quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Luís da Câmara Cascudo (Bicho de Palha)

Contam que um homem muito rico enviuvou e casou novamente, tendo uma filha que era mocinha e linda. A madrasta antipatizou logo com a enteada e se tomou de ódio quando teve uma filha e esta era relativamente feia, comparada com Maria.

O homem possuía propriedades espalhadas e vivia viajando, dirigindo seus negócios. Durava pouco tempo em casa e nesses momentos Maria passava melhor. Na ausência do pai, a madrasta obrigava-a aos serviços mais rudes e pesados, alimentando-a do que havia de pior e em quantidades insignificantes.

A vida ficou insuportável para a moça que se consolava rezando e chorando. No caminho do rio, onde ia lavar roupa, encontrava sempre uma velhinha de feições serenas e muito boa. Maria acabou contando seus sofrimentos e o silêncio que guardava para não magoar o pai. A velhinha animava-a com palavras cheias de doçura.

Como a madrasta fosse se tornando mais violenta e brutal, a enteada resolveu abandonar a casa e ir procurar trabalho longe daquele inferno. Encontrou-se com a velhinha e, confessando sua ideia, a velha concordou, aconselhou-a muito, deu-lhe a bênção e, na despedida, tirou uma varinha, pequenina e branca como prata, dizendo:

– Leva esta varinha, Maria, e, quando estiveres em perigo, desejo ou sofrimento, deves dizer: “minha varinha de condão, pelo condão que Deus te deu, dai-me”. E tudo sucederá como pedires.

Maria agradeceu muito e fugiu. Antes, obedecendo ao conselho da velha, fez uma grande capa de palha trançada com um capuz onde havia passagem para olhar, e meteu-se dentro.

Depois de muito andar, chegou a uma cidade importante. Pediu emprego num palácio e lhe disseram não haver mais lugar. Ia saindo triste e com fome, quando um empregado lembrou que precisavam de alguém para lavar as salas, corredores e escadas, e limpar os aposentos da criadagem. Maria aceitou o encargo e, graças ao seu vestido singular, só a chamavam “Bicho de Palha”.

Suja, silenciosa, retirada pelos cantos, trabalhando sempre, Bicho de Palha não incomodava ninguém e todos a toleravam.

O palácio era de um príncipe moço, benfeito e airoso, que ainda tinha mãe, e estava na idade de casar. Noutro palácio, no lado oposto da cidade, realizariam festas durante três dias. As moças estavam alvoroçadas com os bailes, assistidos pelos rapazes da sociedade. No palácio a conversa versava sobre os bailes. Amas, visitantes e criadas comentavam a organização e o esplendor das três noites elegantes.

Finalmente chegou a primeira noite. Bicho de Palha, através dos orifícios de sua máscara, olhara o príncipe e o amava sinceramente. Rondava, discretamente, perto dele, ansiando por uma ordem. Já de tarde, não havendo outra empregada por ali, o príncipe gritou:

– Bicho de Palha! Traga uma bacia com água...

Bicho de Palha levou a bacia e o príncipe lavou o rosto. Depois todos foram para o baile, uns para dançar e outros para ver.

Ficando sozinha no seu quarto escuro, Bicho de Palha despiu a capa, pegou a varinha e disse como a velhinha lhe ensinara:

– Minha varinha de condão! Pelo condão que Deus te deu, dai-me uma carruagem de prata e um vestido cor do campo com todas as suas flores.

Mal as palavras foram ditas, apareceu a carruagem de prata, com cocheiros e servos, e um vestido completo, do diadema aos sapatinhos, cor do campo com todas as suas flores.

Bicho de Palha vestiu-se, tomou a carruagem e foi para o baile onde causou sensação. O príncipe veio imediatamente saudá-la e só dançou com ela, não permitindo que os outros moços se aproximassem. Confessou que estava impressionado e perguntou onde ela residia. Bicho de Palha falou:

– Moro na Rua das Bacias...

À meia-noite em ponto, pretextando ir respirar o ar livre, a moça correu para sua carruagem que desapareceu na estrada. O príncipe ficou inconsolável e saiu da festa logo a seguir.

No outro dia, no palácio, as criadas contavam ao Bicho de Palha as peripécias do baile e a princesa misteriosa que fora a roupa e o rosto mais formoso da noite. O príncipe despachara muitos criados para procurar a Rua das Bacias e todos regressaram sem saber informar.

Nessa tarde, o príncipe pediu a Bicho de Palha uma toalha. Quando todos partiram para a festa, Bicho de Palha pegou a varinha e obteve uma carruagem de ouro e um vestido cor do mar com todos os seus peixes. Vestiu-se e foi para o palácio do baile. Logo na entrada, toda a gente a reconheceu e aclamou-a como a mais elegante, graciosa e simpática. O príncipe não saía de junto, conversando, dançando, fazendo mil perguntas. Insistiu pelo endereço da moça.

– Não moro mais na Rua das Bacias e sim na Rua das Toalhas. Mudei-me hoje.

Aconteceu como a primeira noite. Bicho de Palha inventou uma desculpa e meteu-se na carruagem que correu como um relâmpago. O príncipe saiu também e passou o outro dia suspirando e mandando procurar, em toda a cidade, a Rua das Toalhas.

Bicho de Palha ouviu as impressões entusiásticas dos empregados na cozinha, todos contando a paixão do príncipe e a beleza da moça.

Na tarde desse dia o príncipe pediu a Bicho de Palha um pente. Vendo-se sozinha no palácio, Bicho de Palha invocou o poder da varinha de condão e recebeu uma carruagem de diamantes e um vestido da cor do céu com “todas as suas estrelas”.

Entrando no salão do baile, Bicho de Palha recebeu as saudações como se fora uma rainha. Ninguém jamais vira moça tão atraente e um vestido tão raro. O príncipe andava atrás dela como uma sombra, servindo-a e perguntando tudo, doido de amor. Bicho de Palha disse que se havia mudado para a Rua dos Pentes, definitivamente. E dançaram muito.

Perto da meia-noite, sabendo que era a hora em que a moça desaparecia como se fosse encantada, o príncipe chamou seus criados e mandou abrir uma escavação junto do portão do palácio, esperando que a carruagem parasse. Tal, porém, não se deu. Bicho de Palha saltou para a carruagem e esta disparou como um raio, pulando o fosso, mas o solavanco fora tão brusco que um sapatinho de Bicho de Palha, atirado fora da portinhola, perdeu-se. Um criado achou-o e levou-o ao príncipe que ficou satisfeitíssimo.

