sábado, 31 de agosto de 2024

Silmar Bohrer (Croniquinha) 120

Quando lembro de Edgar Morin vou logo pensando num dos maiores pensadores das ciências em todos os tempos. Conhecido, admirado, respeitado pelas ideias tantas no campo do conhecimento e do saber. 

O francês chegou aos 103 anos na segunda (08 de junho) nos levando ao sociólogo, filósofo, antropólogo, humanista e educador com propostas como as dos seus "Sete saberes necessários para a educação do futuro". E outras mais... 

Mas quem pensa, pesquisa, escreve e também dissemina, tem sua diversidade de pensares, de interpretações e conhecimentos ligados ao lado pessoal. E nestes três anos de labor pós-centenário devemos lembrar do Morin humanista, relendo o que o também escritor escreveu sobre o viver. A vida de todos nós! 

"Às vezes me sinto esmagado pelo amor à vida. Que beleza, que harmonia, que unidade profunda, que complementariedade e solidariedade entre os seres vivos! Que força criadora para inventar miríades de espécies animais e vegetais singulares! Às vezes me sinto esmagado pela crueldade da vida, pela necessidade de matar para viver, por sua energia destruidora, seus conflitos, sempre com o triunfo da morte. Depois consigo reunir, manter, ligar indissoluvelmente as duas verdades contrárias. A vida é dádiva e fardo, a vida é maravilhosa e terrível ". 

Belos dias, bela vida, quantos ensinamentos!

Fonte: Texto enviado pelo autor 

O nosso português de cada dia (Expressões) = 5

CORTIÇO

Favela, casebres amontados, várias casas simples que dividem o mesmo terreno.

Cortiço é casa de abelhas, a expressão surge por aproximação e foi usada pela primeira vez para essa designação pelo escritor Aluísio Azevedo, em 1890, ao denominar assim um  romance que tratava justo deste tipo de habitação.

(SER) CRICRI

Dizemos de pessoas muito chatas, ranzinzas, que incomodam. 

O adjetivo cricri teve origem onomatopaica no barulho irritante produzido pelos grilos.

(SER) CURVA DE RIO

Pessoa de qualidade duvidosa, mau elemento, indesejado, pilantra.

Sua origem está associada à geografia dos rios que, correndo, viajam em linha reta e também fazem curvas e pela existência da força centrífuga tudo que está à flor da água é jogado para margem quando elas surgem. Portanto, tudo que não presta, tudo que não é água, para ali.

CUSPIDO E ESCARRADO

Duas pessoas que andam ou estão sempre juntas e que se parecem muito,

A expressão é resultado da deformação da original esculpido em carrara. Carrara é uma cidade italiana de onde se extrai, há mais de dois mil anos, um dos melhores e mais caros mármores. Esta pedra era usada como matéria-prima para os escultores renascentistas, que a utilizavam por ser dura, resistente e, depois de polida, ter a aparência de pele humana. Como a arte da renascença, de inspiração clássica, consistia em fazer cópias exatas ou fiéis de seus modelos (basta observar as produções de Michelangelo), o modelo e a estátua eram idênticos, daí dizer que pessoas muito parecidas eram como se tivessem sido esculpidas em carrara.

DA LATA

Muito bom, coisa de boa qualidade.

Esta expressão teve origem no fim dos anos 80, depois que o navio Solana Star, foi interceptado pela Guarda Costeira brasileira. A tripulação ciente de que transportava uma grande quantidade de maconha, resolveu jogar a mercadoria ilícita ao mar, para evitar que fossem presos. Dias depois, a muamba que estava acondicionada em latas lacradas, apareceu nas praias do Rio de Janeiro e foi logo recolhida e aproveitada pela população carioca. A notícia correu o Brasil, não só do fato. como da excelente qualidade da droga. Como as expressões se criam com muita facilidade, a partir daí o que é de boa qualidade para o Rio e o resto do país passou a ser da lata.

