terça-feira, 4 de março de 2025

Paulo R. O. Caruso (Cordel de aprendizado)


Quando eu era criancinha,
aprendi uma lição:
eu poderia plantar 
um pezinho de feijão 
num copinho de café,
mostrando ali minha fé
no Senhor, com gratidão. 

O grãozinho de feijão 
com água e algodãozinho
com o tempo despertou
do delicado soninho,
abriu braço, espreguiçando-se
e foi logo então mostrando-se
verdejante bebezinho.

Os meus olhos de criança 
mal podiam ver então 
um broto pequenininho
num tiquinho de algodão,
uma base ao crescimento
e com água e sentimento
ter uma suave explosão!

Depois do braço miúdo
que cresceu e se mostrou 
ser o caule de uma planta 
uma folhinha brotou 
como espinafre, verdinha,
alegrando a criancinha,
dando um baita sorrisão!

Claro, por falta de espaço,
e por ser experiência
com algodão e não terra,
o pé demonstrou carência
e de fato não vingou,
o que então me demonstrou
biologia em excelência.

Mais tarde tive um canário
que nem chegou a durar 
um mês na “sua” gaiola,
vindo o tal a então tombar 
com um mês de aprisionado
sob um facho acalorado
do sol do seu libertar...

Logo depois um coleiro 
eu ganhei de um primo meu
e fiquei muito feliz,
pois nova vida se deu 
lá em casa, na gaiola:
um coleirinho de gola
filhotinho se prendeu...

Eu ainda era criança
e de fato não sabia 
que tristeza era manter
uma ave qualquer dia 
na gaiola, aprisionada;
mantive então a empreitada
e segui com alegria.

O bichinho tinha um canto
alto e forte toda vida!
Parecia um tenorzinho 
com a voz fortalecida 
pelo alpiste e pela água,
não mostrando muita mágoa
por ter a vida apreendida...

Claro, o bicho nem lembrava 
a vida fora das grades!
Quando vira aprisionadas
todas as suas verdades, 
ele era um filhotinho 
frágil e muito novinho,
sem conhecer liberdades...

Porém, ele foi crescendo
sem carinho pela mão 
que sempre o alimentava,
tentando com atenção 
bicá-la sem demonstrar 
qualquer remorso ao tocar,
não aceitando perdão.

Quando eu tirava a banheira
para pôr água limpinha,
ele voava pra longe,
ao teto da gaiolinha,
tentando fugir de mim,
do monstro de carmesim 
que ia contra a sua vidinha...

Quando eu tirava seu forro
de jornal para trocar
por um limpo e higienizado,
ele seguia a voar 
para o teto da gaiola
nada feliz, nem gabola,
até tudo se findar. 

O jiló eu descascava,
e não satisfeito ainda,
deixava à mostra sementes
para a criatura linda
logo bicar e encontrar 
muitas sem nem precisar 
se sentir numa berlinda!

Eu ficava imaginando 
como ele se sentia
ao saber que passarinhos
voavam à luz do dia 
para todo e qualquer canto
e tinham no bico o canto
de estar livre em alegria!

Justo quando eu fui crescendo
percebi que o passarinho
não teria namorada, 
nem ao menos o seu ninho 
com filhotes para amar,
o que me fez enxergar
não ser bom o seu caminho.

Mas como é que eu poderia
libertá-lo da prisão,
se ele já praticamente 
lá nascera sem senão?
O coitado morreria 
no escuro ou à luz do dia
sem defesa e sem perdão!
 
Era um animal herbívoro
que se tornaria caça
de algum gato ou de coruja,
de algum rato ou de trapaça
que o levaria de novo 
a outra gaiola, meu povo!
Tudo na cabeça passa!

Os anos foram passando
somente comendo alpiste
e jiló na tal gaiola,
o que me deixava triste 
por ele jamais poder 
deixar a prisão e ver
o que de mais belo existe!

No final da sua vida,
nos poleiros não subia,
ficando só lá no fundo 
da gaiola e já não via 
nada à volta, só “sentava”
quieto e velho e esperava 
o fim da sua agonia. 

Três dias longos assim
se passaram ao coitado,
que num sábado morreu
e por mim foi enterrado
na calçada de uma escola
de minha infância gabola.
Foi o fim deste pecado.

Eu vi o pranto incontido
de minha mãe e minha irmã,
mas eu só senti alívio
naquela dita manhã,
pois não mais iria ver 
aquele imenso sofrer
que não era o meu afã. 

Nós pusemos logo fora 
aquela podre prisão 
para nunca mais mantermos 
qualquer ave sem razão
encarcerada a sofrer 
e sua beleza perder 
por tristeza e depressão. 

O que ganhamos em troca
Minha irmã, minha mãe e eu
Foi algo nunca pensado
Que do nada aconteceu
E pode sempre ocorrer 
Quando quiser vir nos ver!
Eu te conto o que se deu.