Debalde procuraram na cidade a Rua dos Pentes. O príncipe deliberou encontrar a moça por outra maneira. Mandou levar o sapatinho a todas as casas, calçando-o em todos os pés. Quem o usasse, perfeito, nem largo nem apertado, seria a encantadora menina dos bailes.

Os criados andaram rua acima e rua abaixo, calçando o sapatinho nos pés das moças e das velhas. Nenhuma conseguia dar um só passo com ele no pé.

Voltaram os criados para o palácio e experimentaram calçar os chapins (antigo calçado de sola alta para mulheres) nas empregadas e amas. Nada. Finalmente uma criada engraçada lembrou que Bicho de Palha não fora convidada para calçar o mimoso calçado.

Riram todos, mas para que o príncipe não os acusasse de ter deixado alguém de calçar o sapatinho, mandaram buscar Bicho de Palha, como motivo de riso, e lhe disseram que experimentasse. Bicho de Palha, com a varinha na mão, pediu que lhe aparecesse no corpo, por baixo da capa de palha o vestido da terceira noite da festa.

O príncipe veio assistir. Bicho de Palha, cercada pela criadagem que ria, meteu o pé no sapatinho e este lhe coube perfeitamente. Depois estirou o outro pé e todos viram que calçava sapatinho igual ao primeiro. Mal podiam crer no que viam, quando caiu a palha, e apareceu a moça formosa dos três bailes, com o vestido cor do céu com todas as estrelas, o diadema com a lua de brilhantes, tudo rebrilhando como as próprias estrelas do firmamento.

O príncipe precipitou-se abraçando-a e chamando por sua mãe para que conhecesse a futura nora.

Casaram logo. Bicho de Palha contou sua história, e a varinha de condão, cumprida a vontade da velhinha, que era Nossa Senhora, desapareceu, deixando-os muito felizes na terra.
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Nota – Num conto português de Teófilo Braga, Linda Branca, de S. Miguel dos Açores, disfarça-se com uma peliça e uma máscara muito feia. 
A universalidade da história de Maria Borralheira dispensa bibliografia. É a Gata Borralheira, Maria Borralheira de Portugal e Brasil, Cendrillon, Cinddarella, Gatta Gennedontola, da Itália, Aschenbrodel, da Finlândia, Aschenputtel, da Alemanha, Cuzza Tzenere, de Dalmácia, Pepeljuga, da Bósnia-Herzegovina, Popielucha, da Polônia, Pelendrusis, da Lituânia, Popelusa, da Hungria, Popelusce, da Tchecoeslováquia, Popelezka, da Bulgária, Staetopouta, da Grécia, Cinicienta, dos países do idioma castelhano. 

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. 1ª edição digital. São Paulo, 2014.

Hinos de Cidades Brasileiras (Cachoeira do Sul/RS)


Composição: Moacir Roeseling

Venho vindo das campinas deste Rio Grande de Deus
Venho atrás dos teus carinhos, dos meigos sorrisos teus
Mal desponta o sol dourado saio a trote pela estrada
O meu pingo é bem ligeiro não lhe abate a caminhada

Nos verdes pampas do meu Rio Grande
Tudo é beleza não se sabe o que é tristeza
Vive alegre o coração
E a noite desce toda estrelada
Então é lindo ver-se a guapa gauchada
De viola e gaita à mão

Todos cantam seus amores pondo a mão no coração
Chora a gaita no terreiro geme o pinho no galpão
Quem não ama o Rio Grande desconhece o que é viver
Deixa o lado bom da vida para penar e sofrer

Aparecido Raimundo de Souza (Lançamento do e-book “Coriscando”)

O escritor e jornalista paranaense, radicado em Vila Velha/ES, lança seu e-book “Coriscando”, em cujo conteúdo nos oferece vinte contos das mais variadas e inusitadas situações, todos publicados neste blog. 

A escritora, novelista e ex-atriz da Rede Globo, Manuela Dias, diz ao apresentar o autor: “Aparecido Raimundo de Souza segue a sua trajetória versátil, um pouco cômico, noutras sério e brincalhão, sem perder, contudo, a sutilidade, a magia e, sobretudo, sem deixar de lado o encantamento de suas ideias “tresloucadas” que nos fazem rir e pensar que a vida, por mais dura que possa parecer, nos presenteia com momentos de aprazimentos e enlevos, formosuras e galhardias.”

Você pode ler ou baixar gratuitamente o e-book no link a seguir:

Dicas para Escritores (Como se manter motivado enquanto escreve)

Jeff Goins é um autor americano, blogueiro, palestrante. Além disso, é o fundador da Tribe Writers, uma comunidade online de escritores. Há anos ele vem ajudando escritores e aspirantes a escritores com livros, palestras, workshops e mais.

1- Escreva apenas um capítulo por vez

Escreva e publique um capítulo por vez, usando Amazon Kindle Singles, Wattpad, ou compartilhando com sua lista de assinantes.

2- Escreva um livro mais curto

O pensamento de escrever uma obra de 500 páginas pode ser paralisante. Em vez disso, escreva um livro menor de poemas ou contos. Projetos longos são intimidadores. Comece pequeno.

3- Comece um blog para obter feedback mais rápido

Obter feedback rápido e com frequência ajuda a dispersar a pressão. Inicie um site no WordPress, Blogspot ou Tumblr e use-o para escrever seu livro capítulo a capítulo ou cena a cena. E, eventualmente publique todos os posts em um livro físico.

4- Mantenha uma lista de inspirações

Você precisa disso para manter novas ideias fluindo. Leia constantemente e use um sistema para capturar, organizar e encontrar o conteúdo que você arquivou.

5- Mantenha um diário
 
Depois, reescreva os registros de forma mais literária, mas use algumas cópias ou scans das páginas do diário como ilustrações do livro. Você pode até vender edições “de luxo” que vêm acompanhadas de cópias do diário.