(USAR) DÁLÍAS

Na linguagem televisiva, "dália" é aquele cartaz que fica ao alcance dos olhos do ator para que ele possa se socorrer na hora em que esquece o texto.

Esse nome, Dália, surgiu depois de um "acidente de cena", muito comum nos tempos da TV ao vivo. Um ator bastante famoso da época, o Fregolente, tinha grande dificuldade em decorar suas falas, por isso, ele as escrevia sempre em pequenas cartolinas e colocava-as junto a um vaso de dálias, que fazia parte do cenário. Um belo dia, o contra-regra, sem querer, acabou levando o vaso com as dálias e, junto com elas, as cartolinas do Fregolente. Na hora em que o programa foi ao ar, na deixa do Fregolente, ele olhou para a mesa, não viu o vaso e, desesperado, falou, em alto e bom som: "Onde diabos meteram as minhas dálias?!" E assim que o nome "dália" acabou ficando até hoje.

(SER) DALTÔNICO

Pessoa com dificuldades de reconhecer cores, principalmente o verde e o vermelho.

ü termo vem do nome do cientista britânico John Dalton que, em 1794, publicou um estudo no qual revelava ter dificuldades para reconhecer as cores verde e vermelha. Após sua morte, seus olhos foram doados para estudos e, a partir daí, os problemas semelhantes receberam seu nome.

DANTESCO

Horroroso, exagerado, diabólico, infernal.

O termo é derivado do nome do poeta italiano Dante Alighieri, 1.265 - 1321, considerado o precursor da literatura renascentista. A associação com o que é horrível diz respeito à sua obra Divina Comédia, mais especificamente à descrição que ele faz do inferno e suas desgraças.

DAR A MÃO À PALMATÓRIA

Reconhecer o próprio erro e aceitar o castigo.

Palmatóría era um instrumento de castigo para alunos até meados do século XX. Consistia num pedaço de madeira firme que terminava com faceta arredondada e chata, cheia de furos. Os alunos ofereciam as mãos e recebiam pancadas nas palmas. Os orifícios do instrumento puxavam a pele e isto provocava muita dor.

Fonte: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.

Recordando Velhas Canções (Noite dos mascarados)

(Marcha, 1967)


Compositor: Chico Buarque de Holanda

- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!

Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:

- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo.

- Eu sou seresteiro,
Poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro
Só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão.
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão.
Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!

Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.

Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
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Máscaras e Mistérios: A Essência do Carnaval em 'Noite dos Mascarados'
A música 'Noite dos Mascarados', composta por Chico Buarque, é uma obra que explora a temática do Carnaval, mas vai além da festividade, adentrando nos jogos de identidade e na liberdade de expressão que a ocasião permite. A letra apresenta um diálogo entre duas pessoas mascaradas que flertam e brincam com a ideia de esconder suas verdadeiras identidades, enquanto se permitem viver o momento de festa e sedução que o Carnaval proporciona.

O uso de máscaras é uma metáfora para as facetas que as pessoas podem escolher mostrar ao mundo, especialmente em um contexto de festa onde as convenções sociais são temporariamente suspensas. A música sugere que, sob a proteção das máscaras, as pessoas se sentem mais livres para expressar desejos e sentimentos que, em circunstâncias normais, poderiam ser reprimidos. A interação entre os personagens revela um jogo de adivinhação e charme, onde a identidade real é menos importante do que a experiência compartilhada naquele instante.

