 

E lembre-se: sua presença tornará mais importante o evento.
 

Até lá!
 

Flávio Stefani
Contatos (flaviorstefani@gmail.com)

Associação Canoense de Escritores (12 anos)

"O Escritor é seu leitor" / ACE - 12 Anos

Sábado - 30/08 - a partir da 11h30min

Boteco Pau Brasil, rua Coronel Vicente, 160 - Centro de Canoas - próximo a Igreja Matriz

Nossa associada, a escritora Maria Helena Loureiro Bauer, é a convidada da vez para discorrer sobre suas obras e sua relação com os livros. Durante o evento também vamos comemorar os 12 anos da criação de nossa entidade.

Contamos com o prestígio de sua presença.

Aguardamos você lá.

Um grande abraço.

Décio Dalke
Presidente da ACE - Associação Canoense de Escritores
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- Confira em nosso endereço na internet, www.escritorescanoenses.com.br, a programação de nossos associados durante a 30ª Feira do Livro de Canoas.

domingo, 22 de junho de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 18


Caldeirão Poético 5

LUIZ EDUARDO CAMINHA (SC)

Desilusão


Sonho,
Amargurado,
Agruras
Dum dia feliz...
Que não vem.

Sol, chuva,
Noite fria,
Lua nua,
Noite, dia,
Que se vão

Dia, noite,
Noite dia,
Cá espero.

A Felicidade?
Mera quimera,
Castelo d’areia.
Fere-me a alma.
Machuca-me
O coração que anseia
O vazio de sua ausência,
Preencher.

Tempo passa
Ela não vem
Nem a Felicidade,
Nem aquela,
Quem me dera,
Me pudera,
Fazer feliz...

Sorrir,
Quiçá,
Outra vez!!!

RAQUEL ORDONES (MG)

Diva


E chameja sempre em seu  desfilar
A sua fragrância atinge toda a alma
Tem um encanto doce em seu olhar
Alguém que agita e também acalma.

O seu toque tem um suposto feitiço
A sua profundeza uma lição de vida
O matiz da sua tez provoca reboliço
Perfeita flor com a isenção de ferida.

E arrebata; é de fazer parar o vento
Adorável de uma criação que abusa
Esse é um esboço feito a uma musa.

Fizeram um desenho no pensamento
Sem consulta e nenhuma permissão
Mulher torna-se diva na imaginação.

OLIVALDO JUNIOR (SP)

Mordaça


O ser de um homem,
descalço em versos,
contém o bálsamo que o purifica
e o cáustico que o atordoa.

Doa-se para os que não o querem,
quer os que não o amam,
ama os que não têm nada
a lhe oferecer.

Com a mordaça presa aos lábios,
lambe os abismos de rosas
que se recitam diante dos sábios,
que não sabem.

Muda o rumo das rugas,
rasga rusgas ao léu,
lota os ombros de músicas,
enche o papel.

Deus, acima do homem,
embaixo dos pés que se despem
diante das fontes,
tira a mordaça que morde a pele
onde as "fomes"
se matam com um pouco de mel,
arte, adeus e horizonte.

CLEVANE PESSOA (MG)

Creta


Decifro-te
mensagem secreta
e invisível em minha pele
escrita com ácido limão
Ardente o sol cáustico
do preconceito
conheço-te os signos
e signais
codificados.
Alpha e Aleph,
dragão com asas de cristais
e flor de fogo
Decifro-me
depois de tecer-te
no tear das fadas
depois de devorar-te,
arte dos deuses
Decifro-te após devorar-me
tecer-me
abastecer-me
com novelos de Ariadne
e nos encontrarmos no labirinto
para vencer o Minotauro"

VANESSA LOCATELLI PIETROBELLI (RS)

Tempos e cavalos


Eu não entendo
Como esses potros os obedecem
Pois eu puxo as rédeas do meu minuano
E só o que fazem os seus cascos
É tecer a poeira
Das minhas memórias.

LAU SIQUEIRA (RS)

Barulho


palavra
por palavra
minha úlcera
de verbos
tece aos poucos
a membrana
do silêncio

LAURINDO RABELO (RJ)

A minha resolução


O que fazes, ó minh'alma?
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração sê mais sensato,
Busca outro coração!

Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
As raízes lhe é veneno.
Ela vai noutro terreno
As raízes esconder.

Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um'alma fida
Minha vida e meu amor.

LÊDO IVO (AL)

Soneto dos vinte anos


Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.

Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.

Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.

Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.

DÉBORA NOVAES DE CASTRO (SP)
 

Nudez do poeta

Essa necessidade
que sentem os poetas
de colocarem as almas
nas conchas das mãos,
numa oferenda 'inda quente
a um outro ser humano,
deu-lhes, em graça , o Senhor
para que se torpedeiem as pedras,
para que floresçam desertos
e os céus se debrucem
em pinceladas de ouro!

LÍLIAN ÁVILA JAWORSKY (SP)

Meu doce amor

 

Dentro da noite,
há um mistério vago,
pairando dentro da bruma,
que se esgarça lentamente...
E a saudade entra docemente dentro de minha alma,
como se fosse um pouco de brisa dentro de um jardim em flor.

E traz esse perfume exótico que vem do passado,
que me traz as recordações que não morrem...
não morrem jamais.

Da tristeza infinita de haver perdido tudo na vida...
Tudo.
Os momentos felizes...
As horas mais deliciosas...
Os sonhos mais doces...
Tudo enfim...

Só ficou está saudade
imensa que fala de você...
Essa saudade que é todo meu tesouro...
todo meu viver.

É o meu relicário de saudades...
Que é tudo que me resta,
nestes dias infinitos,
tristes e solitários...
Dias em que vejo as horas passarem lentamente...
Horas amargas...
Horas cheias de tédio...
Enfim são horas longas que se arrastam...
Porque são horas em que vivo sem você meu doce amor.

Manuel Maria Barbosa Du Bocage (Sonetos) II

XI

Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folgas a abelhinha para,
Ora nos ares sussurrando gira:

Que alegre campo! Que amanhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.

XII

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão; fervor, e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que dif(e)rença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso;
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-se cativo, e não me faz ditoso.

XIII

Os garços olhos em que Amor brincava
Os rubros lábios, em que Amor se ria,
As longas tranças, de que Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor Brilhava:

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armânia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava.

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço (ai de mim!) como não os sigo!

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno da sepultura?

XIV

Vós crédulos mortais, alucinados
De sonhos, de quimeras, de aparências,
Colheis por uso erradas consequências
Dos acontecimentos desastrados:

Se à perdição correis precipitados
Por cegas, por fogosas impaciências,
Indo cair, gritais que são violências
D(e) inexoráveis céus, de negros fados:

Se um celeste poder, tirano e duro,
Às vezes extorquisse as liberdades,
Que prestava, ó Razão, teu lume puro?

Não forçam corações as divindades;
Fado amigo não há, nem fado escuro:
Fados são as paixões, são as vontades.

XV

Ó céus! Que sinto nalma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver de veia em veia
Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: - ¨A que se expõe quem não receia
Contemplar Ursulina um só momento!

¨Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e co´ um tiro
Puni tua sacrílega loucura:

De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
A tua linda ingrata algum suspiro.

Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Iguaçu - As cataratas que surgiram do amor

Distribuída em várias aldeias, às margens do sereno Rio Iguaçu, a tribo dos Caiangangs formava uma poderosa Nação Indígena. Tinham como Deus Tupã, o Deus do Bem e M'Boy, seu filho rebelde, o Deus do Mal. Era este o causador das doenças, tempestades, das pragas nas plantações, além dos ataques de animais ferozes e das demais tribos inimigas.

A fim de se protegerem do Deus do Mal, em todas as primaveras, os Caiangangs a ele ofereciam uma bela jovem como esposa, ficando esta impedida para sempre de amar alguém. Apesar do sacrifício, esta escolha era para ela um privilégio, motivo de honra e orgulho.

Naípi, filha de um grande cacique, conhecida em todos os cantos por sua beleza, foi desta vez a eleita. Feliz, aguardava com ansiedade o dia de tornar-se esposa do temido Deus.

Iniciaram-se assim os preparativos da grande festa. Convidados chegavam de todas as aldeias para conhecê-la. Entre eles estava Tarobá, valente guerreiro, famoso e respeitado por suas vitórias. Ocorreu que, talvez pela vontade do bom Deus Tupã, Tarobá e Naípi vieram a se apaixonar, passando a manter encontros secretos às margens do rio.