6- Seja consistente nas entregas

Em alguns dias, é fácil escrever. Em alguns dias é incrivelmente difícil. A verdade é: a inspiração é apenas um subproduto do seu trabalho duro. Você não pode esperar pela inspiração. A Musa é um empregado preguiçoso que não se mexe até que você o faça. Mostre-lhe quem manda e que isso é um negócio.

7- Faça pausas frequentes

Niel Fiore, o autor de The Now Habit, diz: “Há uma razão principal por que procrastinamos: é a recompensa com alívio temporário do stress”. Se você está o tempo todo estressado com seu livro inacabado, você acabará furando seu planejamento. Em vez disso, planeje pausas antecipadamente para que você se mantenha descansado: minutos, horas ou mesmo dias de folga.

8- Remova distrações
 
Tente ferramentas como Ommwriter.com, Byword ou Scrivener para que você escreva num ambiente totalmente livre de distrações. Dessa forma, e-mail, Facebook e Twitter não irão interromper o fluxo de escrita.

9- Escreva onde outros estão escrevendo (ou trabalhando)
 
Se você está tendo dificuldade para escrever consistentemente sozinho, vá para um lugar em que outras pessoas estejam trabalhando. Um café ou uma biblioteca onde as pessoas estejam realmente trabalhando e não apenas socializando podem ajudar. Se você estiver em um lugar em que as pessoas estejam fazendo coisas, você não tem escolha a não ser juntar-se a eles.

10- Não altere à medida que escreve
 
Em vez disso, escreva livremente primeiro, depois volte e edite. Você irá manter um fluxo de escrita melhor e não será interrompido por uma censura constante ao seu trabalho. Assim você terá mais texto para editar quando for a hora.

Dica bônus: Encontre um planejamento passo-a-passo para guiar você

Sem um planejamento, a maioria dos livros permanece inacabada e e maioria dos que são terminados não são muito bons.

Se manter motivado para escrever nem sempre é fácil, mas pode se tornar algo menos penoso.

Fonte: por Teca Machado, em Editora Albatroz. 8 junho 2022.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 35

 

Mensagem na Garrafa = 87 =

Martha Medeiros
(Martha Mattos Medeiros)
Porto Alegre/RS

A INTERFERÊNCIA DO TEMPO

Há quem diga que o tempo não existe, que somos nós que o inventamos e tentamos controlá-lo com nossos relógios e calendários. Nem ousarei discutir essa questão filosófica, existencial e cabeluda. Se o tempo não existe, eu existo. Se o tempo não passa, eu passo. E não é só o espelho que me dá a certeza disso.

O tempo interfere no meu olhar. Lembro do colégio em que estudei durante mais de uma década, meu primeiro contato com o mundo fora da minha casa. O pátio não era grande - era colossal. Uma espécie de superfície lunar sem horizontes à vista, assim eu o percebia aos sete anos de idade. As escadas levavam ao céu, eu poderia jurar que elas atravessavam os telhados. Os corredores eram passarelas infinitas, as janelas pareciam enormes portões de vidro, eu me sentia na terra dos gigantes. Volto, depois de muitos anos, para visitá-lo e descubro que ele continua sendo um colégio grande, mas nem o pátio, nem os corredores, nem as escadas, nada tem o tamanho que parecia ter antes. O tempo ajustou minhas retinas e deu proporção às minhas ilusões.

A interferência do tempo atinge minhas emoções também. Houve uma época em que eu temia certo tipo de gente, aqueles que estavam sempre a postos para apontar minhas fraquezas. Hoje revejo essas pessoas, e a sensação que me causam não é nem um pouco desafiadora. E mesmo os que amei já não me provocam perturbação alguma, apenas um carinho sereno. Me pergunto como é que se explica que sentimentos tão fortes como o medo, o amor ou a raiva se desintegrem. Alguém era grande no meu passado, fica pequeno no meu presente. O tempo, de novo, dando a devida proporção aos meus afetos e desafetos.

Talvez seja esta a prova da sua existência: o tempo altera o tamanho das coisas. Uma rua da infância, que exigia muitas pedaladas para ser percorrida, hoje é atravessada em poucos passos. Uma árvore, que para ser explorada exigia uma certa logística - ou ao menos um "calço" de quem estivesse por perto e com as mãos livres -, hoje teria seus galhos alcançados num pulo. A gente vai crescendo e vê tudo do tamanho que é, sem a condescendência da fantasia.

E ainda nem mencionei as coisas que realmente foram reduzidas: apartamentos que parecem caixotes, carros compactos, conversas telegráficas, livros de bolso, pequenas salas de cinema, casamentos curtos. Todo aquele espaço da infância, em que cabia com folga nossa imaginação e inocência, precisa hoje se adaptar ao micro, ao mínimo, a uma vida funcional.

Eu cresci. Por dentro e por fora (e, reconheço, pros lados). Sou gente grande, como se diz por aí. E o mundo à minha volta, à nossa volta, virou aldeia, somos todos vizinhos, todos vivendo apertados, financeira e emocionalmente falando. Saudade de uma alegria descomunal, de uma esperança gigantesca, de uma confiança do tamanho do futuro - quando o futuro também era infinito à nossa frente. 

Fonte> Martha Medeiros. Coisas da vida. Porto Alegre/RS: LP&M, 2005.

Eduardo Affonso (New kid on the bloque)

Quando adquiri o FB (facebook), veio junto uma caixa de ferramentas.

Gostei de algumas logo de cara – o “Compartilhar”, por exemplo. Talvez por ser fácil de usar e não requerer prática nem tampouco habilidade.  E ainda permitir que eu dissesse um monte de coisas sem ter que escrever nada – ou que “gerar conteúdo”, como se diz nesse meio.

Gostei do “laique”. Que não é bem um “laique”, mas um polegarzinho para cima, que não quer dizer que gostei, mas que tá ok. É mais um “tudo bem”, “de boa”. Fosse um aplicativo burocrata, seria uma espécie de “Nada a opor”.

Com mais parcimônia usei o coraçãozinho. “Amei”? Não, não é muito a minha praia. Não que eu não ame, mas não amo assim, tão à primeira vista. Amo homeopaticamente, porque amor não dá em penca, não é vendido à dúzia. Amei na vida menos do que devia, e não seria num aplicativo de rede social que iria tirar o atraso.

Rio de vez em quando. Muito de vez em quando. Mas quando rio é porque gargalhei mesmo.