A repetição do verso 'Seja você quem for, seja o que Deus quiser!' reforça a ideia de entrega ao momento e à celebração, independentemente das diferenças individuais. Chico Buarque, conhecido por suas letras poéticas e críticas sociais, utiliza a canção para refletir sobre a natureza efêmera da vida e a importância de viver plenamente, mesmo que seja por uma noite de Carnaval. A música se torna um hino à liberdade, ao amor sem preconceitos e à alegria sem limites.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Daniel Maurício (Poética) 75

 

Trovadora Homenageada do Dia: Mara Melinni (Trovas em preto e branco)


 1
A ausência é tanta, em verdade,
que a minha desilusão
tem a forma da saudade
e os braços… da solidão!!!
2
A passagem mais sofrida,
que nós fazemos a sós,
é ver o alcance da vida
sair do alcance de nós...!
3
A velha esquina esquecida
toda enfeitada de flor,
sem querer, fez-se guarida
de nossa história de amor.
4
Da linda infância de outrora,
guardo os brinquedos diversos,
na lembrança, que hoje mora,
no doce encanto… dos versos!
5
Eu sinto a força da vida
e a mão divina de Deus,
em cada manhã florida,
na aurora… dos versos meus!
6
Mar adentro, mundo afora,
a distância aumenta mais…
e enquanto a saudade chora,
um lenço acena no cais.
7
Meu senhor, por caridade,
não me julgue em atos vãos…
Trago a minha identidade
nos calos das minhas mãos.
8
O tempo passa, é verdade,
levando tudo o que sou…
mas só não passa a saudade
que o próprio tempo deixou!
9
Quando a saudade vagueia
pelas noites, nos meus ais,
o encanto da lua cheia
acalma os meus madrigais.
10
Queimando em silente chama,
a floresta, em triste sina,
caindo ao chão, ainda clama
pela vida... que termina...!
11
Saudade – quantos desejos
por esta espera sem fim…
Relembrando os teus arpejos,
hoje sou refém… de mim!
12
Vida: caminho que alcança
na esquina a sua metade;
de um lado, vive a esperança,
do outro, dorme a saudade.
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AS TROVAS DE MARA MELINNI EM PRETO E BRANCO
por José Feldman

TEMAS ABORDADOS

As "Trovas de Mara Melinni" capturam emoções profundas como saudade, solidão e a passagem do tempo.

Saudade e Solidão: 
A presença constante da saudade se reflete na solidão, mostrando como a ausência de alguém pode moldar nossos sentimentos.

Memórias da Infância: 
A nostalgia pela infância é retratada com carinho, destacando a importância das lembranças e dos momentos simples.

Relação com o Tempo: 
O tempo é um tema central, simbolizando a transitoriedade da vida, mas também a permanência das memórias e da saudade.

Natureza e Vida: 
A conexão com a natureza é evidente, enfatizando a beleza e a tristeza que coexistem na vida.

Identidade e Luta: 
A identidade é apresentada através das experiências vividas, refletindo a luta e a resiliência.

AS TROVAS UMA A UMA

1. A ausência é tanta, em verdade
Reflete a dor da ausência, onde a desilusão se transforma em saudade. A solidão é personificada, mostrando como a falta de alguém amado pode preencher o espaço emocional.

2. A passagem mais sofrida
Explora a ideia da vida como uma jornada solitária. A metáfora do "alcance" sugere que a vida se torna cada vez mais distante e inatingível, intensificando a sensação de perda.

3. A velha esquina esquecida
A esquina, um símbolo de memórias compartilhadas, representa a história de amor que perdura, mesmo em um espaço aparentemente comum, tornando-se um refúgio emocional.

4. Da linda infância de outrora
A nostalgia é palpável nesta trova. Os brinquedos simbolizam a simplicidade e a alegria da infância, enquanto os versos expressam a conexão afetiva com essas memórias.

5. Eu sinto a força da vida
Aqui, a vida é vista como um presente divino, manifestando-se nas manhãs. Os versos tornam-se uma forma de expressar gratidão e reconhecer a beleza da existência.

6. Mar adentro, mundo afora
A distância é um tema recorrente, e o lenço acenando simboliza a saudade e a despedida. O mar representa tanto a separação quanto a vastidão das emoções.

7. Meu senhor, por caridade
Uma súplica por compreensão. A identidade é revelada através das experiências difíceis, e os "calos" simbolizam luta e resiliência, desafiando preconceitos.

8. O tempo passa, é verdade
Reflete sobre a inevitabilidade do tempo, que leva tudo, exceto a saudade. Essa permanência da saudade sugere um vínculo emocional que transcende o tempo.