O que ganhamos então
eu te digo já risonho:
uma coruja aparece 
lá em casa (não em sonho!) 
sempre que lhe dá na telha,
mostrando que a casa velha
não é um lugar medonho!

E a cada vez que observo 
uma gaiola a ostentar 
uma criatura indefesa, 
um passarinho a cantar
fico triste de repente 
por saber que a dita gente 
ainda ama aprisionar.  
 
Um recado que aqui deixo 
é que não prendas ninguém
numa gaiola apertada,
mas sim faças sempre o bem
de tão somente aplaudir 
do que é belo o ir e vir 
livre, não sendo refém! 

Outro recado bem simples 
é que procures plantar 
uma árvore na vida,
porque Deus vai se orgulhar,
como um ipê que eu plantei
quando um dia me lembrei 
do feijão a não vingar.

Fontes:
Enviado pelo autor.
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domingo, 2 de março de 2025

Adega de Versos 129: Luiz Poeta

 

José Feldman (Contos em versos diversos) Apenas uma mão


Era um senhor de roupas gastas,  
com o andar lento e olhar cansado.
Na calçada, suas memórias vastas  
contavam histórias de um tempo amado.  

Um dia, tropeçou, a queda foi dura,  
e junto ao muro lá ficou a gemer.  
Clamava por ajuda em sua amargura,  
mas ninguém o ouvia, mesmo vendo-o sofrer.  

Os passantes, apressados, viam um mendigo,  
e o ignoravam, sem parar para olhar.  
Pensavam que era só queria um abrigo,  
um bêbado perdido, sem lar para ficar.  

Mas eis que um jovem com olhar atento,  
se aproximou, perguntando com bondade:  
“Senhor, precisa de algum auxílio ou alento?”  
A voz sincera trouxe-lhe felicidade.  

“Só preciso de ajuda para me levantar,”  
disse o velho, com um sorriso tímido.
O rapaz com força, o pôs a caminhar,  
e juntos seguiram num passo decidido.  

Chegaram a um palacete, imponente e belo,  
o jovem, espantado, não podia crer.  
“Este é meu lar, um lugar singelo,  
venha, entre, e vamos nos conhecer!”  

O jovem, surpreso, aceitou o convite,  
e um laço de amizade começou a florescer,  
contaram histórias, entre risos sem limite…  
Um encontro de almas, um novo amanhecer.  

Mas a moral que ecoa em nossos corações,  
é que a compaixão é um bem que se retrai,  
pois muitos, em meio às suas aflições,  
ignoram o próximo, uma vida que se esvai.  

Que possamos, como o jovem, olhar além,  
e estender a mão aos necessitados,  
pois cada ser humano tem um valor também,  
e a bondade é a luz dos seres abençoados.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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A. A. de Assis (O quase herói do vale)

Sumago é até hoje lembrado como quase herói em todo o vale da Barrinha – história que vem sendo repassada de geração a geração desde o dia em que, puxado pela correnteza, desabou pela cachoeira. Deu-se isso faz coisa de uns 70 anos, num tempo em que ainda não se entendia que caçar era coisa feia. Segundo ele contava, rolara uns 50 metros embolado nas águas se esfregando nas pedras, porém sobrescapara vivinho e ledo.

Campeiro valente, zunia nos pastos, serra acima, serra abaixo, cavalgando atrás das cabras. Nos dias de folga costumava caçar: conhecia a mata como a palma da mão; pontaria firme, acertava o alvo a espichados metros da mira. 

Medroso não era, jurava que não. Além do mais aquela mata fazia tempo estava “desonçada” e outros bichos não o assustavam, nem tamanduá-bandeira.

De onde surgira então aquela pintada? Tudo que era caçador garantia que onça havia acabado ali – a última tinha sido assada pelo Tonhão Tripeiro uns quinze anos passados. Não era possível ter sobrado filhote pra crescer e agora aparecer num de repente assim. Só podia ser assombração, queria ele imaginar. Mas não era não. A baita miou, partiu pra cima do caçador, que depois de tremendo berro se jogou mata abaixo, pulando troncos e pedras, a perversa atrás, o pavoroso miado, o vulto medonho, pega que pega...

Sumago na afobação perdeu a espingarda, rasgou a camisa, enroscou a calça num espinhal, o fôlego a toda, se livrou nu, a onça atrás, gulosa, miando.

Se alcançasse o rio, estaria salvo; era a sua esperança, arranhado, os pés arrebentados, serra abaixo, a onça nos calcanhares dele, cadê esse rio que não chega? Olha lá... só mais um tiquinho e pronto, a baita preparando o bote, ele enfim saltou na água... ti-bum. Salvo?

Salvo coisa nenhuma. A malvada pulou atrás, nadava ligeiro ela, ele a sessenta braçadas por minuto, ela encostando com os dentões arreganhados, faminta, Sumago aguentando mais do que aguentava, a resistência acabando, vontade de se entregar logo à ferona, terminar de vez aquela briga doida... Seria afinal o dia da caça...