Os botões de surpresa e de mandar força ainda devem estar na embalagem, assim como o Grr. O da furtiva lágrima, sim, usei – duas ou três vezes, porque acho triste me valer de lágrima alheia para chorar por mim. O bonequinho carpideiro está na categoria do vestido de noiva – usado uma vez só, e olhe lá.

A ferramenta mais difícil foi a do bloque. Essa exigia a leitura do manual de instruções, o que não é do meu feitio. Sou do tipo que aperta todos os botões da cafeteira até que um a faça dar à luz um café ou, por engano, um cappuccino. Aperto um a um os botões do controle remoto, do monitor, da impressora. Uma hora rola a cópia, melhora o brilho, aparece a legenda.  Prezo esse meu jeito intuitivo e antitecnológico de ser. 

(Não sei se já contei aqui que mantive um vídeo cassete – um de 4 cabeças! – encaixotado por seis meses, por bloqueio instalativo. Que tomei banho frio – em Curitiba! – por não me animar a instalar o novo chuveiro elétrico.  Dizem que isso é coisa de taurino. Confirmo a hipótese se um dia passar a acreditar em horóscopo.)

Aprendi, na marra, o uso do bloque.

O bloque é o “Não é não” do FB. É a placa de “O ambiente exige respeito” desta gafieira virtual. É a linha do impedimento. É o “Meu corpo, minhas regras”, o “A página de um homem é seu castelo”, o “Respeita Januário” do forró do padim Zucka. É o “Este saloon é pequeno demais para nós dois, forasteiro” do faroeste em que se transformaram as redes sociais.

Meus primeiros bloques foram do tipo “Você passou dos limites, colega”. Algo como “uma pisada na bola eu entendo, duas canelas quebradas eu relevo, três meses na UTI é demais”.  Eu deixava acontecer para não me sentir culpado de cometer alguma injustiça – e depois ia atrás do plano de saúde para cobrir os danos. E, ainda assim, acabava como o vilão da história.

Num segundo momento, os bloques passaram a ser “Você está brincando com fogo, camarada”. Mas eu já estava chamuscado. Apagava o incêndio, e ficava como vilão da história do mesmo jeito.

A fase 3 – na qual me encontro agora – é a da proatividade. Do jogador de xadrez que antecipa os lances. A fase do “Isso não tem como acabar bem, e é melhor extirpar antes que vire metástase”. É o bloque profilático. O cordão sanitário.

Até pela crescente dificuldade de regeneração óssea, não posso mais me dar ao desfrute de ter os ossos esmigalhados por quem ignora a bola e entra com as traves da chuteira na minha canela. Até porque dói pra caramba. Até porque fica uma cicatriz. E, principalmente, porque não é pra isso que entrei em campo.

O ar aqui ficou mais respirável depois que comecei a bloquear quem agride, quem ofende, quem não vem pra conversar, mas para criar caso. Depois que incluí no pacote quem dá suporte a essas atitudes. Quem tem esse comportamento com as pessoas de quem gosto. Porque não me iludo com a crença de que quem é calhorda com um amigo meu há de ser leal comigo.

Minha página (de textos sobre língua portuguesa), meu instagram e meu uotiçape estão cheios de mensagens desaforadas de gente que se sentia no direito de exercitar sua incivilidade aqui no meu quintal. Impedida, agora xinga do outro lado do muro.

Rêiters will be rêiters. Ou, em bom português, não peça a um pé de jaca que dê manga.

Ainda vou ler o Manual de Instruções do FB e procurar no fundo da caixa para ver se há outras ferramentas que, por preguiça, não utilizei. Tipo um filtro de gente autoritária, um sensor de quem é movido a inveja e amargura, uma arapuca para pegar boçal, um mata-burro que mantenha as récuas (sempre quis usar essa palavra!) longe das pastagens que cultivo aqui (para deleite visual, não para alimentação).  Um repelente de não devotos de Nossa Senhora da Interpretação de Texto.

Bloque não é vida, mas uma forma de se ter uma vida virtual mais saudável. De não permitir, na minha sala, gente com o pé em cima da mesinha de fórmica, jogando bituca no vaso de avencas, derramando Dolly Citrus no tapete, assoando o nariz na cortina ou puxando o rabo dos meus cachorros.

Não faço isso na casa de ninguém. A Gerência agradece se não vierem fazer na minha.

Fonte> https://tianeysa.wordpress.com/2020/09/07/new-kid-on-the-bloque/

Elisa Alderani (Nas asas da poesia) = 1 =


ÁGUAS CRISTALINAS

Encontrar palavras para explicar a emoção,
admirando a tela e ouvindo os sons
das águas cristalinas.
Sentir pulsar o coração,
bater indiferente,
aos demais presentes.

Sou igual ao rio,
que passa sem tumultos
por entre vales e montanhas
tranquilo, plácido e transparente...
penetra nas margens de seu largo leito,
espelha o céu, tão colorido de violeta intenso,
igual paradisíaca visão.

Sou nuvem, tal qual anjo vagando no azul do céu...
absorvendo toda energia que vem do quadro,
ao meu encontro.
Fortalecendo as almas presentes,
nesse místico espaço transcendente!
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A PROCURA

Em meus delírios me procuro,
vasculho ansiosa por entre essas nuvens azuis
dos meus pensamentos estranhos.
Surgem igual lírios luminosos as ideias mais absurdas
de minha real identidade.

Sou talvez frágil igual essas flores,
brancas e douradas.
Alma pura, delicada, suspensa entre a terra e céu, sonhando...
Estou fugindo de mim tão longe assim...
Como posso achar as palavras bonitas
para novamente entrar no jardim azul de minha vida?
Ó lírios luminosos falem por mim,
nessa jornada tão difícil é essa procura sem fim!
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JARDIM DA VIDA

Muitas sementes foram jogadas em nosso jardim.
Nem sempre todas foram cultivadas,
adubadas com a devida atenção.
Às vezes algumas desabrocham,
com cores e múltiplas variedades...
nosso jardim da vida é todo colorido.
As borboletas voltam na primavera...
escolhem as mais perfumadas flores.
Os pássaros, no azul luminoso do céu,
alegram a vida desse lindo jardim.
Nós colheremos lindas flores...
se tivermos cuidado com as nossas sementes,
com amor nas escolhas inteligentes,
nas decisões iluminadas pela graça e sabedoria,
durante o caminho da vida...
nosso jardim será sempre florido!
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POENTE OUTONAL

Ouve-se o vento
entre altos montes.
Ninguém sabe o que é,
treme a terra com furor,
e um vulcão acorda!