9. Quando a saudade vagueia
A saudade é personificada, e a lua cheia traz um senso de calma. A natureza se torna um consolo nas horas de dor, mostrando a conexão entre emoções humanas e o mundo natural.

10. Queimando em silente chama
A floresta, símbolo de vida, está em sofrimento. Essa imagem evoca a fragilidade da natureza e a perda inevitável, refletindo a tristeza da vida que termina.

11. Saudade – quantos desejos
A saudade é descrita como uma prisão emocional. Os "arpejos" sugerem lembranças musicais, evocando a beleza de momentos passados que agora geram um desejo profundo.

12. Vida: caminho que alcança
Uma reflexão sobre a dualidade da vida: esperança e saudade coexistem. A esquina simboliza a escolha e a bifurcação entre o que se deseja e o que se perdeu.

RELAÇÃO DAS TROVAS DE MARA COM OUTROS POETAS

As trovas de Mara Melinni dialogam com diversos poetas, refletindo temas universais como saudade, solidão, e a passagem do tempo.

Fernando Pessoa
Mara fala sobre a saudade e a solidão, similar ao que Pessoa expressa em seus poemas sobre a fragmentação do eu e a busca por significado. Ambos exploram a dor emocional e a introspecção. Como por exemplo, em “Tabacaria”, de Pessoa, a solidão e a busca por identidade ecoam a saudade e a desilusão nas trovas.

Cecília Meireles
A nostalgia presente nas trovas ressoa com a obra de Cecília Meireles, que também aborda a infância e as memórias afetivas. Ambas celebram a beleza efêmera da vida e dos momentos passados. Comparado ao poema "Ou isto ou aquilo", de Cecília, a nostalgia pela infância revela como as memórias moldam a identidade e os anseios.

Adélia Prado
A relação com a natureza em Melinni ecoa a poesia de Adélia Prado. A busca por identidade e sentido na vida é um tema comum. Na "A alegria de viver", de Adélia,  há um entrelaçamento entre o cotidiano e o divino ressoando com a natureza e a espiritualidade nas trovas acima .

Vinicius de Moraes
A melancolia do amor e a saudade são centrais nas obras de ambos. Vinicius, com sua musicalidade romântica, complementa a sensibilidade das trovas de Mara, podemos citar por exemplo “Soneto da Separação”, de Vinicius.

Carlos Drummond de Andrade
Como o poema de Drummond “No meio do caminho”, a reflexão sobre o tempo e a transitoriedade da vida em Mellini coincide com a obra de Drummond, que frequentemente explora a condição humana e a passagem do tempo com uma profundidade semelhante.

MARA MELINNI E A POESIA CONTEMPORÂNEA

Alguns poetas contemporâneos podem ser vistos como imbuídos em uma relação com os temas abordados pelas trovadora. Como exemplo, podemos citar:

Mariana Enriquez, com a exploração da memória e da perda.

Assim como Mara, poetas como Ana Cristina Rodrigues e Tatiana Nascimento abordam a saudade e a nostalgia, refletindo sobre experiências pessoais e coletivas. Ana Cristina Rodrigues, e a relação entre o cotidiano e a profundidade emocional, com um foco na saudade. Tatiana Nascimento, numa busca por identidade e a resiliência em meio à solidão.

Rafael Alvim, com a musicalidade dos versos e a reflexão sobre a vida e o tempo. Melinni e poetas contemporâneos, como Rafael, frequentemente utilizam imagens da natureza para expressar sentimentos humanos, criando um elo entre o interno e o externo.

Bruna Lombardi, que se insere numa intersecção entre amor, natureza e introspecção. Poetas como Bruna utilizam a sonoridade para intensificar a emoção, semelhante à fluidez das trovas de Mara.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As trovas aqui expostas oferecem uma rica tapeçaria emocional que explora a complexidade da experiência humana. Com um lirismo delicado, a trovadora aborda temas universais como saudade, solidão e a efemeridade da vida, revelando a profundidade de suas emoções e reflexões.