A correnteza puxando, já bem pertinho a cachoeira. Caindo no precipício seria morte certa. Mas pouco importava, pensava ele. Melhor se esborrachar nas pedras do que virar comida de onça. Logo ele, caçador de fama. Queria tudo, menos sofrer tamanha humilhação.

Rolaram os dois corpos pela cachoeira, Sumago e a baita. Milagre? O caçador sortudo caiu na água macia, foi ao fundo, voltou revivo. A onça? Até hoje ninguém sabe. Simplesmente sumiu.  

O brioso rapaz espalhou a notícia – tinha tudo para com essa virar herói no vale. Pena que, por falta de testemunha, a vizinhança reagiu meio assim, meio duvidante. Ficou a fábula no ar.
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Antonio Augusto de Assis (A. A. DE ASSIS), poeta, trovador, haicasta, cronista, premiadssimo em centenas de concursos nasceu em So Fidlis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maring/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maring, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maring, Folha do Norte do Paran e das revistas Novo Paran (NP) e Aqui. Algumas publicaes: Robson (poemas); Itinerrio (poemas); Coleo Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crnicas, ensaios e poemas); Pomica (poemas); Caderno de trovas; Tbua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrnicas (textos curtos); A provncia do Guair (histria), etc.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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Conto das Mil e Uma Noites (Destino ou merecimento?)

Minha história é simples. Fui um cordoeiro por toda a minha vida, especializado em cânhamo, como meu pai e meu avô tinham sido antes de mim. Minha renda mal dava para sustentar a mulher e os filhos. Mas como não tinha capacidade para exercer outra profissão, estava satisfeito e não me queixava a Deus nem atribuía minha pobreza senão à minha ignorância e estupidez. 

Conheci dois homens ricos, Saad e Saadi, que vinham habitualmente descansar e conversar perto de minha loja e assim tornaram-se meus amigos. Um dia, ouvi-os discutir um assunto que me interessou: 

– Será a riqueza adquirida por certos homens o resultado de sua capacidade e aplicação ou um presente do destino? 

- Ó Saadi, disse finalmente Saad, vejo que nenhum de nós irá convencer o outro sem provas. Proponho, portanto, que localizemos um homem pobre e honesto e coloquemos um pequeno capital em suas mãos. O estado de sua fortuna nos meses seguintes provará quem de nós dois está certo: tu que deixas tudo por conta do destino, ou eu que acredito que cada homem é o arquiteto de sua vida. 

Escolheram-me para sua experiência e deram-me duzentos dinares de ouro, perguntando: “Achas que com este capital poderás desenvolver teu negócio e tornar-te rico?” 

Respondi: “Serei mais rico que todos os cordoeiros de Bagdá juntos.” 

Ao ver os dinares de ouro na mão, senti-me num êxtase e procurei escondê-los em algum lugar seguro. Após muito deliberar comigo mesmo, tirei dez dinares para minhas despesas e coloquei o restante nas dobras da barra com que costumo envolver meu turbante. Depois, comprei um lombo de carneiro e dirigi-me para casa. 

Mas enquanto caminhava, a cabeça agitada por sonhos de riqueza, um falcão faminto desceu do céu e, antes que me desse conta do que estava acontecendo, arrebatou meu lombo de carneiro no bico e meu turbante nas garras e voou. 

Após gastar os dez dinares, recaí na miséria anterior. 

Dez meses depois, os dois amigos vieram visitar-me para verificar quem deles tinha acertado. Recebi-os com olhos baixos, e disse-lhes: “O destino continuou a antagonizar-me, e estou em piores condições do que antes.” E contei-lhes o que havia acontecido. 

Saadi sorriu maliciosamente pela decepção do amigo. Mas Saad disse-me: “Não duvido de tuas palavras, embora possa suspeitar que gastaste os duzentos dinares na devassidão. Seja como for, não quero deixar meu amigo Saadi triunfar tão facilmente. Eis outros duzentos dinares de ouro. Tenta novamente a sorte, e não vás escondê-los no teu turbante.” E foram embora. 

Voltei para casa, procurando onde esconder o dinheiro. Reparei numa velha jarra cheia de farelo. Amarrei o dinheiro num pano e enfiei-o no fundo da jarra. Enquanto saí para fazer compras, um vendedor ambulante passou na rua, vendendo pacotes de um preparado de ervas com o qual as mulheres lavam o cabelo no hammam (sauna a vapor). Não tendo dinheiro, minha mulher trocou dois pacotes daquela pasta pela jarra de farelo. 

Quando voltei, procurei a jarra com os olhos para me tranquilizar e, não a vendo, perguntei à mulher por ela. Contou-me. 