Sem ser notado, M'Boy acompanhava os acontecimentos, aumentando a sua fúria a cada dia. Na véspera da consagração, os jovens encontraram-se novamente às margens do rio. Tarobá preparou uma canoa para fugirem no dia seguinte, enquanto todos adormeciam, fatigados com as danças e festejos e sob efeito das bebidas fermentadas.

Iniciaram a fuga e, já à boa distância do local, M'Boy concretizou sua vingança. Lançou seu poderoso corpo no espaço em forma de uma enorme serpente, mergulhando violentamente nas tranquilas águas e abrindo uma cratera no fundo do rio Iguaçu. Formaram-se assim as cataratas, que tragaram a frágil canoa.

Tarobá foi transformado em uma palmeira no alto das quedas e Naípi em uma pedra nas profundezas de suas águas. Do alto, o jovem apaixonado contempla sua amada, sem poder tocá-la. Resta-lhe apenas murmurar seu amor quando a brisa lhe sacode a fronde. Lança suas flores para Naípi, através das águas, como prova de seu amor. A jovem está sempre banhada por um véu de águas claras e frescas, que lhe amenizam o calor de seus sentimentos.

Ainda hoje, M'Boy permanece escondido numa gruta escura, vigiando atentamente os jovens apaixonados. Ouve-se dizer que, quando o arco-íris une a palmeira à pedra, pode-se vislumbrar uma luz que dá forma aos dois amantes, podendo-se ouvir murmúrios de amor e lamento.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 10

(mantida a grafia original)
Hinos

O Mar


Frappé de la grandeur farouche
Je tremble... est-ce bien toi, vieux lion que je touche.
Océan, terrible océan!
- Turquety

 
Oceano terrível, mar imenso
De vagas procelosas que se enrolam
Floridas rebentando em branca espuma
Num pólo e noutro pólo,
Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indômita cerviz trêmulos cravo,
E esse rugido teu sanhudo e forte
Enfim medroso escuto!
Donde houveste, ó pélago revolto,
Esse rugido teu? Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,
E do profundo abismo
Chamando à superfície infindas vagas,
Que avaro encerras no teu seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobressai teu rugido.
Em vão troveja horríssona tormenta;
Essa voz do trovão, que os céus abala,
Não cobre a tua voz. - Ah! donde a houveste,
Majestoso oceano?
Ó mar, o teu rugido é um eco incerto
Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas competiste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, - tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre dois céus brilhantes.
Da voz de Jeová um eco incerto
Julgo ser teu rugir; mas só, perene,
Imagem do infinito, retratando
As feituras de Deus.
Por isto, a sós contigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a Musa, co’os teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co’a fronte além dos céus, além das nuvens,
E co’os pés sobre ti.
O que há mais forte do que tu? Se eriças
A coma perigosa, a nau possante,
Extremo de artifício, em breve tempo
Se afunda e se aniquila.
És poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vais quebrar num grão d’areia,
Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra coisa tão fraca!
Mas nesse instante que me está marcado,
Em que hei de esta prisão fugir p’ra sempre
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teu sonoro rugido.
Então mais forte do que tu, minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará num relance o circ’lo estreito
Do finito e dos céus!
Então, entre miríades de estrelas,
Cantando hinos d’amor nas harpas d’anjos,
Mais forte soará que as tuas vagas,
Mordendo a fulva areia;
Inda mais doce que o singelo canto
De merencória virgem, quando a noite
Ocupa a terra, - e do que a mansa brisa,
Que entre flores suspira.

Idéia de Deus

Gross ist der Herr! Die Himmel ohne Zahl
Sind seine Wohnungen!
Seine Wagen die donnernden Gewölke,
Und Blitze sein Gespann.
- KLeist

 
I

À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada,
Luziu no espaço a lua! sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.
Hino de amar a criação, que soa
Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!
A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?
Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê -
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.
E ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o ímpio sem fé!
Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;
Quando o ímpio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;
Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.
Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo o lar!
Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de tenor opresso,
Não sente o coração.
E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
- Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.
E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.