Os diálogos com outros poetas mostram como a poesia de Mara Melinni se insere em um contexto mais amplo, dialogando com temas e emoções que permeiam a literatura brasileira, enriquecendo a compreensão da experiência humana. As imagens naturais e cotidianas que permeiam suas trovas criam uma conexão íntima entre o eu lírico e o mundo ao seu redor, ressaltando a interdependência entre as emoções humanas e a natureza.

A musicalidade nas trovas de Mara é única e profundamente ligada à sua temática emocional. Ela se destaca pela estrutura das trovas e pela fluidez melancólica, enriquecendo a diversidade da poesia contemporânea. Em suma, as trovas não apenas expressam a dor e a beleza da vida, mas também convidam o leitor a uma jornada de autodescoberta e reflexão. Elas nos lembram que, apesar das perdas e da solidão, a poesia tem o poder de capturar a essência da vida, transformando a saudade em arte e oferecendo consolo nas intersecções do tempo e da memória.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Renato Frata (Renascimento de Matilde)

Ninguém saberia dizer o porquê de ela se vestir de preto de segunda a segunda, uma vida toda, como luto antecipado de si mesma a chorar a própria perda. Trazia os lábios pálidos, dentes pretejados e carregava um ar tímido num longo vestido preto de golas altas, meias de seda preta, sapatos pretos e nenhum acessório que não uma fita preta cingindo-lhe a cintura. Minto. Cruzava o corpo a alça longa da bolsa tão negra quanto o que lhe compunha a postura triste de quem tinha a vida como vã passagem.

Esmolava vida, tão grande sua carência.

Chamava-se Matilde, cujo significado "força na batalha, guerreira forte", contrastava com seu ser, um contrassenso, até que certo dia, por volta das nove da manhã, bateu no seu portão um homem musculoso e negro como sua vestimenta, que lhe pediu trabalho.

Capinaria e limparia todo o quintal por um prato de comida.

Viu fome nos olhos dele e cedeu.

Mas não ficaria bem uma mulher sozinha com um desconhecido pelas cercanias, sabia, porém, olhando para o quintal coberto de mato necessitando limpeza, deixou-o entrar, deu-lhe a enxada e o autorizou a iniciar a tarefa. Trancou-se, fechou as cortinas, meteu os ferrolhos nas portas. Pudica como era, não daria azo às vizinhas faladoras.

Lá pelas onze, com a comida pronta, olhou pela fresta e, temerosa, notou que o homem já havia capinado grande área do quintal. Abriu mais a cortina e confirmou; ele trabalhava bem e, como estava envolvido na tarefa, não lhe ofereceria perigo, afinal, era somente um faminto a procurar trabalho.

Então lhe preparou um belo farnel cuja fumaça espalhava o perfume da comida, e um copo de limonada. Com cuidado, levou o almoço até onde ele estava, e foi ali ao lhe passar o prato e o copo que ela, com os olhos cor de garapa saltando das órbitas brancas como louça, pôde contemplar, extasiada, a massa de músculos negros banhada de suor. Sensação que, aliás, nunca havia sentido.

Viu-se diante de um verdadeiro príncipe de ébano, se é que podia dizer isso, E se arrepiou por inteira, com o frio que instantaneamente lhe nasceu no espinhaço, percorreu-a de ponta a ponta e lhe pôs um tremor.

- Ora veja - disse ele, - Muito obrigado, senhora. Não sabe como a fome castiga! - deitou a enxada, desembrulhou o farnel e, sem se fazer de rogado, se pôs a comer. Era tão grande a fome que nem teve como se preocupar com ela, porém, ela não parava de olhá-lo.

Nunca, em toda a vida, estivera tão próxima de músculos tão fortes, rijos, inspiradores e sublimes. E sofreu gastura enquanto esperava, até que num momento ele entornou o copo de refresco e aí sim, olhou firmemente, compenetrado, sorrindo, enquanto lhe devolvia os objetos.