O fogo e a lava queimam
um rio escorre azul.
Tudo acolhe, calmo.
Os ciprestes assistem
não têm medo, pois
as raízes bem firmes
levantam preces ao Céu!
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RETRATO

Jovem, seu preto cabelo prendeu.
Ornaram seu rosto com perfeição.
Olhou-se no espelho, com gratidão...
a farta beleza que Deus lhe deu!

Com o olhar demorado, pensativo...
Este seu corpo perfeito percorre.
É indagação sobre o tempo que corre...
Arde nela, viver o hoje festivo.

Os anos passarão rapidamente.
Se são assim as leis da natureza,
precisará aceitar o poente...

Que igual ao sol, tanta beleza doa
ao final, sua vida contemplada.
E terá todo o brilho da coroa!

Fonte> Elisa Alderani. Asas. Ribeirão Preto/SP: Maxibook, 2023. Enviado pela poetisa.

Arthur de Azevedo (Barca)

Há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.

D. Senhorinha, esposa exemplar, exemplaríssima, era casada com um negociante rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitável durante a canícula.

O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe todo. Havia na Rua do Riachuelo uma francesa que lhe dava volta ao miolo e constantemente o obrigava a perder a barca. Nessas ocasiões, D. Senhorinha recebia sempre um telegrama, e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a barca, por este ou aquele motivo, que marido e mulher resolveram adotar uma palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra “barca”.
* * *

Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama. Ela abriu-o um pouco sobressaltada, pois o marido não costumava telegrafar àquela hora, e qual não foi a sua surpresa vendo que o telegrama dizia simplesmente: “Barca”.

– Não pode ser! pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e são apenas 2! Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar que perderia a barca! Aqui há coisa.
* * *

Naquele dia o marido não apareceu em Petrópolis, e no dia imediato, quando a senhora lhe pediu uma explicação, ele não se atreveu a dizer-lhe que o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petrópolis.

João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e na manhã seguinte entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados.

– Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?

– Logo que o senhor m’o deu.

– Fê-la bonita! Pode limpar a mão à parede! Pois eu não lhe disse que só o passasse depois das 4 horas?

– Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei que não houvesse inconveniente.

– Ora valha-o Deus, seu Barros! Você deu cabo da minha tranquilidade doméstica.
* * *

D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas (veraneios), receando que o marido continuasse a perder a barca.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos. Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Ubiratã/PR)


Letra e música: Sebastião Lima

No verde planalto, floresceu,
Ubiratã, imponente e majestosa,
Qual um novo elo que nasceu,
Integrando esta terra dadivosa.

Bela, amada e gentil,
outra mais linda não há
cantinho feliz do Brasil,
Entre os lados do Paraná.

Com a marca radiante do sucesso,
No caminho rumo ao progresso,
Ubiratã, estimado rincão,
Viverá sempre em nosso coração.

Honra e glória aos fundadores
Que nos deram este esplendor,
A eles, nossos louvores,
Pelos feitos de intenso labor.

Bela, amada e gentil,
outra mais linda não há
cantinho feliz do Brasil,
Entre os lados do Paraná.

Tuas portas sempre abertas,
Prontas estão a receber
Os que buscam rotas certas
E os caminhos felizes do viver.

Estante de livros (“Perdas e ganhos”, de Lya Luft)


"Em plena maturidade sinto em mim a menina assombrada com a beleza da chuva que chega sobre as árvores num jardim de muitas décadas atrás." p. 26.

Lya Luft é uma mulher de seu tempo, e sobre ele dá seu testemunho em tudo o que escreve, especialmente neste novo livro. Uma mulher madura que já experimentou perdas e ganhos, mas mantém o otimismo, ama a vida, se diz “um bicho de sua casa” ― embora pouco doméstica, considera sua família o centro da vida, e a vida mais importante do que a literatura. 

Neste primeiro livro seu publicado, a romancista, cronista e poeta convida o leitor para refletir ao seu lado, indagar, contemplar e admirar o mundo. "Não somos apenas vítimas de fatalidades", diz. "Somos também senhores de nossa vida.

Num misto de ensaio e memórias, Lya retoma diversos temas de O rio do meio ― livro publicado em 1996, vencedor do prêmio de melhor livro da Associação Paulista de Críticos de Arte. Considera o ser humano ao mesmo tempo bom e capaz, fútil, medíocre e até cruel. Embarcado numa vida que é um dom, um mistério, e uma conquista a cada momento. 

Lya acredita que “a felicidade é possível, que não existe só desencontro e traição, mas ternura, amizade, compaixão, ética e delicadeza.” Sobre isso dialoga, aqui, com seu leitor. Entre alegrias, descobertas, decepções e buscas, em Perdas & ganhos ― livro inédito desde as memórias de infância Mar de dentro, publicado em 2002 ― a autora busca dar um testemunho pessoal sobre a experiência do amadurecimento. 

Convoca o leitor para ser seu amigo imaginário: cúmplice e companheiro de reflexões que vão da infância à solidão e à morte, ao valor da vida e à transcendência de tudo. Lya divaga, discute e versa, com ímpeto, compaixão, e muitas vezes bom humor, sobre velhice, amor, infância, educação, família, liberdade, homens e mulheres, gente de verdade... e conclui que o tempo passa mas as emoções humanas não mudam, revelando que é preciso reaprender o que é ser feliz. Um livro sensível, delicado e inquietante de uma das mais importantes escritoras brasileiras da atualidade, premiada pela crítica e consagrada pelos leitores.

Segundo as próprias palavras de Lya Luft, uma obra que trata do drama existencial humano mas de forma direta, conversando com o leitor a quem ela chama de leitor imaginário. Disse ter escrito esse livro sem pensar em nada, sem esperar nada. Nele, compartilha seus medos, inquietações e duvidas sobre seu próprio caminhar.

Lya classifica Perdas e Ganhos junto com Pensar é transgredir e O tempo é Rio que Corre como “ensaios não acadêmicos”. Coisas sobre as quais ela refletiu. Já em outro momento ela os classifica de reflexões. Independente da classificação, o texto foi bem escrito. Provoca, indaga, expõe sentimentos e nos conduz pelos labirintos da existência com serenidade, sabedoria , fluidez de pensamento e uma certa dose de perplexidade e inquietação.