II

Oh! como é grande o Senhor Deus, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abismo aos céus, que susta as iras
Do pélago fremente,
A cujo sopro a máquina estrelada
Vacila nos seus eixos,
A cujo aceno os querubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hipérbole arrojada!
Oh! como é grande o Senhor Deus dos mundos,
O Senhor dos prodígios.

III

Ele mandou que o sol fosse princípio,
E razão de existência,
Que fosse a luz dos homens - olho eterno
Da sua providência.
Mandou que a chuva refrescasse os membros,
Refizesse o vigor
Da terra hiante, do animal cansado
Em praino abrasador.
Mandou que a brisa sussurrasse amiga,
Roubando aroma à flor;
Que os rochedos tivessem longa vida,
E os homens grato amor!
Oh! como é grande e bom o Deus que manda
Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre misérias,
De ferros rodeado;
O Deus que manda ao infeliz que espere
Na sua providência;
Que o justo durma, descansado e forte
Na sua consciência!
Que o assassino de contínuo vele,
Que trema de morrer;
Enquanto lá nos céus, o que foi morto,
Desfruta outro viver!
Oh! como é grande o Senhor Deus, que rege
A máquina estrelada,
Que ao triste dá prazer; descanso e vida
À mente atribulada!

O Romper d’Alva
 
Quand ta carde n’aurait qu’un son,
Harpe fidèle, chante encore
Le Dieu que ma jeunesse adore.
Car c’est un hymne que son nom.
- Lamartine

 
Do vento o rijo sopro as mansas ondas
Varreu do imenso pego, - e o mar rugindo
As nuvens se elevou com fúria insana;
Enoveladas vagas se arrojaram
Ao céu co’a branca espuma!
Raivando em vão se encontram soluçando
Na base d’erma rocha descalvada;
Em vão de fúrias crescem, que se quebra
A força enorme do impotente orgulho
Na rocha altiva ou na arenosa praia. _
Da tormenta o furor lhe acende os brios,
Da tormenta o furor lh’enfreia as iras,
Que em teimosos gemidos se descerram,
Da quieta noite despertando os ecos
Além, no vale humilde, onde não chega
Seu sanhudo gemer, que o dia abafa.
Mas a brisa sussurrando
A face do céu varreu,
Tristes nuvens espalhando,
Que a noite em ondas verteu.
Além, atrás da montanha,
Branda luz se patenteia,
Que d’alma a dor afugenta,
Se dentro sentida anseia.
Branda luz, que afaga a vista,
De que se ama o céu tingir,
Quando entre o azul transparente
Parece alegre sorrir;
Como és linda! - Como dobras
Da vida a força e do amor!
- Que tão bem luz dentro d’alma
Teu luzir encantador!
No teu ameno silêncio
A tormenta se perdeu,
E do mar a forte vida
Nos abismos se escondeu!
Porque assim de novo agora
Que o vento o não vem toldar,
Parece que vai queixoso
Mansamente a soluçar?
Porque as ramas do arvoredo,
Bem como as ondas do mar,
Sem correr sopro de vento,
Começam de murmurar?
Sobre o tapiz d’alva relva,
- Rocio da madrugada -
Destila gotas de orvalho
A verde folha inclinada.
Renascida a natureza
Parece sentir amor;
Mais brilhante, mais viçosa
O cálix levanta a flor.
Por entre as ramas ocultas,
Docemente a gorjear,
Acordam trinando as aves,
Alegres, no seu trinar.
O arvoredo nessa língua
Que diz, por que assim sussurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?
- Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Criador.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.
Quando a dor meu peito acanha,
Quando me rala a aflição.
Quando nem tenho na terra
Mesquinha consolação;
Tu, Senhor, do peso insano
Livras meu peito arquejante,
Secas-me o pranto que os olhos
Vertendo estão abundante.
Tu pacificas minha alma,
Quando se rasga com pena,
Como a noite que se esconde
Na luz da manhã serena.
Tu és a luz do universo,
Tu és o ser criador,
Tu és o amor, és a vida,
Tu és meu Deus, meu Senhor.
Direi nas sombras da noite,
Direi ao romper da aurora:
- Tu és o Deus do universo,
O Deus que minha alma adora.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.