- É a refeição mais gostosa que já tive!

Receosa em lhe dar trela, tremeu como a sentir movimentos peristálticos em todos órgãos do corpo, o que a fez voltar às pressas. Mas não fechou a porta, nem as janelas, nem as cortinas. Deixou que o vento entrasse e a abanasse para amenizar o encantamento do másculo que suava capinando mato, e saísse pelas janelas levando a nebulosa solidão que tanto a martirizava.

Na manhã seguinte Matilde, enfim, fez jus à força do nome; no varal não pendurou somente roupas pretas estendidas ao sol, mas deixou, balançando silente ao vento, uma cueca verde, já gasta pelo uso, que registrava seu renascimento.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Vereda da Poesia = 98 =

 


Trova de Curvelo/MG

NEWTON VIEIRA

Agora vivemos sós...
e dói, de modo incomum,
saber que o abismo entre nós
não teve motivo algum!
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Poema de Telêmaco Borba/PR

CARMEM ANDREA SOEK PLIESSNIG

Esteja com Deus

Noite companheira da mente
Acompanha meus momentos 
Alegres, tristes, pensativa…
Quero transformar tudo em paz
Meu pensamento é feito mantra
Da positividade, da luz

Componho em nome do amor 
Acima de tudo: amor divino
Declaro desta forma a Deus
Ele sempre está comigo 
E quando fico em silêncio
Compreenda! Não é desprezo!

É meu coração conversando 
Com Deus, meus anjos guardiões 
E se por ventura, compreender 
Saberá realmente quem sou 
Um serzinho que ama a ternura
Busca harmonia na natureza 

Amo suspirar a presença divina
Que me proporciona tudo de bom 
Aaaah! Grito em meu silêncio 
É fácil ser dócil, amável, respeitar
É fácil ser do bem, fazer o bem 
Sempre haverá vantagens
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Trova de Curitiba/PR

ORLANDO KRUMAN WOCZIKOSKY
1927 – 2019

Saudade é luz matutina
no crepúsculo da gente.
Sol que o passado ilumina
quando escurece o presente.
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Soneto sobre Filmes, de Sete Lagoas/MG

FERNANDO ANTÔNIO BELINO

Dio, come ti amo

"Não tenho idade para amar-te agora,
 mas, se quiseres esperar, um dia,
terás, em plenitude, essa alegria,
quando surgir do nosso amor a aurora."

"De amar desencontrado, a gente chora!"
"Meu Deus, como te amo! Que agonia!"
Quem vai deter a nuvem fugidia
Ou impedir o rio de ir embora?"

Dois jovens, para o amor, predestinados!
Inúteis velhos medos e cuidados,
Ninguém o seu destino irá mudar."

Da Espanha para o mar napolitano,
O amor desfez as sombras de um engano.
E, enfim,  puderam plenamente amar!

Filme: Dio, come ti amo! 1966
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Trova Premiada em Barra do Piraí/RJ, 2000

MÁRIO MARINHO 
São João de Meriti/RJ

O luar canta e seduz,
carinhoso em seus desvelos,
numa seresta de luz
derramada em seus cabelos..
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Poema de Portugal 

MIGUEL TORGA
São Martinho de Anta, 1907 – 1995, Lisboa

Conquista 

Livre não sou, que nem a própria vida
Me o consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
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Trova Popular

Ninguém se julgue feliz
por ter tudo em bom estado,
pois vem a tirana sorte,
faz dum feliz… desgraçado.
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Soneto sobre Filmes, de Fortaleza/CE

ELVIRA DRUMMOND

Vida harmoniosa…

Quem toca ou canta a escala musical, 
prevê melodiar a própria vida…
Ao preparar um simples recital, 
retira d’alma a fibra colorida.

A comunhão de vozes num coral, 
fraternalmente, tece e consolida 
a trama de caráter divinal, 
dispondo os elementos na medida.