Nesta obra Lya afirma, ou seja, convida o leitor a se juntar a ela, ser seu cúmplice e companheiro nesta jornada de descobertas, desconstrução e reflexões que vão da infância à vida adulta e à morte.

Sem nunca perder o fio da meada vai tecendo com habilidade e destreza, entre um pensamento e outro, uma reflexão ou incerteza uma nova maneira de ver e sentir a vida.

Fala de recomeços, de relações conflituosas entre pais e filhos, de historia de mulheres que se descobrem envelhecendo e a forma com que lidam com essa nova realidade mas sempre sob a perspectiva de alguém que aprendeu e continua aprendendo com todos os acontecimentos, dores e alegrias.

Algumas vezes se sente que está sentada ao seu lado tomando uma xícara de chá e divagando com paixão e alma sobre temas tais: tempo, família, relações, ilusões, perdas em vida, perdas pela morte, enfim sobre o intrincado e complexo sentido do existir.

Consegue-se sentir em suas palavras que as perdas ou ganhos baterão em nossa porta em algum momento e seu impacto será proporcional ao conjunto de nossas experiências e história pessoal de vida.

Se o que Lya pretendia ao escrever este livro era nos desacomodar, nos provocar a rever nossos conceitos, a olhar para nossas emoções e sentimentos ela conseguiu e com muita maestria.

O titulo do livro já deixa claro que se trata das tantas perdas e outros tantos ganhos que a pessoa acumula durante a vida mas só com a maturidade é capaz de equilibrar os dois lados da balança.

Lya Luft com este livro nos convida a rever nossos vínculos, nossos afetos. Repensar o que entendemos por ser feliz e mais do que isso nos instiga a construirmos relações sólidas, sadias e baseadas na amorosidade e comprometimento com o ser e o sentir.

Fontes:
– https://www.amazon.com.br/Perdas-ganhos-Lya-Luft/dp/8501067113
– Sandra Radin, em Artistas Gaúchos, 22/09/2020

domingo, 21 de janeiro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 39

 

Mensagem na Garrafa = 86 =

Autor Desconhecido

O AMIGO

Bons amigos sempre ficam de modo especial nos nossos pensamentos. Fazem parte do nosso dia a dia, mesmo não estando presentes, pois as experiências que foram uma vez compartilhadas estarão sempre vivas em nossa lembrança.

Qualquer um pode ficar ao seu lado quando você está certo, mas um amigo verdadeiro permanece ao seu lado mesmo quando você está errado.

Um simples amigo se identifica quando ele te liga. Um amigo verdadeiro não precisa se identificar, pois vocês conhecem as suas vozes.

Um simples amigo inicia uma conversa com um boletim de novidades sobre a sua vida. Um verdadeiro amigo diz: "o que há de novo sobre você?"

Um simples amigo acha que os problemas pelos quais você está se queixando são recentes. Um amigo verdadeiro diz: "você tem se queixado sobre a mesma coisa pelos últimos quatorze anos. Saia deste marasmo e faça algo sobre isto."

Um simples amigo nunca o viu chorar. Um verdadeiro amigo tem os seus ombros encharcados por tuas lágrimas.

Um simples amigo não sabe o nome dos teus pais. Um verdadeiro amigo tem o telefone deles na sua agenda.

Um simples amigo traz uma garrafa de vinho para sua festa. Um verdadeiro amigo chega mais cedo para ajudá-lo a cozinhar e fica até mais tarde para ajudá-lo na limpeza.

Um simples amigo odeia quando você liga após ele já ter ido para cama. Um verdadeiro amigo te pergunta porque demorou tanto para ligar.

Um simples amigo procura conversar com você sobre os teus problemas. Um verdadeiro amigo procura ajudá-lo a resolver os teus problemas.

Um simples amigo fica imaginando sobre tuas histórias românticas. Um verdadeiro amigo poderia conhecer e até te chantagear com tudo que ele sabe.

Um simples amigo, quando o visita, age como um convidado. Um verdadeiro amigo abre tua geladeira e se serve.

Um simples amigo acha que a amizade terminou quando vocês têm uma discussão. Um verdadeiro amigo sabe que não existe uma amizade enquanto vocês ainda não tiveram uma divergência.

Um simples amigo espera que você sempre esteja por perto quando ele precisar. Um verdadeiro amigo espera estar sempre por perto quando você precisar dele.

Carolina Ramos (Começar de novo…)

Deixou um punhado de terra escapar devagarinho por entre os dedos. Valera a pena?!…

O estardalhaço dos jornais esquecidos pelo patrão e lidos a duras penas acendera o pavio. A bomba explodira, em seguida, fragmentando uma vida inteira! Vida de um simples, até ali, pacata e sem maiores ambições.

Serra Pelada! O que dela se dizia era para virar a cabeça de qualquer um!

O fascínio da aventura e a perspectiva de um sucesso rápido arrastaram aquele moço... não, propriamente, até Serra Pelada, inviável pela distância, mas até o garimpo mais próximo dele. Não tão próximo... nem tão distante, que não coubesse no sonho que já atraía gente de todos os lados.

Levara com ele a família completa, mulher e filho, de quatro anos - Serelepe, para quem ria com suas travessuras... e apenas Serê, para os pais.

Sentira saudade daquele pequeno pedaço de chão fértil, que até parecia seu e que havia trocado pela terra do garimpo, seca, fugida por entre os dedos. Custara a dividir com a mulher aquele sonho inquietante e doido. Doido... e doído... muito doído, sim! - acrescentava isto agora!

Naquele tempo, o sonho era apenas instigante. A mulher aceitara a ideia com inquietação e alguns protestos - embora por motivos opostos.

- Serra Pelada?! Virge!... Ocê tá loco, home?!

- Num tô loco, não, amô! Num é Serra Pelada, não, Dorinha, é bem mais perto! E é pur uns seis méis só! Um ano tarveis... no máximo! Garanto qui vortamo rico! Vô peão... e vorto patrão! Juro que vorto!