“Ó mulher desafortunada!” gritei. “Trocaste meu destino, teu destino e o destino de nossos filhos por um punhado de ervas.” 

Sabendo o que fizera sem querer, ela pôs-se a lamentar-se, censurar-me por não lhe ter revelado o segredo em tempo e falar sem parar como fazem as mulheres diante das desgraças. “Uê! Uê! Vendi o destino dos meus filhos a um mascate que não conheço e que nunca poderei encontrar de novo.” 

Quando, longos meses depois, Saad e Saadi reapareceram, recebi-os com ar ainda mais constrangido e contei-lhes o que acontecera. Saad disse que não iria refazer a experiência mais uma vez; mas Saadi declarou: “Ó Hassan, eu também gostaria de ajudar-te. Como não sou tão favorecido quanto meu amigo Saad para seguir-lhe o exemplo, só posso dar-te este pedaço de chumbo que algum pescador parece ter perdido quando arrastava sua rede pelo caminho. Se tal for o decreto do destino, este pedaço de chumbo virá a ser-te mais útil que minas de prata.” 

À noite, voltei para casa, coloquei o pedaço de chumbo em qualquer lugar, julgando que de nada me serviria, e dormi. Ora, na manhã seguinte, ao preparar sua rede, um pescador vizinho reparou que faltava nela o pedaço de chumbo indispensável, e veio perguntar-me se dispunha, por acaso, de tal pedaço. Dei-lhe o pedaço que Saadi me oferecera. 

Grato, o pescador disse-me: “Jogarei a rede da primeira vez em teu nome e o que recolher será teu.” 

O curioso é que, o dia todo, ele pescou peixes pequenos e, somente na primeira vez, apanhou um peixe grande, de um cúbito de comprimento, e fiel à sua promessa, trouxe-me. O peixe sendo maior que nossas panelas, minha mulher teve que cortá-lo em pedaços para fritá-lo. Dentro dele encontrou uma bola de vidro do tamanho de um ovo de pomba. 

À noite, essa bola de vidro iluminou a casa mais que a lâmpada. No dia seguinte, a história de nossa descoberta espalhou-se por toda a cidade graças à língua comprida de minha mulher. Logo recebeu ela a visita de uma certa judia da vizinhança, cujo marido era um joalheiro. Após contemplar longamente a bola de vidro, disse à minha mulher: “Agradece a Deus esse pedaço de vidro sem valor. Tenho outro igual e gostaria de completar o par. Ofereço-te, pois, por esta coisa insignificante, a enorme importância de dez dinares de ouro.” 

Minha mulher, preferindo usar a bola como lâmpada, recusou a oferta. Quando voltei para casa, contou-me. Disse-lhe: “Se a coisa não tivesse valor, jamais uma filha de judeus ofereceria dinheiro por ela. Tenho a certeza de que ela voltará e aumentará sua oferta. Aconselho-te a não vender a bola sem me consultar.” 

Falei assim, lembrando-me das palavras de Saadi de que aquele pedaço de chumbo me tornaria rico se o destino assim o determinasse. Por Alá, a judia voltou e, usando as mesmas manhas e chamando a joia “aquela coisinha sem valor” e “aquela miséria”, ofereceu por ela assim mesmo cem dinares de ouro. Era óbvio naquela altura que o achado era uma joia rara, de valor inestimável. 

Ofereci-a à judia por 100 mil dinares, dizendo: “Outros joalheiros que conhecem essas raridades melhor que teu marido me ofereceriam mais ainda. Mas eu nunca fui ganancioso. E juro por Alá que não aumentarei este preço.” 

Após protestar como diante de uma ousadia escandalosa, a judia disse: “Comprar e vender não é comigo. Falarei a meu marido. Se ele se interessar, virá procurar-te. Até lá, promete-me não vender a outrem esse vidrinho de nada.” 

Prometi, e a mulher saiu apressada. Como previra, o joalheiro apresentou-se em nossa casa naquela mesma noite. Via-se no seu rosto toda a astúcia de seu povo e sua determinação de arrancar-me o destino das mãos. Após queixar-se do tempo, dos maus negócios, das dificuldades que atravessava, após dizer que mal ganhava o pão dos filhos, jurando constantemente por Aarão e Jacó, disse que só queria aquela brincadeira de vidro para agradar à mulher grávida, pois “nós os homens devemos submeter-nos às fantasias de nossas esposas nesta fase, senão corremos o risco de ter filhos deformados.” 

Pediu-me ver o ovo. Mandei tirá-lo das mãos das crianças que brincavam com ele; fechei portas e janelas e coloquei o ovo em cima de um consolo. A casa ficou iluminada como se fosse meio dia. O judeu ficou tão maravilhado que deixou escapar o segredo de que aquela bola era uma das joias que haviam pertencido a Soleiman (Salomão). Lamentou, logo em seguida, suas palavras, mas não soube como retirá-las. 