Família que cultiva, a cada dia, 
acordes qual acordos de doçura, 
na vida e na canção traz harmonia… 

Vestir de encanto a voz da partitura 
promove um tal efeito de magia, 
que sinto o Criador na criatura…

(Dialogando com o filme “A noviça Rebelde”, de 1965).
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Trova de Nova Friburgo/RJ

OCTÁVIO VENTURELLI
Rio de Janeiro/RJ, 1937 – 2019

Em nosso adeus, quando eu disse:
"não há dor que não se abrande",
nem pensava que existisse
uma saudade tão grande...
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Em teu louvor

Quando o tempo passar
Quando passar o tempo,
Hei de guardar
no esquecimento
minhas aventuras em teu louvor...
...para ter-te só, amor,
com dulçor,
no pensamento...
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

- Talvez o ciúme a incomode
mas, seu marido eu cobiço...
como ele é bom no pagode!!!
- Meu bem, ele é bom... só nisso!
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Soneto sobre Filmes, de Porto Velho/RO

JERSON BRITO

Honra para sonhar

O sonho, mesmo estando lacerado
no dente sanguinário do opressor,
resiste quando serve ao destemor
do coração que escuta um rouco brado.

Perante a rispidez, no desagrado,
a força colossal do sonhador
supera a queda imposta enquanto for
senhora do caminho planejado.

Alento, a pertinácia capacita
e torna refulgente a história escrita,
capaz de desfazer qualquer barreira.

Na direção do anelo, todo passo
merece festa e o choro, mais escasso,
ressurge na vitória derradeira.

Filme: Homens de Honra
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Trova de São Luís/MA

OTONIEL BELEZA

Silêncio, prova eloquente
de desdém, de desamor.
Quem ama faz-se presente
numa carta, numa flor...
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Poema de Dornes/ Ferreira do Zêzere/ Portugal 

JOSÉ DA SILVA GARCEZ

É nos teus lábios

É nos teus lábios
que começa o verão!

Esse sol abrasador
que me queima o corpo.

Suavemente, abandono-me
nas tuas águas.

Mergulho. Acalmo o corpo.
Descanso nas areias ainda mornas.

Espero outro verão!
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Trova Catarinense

OSMAR SILVA
São José/SC (1911 – 1975) Florianópolis/SC

Se, no mar, vidas perecem,
ante fúrias desumanas,
muito mais vidas fenecem
no mar das paixões humanas.
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Soneto sobre Filmes, de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Importa viver

Dos filhos, o anteparo e, até, o suporte,
missão dos pais em parte da jornada.
Se os desafios forem de alto porte,
intentam suavizar-lhes tal largada…

Mas, de repente, ronda pela estrada,
assaz perigo… A vida exposta à sorte!…
Suposta culpa em mente conturbada:
– aquele jovem viu, de perto, a morte.

Se um anjo bom soprar-lhe ao pé do ouvido,
declinará da ideia negativa 
e, ao existir, dará cabal sentido.

Na doação, a incrível descoberta…
Sair de si e, em nova alternativa:
– “Fazer alguém feliz!” – a escolha certa.

Filme: Nos vemos em Vênus
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Trova Premiada em Barra do Piraí/RJ, 2000

MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO
Rio de Janeiro/RJ

Passas fazendo seresta,
mal a noite se insinua...
E vais transformando em festa
toda a tristeza da rua...
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Poema de Lisboa/Portugal

JUDITE DE CARVALHO
1921 – 1998

As portas que batem

As portas que batem
nas casas que esperam.
Os olhos que passam
sem verem quem está.
O talvez um dia
Aos que desesperam.
O seguir em frente.
O não se me dá.

O fechar os olhos
a quem nos olhou.
O não querer ouvir
quem nos quer dizer.
O não reparar
que nada ficou.
Seguir sempre em frente
E nem perceber.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Criança que muito apronta 
exige rigor dos pais: 
– Água mole não dá conta, 
se a pedra é dura demais!
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Soneto de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Matizes da aurora

Brindo e abraço, na aurora, outra alvorada,
todo dia, da porta do meu quarto,
no silêncio da velha madrugada,
ouço o choro da luz de um novo parto!