Sem lograr convencer a mulher, ele insistira: - Nosso fio vai tê um ané de dotô no dedo! E é lá que eu vô achá o ôro desse ané. Carece só chegá... metê os braço no trabaio... i enche as mão di ôro!

Voltando ao presente, afastou os pensamentos, como quem espanta uma vespa incômoda. Encheu novamente a mão de terra... Valera a pena?!...

Não liberado para viajar sozinho, carregara, teimoso, mulher e filho a tiracolo, na garupa do baio.

Viagem dura! Estirão de alguns dias! E Serê insistindo de quando em vez: - Faiz pocotó, pai, faiz... E o pai, explicando paciente:

- Nem pensá... minino! Galopeá agora é num querê chegá... ou intão querê chegá di a pé! O baio nun guenta, não! Vamu cum carma, moleque!

Não gostara do que vira logo à chegada. Algo no ar, pesado, o deixara inseguro. Sentiu ter entrado em terreiro altamente competitivo, onde a cobiça, a esperteza e o oportunismo eram elementos prioritários, é o que cedo constatara ao tentar fazer amigos à sua moda.

Forrar os bolsos... dar o fora o mais cedo possível e quanto menos notado era o que todo mundo pretendia. Fartar-se e desaparecer - quanto mais rápido, melhor... E, também... mais seguro!

Outra coisa importante logo aprendera e bem amargamente: – Mulher... feia ou bonita... no meio de um garimpo é mais do que uma tocha acesa! Incendeia mesmo! É farol deste tamanho, que não passa despercebido nunca! Mesmo tendo dono!

Dorinha não era de se jogar fora. Acendeu logo um farolão que iluminou os dias daquele mundão de homens de pele cor de terra, curtida pelo sal do suor e coração tostado, quase churrasqueado, pelo braseiro do sol que a lenha da saudade alimentava!

Sem demora e bastante preocupado, João captara a concupiscência sequer velada, naqueles olhares, que nem chegavam a ser fortuitos. Sentiu-se não só invejado... como indesejado também.

O oposto acontecia com sua mulher, logo alertada:

- Ói qui, Dorinha... presta atenção. Enquanto eu estivé fora, nun fala... e nun recebe ninguém aqui no barraco! Ninguém mêmo!... E ôio no Serê!...

Serê!... Quem primeiro demonstrara os danos e deméritos da aventura fora mesmo o garoto. Chegado, acordara febril. Pouco a pouco, perdera a vivacidade. Não era mais aquele moleque. Já nem fazia jus ao apelido. Ranheta...choramingas... estranhava tudo!

Logo depois da chegada, acontecera o roubo do cavalo. Naquela noite, a lua ia alta, velada pelas nuvens. João acordara assustado com o tropel suspeito. Levantado de um salto, pudera ver o baio sumir na noite, engolido pela escuridão.

– Bandido! Ladrão mardito! Devorve o meu baio!...

João voltara ao leito furioso, ruminando a raiva.. Ficara ainda mais pobre, sem a montaria!

De retorno ao presente, aquele homem rude tentou por fim às más lembranças, atirando longe o punhado de terra, a concluir, revoltado: - Num valeu apena, não! Mai num valeu memo!

Todavia, o pensamento teimoso, ainda preso ao garimpo, foi adiante e os remorsos levaram-no até aquela tarde terrível em que, derreado pelo trabalho, voltara para a família e a mulher esperava por ele à  porta,

- E o Serê... cumo é qui tá?- indagara apreensivo a Dorinha, que não escondia a preocupação.

- Num vai bem, não... num vai nada bem!

João procurou o filho com ansiedade. Serê dormia. Magrelo. Carnes flácidas, pegajosas. Olhos secos, fundos, semiabertos. Apalpou-lhe o ventre tumefato que se desfazia em água fétida. A testa ardia. Apavorou-se:

- Num morre não, Serê. Num morre, não, meu fio... que eu nunca mais vô me perdoá! Deus, nun dexa meu fio morrê! Num dexa, não, pur favô! Num quero mais ôro ninhum! Juro qui devorvo tudo qui achei! Ôro é mêmo coisa ruim... do dêmo! Si fosse coisa boa. Tu num teria escondido ele no fundo da terra!

Correu para fora do barraco... que Dorinha não visse as suas lágrimas cor de barro.

No dia seguinte, ao voltar mais cedo do garimpo, desconhecera a mulher submissa, que lhe abonara os passos! A mulher com quem partilhara aquele sonho doido - agora abominado! Não era a sua Dorinha aquela que o recebia à porta, de olhos vermelhos, afogados em lágrimas, rosto convulsionado! A mulher, que tinha à frente, nem parecia mulher! Era uma fêmea eriçada! Uma fera frustrada e enfurecida, a atirar-se sobre ele, em desespero, sentindo perdida a cria!

- Serê?!... balbuciou João, quase num sopro, sem coragem para ouvir a resposta.

- Vai lá... Vai lá vê teu fio! Teu fio morto! Morto, sim... de zóio aberto i seco! Zóio aberto... pra dizê pro pai dele o que a boca não pode mais dizê!... Vai lá!…

Na cova pequenina, por ele mesmo cavada, um homem abatido e inconsolável acomodara o filho envolto em panos. Alimentava o solo árido com a própria semente, sabendo que não germinaria jamais.

De que lhe valera o maldito metal amarelo, conquistado a duras penas, se nem caixão pudera comprar para o filho?! Maldito ouro que Deus escondia e que os homens se matavam para encontrar!

João penitenciava-se. Matara seu próprio filho! Perdera o amor da mulher amada! Nem todo o ouro do mundo pagaria tamanho prejuízo!!

Procurara uma flor naquela secura sangrada pelos homens cor de terra e não achara uma sequer! Cruzara dois gravetos, espetando-os... na cabeceira da cova! Sobre a cruz, uma pequena bota furada no dedão e, na sola, o nome traçado irregularmente em letra de forma: - SERÊ.

Voltara para a companheira, derrotado. Dorinha, de olhos secos, o recebera hostil e agressiva, enquanto fazia a trouxa.

- Vô mimbora!...

- Qui é isso, Dorinha! Vamu cunversá!

- Num quero cunversá coisa ninhuma! Num tem cunversa, não! Vô mimbora mêmo! Tô indo!...

João sentira a decisão. Não discutira e nem regateara. Decidira-se!

