sábado, 13 de junho de 2009

Jardel Estevão Barbosa Silva (O Perfume)


Conto vencedor do Concurso Literário do Cinqüentenário da Academia Campinense de Letras, categoria contos, em 2007.

Desde a morte de Maria Clara, comecei a cultivar o estranho hábito de passear no shopping, sem objetivos, sem tempo marcado e sem a correria que, por anos, dominou minha vida a cada segundo superficialmente vivido. Apenas andava. Talvez essa fosse uma forma de fugir das marcas tatuadas em minha casa, em meus costumes e em minha alma, que apenas meio século de convívio consegue impregnar. No ambiente fechado, observava o festival de aromas misturados naquela Torre de Babel contemporânea. Meu corpo, já cansado, inexplicavelmente buscava em meu âmago a energia necessária para continuar aquela rotina, mesmo contra a vontade de meus filhos, sempre preocupados. Minhas pernas eram asas que, a cada manhã, batiam em direção ao templo sagrado da superficialidade, buscando um sol artificial, mas igualmente luminoso.

Em uma tarde de verão, caminhava muito distraído, embriagado com questionamentos e reflexões existenciais quando, de repente, senti aquele perfume único, que havia se destacado da multidão para ser absorvido por minha alma adormecida. Foi como se uma força absoluta me agarrasse no abstrato universo das reflexões, no qual eu passeava livremente, e me trouxesse instantaneamente àquele shopping, naquela cidade, naquele ano, naquele dia, naquele segundo. Parei de andar, confuso, vivenciando um momento de silêncio e curiosidade, como a criança que vê o mar afastar-se e, de repente, vislumbra boquiaberta a onda gigantesca que se aproxima. Poseidon, supremo, enviara aquela onda aromática que invadiu a praia, destruiu a muralha defensiva do forte que construí em tantos anos de trabalho e despertou uma memória há tempos não estimulada.

Na dualidade posta entre a realidade atual seca e o passado que vinha em forma de mar, resolvi mergulhar rumo ao esquecido. Lembrei de minha infância, quando passava as férias de verão na casa de minha avó, cuja vizinha tinha uma linda neta, chamada Manuela, que cultivava o mesmo hábito. Eu e Manuela vivemos muitas férias juntos, brincávamos o dia todo e, aos poucos, um sentimento ingênuo passou do branco ao rosa e do rosa ao carmim.

Por um segundo, voltei à superfície em forma de shopping, respirei e retornei aos mistérios da memória como a baleia que, mesmo precisando de ar, precisa também voltar às profundezas.

Senti o gosto do bolo de fubá de minha avó e seu cheiro, que caminhava até o quintal e nos hipnotizava em cantos de sereia aromáticos, os quais nos conduziam ao chá da tarde.

“Será que era ela?”. Havia voltado novamente à superfície, agora como o golfinho que salta das águas e pode, por um instante, flutuar entre o sol e o mar. Olhei para trás e vi uma senhora caminhando com uma jovem em sentido oposto ao meu. Sem pensar muito, passei a segui-las, mas, com a ação da gravidade, voltei ao oceano.

Estávamos agora brincando nas árvores do bosque do bairro, após uma chuva passageira. O vapor verde e cálido que nos atingia trazia um cheiro único, vinculado eternamente ao primeiro toque de nossas mãos. Lembrei das cartas que começamos a trocar durante o ano, aguardando o verão que sempre demorava tanto a chegar. Lembrei do aroma do lago em que assistíamos ao pôr-do-sol, também eternizado pelo nosso primeiro abraço e pelas reações até então desconhecidas que ele provocou em nossos corpos.