Finalmente, perguntou-me que preço pretendia pelo ovo; respondi: “100 mil dinares, como disse à tua mulher. E se não tivesse dado minha palavra, que um bom muçulmano sempre respeita, aumentaria o preço dez vezes ou mais, agora que sei que a joia pertenceu a Soleiman.” 

O joalheiro levantou-se com ar trágico: “Queres arruinar-me?” perguntou. “Se vendesse minha joalheria e minha casa e meus filhos e minha mulher e a mim mesmo, não conseguiria juntar esta soma. Pensei que a tivesses mencionado a minha mulher por brincadeira.” 

Vendo-me, todavia, firme, e receando que eu voltasse atrás na minha palavra, disse: “O dinheiro está aí.” E chamou pela janela seus servidores que esperavam com sacos cheios de dinares. 

Achando-me assim fabulosamente rico, parei de trabalhar, fechei a loja e construí uma casa suntuosa. Dei à minha família todo o conforto e luxo possíveis e distribuí presentes generosos a
parentes, amigos e aos necessitados. 

Um dia, Saad e Saadi procuraram saber de mim. Encontrando a loja fechada, pensaram que eu tinha morrido. Mas os vizinhos indicaram-lhes minha nova morada. Vieram até mim, surpresos e alegres e, após ouvirem minha história, Saadi regozijou-se e disse triunfalmente a Saad: “Vês?” 

Estávamos ainda conversando, quando meus filhos que brincavam no jardim entraram em casa, carregando o ninho de uma grande ave que um de meus escravos apanhara no alto de uma palmeira. Para meu espanto, verifiquei que este ninho tinha sido construído na base de uma banda de turbante - minha banda e meu turbante. Dentro deles encontrei os cento e oitenta dinares embrulhados exatamente como os havia colocado. 

Não tínhamos ainda nos recuperado da excitação produzida por esse milagre, quando um dos meus servidores entrou com uma jarra de farelo que reconheci logo ser aquela jarra. 

O servidor explicou que a comprara para um de nossos cavalos. Procurei dentro da jarra e encontrei os duzentos dinares. Desde então, eu e meus dois amigos temos dirigido nossas vidas pela hipótese de que ninguém é capaz de prever as maravilhas do destino quando ele for generoso. 

Saad, que era um pouco poeta, compôs estes versos: Quando o destino for generoso para contigo, sê generoso para com os outros: Nem a liberalidade te perderá se ele for favorável; nem a parcimônia te salvará se e1e for adverso.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 128: Jerson Brito

 

José Feldman (Contos em versos diversos) O Desconfiado


Em um lar onde o amor reinava,
um homem, de coração aflito,
sentia que a esposa o enganava,
sentindo em si grande conflito.

Os olhos dela, em certos momentos,
eram nuvens que ocultavam o sol,
e os sorrisos em novos sentimentos,
pareciam dançar em um arrebol.

Certa noite, a dúvida o tomou,
decidiu então, segui-la ao luar,
escondido nas sombras ele ficou,
e viu a esposa se deixar levar.

Com um homem bonito, jovem e audaz,
ela se entregou em longo abraço,
o coração do marido em meio à paz,
desabou, sentindo-se ele um bagaço.

Quando ela voltou, ele a esperava,
o olhar ardente, a voz em fúria,
“Traidora!”, bradou, enquanto ela falava,
e a casa virou um palco de penúria.

Acusações voaram como flechas cortantes,
e a vizinhança começou a se aglomerar,
os gritos ecoavam em tons vibrantes,
o homem em chamas não parava de gritar.

Mas, logo à porta, o jovem se apresentou,
com um sorriso que apagava o temor,
“Sou irmão dela, aquele que se afastou,
mais de vinte anos, sem saber de seu amor.”

O marido, atônito, não entendia nada,
a vergonha o envolveu como um véu,
a esposa, com lágrimas, a história contada,
derrubou o peso que pesava no céu.

O homem galante, era apenas um irmão,
sorrindo, enquanto a tensão se desfazia,
o esposo, com vergonha, em confusão,
não sabia onde a sua cara metia.

E assim, a noite se transformou em paz,
com conversas e memórias a ressoar,
o amor, que antes parecia fugaz,
renovou-se, como o sol a brilhar.

O desconfiado, agora em reflexão,
aprendeu que, às vezes, tudo é ilusão,
e que o amor verdadeiro em sua missão,
supera os medos e traz renovação.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Vereda da Poesia = 221


Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

BOLERO DAS ÁGUAS

O passo no compasso dois por quatro
acode meu suplício de afogado
afastando de mim sedento cálice
em submerso bolero de águas tantas.

A sede dança seca na garganta
curtindo signos, fala ressequida
para a língua de couro, lixa tântala,
alisando palavras rebuçadas.