- Ispera, Dora, ispera... eu vô c'ocê tamém!

Pela primeira vez, não chamara a mulher pelo diminutivo. O instante não dava espaço para carinhos. Determinado, juntando ao acaso algumas roupas e trecos, fechava o episódio como quem fecha com decisão um livro triste, que jamais será relido.

Partira sem olhar para trás, levando às costas a trouxa, agora de peso aliviado. Em compensação, a alma, encharcada de culpas, pesava o dobro!

A meio caminho, João lembrara-se do ouro, até ali esquecido. Tão pouco! Algumas poucas pepitas sem expressão, mais nada! Meros grãos de esperança, enterrados para maior segurança sob a caminha improvisada do Serê. Que ficassem por lá! Nem que fossem as maiores pepitas do mundo! Quem, em tais circunstâncias, seria capaz de lembrar-se de algo mais, a não ser do peso daquela dor chumbada que lhe esmagava o peito?!

Sem o baio, a viagem de volta, paradoxalmente, acabara por ser mais rápida. Boa parte na base da carona de caminhão. 

Chegaram de volta ao velho sítio, alguns dias depois, junto com o Sol, numa certa manhã azul.

Nada parecia mudado. Da casa sede vinham os latidos fortes mas sempre amigos, do cão de cara feia e coração de melão. Taramela ao pescoço, a salvaguardar danos à roça, a cabra malhada também saudou-lhes a chegada, badalando o úbere pejado de leite, fuçado, ao menor descuido, por um cabrito travesso e guloso. Lá embaixo, junto ao bambual que delimitava a propriedade, duas porcas "banhudas", deixadas prenhes, deveriam ter enchido o "chiquêro" de leitões rotundos e barulhentos. João corrigiu os próprios pensamentos, "chiquêro", não, pocílga.”– como queria o patrão.

Lá no pasto... o relincho do baio... marchador dos bons!

- Faiz pocotó, pai...faiz!... Quanto galope gostoso... pocotó, pocotó, pocotó... o garoto firme à  garupa, agarrado à sua cintura, feliz... feliz!...

Sentiu a vista nublar-se... caindo em si, logo em seguida: - O quê?! O baio no pasto?... Cavalinho danado!... Sem vergonha!... Êta, fujão dos diabo... vortô sozinho pra casa... e eu de bobo xingando os ladrão, qui nem existiam!...

Reconsiderou: - Êta cavalinho sabido, isto sim! O baio é qui tava certo! Burro mêmo é quem chama os bicho de irracioná! Burro só eu mêmo, qui num vortei junto co baio! Exaltou-se: - Burro, sim... sô mais burro que o mais burro dos burro!!!

Apesar da qualificação negativa, João reconhecia que ali no sítio era quase doutor! Mêmo sem diproma, mêmo sem aner, sô capaiz de curar bichêra de gado, praga de carrapato, gôgo e pivide de galinha. Sei cumo tratá dor de barriga, sarampo, catapora, i tamen papêra da criançada vizinha. Já tinha sido inté "partero"... não de muié, mais... si perciso fosse, era inté capaiz de arriscá...

A gabolice calava-se ante a verdade nua - ...Pesá de tudo, não pude sequé sarvá a vida do meu própro fio!... o meu Serê!

Angustiado, João estalou um tapa na testa, a espantar pensamentos como quem espanta aquela vespa pronta para atacar.

Tinha - lá no roçado - ao pé da casa aconchegante que ocupavam, um canteirinho de ervas, remédio pronto pra cada "causo". Trabalho da Dorinha. Ali, os dois eram gente importante! Ali... era o lugar verdadeiro dele e da companheira! Nunca deveria ter posto o pé fora de lá!

E o patrão? Lembrava-se de como temera encontrá-lo ao retornar. Teria coragem de olhá-lo de frente? Quando se despedira, com voz amiga, ele o avisara: - Vais quebrar a cara, João! Olha que a vida lá fora não é nadinha fácil... seu moço!

Apalpou o nariz. A cara não estava quebrada. Mas o coração... este, sim, estava aos pedaços! E dentre esses pedaços, faltava um pedacinho de nada... tão pequenino... mas que pedacinho importante era aquele! Enxugou a lágrima com as costas da mão.

- Bem... num dianta nada chorá adispois do leite derramado... agora, o importante mêmo era sabê que a porta não tinha sido fechada...

Num dianta mostrá cara triste. Coração partido é coisa que nenhum patrão... por mais sabido qui seje, num inxerga, mêmo! Ô intão, faiz qui nem vê!

...Era hora di entocá a sodade no peito... i tocá a vida pra frente.... cumo si nada tivesse acuntecido.

Um galo clarinou boas vindas. A brisa beijou-lhe o rosto. E aquele homem sofrido aspirou bem fundo o ar puro da manhã, perfumado pelo aroma daquelas plantas viçosas cuja maioria ajudara a plantar. Era como se estivesse determinado a expulsar de si toda poeira nociva que lhe impregnava os pulmões.

Embebeu o olhar no ouro do sol. O açude faiscava. Pepitas de ouro adornavam o laranjal.

Só agora João reconhecia o tamanho do tesouro trocado por um vago sonho!

- Sonho?! Pesadelo dos brabo.., isto sim!

Apanhou novo punhado de terra, beijando-o com ternura: – Isto, sim, é qui é ôro puro!... Não brilha, não... mas vale mais du qui uma Serra Pelada intêrinha!

Uma última lembrança pacificou o ânimo daquele homem. 

Alguns dias após o retomo, deixando para trás, enterrados em definitivo, os despojos de um pesadelo, João notara na mulher o leve esboço de um sorriso embora triste. Arriscara um carinho quase tímido!.., Não fora repelido. Encorajado, chamara a companheira ao peito... gaguejando-lhe ao ouvido:

- Dorinha... meu amô... me perdoa... Me perdoa pelo amô di Deus! Vamo cumeçá tudinho ôtra veiz... vamo?!...

Mais tranquilo... aquele João, que a duras penas voltava a ser alguém, firmou o passo e rumou decidido para o lar...

O baio lá de longe relinchou... a saudá-lo... como se nada de grave houvesse acontecido entre eles.

Alguns meses depois, o corpo arredondado de Dorinha mostrava que o segundo capítulo daquela história começara a ser escrito.

Fonte> Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Enviado pela autora.