Esse raio de luz que eu não descarto,
no meu teto, depressa, faz morada...
Abro portas, janelas, não me farto,
não me canso do olhar da luz dourada!

E essa luz, em silêncio, a caminhar,
traz o brilho da aurora, em seu olhar,
apagando, da noite, a treva ardente...

E entre cantos, sussurro e mil respingos,
põe, nas luzes do orvalho e em ternos pingos,
os matizes da luz do Sol nascente!
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Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Se amigo é o que escuta a queixa,
seca o pranto e ajuda a rir,
mais amigo é o que não deixa
sequer o pranto cair!
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Hino de Porto Velho/ Rondônia

No Eldorado uma estrela brilha
Em meio à natureza, imortal:
Porto Velho, cidade e município,
Orgulho da Amazônia ocidental,

São os seus raios estradas perenes
Onde transitam em várias direções
O progresso do solo de Rondônia
E o alento de outras regiões.

Nascente ao calor das oficinas
Do parque da Madeira-Mamoré
Pela forja dos bravos pioneiros,
Imbuídos de coragem e de fé.

És a cabeça do estado vibrante:
És o instrumento que energia gera
Para a faina dos novos operários,
Os arquitetos de uma nova era.

No Eldorado uma gema brilha
Em meio à natureza imortal:
Porto Velho, cidade município,
Orgulho da Amazônia ocidental.
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Trova de Pelotas/RS

OLGA MARIA DIAS FERREIRA

Belos gestos de inocência,
bênçãos de amor despertaram,
e, nos trilhos da existência,
só saudade carregaram..
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Poema de Portugal

MANUEL LARANJEIRA
Mozelos/ Santa Maria da Feira, 1877 – 1912, Freguesia de Espinho

Na rua

Ninguém por certo adivinha como 
essa Desconhecida, 
entre estes braços prendida,
jurava ser toda minha…

Minha sempre! — E em voz baixinha:
— «Tua ainda além da vida!…» 
Hoje fita-me, esquecida
do grande amor que me tinha.

Juramos ser imortal
esse amor estranho e louco…
E o grande amor, afinal,
(Com que desprezo me lembro!) 
foi morrendo pouco a pouco,
— como uma tarde em setembro…
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Trova de Niterói/RJ

OLGA TENÓRIO RAMOS

Fantasia colorida,
ilusão de primavera,
levou tudo o que era vida,
só deixou o que não era.
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Fábula em Versos de Belém/PA

ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA

Fábula

Num grande tonel de vinho
um rato um dia caiu
e, por não saber nadar,
vinho à beça ele engoliu.
Gritou pedindo socorro:
– Me acudam senão eu morro!
De pronto um gato acudiu.

O ratinho ao ver o gato
falou: – Não posso escolher;
me tira logo daqui,
depois podes me comer.
Prefiro ser agarrado
por ti e ser devorado
do que afogado morrer.

O gato, mais que depressa
do vinho o rato tirou
e este, assim que pôs-se a salvo,
para o gato nem olhou
e sem dar touca ou bandeira,
deu uma incrível carreira
e dentro da toca entrou.

O gato gritou, possesso,
ao ver o rato correr:
– Eu só te salvei do vinho
depois de te ouvir fazer
uma proposta decente
que se salvo, calmamente
deixarias eu te comer.

Grita o rato do buraco
com a maior cara-de-pau:
– Eu só podia estar bêbado
pra fazer proposta tal.
E o gato, desconsolado,
por ser otário ao quadrado,
acabou se dando mal.

Que a história sirva de exemplo
a quem vive dando bola
à qualquer papo-furado,
pois, se é muito grande a esmola,
desconfie e ouça o que digo:
se a proposta é de inimigo,
aí mesmo é que não cola!