Quanto alfenim no alfanje que se enfeita
para montar as ancas de égua moura.
Lábia flamenca lambe leve as ouças,

é rito muezim ditando a dança:
no dois pra cá me levo em dois pra lá,
nas águas do regaço vou-me e lavo-me.
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

A FORÇA DO SEU ABRAÇO

Sinto saudade dos seus braços
Onde dividia meu cansaço
Quando em você me escondia
Desta minha vida tão vazia

Na força do teu abraço
Encontrei descanso e me entreguei
Encontrei paz e fui feliz. Nos seus braços
Descobri o quanto te amei

Sem medo de sofrer, abri meu coração
Sem medo de perder, segurei em suas mãos
Você é meu refúgio, meu abrigo
Meu amor, muito mais que um amigo

No cantinho dos seus braços
Eu me desfaço e me refaço
Encontro amor e carinho
Onde moro e, faço deles meu ninho.
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

VEJO-TE SEMPRE EM HORAS DE SAUDADE
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 145)

Vejo-te sempre em horas de saudade
Quando em meu peito dói a tua ausência
Presente como eterna penitência
Que eu pague por te amar sem castidade.

Envolto sempre em rara claridade
Segreda o teu olhar a confidência
Em que naufraga, nua, esta inocência
No abraço que me traz à realidade.

Talhada em minha mente sempre vens
Livre e solta no tempo e te deténs
Trazendo à minha vida a doce paz.

Com enlevos eu te amo e te venero
E em meus dias o que eu anseio e quero
Sempre és tu quem o diz e quem o faz.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

OS VAGABUNDOS

Perdidos pela estepe enegrecida e rasa,
Nessa planície igual que a distância arredonda,
Que o inverno enregela e que o verão abrasa,
Dos vagabundos passa a maltrapilha ronda.

As miragens do céu são como pétrea onda...
E o vento forasteiro essa visão arrasa,
Quebrando torreões de arquitetura hedionda,
Catedrais de marfim e florestas de brasa!

Eles passam cantando uma canção dolente,
E vão deixando atrás, por sobre a terra ardente,
Dos seus inchados pés os passageiros rastros...

E quando a noite desce aos desertos medonhos,
Deitam-se sobre a terra e sonham lindos sonhos
Na solidão da estepe e na mudez dos astros!
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

AMOR CREPUSCULAR

A tarde vai morrendo lentamente
e enquanto o sol se esconde lá na serra,
a brisa vem trazendo mansamente
uma saudade que o meu peito encerra.

E a noite surge alegre e resplendente
com seus mistérios vem saudando a terra,
espalhando, no mundo, o amor ingente
de quem cultiva a paz e evita a guerra.

Quantos amantes passam se beijando
confessando segredos e venturas
que só o amor produz nas almas puras?

Meu coração também está amando
como os casais que passam na avenida
jurando amores para toda a vida.
= = = = = = = = =  

Poetrix de
SILVANA GUIMARÃES
Belo Horizonte/MG

DEU BANDEIRA

febre, dor pelo corpo afora,
a estrela que eu podia ter sido e não fui:
um tango à toa a vida inteira
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO A. J. ZAMATARO
Curitiba/PR

CARRINHEIRO

Lá fora a chuva fina turva a luz
e molha o palco aberto onde se faz
da hora a velha sina que conduz
quem olha a rua incerta e o chão voraz.

Um vulto esconde o rosto em breu capuz
enquanto a chuva insiste em ser tenaz...
Avulta em mim desgosto que traduz
em pranto a chuva triste e pertinaz.

Estia enfim e o vulto se levanta
e leva o seu carrinho em contramão
na via onde um insulto o desencanta

e faz brotar nos olhos a explosão
que torna a raiva insana e a dor maior
na lágrima, na chuva e no suor.
= = = = = = 

Soneto de
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG (1932 – 2012)

SÃO FIDÉLIS

De São Fidélis guardo a ressonância
 De pássaros cantando nas capoeiras;
 No olhar conservo as flores das primeiras
 Primaveras perdidas na distância…

 Toucou-me um dia a incontrolável ânsia
 De procurar caminho e abrir porteiras,
 Deixando para trás velhas mangueiras
 Que encheram de doçura a minha infância.

 Comércio, indústria, o campo verde, o açude…
 Cidade Poema, te esquecer não pude,
 Porque, mesmo partindo da cidade,

 Como carro-de-boi que geme e chora,
 Eu vou levando pela vida afora
 A colheita indelével da saudade!
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Cantiga Infantil de Roda
LAGARTA PINTADA 

É uma roda de crianças, cada qual pegada na orelha da outra, cantando e dançando:

Lagarta pintada 
Quem foi que te pintou
Foi uma velha 
Que passou por aqui
A saia da velha 
Fazia poeira
Puxa lagarta 
No pé da orelha

Quando as meninas dizem - Puxa lagarta no pé da orelha - puxam realmente com força na orelha das outras

Outra versão:

Lagarta pintada quem foi que te pintou?
foi uma menina que aqui passou
por dentro das areias levanta poeira
pega esta menina pela ponta da orelha.