Na superfície, a senhora havia parado em uma loja. Nas águas, lembrei que o aroma de Manuela era único, pois ela havia dito que misturara três tipos diferentes de perfume em busca de um cheiro só seu. Realmente conseguiu isso, pois eu nunca mais havia encontrado algo semelhante, até aquele dia. Do perfume, caminhei à lembrança da guerra que chegou e do último verão que passei com ela. Foi muito triste, com cheiro de despedida, pois sabíamos que a guerra era algo cruel. Sem conhecer direito os sentimentos, tínhamos a certeza de que precisávamos um do outro. Em uma tarde triste, ela furou nossos dedos com um espinho do parque (como havia visto em um filme) e disse que, se misturássemos nosso sangue, viveríamos para sempre juntos, um dentro do outro. Aquele cheiro de sangue somou-se ao aroma de seu semblante, que pude sentir bem de perto, em nosso primeiro e único beijo.

Quando voltei à superfície, percebi que as imagens haviam embaçado e, ao piscar, não pude conter duas lágrimas de criança percorrendo a face já enrugada. Mesmo assim, resolvi voltar às profundezas...

Após o beijo, eu havia pressionado os dedos polegar e indicador para conter o sangramento e, levando-os ao peito, disse “para sempre juntos”. Ela fez o mesmo e eu me lembrava perfeitamente daqueles lábios jovens pronunciando palavras tão carregadas de afeto. Após aquele verão, houve a guerra. Nossas famílias mudaram várias vezes de endereço e a mútua imaturidade nos fez perder contato. Os anos passaram e a vida seguiu seu curso natural.

Uma instantânea falta de ar trouxe-me fortemente à superfície com a pergunta que gritava em minha mente: será que era ela? Vi que a jovem havia entrado em uma loja enquanto a senhora estava sentada em um banco do lado de fora: aquele era o momento! Tremendo, caminhei em sua direção guiado pelo perfume, que se tornava mais intenso a cada passo. Ainda de longe, vi que não havia alianças em seus dedos: a sorte lutava ao meu favor! Caminhei mais alguns passos e sentei ao seu lado.

Ela olhou para mim por um único instante e me cumprimentou movimentando o rosto, educadamente, como se faz a um desconhecido. Naquele único momento em que pude olhar para seus olhos, toda a realidade foi alterada. O brilho azul levou–me a um último mergulho, em que vi exatamente a mesma cor refletindo o sol daquele último verão, instantes antes do beijo. A cor era a mesma, o brilho era o mesmo, o perfume era o mesmo: senti que estava realmente diante de meu primeiro Amor.

Saltei com todas as minhas forças das águas em direção ao sol, voltando à realidade.
Meu coração, eufórico, dançava inebriado por aquele perfume de que tanto sentiu falta.
Uni meu polegar ao indicador e, levando-os ao peito, disse a frase daquele verão.

A senhora levou um aparente susto e parou de respirar por alguns segundos, na certa mergulhando nas mesmas profundezas das quais eu havia acabado de sair. Vagarosamente, virou seu rosto para o lado, exibindo os olhos arregalados e seu semblante lívido. Mais alguns segundos passaram até que ela mostrou um surpreendente sorriso: o mesmo sorriso que eu tão bem conhecia! Naquele momento supremo, percebi que eu havia saltado das águas não mais com nadadeiras, mas agora com asas! Despedi-me do mar e olhei para o céu, de onde pude sentir o caseiro aroma de meu então antigo, atual e futuro lar.
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Sobre o autor:
Jardel Estevão Barbosa Silva é formado técnico em eletro-eletrônica, cursou faculdade de psicologia, e, além de poeta, é também contista. Presidente do Grupo CRIA Literária, em Campinas-SP. Foi premiado em diversos concursos, inclusive melhor ensaio nos 10ºs Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana – Portugal, em 2006, melhor conto nos 9ºs Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana, Portugal, em 2005, 2º Lugar no V Prêmio Escriba de Contos – Piracicaba (SP) e primeiro lugar no Concurso Nacional de Poesia promovido pelo CBE (Clube Brasileiro de Escritores) – São Paulo, em 2004.


Fontes:
– Revista da ACL (Academia Campinense de Letras). – Ano nº 1 • Abril/2007 – pag.7-9.
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– Imagem do perfume = http://blog.cancaonova.com/

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