Lagarta pintada quem foi que te pintou?
Foi a velha cachimbeira por aqui passou.
No tempo da areia fazia poeira, Puxa
Lagarta nessa orelha... Orelha, orelha!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Que os homens são uns diabos
não há mulher que o negue;
mesmo assim elas procuram
um diabo que as carregue.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

ROTINA DE UMA ÁRVORE

Terra, água
E luz gestam vidas
Num contínuo renascer,
O ciclo da vida impresso
Nas folhas encanta,
E surpreende,
Desabrochando em versos
Em uma manhã azul
De Primavera.
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Aparecido Raimundo de Souza (O velho balanço)

ÀS VEZES, na minha saudade cheia de pesadas digressões e insípidos detalhes, recordo a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo. Dentro dessa saudade, afrontando perigos terríveis os mais diversificados, me transporto (como num sonho bom), levado que sou pelas asas coloridas da fantasia dimensional. Nessa viagem minhas prerrogativas se propagam e então, extasiado, alcanço os primórdios daquela quadra risonha e feliz, onde, pés descalços, palmilhando sofregamente a terra batida passava os dias brincando contente, numa adolescência puramente bucólica e envolvente destituída da maldade dos adultos e da perversidade dos homens sem lei.

Claro como a luz incandescente que abrasa meus dias atuais, vai se desenrolando, com a nitidez de uma reconstituição inesperada, uma espécie de visão cadente. Dentro dela, vejo o alpendre com as mesas e as cadeiras em madeira pura, a pinguela sobre o córrego junto aos canaviais, o curral, o paiol de guardar mantimentos (que, de tão antigo, se debruçava no peso de sua própria caducidade) e o monjolo que funcionava incansável, às margens de um riacho de águas límpidas e brilhantes, onde no começo de noite, por volta das dezoito, uma lua bonita vinha refletir a sua resplandescência. A tudo sinto claramente, como se tivesse vivendo aquele momento (tal e qual aconteceu exatamente) sessenta e quatro anos atrás.

Mas esperem! Falta uma peça importante para completar esse jogo de recordações que invade meu “eu” entorpecido. Não consigo encontrar esse elo ausente, esse brinquedo que durante anos a fio representou a minha verdadeira razão de existir. Falo de um balanço. De um velho balanço que vivia escondido, lá bem longe da casa grande (mais para perto dos campos cobertos de primavera), quase a roçar nos trilhos da velha Maria Fumaça, que propriamente do imenso quintal que adornava a galeria em torno da construção principal. Todo cair de tarde, por volta das quatro horas, quando vinha descansar da estafa da escola primária, era naquele balanço de correntes enferrujadas, meu passatempo preferido. 

Vezes sem conta, me punha a balançar em ritmo coordenado e eloquente, esquecido de tudo, da vida, das lições chatas de matemática (de português não, adorava as aulas de redação), da professora de história, da merenda ruim e repetida, dos colegas brigões e dos castigos impertinentes com joelhos ao milho (rosto colado à parede), ou quando, por qualquer besteira, extrapolava além da conta, entrava em cena, a admoestação endossada pela abusada e temida palmatória. Naquele vai e vem mavioso, algo bom e sensível espantava para as colinas verdes e adornadas de esperança, as intempéries e incertezas de meus dias memoráveis.  

Dava a impressão em minha desenvoltura espiritual, meus tesouros de astúcia e fertilidade de imaginação, que no “vai”  alcançava um futuro muito além das minhas possibilidades de menino sem dono. Como se, num repente, topasse com outro mundo paralelo e desconhecido, esmagando taciturnamente meus sonhos desordenados. Na verdade, era mais feliz o “vem,” porque novamente retrogradava, recuava no tempo, passava pela infância querida, batia os pés no meu chão vermelho e tudo, tudo como num passe de mágica, se transformava. 

Nessa conversão, voltava a ser criança outra vez. Dentro de mim, me sentia gente, apesar de morar com vovô João, senhorzinho encurvado pelo peso dos janeiros, seu rosto congelado sob as rugas, como o de um ser sem vida, entretanto, simples de alma e humilde de coração. Retinha dentro de sua fragilidade meu querido avô, uma paciência de Jó. Parecia um personagem saído de uma canção carnavalesca dos tempos do “ronca”. Na pele de um rei, me via poderoso, apesar de não ter mamãe por perto, papai ausente e separado dela, de não existir, tampouco, nenhum irmão da minha idade ou qualquer outra criança que me viesse fazer companhia. Embora prevalecesse essa lacuna, me aquilatava exaltado. De certa forma, fortalecido e solenizado. Como era bom estar de volta ao aconchego familiar! Vovó Martinha, entrincheirada nas suas horríveis dores de coluna, não regateava a atenção para comigo. 

Sinto, por todas essas coisas, uma falta tremenda de seus pães quentinhos, do café feito na hora, de seus doces, da sua comida no fogão à lenha. Por volta das oito horas, logo depois do jantar, tendo por companhia a lareira, vovô João, acomodado em sua espreguiçadeira, fazendo prevalecer a sua imaginação, botava pra fora histórias fantásticas, inventadas, contos classificados no prodigioso fichário que se transformara a sua memória.  Hospedeiro aos extremos, lhano e sociável, agarrado a esses enredos de espantos crescentes, criavam vida e forma, em suas palavras, bruxas e príncipes, fadas encantadas e cinderelas que se viam presas em castelos, por mãos de homens de corações maus, que transportavam criaturas inocentes em carruagens vermelhas, com cavalos de duas cabeças para um planeta desconhecido, cuja entrada ficava numa caverna, em meio da floresta densa e intocável...

Nesse retornar, me sentia envolvido pelo calor daqueles que me cercavam de carícias e afetos. Esses mimos se faziam quase opressivos, contudo, dentro de uma ansiedade que não chegava a ser tirana. Tarde da noite (não poderia me esquecer desse detalhe), meu Deus do céu... os vagalumes do campo vinham enfeitar a sacada, onde me sentava antes de dormir, para espiar longamente o tempo. Tinha a impressão de que o céu caía inteiro do infinito e se postava, vencido, aos meus pés descalços de pobreza. Apesar dessa desproteção, eu era capaz de viver, numa única existência, uma série de outras realidades num percurso que se me abria com infinitas sucessões.  

Como se fosse o apertar de um gatilho de uma arma poderosa, quebrava o marasmo, algo parecido com uma bala zunindo sons estranhos, libertando as vozes eufóricas dos sapos enterrados no brejo, dos grilos perdidos nas folhas das árvores e fazendo voar, num deslocamento pesado, os morcegos irrequietos que durante o dia dormiam negligentes e omissos na hospedagem do monjolo. Esses fatos, em conjunto, provocam uma espécie de explosão momentânea. 

Em mil pedaços me reparto agora, me desdobro, me compartilho. Ao fazê-lo, me vejo correndo feito guri daninho, de um lado para outro do passadiço. A todo custo, pretendo reter a noite, com todos os seus segredos. Guardar tudo numa caixinha de madeira velha, que mantenho escondidinha debaixo de minha cama. Porém, as mãos trêmulas de moleque encapetado não me permitem tal façanha.  Agora, quando passados tantos e tantos janeiros, percebo, com certa tristeza, todas essas coisas se foram, se perderam, sumiram no abismo imensurável e não volta mais. Abobalhado, de queixo caído, me questiono: por Deus, todas essas relíquias para onde foram? Em que parte de mim está escondida aquela quadra risonha que fazia parte do meu dia a dia? Essas indagações giram em minha cabeça no ritmo de um motor sendo acionado numa aceleração sôfrega. 

Talvez seja por isso, que às vezes, na minha saudade, angústia imensa como um mar proceloso de encontro a restos de um naufrágio, recorde a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo…

Como é bom, como faz bem viajar ao passado! Encontrar o chão de terra vermelha (nele o pomar de laranjas e as bananeiras), entremeado entre as duas velhas montanhas rochosas que os dominavam do alto. De roldão, o abacateiro florido onde eu subia e rasgava as calças. Havia também, as galinhas, os patos, marrecos e porcos que vovó Martinha juntava no terreiro, quando saia à porta da cozinha, sem deixar de lado as pedras e bugigangas rejeitadas que colocava nos trilhos dos trens que cortavam a herdade...

Nessa minha agonia imorredoura e atroz, sempre falta o velho balanço, com seu barulho tênue que ficava esquecido nos fundos do quintal. Essa peça enferrujada, que me fazia sentir mais criança que o moleque peralta existente dentro de mim. Cadê o velho balanço? Em que cantinho oculto de minha alma, em que desvio da minha lembrança, em que atalho nesse meu agora ele se quedou adormecido e estático? Indubitavelmente, era nesse velho balanço que viajava para o futuro. 

No mesmo passo, montado nele, andejava desenredado. Roubava, com uma só mão segurando a corrente, o espaço distante, as nuvens que voavam baixinhas, o sol gostoso, o ar mormacento que respirava o vento ameno que tocava nas folhas, e também o calor que aquecia meus cabelos. Confortavelmente sentado nesse brinquedo, acomodado com todas as minhas quimeras e esperanças, a cabeça jogada para trás, roubava com arrojo o azul mavioso do infinito e, de contrapeso, a paz enternecedora dos olhos de Deus para enfeitar os caminhos incertos e desconhecidos da minha louca imaginação.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Aparecido Raimundo de Souza. Travessuras de Mindinho e Fura—Bolos (Textos para se ler dentro do ônibus escolar). Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing