sábado, 19 de abril de 2008

Carmo Vasconcellos (A Minha Terra)

Maria do Carmo Fernandes de Vasconcellos Figueiredo, é natural de Lisboa, Portugal. Nasceu sob o Signo Gémeos. Desde sempre cultivou a paixão pela leitura e pela escrita. É autora de um livro de poemas - "Geometrias Intemporais", publicado no ano 2000. (Vega - Editora - Lisboa - Portugal).

E-Books: "O vértice luminoso da pirâmide" (Romance, 2 Volumes), "Rompendo amarras" e "Memorando de fogo" (editados em Out.º, Dez.º/2005, e Jan.º 2006. "Despida de segredos", "Luas e marés" E "Sonetos" (agendados para Fev.º, Abril, e Maio/2006 - (Poemas), editados por Del Nero Virtual Bookstore.http://www.delnerobookstore.com/bibliotecas_virtuais/carmo_vasconcelos

Participante em vários Jogos Florais teve o privilégio de ganhar numerosos prémios e menções honrosas. É membro da Associação Portuguesa de Poetas (onde já integrou os Corpos Directivos) e do Cenáculo Literário Marquesa de Valverde, nos quais já colaborou como júri de concursos literários. Participante assídua dos encontros da Associação Fernando Pessoa, em Lisboa, aí foi distinguida com um trabalho de sua autoria, intitulado "A Fase Mística de Fernando Pessoa".

Amante da Filosofia e da Psicologia, eterna buscadora, estudante de esoterismo e misticismo, é membro da Ordem Rosacruz-AMORC (Grande Loja do Brasil), onde teve a honra de ser nomeada "Mestre Auxiliar" e, mais tarde, indigitada para "Mestre" do Capítulo de Lisboa, que ajudou a inaugurar em 1979 (cargo que não aceitou). Entre outras, proferiu uma palestra na Livraria-Galeria Verney, em Oeiras, (Portugal) que teve por tema "O Homem e O Universo" e recentemente na Net (no Grupo EcosdaPoesia) uma conferência ao vivo seguida de debate, intitulada "Reencarnação, Carma e Evolução" http://groups.msn.com/ECOSDAPOESIA/conferencias.msnw

A par da sua escrita tem-se dedicado à tradução e revisão de obras literárias portuguesas e estrangeiras. Participante de várias antologias, as mais recentes:
"A Nossa Antologia" (Associação Portuguesa de Poetas/Lisboa-Portugal/2005)
"O Futuro Feito Presente" (Ecos da Poesia/Abrali - S.Paulo-Brasil, Abril/2005
"Terra Lusíada" (Projecto Cultural/Abrali)- S.Paulo-Brasil/Julho2005
"Dois Povos Um Destino" (Ecos da Poesia/Abrali-S.Paulo-Brasil, Abril/2006
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A MINHA TERRA
Em Lisboa eu nasci
E digo de brincadeira
Desta cidade altaneira
"Prá terra" nunca parti...

Sou alfacinha da gema
Lusitana com vaidade
Pois nasci numa cidade
Que se veste de poema
Cheira a goivo e alfazema
Tem as cores do colibri
No mundo que percorri
Não encontrei outra igual
Seu porte é nobre e real
Em Lisboa eu nasci

Foi nela que vi o rosto
Da santa que me deu vida
E onde os seus olhos à ida
Também fechei com desgosto
No seu sal e no seu mosto
Criei a força guerreira
Desta gleba justiceira
Nela sorri e chorei
E o primeiro amor beijei
E digo de brincadeira

Que sou filha dos sem-terra
Pois nas férias de que gosto
À terra doutros me encosto
Seja no mar ou na serra
Mas cedo a saudade berra
Para voltar à soleira
Postar os olhos à beira
Das gaivotas em voejo
No verde ondular do Tejo
Desta cidade altaneira

Amo o seu cheiro sem par
Sua luz que me ilumina
É musa que me fascina
Pois tem vozes de avatar
Poesia a me chamar
Desde que me conheci
E ao seu fado me cingi
Lisboa do meu amor
Jamais lhe dei essa dor
"P´rá terra" nunca parti
Nota: "Ir prá terra"= ir de férias ou partir de vez para a Terra Natal

Fonte:
Portal Varanda das Estrelícias http://www.joaquimevonio.com/

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense - Parte II)

Outros contistas, ou poetas e romancistas que também se aventuraram a escrever contos na época do Centro Literário, são:

Francisca Clotilde (Tauá, 1862-Fortaleza, 1932) reuniu suas estórias curtas numa Coleção de Contos, saída a lume em 1897, com prefácio de Tibúrcio de Oliveira. Deixou também o romance A Divorciada. Montenegro observa que nas narrativas da escritora “os assuntos são tratados com bastante trivialidade”.

Ana Facó (Beberibe, 1855-Fortaleza, 1922), romancista, contista, teatróloga, poetisa e memorialista, deixou Minha Palmatória, livro de histórias curtas, e outros.

José Carlos Júnior (Paraíba, 1860-Fortaleza, 1896) pertenceu à Padaria Espiritual, ao Clube Literário e à Academia Cearense, da qual foi um dos fundadores. Deixou poemas e contos esparsos. Na lição de Braga Montenegro, os contos de José Carlos Júnior são “todos sem maior valia, de um rudimentarismo de expressão em nada coadunável com sua elevada cultura lingüística”.

Rodolfo Teófilo (Bahia, 1853-Fortaleza, 1932), também membro da Padaria, escreveu “contos científicos”, como informa Sânzio. Publicou inúmeras obras, entre elas o romance A Fome. Braga ensina: As composições curtas de Rodolfo Teófilo “conservam uma sobriedade de estilo bastante louvável para o tempo”. Sânzio, no entanto, acredita que o autor do romance Brilhantes não chegou “a ocupar a primeira plana no terreno do conto”. As peças estampadas no jornal A Quinzena foram enfeixadas em volume sob o título Ciências Naturais em Contos (1889). Assevera, ainda, o estudioso da Padaria Espiritual: “Posteriormente, irá Rodolfo Teófilo reunir outras páginas de ficção num livro a que dará o título da narrativa inicial, ou seja, O Conduru (1910)”.

Da mesma época do Clube Literário é um dos maiores nomes da literatura cearense, Domingos Olímpio (Sobral, 1850-Rio de Janeiro, 1906), o criador do romance Luzia-Homem, autor de diversas histórias curtas, estampadas em jornais de Belém, Pará, e do Rio de Janeiro. Braga Montenegro se refere a uma “produção abundante e já destinada a compor um volume” de contos, o que Sânzio desconhece. Menciona apenas “O Redivivo”.

Passando à Padaria Espiritual, são lembrados alguns nomes. O primeiro deles é Antônio Sales (Paracuru, 1868-Fortaleza, 1940), poeta, romancista (Aves de Arribação), teatrólogo e contista. Considerava-se o idealizador da Padaria Espiritual.

Eduardo Sabóia (Fortaleza, 1876-1918), autor de Contos do Ceará (1894), com introdução de Antônio Sales, pertenceu à Padaria e ao Clube Literário. É “o mais representativo” contista deste grupo, na opinião de Braga Montenegro.

José Carvalho (Crato, 1872-Rio de Janeiro, 1933), “estudioso do Folclore e da História”, “cultivou a ficção e a poesia descritiva ao tempo da Padaria” (Sânzio). Teve impresso em 1897 Perfis Sertanejos, de contos, além de outras obras.

Artur Teófilo (Granja, 1871-Fortaleza, 1899) é autor de várias composições ficcionais curtas. “Contista, de feição realista, divulgou várias produções suas pelo jornal da Padaria, como ‘A morte da avó’, ‘Tísica’, ‘O exame primário’ e ‘O caso do sargento’” (Sânzio). Entre os contistas da Padaria Espiritual é ele, talvez, o nome mais singular. Braga Montenegro e Sânzio de Azevedo lhe dão destaque. Para o Barão de Studart, trata-se de “um dos mais talentosos moços da Padaria Espiritual, salientando-se como conteur”. E acrescenta Sânzio: “Os contos de Artur Teófilo são o que de melhor no gênero encontramos nas páginas d’O Pão”.

Lopes Filho (Fortaleza, 1868-1900), “autor do primeiro livro simbolista cearense, Phantos (1893)” (Sânzio), também escreveu histórias curtas.

José Maria Brígido (Itapipoca, 1870-Paranaguá, Paraná, 1923) teria deixado inéditos os livros Dilúculos, de poesia, e Contos (Sânzio).

Cabral de Alencar (Baturité, 1877-Fortaleza, 1915) “publicou contos e fantasias no jornal da Padaria” (Sânzio), à qual pertencia. Na revista Fortaleza, em 1907, estampou “Expiação”, “no qual sobressaem a beleza artística, a expressão quente e vibrante, a intuição psicológica” (Dolor Barreira).

José Nava (Fortaleza, 1876-Rio de Janeiro, 1911), pai de Pedro Nava, escrevia contos, fantasias e poemas. Pertenceu à Padaria Espiritual, segunda fase.

Antônio Bezerra (Quixeramobim, 1841-Fortaleza, 1921), do Clube Literário e da Padaria. Mais dedicado à poesia, depois à História e à Geografia, também escreveu narrativas curtas.

Ulisses Bezerra (Arneirós, 1865-Fortaleza, 1920), da Padaria, publicou peças ficcionais curtas em jornais e teria deixado “inédito um volume de crônicas e fantasias”, intitulado Páginas Soltas (Sânzio).

Roberto de Alencar (1879-1898) também escrevia contos. Deixou inédito o livro Mignones.

Ainda no final do século 19 surge o Centro Literário, onde despontam alguns contistas:

Leonidas e Sá, autor de “O Caninha Verde”, estampado no primeiro número do jornal Iracema.

Viana de Carvalho, que publicou no mesmo periódico “A Lição de Italiano”.

Soares Bulcão (São João de Uruburetama, 1873-Fortaleza, 1942), escreveu poemas, estudos sobre política e história e alguns contos. Dolor cita “A prece do Jaguaribe”, “O doido do Barriga”, “O fratricídio de Pedra d’Água”, “O dobrado”, “Desiludido”, “A cruz das almas”, “O enforcado de Itaitinga” e “O doido do Capeba”, alguns deles publicados na revista Iracema, de 1896.

Quintino Cunha (Itapajé, 1875-Fortaleza, 1943), poeta e contista. Autor do livro Diferentes (1895) e outros de poesia.

Pedro Muniz ou Moniz (Aracati, 1866-Fortaleza, 1898), poeta, crítico literário e contista, é autor de dois livros de poesia, uma novela e contos. Estampou no Iracema “A Flor da Grinalda” e “Estupro”.

Fernando Weyne (Paraguai, 1868-1906) viveu, escreveu e morreu no Ceará, tendo deixado vasta obra literária, embora, no dizer de Sânzio, no ensaio O Centro Literário, de 1973, “de sua bagagem literária, numerosa e variada, apenas foi publicado, ao que tudo indica, um livro de contos, Miudinhos (1895)”.

Papi Júnior, nascido no Rio de Janeiro, em 1854, escreveu toda a sua obra no Ceará, onde faleceu em 1934. Braga assinalou: “Papi Júnior, cujo estilo revesso, tumultuário e erudito, tanto prejudicara um grande romance como O Simas, escreveu contos de contagiante emoção artística, destacando-se entre eles o intitulado “Cruz das Malvas”, premiado num concurso em São Paulo, que sugere a riqueza ambiencial das melhores páginas de Bret Harte”. Quatro de suas histórias curtas foram reunidas no livro Contos, publicação da Academia Cearense de Letras, 1954. As narrativas reeditadas são “As Pastilhas do Imperador”, “A Rosa do Curu”, “A Partida” e “Os Exorcismos”. No prefácio (sem autor nomeado) está anotado: “A sua capacidade descritiva é uma riqueza, quase uma orgia de palavras, que chegam exatamente no momento e se enluvam na descrição, como se fosse mágico pincel traçando as linhas e as cores mais fiéis do retrato ou da paisagem – acentuou Raimundo Girão. Às vezes o estilo se rebusca e encrespa, mas não vai ao abuso, antes conduz o descritivo à desejada acentuação, num calidoscópio de deslumbramento. Quer na tradução das situações psicológicas, intimamente humanas, dramáticas ou felizes, quer no apanhar o natural, trazendo aos olhos do leitor toda a exuberância dos panoramas ou das coisas que descreve”.

No dizer de Sânzio, ele “não chegou, em nenhum dos seus contos que conhecemos, à altura de sua obra-prima, o romance O Simas, de 1898, o que não significa seja apagado seu vulto no panorama do conto de nosso Estado”.

Também escreveram contos naquele período:

Frota Pessoa (Sobral, 1875-1951), poeta, polemista, pedagogo, sociólogo e contista, teve o primeiro conto premiado em concurso da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, onde morava, no final no século 19. (Girão) Publicou “Romântica”, no Iracema.

Álvaro Martins (Trairi, 1868-1906), um dos criadores da Padaria e do Centro Literário, poeta, editou alguns livros. No jornal Iracema teve publicado “O Cravo Roxo do Diabo”.

José Gil Amora (Fortaleza, 1883-1920), poeta e contista, “escreveu contos de sabor à Álvares de Azevedo” (Girão). Não deixou livro publicado. Na opinião de Dolor Barreira, era “dotado de notável pendor para essa modalidade de literatura amena, especialmente na sua feição humorística, publicou, naqueles referidos anos, os seus contos Uma Entrevista dos Diabos, O Recitativo (conto cearense), O Tuberculoso, O Carnaval, Um como há muitos e O orador”, insertos no jornal A Jangada.

Tomás Lopes (Fortaleza, 1879-Suíça, 1913), cronista, poeta e contista, autor de livros de poemas, crônicas, um romance e quatro volumes: Histórias da vida e da morte (1907), Um coração sensível (idem), Caras e corações (1910) e O Cisne Branco (1918).

Oscar Lopes, irmão de Tomás, nasceu em Fortaleza (1882). Teatrólogo, poeta, conferencista e contista, escreveu diversos livros, entre eles os volumes Livro Truncado (1912), Seres e Sombras (1920) e Maria Sidney (s/d). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1938. (Antologia Cearense, Raimundo Girão)

Manuel Miranda (Granja, 1887-Rio de Janeiro, 1955), autodidata, fundou jornais, nos quais publicou versos e narrativas. Deixou os livros Ceará por Dentro (contos regionais), Cousas que Acontecem (1926) e Diário de Geny. Sua prosa ficcional “é de feição e cunho realista”, escreveu Dolor Barreira. E completa: “Pode mesmo dizer-se que eram casos da vida real – da vida de cada dia –, fatos por ele testemunhados e vividos, que o contista retratava e nos transmitia”.

Olímpio da Rocha (Fortaleza, 1868) colaborou em A Quinzena e publicou livros de poemas e pelo menos um de contos: Cousas do Meu Tempo. (Girão)

Soriano Albuquerque (Água Preta, Pernambuco, 1877- Fortaleza, 1914), poeta, escreveu Volatas.

Álvaro Bomílcar (Crato, 1874-Riode Janeiro, 1957) é autor do livro Graciosa (1901), composto de um conto e poemas. (Dolor)

José Pereira Martins publicou Isaura, de contos, em 1898. (Dolor)

Marcolino Fagundes mostrou histórias curtas no Iracema: “A Louca do Rochedo”, “O Xavier (conto humorístico)” e “Bolhas de Sabão”.

Joaquim Carneiro expôs no mesmo jornal “Visão de Salomé” e “Laranjeira”.

Francisco Carneiro, autor de “Alma Pura”, apresentado no jornal Iracema.

***

O nome mais conhecido na Literatura Cearense no período da Padaria Espiritual é o de Adolfo (Ferreira) Caminha. Nasceu em Aracati, no dia 29 de maio de 1867, filho de Raimundo Ferreira dos Santos Caminha e Maria Firmina Caminha, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1897. Aos 13 anos de idade é levado para o Rio de Janeiro, matriculando-se, três anos depois, na Escola de Marinha. Em 1887 publicou na Gazeta de Notícias “A Chibata”. Deste ano são os seus primeiros livros: Vôos Incertos, de versos, e Judite e Lágrimas de um Crente, de prosa de ficção. Regressou a Fortaleza no ano seguinte e em 1889 ajudou a fundar o Centro Republicano. Dois anos depois criou a Revista Moderna e no ano seguinte participou da fundação da Padaria Espiritual. Regressou ao Rio de Janeiro no final de 1892 e um ano depois fez editar seu primeiro romance, A Normalista. Outro livro, No País dos Ianques, é de 1894. No ano seguinte saíram do prelo Cartas Literárias, de crítica, e Bom-Crioulo, romance. Em 1896 escreveu Tentação, seu último romance. Deixou algumas obras inéditas, entre elas Pequenos Contos. Sua mais completa biografia é de autoria de Sânzio de Azevedo: Adolfo Caminha (Vida e Obra). Sempre lembrado como o criador de romances exponenciais do naturalismo, como A Normalista e Bom-Crioulo, escreveu peças ficcionais de alta qualidade. De seus contos somente 11 foram reunidos em livro, em 2002, por Sânzio de Azevedo, sob o título Contos, pela Editora da UFC.

Segundo Sânzio, no ensaio “Uns Poucos Contos”, do livro Adolfo Caminha (Vida e Obra), o autor de Tentação teria deixado 15 contos, informação colhida em Gastão Penalva: “Velho Testamento”, “A mão de mármore”, “Pesadelo”, “Minotauro”, “O exilado”, “Flor do vício”, “A última lição”, “Estados d’alma”, “No convento”, “O beijo”, “Elas”, “O grumete”, “Joaninha”, “Amor de fidalgo” e “Vencido”. Destes, somente 11 foram reunidos em livro, em 2002, por Sânzio de Azevedo, sob o título Contos, pela Editora da UFC, precedido de um ensaio do mesmo estudioso: “Onze Contos de Adolfo Caminha”.

Na primeira narrativa o protagonista divide o espaço e o tempo com Virgínia. O espaço do presente (momento da narração) é uma sala, um atelier de escritor, e nele um quadro pintado, representando um busto de mulher. O protagonista fuma charuto, vê a pintura e relembra momentos de sua juventude. Num segundo momento as duas personagens passeiam, a cavalo, pelo campo. Virgínia se sente mal, tem febre, está prestes a morrer. No entanto, o narrador surpreende o leitor, ao revelar – no desfecho – tratar-se de um sonho.

Dos onze contos, apenas três são narrados na primeira pessoa; os outros, na terceira: “Minotauro”, “O Exilado”, “A Última Lição”, “Estados d’alma”, “No Convento”, “Elas...”, “Joaninha” e “Amor de Fidalgo”. A primeira pessoa é sempre homem, como o sonhador apaixonado de “Velho Testamento”, o narrador-testemunha de “A Mão de Mármore” e o também sonhador de “Pesadelo”. As mulheres de Caminha são sempre sofridas. Também os homens são sofridos, atolados no passado, nas dores do amor. Como o Plínio Varela, de “Amor de Fidalgo”, abandonado pela amante e no dia seguinte encontrado “no meio da rua, sem pinta de sangue no rosto, sujo de lama, imundo, como o mais vil dos bêbados”. Elas morrem cedo, doentes, enfraquecidas, como a Virgínia da primeira marrativa, que, num passeio à floresta, diz sentir “um vulcão dentro de mim” e, logo depois, o narrador a vê com “um brilho estranho nos olhos, fria, gelada...”

Amor e morte caminham juntos, fazem parte do mesmo enredo, às vezes macabro, como em “A Mão de Mármore”. Talvez se possa classificar também macabro “No Convento”, com a morte misteriosa do noviço Oscar de Miranda, que enlouquece e morre a jorrar sangue pela boca.

Quando não é a morte propriamente dita, é a sua antecessora: a desilusão amorosa a ferir a mulher de tristeza, solidão, num casamento feito de amarras, como em “Elas...”

O enredo no contista Adolfo Caminha às vezes é frouxo, esgarçado, como no “Minotauro”. Um triângulo amoroso como muitos outros, especialmente no romantismo. Já em “A Última Lição” o leitor se depara com um enredo mais rico, mais entrançado e, ao mesmo tempo, mais sutil, a lembrar o Machado de Assis de “Uns Braços”. Outras vezes nem se percebe enredo, como em “Pesadelo”. Um homem sonha (a história é o sonho ou o pesadelo do narrador) e é acordado pela mulher. O sonho, no entanto, é uma parábola: “a dura realidade dos filósofos é preferível ao sonho, ao sonho azul dos poetas...”

Algumas narrativas curtas de Caminha se situam claramente no Rio de Janeiro. No “Minotauro” o par Cipriano Gouveia e Nicota vivia numa casa no Engenho Novo, sob “o inconstante céu fluminense”, ele afastado do burburinho do centro da cidade, da rua do Ouvidor, “por onde nem sequer passava ao voltar da repartição”. Em “A Última Lição” o casal seguiu, em carruagem, para a Tijuca, onde foi morar. Em “Estados d’alma” Almeida contempla os morros de Santa Teresa, “coqueiros de longas palmas”, “todo esse admirável trecho da natureza fluminense”. E, na descrição da paisagem, vai revelando ao leitor a cidade maravilhosa: “Para lá dos Inválidos, n’outro plano mais elevado, por trás do cemitério de Catumbi, a vista atingia a ponta culminante de uma montanha angulosa e obtusa, varando a transparência do ar lavado: era o nariz do gigante que se vê do mar, o Corcovado, uma espécie de focinho de animal monstruoso farejando as nuvens...” E, já para o final da peça, volta o personagem a “contemplar a paisagem, o Corcovado, o Pão d’Açúcar, a igrejinha da Glória agachada por trás dos morros” (...). Em “Amor de Fidalgo” Plínio Varela instala Carolina Mendes num “esplêndido palacete em Botafogo”. Em outros o leitor poderá também perceber o ambiente da velha corte. Há, porém, “Joaninha”, ambientado no Nordeste, exatamente em Oeiras, Piauí. Leia-se a descrição: “S. José de Arouca, outrora Riachão da Magdalena, ficava a seis léguas de Oeiras, numa eminência, dominando, com o seu belo aspecto de arraial sertanejo, uma vastíssima extensão glauca de floresta virgem, e ao longe, diluindo-se gradativamente num crepúsculo de bruma, trêmulo e desmaiado, o perfil indistinto, o vago contorno da Serra Grande, quase perdida na distância, simbólica e misteriosa como uma esfinge do deserto.” Nas demais histórias Adolfo Caminha preferiu não deixar claro a localização das tramas.

Nessas narrativas há o predomínio da narração sobre a descrição e o diálogo. A narração inicia e conclui todas elas. Umas vezes são narrações de pequenos atos ou gestos. Outras, breves descrições psicológicas. Há também narrações entremeadas de descrições de ambientes. Em alguns casos o início da narração se dá no pretérito perfeito; em outros, no imperfeito.

Adolfo Caminha é narrador contido e fino, como também se observa em “A Última Lição”. Neste, do ponto de vista de narrador onisciente, a narração se faz em blocos superpostos de ações, sempre intercalada de breves e essenciais diálogos. A descrição de ambientes mais uma vez se dá com precisão, sem excesso de detalhes, suficiente para neles, ambientes, enquadrar as personagens.

Naquela peça que é quase um poema – “Pesadelo” – a narração se confunde com a descrição, ou não é uma coisa nem outra. Veja-se o primeiro parágrafo: “Crepúsculo de maio. Nevoento e triste, o feio aspecto da paisagem que meus olhos contemplam numa espécie de abstração enferma, lembra-me, – branca de neve – alvo sudário amortalhando gigantes”. Quase no final o narrador, já acordado, transcreve a única fala, que não é dele, mas da mulher (ausente no sonho): “– Acorda, preguiçoso, olha que é dia! Vamos, levanta!”

Os diálogos são breves e sempre em linguagem literária, muitas vezes erudita, de leitor dos clássicos. Como na primeira ficção, em que o narrador transcreve uma fala de Virgínia e dele: “– Sabes o que me parece isto? perguntei. – Isto o quê? – Este pedaço de floresta abrindo para o mar e nós dois quebrando a monotonia do verde? Faz-me lembrar a primeira página do Velho Testamento...” Mais adiante essa lembrança do paraíso levará o narrador a se referir às cenas do Jardim do Éden, quando Adão e Eva “pecavam no seio da natureza”. Mas tudo em Caminha é tenuidade, como em todos os realistas ainda eivados de romantismo.

Mesmo na composição nordestina, onde Joaninha, a filha do fogueteiro, se pronuncia uma vez, mesmo aí a fala não é a de linguagem oral. A moça, talvez analfabeta, fala assim: “– E o Sr. Vigário por que não vem a Arouca todos os dias?” E completa: “É um passeio... Este povo ama-o tanto...” É certo que somente mais tarde, quando do Modernismo e do Regionalismo, os narradores passaram a incorporar a linguagem oral, especialmente a do campo, nas falas dos personagens.

As descrições de Caminha também não são exageradas, nem extensas. São necessárias ou dão às composições um quê de poético, como se viu nas transcrições de linhas atrás. Assim se vê em “Minotauro”, na descrição do jardim da casa. A natureza em contraste com a cidade, talvez por influência do Eça de A Cidade e as Serras.

Há dois contos singulares no conjunto em estudo. Um, “O Exilado”, pode ser visto como uma narrativa de marinhista e estranha, de ambiente bem diverso daqueles das outras obras. E não somente o ambiente (uma ilha), como o enredo (um homem solitário e um cachorro). Além disso, subdividida em sete flashes ou episódios. A descrição física do protagonista, se é que se pode falar de protagonista, é feita com detalhes. Juan Herrera, o exilado espanhol, é um personagem lendário ou imaginário (em oposição a realista) na ficção de Adolfo Caminha. Também estranha é “No Convento”. E mais uma vez um ambiente diverso dos lugares da maioria dos contos: um convento de frades. O enredo é igualmente singular, embora ainda afeito ao tema predominante no contista – amor e morte. Porém um amor enlouquecido ou envolto em loucura. No entanto, a morte misteriosa.

O desenlace nas peças ficcionais menores (no sentido de extensão) do criador de A Normalista, quando o conflito se dá no terreno do sonho, é o que se verifica na maioria das ficções desse tipo, isto é, o sonhador acorda, como se pode verificar em “Velho Testamento” e “Pesadelo”, dando fim ao drama. Em “A Mão de Mármore”, com seu quê de tétrico, o epílogo, na voz do narrador-testemunha, é a constatação de lágrimas nas faces do protagonista diante da mão de mármore da amante morta. “Minotauro” chega ao fim em breve e irônica narração: “começou a chuviscar”, Gouveia, o marido, se retira do jardim, seguido de Nicota, a esposa, e do amigo Bandeira, braço dado a ela. Nada romântico, um tanto realista. O desenlace em “O Exilado”, já sem a presença do personagem, que, após ver agonizar o cachorro de estimação, saiu a caminhar, “como uma sombra que se esvai, entre as penedias da ilha”, leva o leitor a imaginar uma paisagem marinha que aos poucos se vai desfazendo. O apego à paisagem levou o contista a dar a “Estados d’alma” desfecho inaudito: o protagonista, ao saber da morte do pai, tem reação incomum (“sem uma lágrima no olhar e sem um gesto de dor”, voltou a contemplar a paisagem), e o narrador conclui o conto pintando o “vasto céu sem nuvens”. O final de “A Última Lição” é realista, embora com uns contornos românticos, assim como o de “Elas...” e “Amor de Fidalgo”. O desenlace de “No Convento” e “Joaninha” tem ares naturalistas.

A manipulação da linguagem nesses contos traz a marca do Adolfo Caminha de A Normalista, embora se saiba que no final do século 19 a história curta ainda fosse precariamente cultivada pelos escritores brasileiros, à exceção de Machado de Assis. Se Caminha não alcançou o grau de mestre na ourivesaria da narrativa curta, pelo menos nos legou estas poucas mas belas jóias.

continua...

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986

Ana Nobre de Gusmão (O clone do avô Jacinto)

O avô Jacinto ergueu-se com esforço, deu duas voltas à mesa e caiu redondo no chão, como se fulminado por uma arma invisível. Calculei que lhe tinha dado outra vez aquela coisa esquisita que o pusera tão diferente de repente e a minha primeira reacção foi aproveitar a situação para inspeccionar livremente o tesouro escondido debaixo da sua cama. Preparei-me para sair sorrateiramente da casa de jantar e subir silenciosamente as escadas quando um grito da minha mãe me paralisou — Paizinho – gritou ela a tapar a boca com as mãos — O que foi, paizinho?

Alertado pelo grito da minha mãe, o meu pai entrou a correr na casa de jantar, ajoelhou-se e encostou o ouvido ao peito do meu avô — O coração bate — anunciou — Chama uma ambulância, Teresa, é capaz de ser outra trombose, e diz à Rita que me traga um copo de água.

Pensei em lembrar-lhes que da outra vez que lhe dera aquilo o avô também ficara assim como morto uns momentos, e quis dizer-lhes que ia acabar tudo em bem, mas calculei que não me iam dar atenção nenhuma, ou que me mandariam calar, e achei melhor não dizer nada.

Muito pálida, a minha mãe segurou-me por um braço e arrastou-me para o corredor — Vai para o teu quarto — pediu num tom de voz sumido, irreconhecível.

Subi as escadas a correr, mas em vez de entrar no meu quarto continuei pé ante pé até ao quarto do avô Jacinto e à cautela abri devagar a porta, apreensivo com a perspectiva de poder sentir qualquer coisa estranha ou de ver qualquer coisa estranha o fantasma dele, o outro ele, a sua alma, uma luz difusa e misteriosa a pairar no ar, uma voz sussurrante, um gemido arrepiante, uma gargalhada sobrenatural, o cheiro indefinível da morte (como o cheiro do gato do vizinho que apareceu morto na garagem).

Mas não vi nem senti nada de estranho, o sol iluminava o cadeirão de cabedal onde antes daquilo acontecer ele se sentava sorumbático e inacessível a ler, a cortina ondulava ao sabor da leve brisa que entrava pela janela entreaberta, no ar pairava o vago cheiro a urina tudo era familiar, habitual e mais tranquilo entrei, levantei a franja da colcha e espreitei para debaixo da cama.

Desde que aquilo acontecera pela primeira vez que eu tinha a secreta convicção de que o avô Jacinto fora clonado por extraterrestres, mas que algo não correra como devia ou seja, se o corpo era o mesmo, embora um pouco mais trôpego, a sua mente rebelara-se e transformara-o num linguareiro mordaz e libidinoso, sempre a gabar-se das namoradas e das amantes que tivera e a meter-se com a Rita (a empregada entretanto contratada pelos meus pais para tomar conta dele), a chamá-la ao quarto por tudo e por nada, a ordenar-lhe que se chegasse mais perto dele com uma desculpa qualquer para poder apalpá-la, a pedir-lhe um beijo, ou a convidá-la para sair e outras coisas do género, graçolas brejeiras e isso.

Ela ria-se, mas depois à socapa olhava para mim e levava o indicador à testa que era como quem dizia que o coitado estava meio passado e não sei, se calhar até estava, mas a mim não me parecia. Cá na minha ele sabia muito bem quem era e o que queria, só que quem era e o que queria era agora diferente de quem fora e do que quisera antes de ser clonado. Como se o engano dos extraterrestres lhe tivesse dado a hipótese de uma segunda chance.

E eu, que nunca tivera uma existência significativa para ele, tornei-me uma das suas companhias favoritas (aliás, a única, se exceptuarmos a Rita). Aliciava-me com descrições pormenorizadas dos seus encontros amorosos, ensinava-me truques para me tornar irresistível a qualquer mulher, dava-me lições de anatomia e de psicologia feminina, explicava-me os sistemas contraceptivos, as doenças venéreas, os tipos de beijo e as posições no coito, tudo desenhado e esquematizado num bloco que tinha sempre ao alcance da mão.

— Vê lá se não está uma pantufa minha debaixo da cama — pediu-me um dia com um ar cândido — Não a consigo encontrar em lado nenhum.

Eu deitei-me no chão, levantei a franja da colcha e enfiei a cabeça debaixo da cama — Aqui só há revistas, avô.

E intrigado — São de quê? Posso ver?

Ele riu-se — Traz cá uma que eu mostro.

Tirei a que estava no topo da pilha, recuei de bruços até sentir que já não batia com a cabeça na trave da cama e olhei aparvalhado para a fotografia de uma morena mamalhuda e seminua estampada na capa da revista (e que ainda por cima parecia retribuir-me o olhar).

— Então, rapaz, estás a olhar para quê, traz cá isso — chamou ele impaciente.

E riu-se outra vez.

— Isto é um segredo que fica entre nós — avisou a abanar a revista com um ar ameaçador — E só tens autorização de ver as páginas que eu te mostrar não te quero para aí a folhear a teu bel-prazer e a topares com coisas que ainda não podes entender ou que possas interpretar mal.

A partir daí passei a entrar-lhe no quarto todas as tardes com um só fito — Chamaste, avô?

— Eu — perguntava ele a simular surpresa — Eu não, porque é que havia de te chamar?

— Pareceu-me — dizia eu.

— Não chamei — repetia ele.

E fechava os olhos a fingir que dormitava.

Eu não arredava pé e o jogo prolongava-se até ter finalmente coragem para perguntar:

— Posso ir buscar uma revista, avô?

Ele abria os olhos, sorria trocista e apontava para mim o dedo torto — Também me saíste cá um bom malandro, vá, vai lá buscar outra, mas já sabes, quem ta mostra sou eu.

E eu mergulhava debaixo da cama e escolhia uma ao calhas porque já as tínhamos visto todas pelo menos uma vez e, com as orelhas a arder e o coração a bater mais forte, depositava-lha nas mãos como se de um tesouro se tratasse.

Ele pousava a revista no colo, tirava os óculos, limpava as lentes ao casaco de malha, inspeccionava-as com um ar sério, voltava a empoleirar os óculos na ponta do nariz e só então começava calmamente a folheá-la — Como é que ela consegue pôr-se nesta posição – murmurava a abanar a cabeça - O raio da mulher deve ser contorcionista.

E eu, roído de curiosidade — Deixa ver, avô — Esta não — dizia ele a afastar a revista — Demasiado explícita para a tua idade.

Atento e de respiração suspensa, estiquei o braço e tacteei o soalho debaixo da cama quando ouvi a voz da minha mãe a meio das escadas — Vou meter um pijama, meias, roupa interior e a escova de dentes numa mala, nunca se sabe.

Levantei-me num sobressalto, corri para a porta e dei de caras com a palidez dela — O que é que estás aqui a fazer — perguntou desconfiada.

— Nada — balbuciei a encolher os ombros — O avô já acordou?

Ela olhou para mim e duas lágrimas rolaram-lhe pela face — Não — balbuciou — Por favor vai para o teu quarto, deixa-me aqui sozinha um minuto.

Com o aparato de nave espacial, a ambulância chegou pouco depois e da janela do quarto vi-o sair numa maca, tapado até ao pescoço por um cobertor tão cinzento como a pele do seu rosto.

Estupidamente acenei-lhe.

Vi o meu pai entrar na ambulância depois de olhar para cima e esboçar um sorriso contristado ao qual não eu correspondi.

A minha mãe voltou a subir as escadas e ouvi-a fechar a porta do quarto do meu avô à chave.

Depois entrou de mansinho no meu quarto e colocou as mãos nos meus ombros – O teu avô teve outra trombose – começou numa voz embargada, mas a emoção obrigou-a a calar-se a meio.

— Não te preocupes, mãe — pedi — Os extraterrestres clonaram-no mal da primeira vez e por isso têm de repetir.

Ela olhou para mim com os olhos vermelhos — Os extraterrestres — repetiu surpreendida a afagar-me a face.

Dez dias depois outro clone do avô Jacinto voltou para casa ou melhor dito, metade de um clone do avô voltou para casa porque a outra metade ficou para sempre em parte incerta, um lado do corpo descaído e a mente envolta numa espécie de torpor do qual saía de vez em quando para proferir numa voz arrastada e com inesperada vivacidade no olho mortiço — Rm rm rm — a esticar o braço bom e a apontar na direcção da cama.

E eu ia buscar uma revista, colocava-a no colo dele, tirava-lhe os óculos, limpava-lhes as lentes, voltava a colocar-lhos com cuidado e finalmente abria a revista e virava as páginas, uma a uma, devagar.

Às vezes o seu dedo torto seguia o contorno de uma coxa, de umas mamas, de umas nádegas — Rm, rm, rm, rm — proferia agitado, a tentar arrancar da mão da Rita o lenço de papel onde ela enxugava o fio de saliva que lhe escorria do canto mole da boca.
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Sobre a Autora:
Ana Nobre de Gusmão nasceu em Dezembro de 1952, em Lisboa. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e Design no ARCO. Vive em Portugal e na Suiça. Colabora regularmente nas revista "Elle Portugal" e na "Storm-Magazine". Sua obra encontra-se traduzida na Alemanha. Livros publicados:

Delito sem corpo - Editora Presença, 1996 (Prêmio Máxima Revelação)
Não é o fim do mundo – Editora Presença, 1996
Aves do paraíso – Asa Editora, 1997
Onda de choque – Asa Editora, 1999
Das tripas coração – Asa Editora, 2000
Até que a vida nos separe – Asa Editora, 2002
O pintor – Asa Editora, 2004

Fonte:
http://www.releituras.com/

Como Estudar

Métodos de Estudo

Muitas pessoas se dizem "estudantes", mas na verdade desconhecem o verdadeiro sentido da palavra ESTUDAR.

Estudar é Trabalhar !!!

Não é somente reler um texto na última hora, um dia antes da prova e depois de obter o retorno, em forma de notas baixas, reclamar para si mesmo: - Puxa! Eu estudei tanto!!!!

Estudar é ir à procura da Verdade !!!

A meta do estudante deve ser: chegar a aprender, enxergar com seus próprios olhos.

Quando uma pessoa estuda algo, ela chega a ter uma opinião própria sobre determinado assunto não dependendo de opiniões alheias para tirar suas conclusões.

Estudo é trabalho que requer Empenho, Dedicação e Perseverança

Mas afinal de contas: Como estudar?????

Existem algumas técnicas que auxiliam o estudante a alcançar seus objetivos.

Se estas técnicas forem seguidas, seguramente o sucesso será alcançado e o próprio aluno perceberá que pode ultrapassar seus limites...


Fator Externo

AMBIENTE

O ambiente propício para o estudo deverá ser:
- sossegado,
- com boa iluminação,
- sem música,
- com uma mesa - somente com os materiais básicos para o estudo para que não haja distração com outras coisas do tipo: fotos, revistas, etc,
- uma cadeira confortável (para se manter uma boa postura durante o estudo),
- um bom dicionário não pode faltar.

Fator Interno

MOTIVAÇÃO E AUTO DISCIPLINA

"Um homem sem objetivos não sabe para onde vai"

Um fator que determina o bom estudo é a vontade de querer saber mais, sem esta vontade o aluno não chegará a nenhum lugar. Para que isto aconteça o aluno deve saber onde quer chegar, enfim, ter os seus objetivos bem definidos!!!

A auto disciplina entra aí como um auxiliar do estudante que deve treinar-se para ter domínio sobre a fantasia, imaginação, emoções e impulsos.

A constância vence as impressões de falso cansaço que freqüentemente nos assaltam.

Planejamento e Organização

TEMPO

É importante que separe um tempo para estudar.

A escolha deste período é individual, pois cada pessoa tem os seus compromissos pessoais no decorrer da semana. Mas se faz necessário um empenho por parte do estudante para descobrir seus horários vagos e se dedicar ao estudo.
Descobrir os períodos de tempo vagos.

Selecionar aqueles períodos do dia em que você se sente mais "disposto"(Ex: há pessoas que trabalham melhor à noite, outros logo ao amanhecer...)

Separar pelo menos duas horas para estudo, mas, entre uma hora e outra descansar 15 minutos (saia do ambiente de estudo e faça algo para descansar a mente).

Somente em último caso estude mais que estas 2 horas porque é melhor que você tenha 2 horas de estudo por dia com uma certa freqüência ( por exemplo:4 vezes por semana) do que 4 horas em um só dia.

Anotações em Sala de Aula

As anotações em sala de aula são muito importantes para o estudo, pois elas são pessoais, ou seja, o aluno escreve com suas palavras o que está entendendo da aula, quando nós anotamos algo estamos usando não somente as memórias visual e auditiva. Quando escrevemos algo memorizamos mais!!!!!

Prepare um caderno para anotações ou utilize o próprio caderno da matéria a ser estudada, porque quando fazemos anotações em qualquer folha corremos o risco de perdê-la!!!

Crie o hábito de rever as anotações quando chegar em casa, ao revê-las podemos relembrar coisas importantes que deixamos de anotar durante a aula.

As anotações também podem ser feitas em forma de "MIND MAPPING"

Obs.: Estas anotações são muito úteis também para serem usadas durante: Palestras, Exposições de Trabalhos, Vídeos, etc.

Estudando em Casa

Com o hábito saudável de estudar com uma certa constância você nunca estará com muitas matérias "difíceis" para "tentar decifrar"!

Tudo será uma grande REVISÃO deixando o estudante mais despreocupado, pois ele tem o domínio da matéria!!!

1º Passo
Ler o conteúdo a ser estudado despreocupadamente.

2º Passo
Ler o conteúdo sublinhando o que você está achando mais importante no texto.

3º Passo
Fazer um questionário sobre o que foi lido. (lembre-se que este material é seu por isso tente abordar todos os aspectos do texto!!!! Não seja um traidor de si mesmo!!)

4º Passo
Fazer um "Mapa Mental" do material (observando cores diferentes para as ramificações)

5º Passo
Se houver exercícios para serem feitos a hora é agora. Depois de ter seguido todos estes passos você não encontrará dificuldades em resolvê-los

Dica de Aprofundamento

Muitos alunos ficam apenas com o que o professor aborda em sala de aula e por este motivo, muitas vezes, não chegam a compreender o conteúdo.

Uma dica legal para que o estudante finalmente se liberte e possa discutir e analisar os fatos com mais profundidade é a PESQUISA.

Muitas vezes atitudes simples nos ajudam a ter mais conhecimento sobre fatos e, por este motivo, ser vista como uma pessoa "interessada".

Levar para a sala de aula um recorte de jornal, ou de uma revista sobre o tema estudado é um modo simples de aprofundamento.

Quando a matéria requer exercícios, como por exemplo matemática, o estudante deve procurar em livros de outros autores exercícios diferentes, e a partir destes, o próprio aluno poderá criar os seus.

Fonte:
http://www.espirito.org.br/portal/

Como estudar sozinho

Aprender sozinho exige organização e perseverança. Abaixo, algumas sugestões de como preparar o ambiente de estudo e a cabeça para enfrentar livros e testes e chegar com tudo em cima no vestibular:

Seja um estudante sincero. Identifique os pontos fortes – aquelas matérias mais fáceis – e as dificuldades – disciplinas mais complexas.

Prepare o ambiente de estudo – pode ser no quarto, na sala, na cozinha, enfim, o lugar que você mais se sente à vontade –, deixando o local com boa luminosidade e bem arejado (agora que a temperatura fica mais elevada é melhor ter por perto um ventilador ou um aparelho de ar-condicionado).

Ao interromper o estudo, deixe um sinal específico para retomar a aprendizagem exatamente de onde parou, sem perda de esforço nem de tempo.

Escolha cadeiras confortáveis, que, depois de horas de estudos, não causem dores na coluna, nos braços e nas pernas. Ficar deitado ou recostado na cama pode causar problemas posturais.

Acostume-se a estudar no mesmo local e no mesmo horário.

Realize os estudos com duas intenções: aprender (primeiro objetivo) e recordar.

Inicie os estudos depois de pelo menos 10 minutos de relaxamento, período em que você deverá se concentrar em pensamentos e sentimentos equilibradores. Pense sempre positivo. Não brigue com a situação. O vestibular é uma realidade que deve ser enfrentada com disposição.

Evite movimentos e sons que tirem a concentração. Não é necessário se desligar totalmente do mundo – uma música, por exemplo, em volume mais baixo é sempre uma boa companhia –, mas resista a atender telefonemas, fique longe de conversas e evite barulhos repetitivos.

Se for necessário decorar algum conteúdo, procure ler em voz alta a matéria e com rapidez. Não se detenha em memorizar datas ou fórmulas.

Elabore seus próprios exemplos (ganchos), relacionando os conteúdos estudados. Pode ser até a associação de uma matéria com alguma música que você pode cantarolar até em um passeio no parque.

Aproveite o deslocamento em um ônibus ou o banho para repassar o que foi estudado.

Evite fixar-se em algum conteúdo ou exercício difícil até chegar a uma resposta. Prefira seguir adiante, retomando esse tema complexo após ter passado por outros assuntos que possam ajudar a resolver o impasse.

Não queira se transformar em um super-herói. Identifique os seus limites.

Faça esquemas, gráficos, mapas, resumos sempre que desejar dominar um conteúdo extenso.

Procure ler jornais e revistas e assistir a programas de rádio e TV. Se tiver Internet, realize pesquisas que possam servir como entretenimento e instrumento de aprendizagem.

FONTE:
Simone Janner Grohs (psicóloga) e Sílvia Silveira da Silva (arte-educadora), do Centro de Pesquisa, Educação e Consciência (CPEC).
http://www.espirito.org.br/

Antonio Carlos Villaça (1928 – 2005)

Antonio Carlos Villaça nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), aos 31 de agosto de 1928. Jornalista, conferencista e tradutor, é reconhecido como um dos mais importantes memorialistas do Brasil. É autor de mais de 20 livros, dentre os quais destacamos “Perfil de um estadista da República” (edição do autor, 1945), pequena biografia do Barão do Rio Branco, organizou, em 1962, um livro sobre o poeta romântico Junqueira Freire para a coleção “Nossos Clássicos” (Agir), como memorialista estreou com “O nariz do morto” (JCM, 1970; Rocco, 1975; Ediouro, 1990 e 1996), ao qual se seguiram “O anel” — seu livro preferido — (Editora Rio, 1972), “O livro de Antonio” (José Olympio, 1974), “Monsenhor” (Brasília/Rio, 1975), “Degustação, memórias”, (José Olympio, 1994), “Os saltimbancos da Porciúncula” (Record, 1996), “A descoberta do morro” (Vigília, 1984), “Manuel Bandeira” (Agir, 1984), “O desafio da liberdade” (Agir, 1983), “Alceu Amoroso Lima” (Agir, 1984).

Com o conhecimento adquirido em sua frustrada vida religiosa que, segundo alguns críticos, é a espinha dorsal de sua obra — vide “Villaça: Um noviço na solidão do mosteiro” — produziu ensaios fundamentais, dos quais destacamos “História da questão religiosa” (Francisco Alves, 1974), “O pensamento católico no Brasil” (Jorge Zahar, 1975), “Tema e voltas” (Hachette, 1976), “Literatura e vida” (Nova Fronteira, 1976), “Místicos, filósofos e poetas” (Imago, 1976).

Muitos escreveram sobre sua obra e sua posição importantíssima na literatura brasileira deste século: os poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade, o crítico Wilson Martins, o romancista Octávio de Faria. Conviveu com Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Augusto Frederico Schmidt, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Pedro Nava. Na livraria José Olympio, conversava todas as tardes com Graciliano Ramos.

Em “Memórias de um eterno menino ao sol”, resenha do livro “Os saltimbancos da Porciúncula”, de autoria de Isabel Lustosa, diz ela:

“Villaça é o flaneur, é o homem das multidões, testemunha discreta e atenta, ávida de ver, de compreender, de entrar em contato. Seu olhar contemplativo percorre com calma e volúpia a paisagem e os homens em volta. Retira deles o que apenas a sua sensibilidade, o seu paladar, enfim, os seus sete sentidos apuradíssimos são capazes de apreender. Transforma tudo em palavras. Porque para ele, no principio não é a ação, é o verbo. Villaça defende a primazia da palavra sobre a ação. E as palavras brotam dele com uma naturalidade prazerosa, parecendo nascer assim ao correr da pena, revelando as coisas conforme elas vão se apresentando à memória do que escreve. E, com elas, as sensações que evocam, renovadas, vívidas, palpitantes, como se o narrador estivesse a vivê-las naquele momento, a experimentar de novo a volúpia do sol sobre a pele no quintal da sua infância”.

Antonio Carlos Villaça foi agraciado, em 2003, com o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.

O autor faleceu no dia 29 de maio de 2005.

Fonte:
http://www.releituras.com/

Antonio Carlos Villaça (Quando eu chegar ao Céu...)

Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953.

E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange.

Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.

Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim.

E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.
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Fonte:
VILLAÇA, Antonio Carlos. Os saltimbancos da Porciúncula. RJ: Editora Record, 1996.
http://www.releituras.com

Amadeu Amaral (Novela e Conto: Psicologia do Boato)

O boato é um fenômeno social que bem merece uma preleção psicológica, como um capítulo, que de fato o é, da psicopatologia das multidões.

Nas multidões, ou nas turbas, os elementos estão reunidos em massas, num momento dado; os fenômenos sociais aí se realizam por explosão, por contágio súbito que tem como ponto de partida o estado afetivo exagerado de um ou de alguns elementos influentes - os chefes de revolta, de arruaças etc.

É da natureza humana o não agir sem um estímulo exterior; nossa vida mental não passa de sugestão de célula a célula e nossa vida social uma contínua sugestão de pessoa a pessoa. Isso se conclui da opinião dos psicólogos que têm tratado desse assunto. A sugestão é um fenômeno geral no meio social. A imitação, a repetição universal, de que G. Tarde se ocupa largamente no seu livro - Les Lois de l'Imitation - demonstrando sua universalidade, nada mais é do que a "sugestão" na significação mais ampla dessa palavra. O hipnotismo faz o papel de microscópio, mostrando-nos a sugestão muito aumentada. S. Sighele, no seu livro sobre a "turba criminosa", esboçando em traços gerais a psicologia das turbas, aceita as idéias de Tarde e mostra sua coincidência com as de Sergi (Psicose Epidêmica).

Com o boato as coisas se passam de modo um pouco diverso; o fenômeno se realiza lentamente, porque os indivíduos estão esparsos; mas o fenômeno é da mesma natureza essencial dos que se dão nas turbas.

Que é o boato? É quase sempre uma criação fantasiosa de um indivíduo mau, de caráter abjeto, fantasia essa que se espalha em horas, ou em dias, numa coletividade humana, num povoado, numa cidade, num Estado. O boato nasce como realização ilusória de um desejo perverso, originário de uma paixão inconfessável - raiva, vingança, interesse torpe, seja este pecuniário, político ou sexual.

O criador de um boato é sempre um imbecil (moral). A vítima é, em regra geral, uma pessoa que tem algum valor social; é esse o seu único consolo...

O boateiro escolhe um momento oportuno para lançar a sua mentira, a fantasia perversa. Esse momento é de alta importância, porque nele se acha a circunstância que dá aparência de verdade ao fato que se pretende propalar. Essa circunstância é mui variável de um caso a outro. Não é possível, por exemplo, divulgar a notícia de que um certo financeiro importante está louco (para dar-lhe, suponhamos, um golpe de momento) se estiver ele presente e visível a todo o mundo; é preciso que esteja ausente, fortuitamente. É a circunstância oportuna.

Não basta, porém, como explicação para o boato, essa circunstância e a possibilidade ou verossimilhança do fato a divulgar. É necessário o meio social apropriado para que o fenômeno se realize. A sociedade espelha o caráter de seus fatores antropológicos. A explicação é bem escabrosa e desoladora para o homem civilizado, mas é preciso repetir a verdade, ainda que muito nos custe.

"Dizer mal e gostar de ouvir falar mal de alguém é um velho cacoete da alma humana. Talvez seja a música mais harmônica que existe, porque convibra bem com qualquer espírito". A frase é de Austregésilo, no livro O Mal da Vida.

Há em toda a criatura humana um misto estranho de bondade e de maldade, de infâmia e de perversidade. As proporções dessa mistura é que variam ao infinito. Desde o tipo bom, completo, que sufoca perfeitamente o que há de mal dentro de si mesmo, porque a lucidez e a largueza de sua consciência lhe permitem reconhecer e dominar a própria tendência perversa, até o malvado arrematado, cuja consciência estreita e sensibilidade moral embotada lhe não permitem reconhecer o mal que vive dentro dele, há nessa vasta série, a infinidade de caracteres que vemos diariamente na sociedade.

Devo a fineza de um amigo o conhecimento de um trabalho de Conceptión Arenal (Delito Coletivo) em que se repete a noção acima exposta, apenas por outras palavras; "lo más grave y lo más triste es ver que cuanto mal son capaces los buenos, los que portales se tenian y lo habian sido hasta que la lucha vino a desnaturalizarlos, como se dice, o, para hablar con más propriedad, a revelar su naturaleza. Esta terrible revelación no es obra de ningún principio, de ninguna idea; es consecuencia del combate, que depierta malos instintos dormidos y pone en el caso y hasta en la necessidad a veces de satisfazerlos".

O trabalho secular da civilização tem sido exatamente o de reprimir ou recalcar o elemento mau e dar expansão e força ao que é bom. Aquele, porém, não se extingue; existe sempre, embora sufocado, como os Titãs da fábula que, vencidos pelos deuses e soterrados sob o peso das montanhas, se revelam de tempos em tempos pelas convulsões de seus membros, e sacodem as entranhas da Terra.

Canto e Melo, no seu recente romance - Relíquias da Memória - lá diz a mesma verdade, à página 67: "pela primeira vez na vida, pensei na crueldade dos homens. Só os conhecera até então através dos artifícios da civilização e do convencionalismo da sociedade. Ao vê-los agora, no pleno viço das suas inclinações primitivas e bárbaras, convenci-me de que o homem é mais feroz do que as feras e, se não exerce a todo o momento contra os outros homens a sua crueldade, é porque o medo da represália lhe arrefece dentro do coração os nefandos impulsos da ferocidade inata".

A concepção freudiana, seguindo as pegadas do Prof. Bergson, admite na alma humana o inconsciente dinâmico como sede de todas as tendências e instintos maus recalcados pela civilização no correr dos séculos.

Nada, entretanto, é novo neste mundo. Os doutores da Igreja, finos observadores e psicólogos, conheciam muito bem esses assuntos e deles trataram nos seus escritos sobre teologia, embora disfarçados pelo simbolismo de sua linguagem.

Sabido isto, ainda que em súmula, temos aí o núcleo indispensável para a explicação do boato.

Toda a pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício, conhecidíssimos como inimigos natos.

"A felicidade de qualquer é desespero para muitos", diz muito bem Austregésilo no Mal da Vida.

Quem não tem desafetos, tem com certeza passaporte para o reino do céu.

O sucesso, por si próprio, cria má disposição de ânimo nos outros. E essa indisposição vive no inconsciente; não é raciocinada. No seu fundo se encontra a inveja, disfarçada sob múltiplos aspectos. Na espécie humana é a política o melhor campo de observação.

Entre os animais o fenômeno é grosseiro e por demais visível. Repare-se quando diversos cavalos comem numa só manjedoura, cada um com seu quinhão de alimento, como sai sempre um deles do seu lugar, para ir escoicear os outros, embora não lhe falte comida. É o mesmo fenômeno que se encontra no meio social, muito abrandado, está visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que se acha o homem.

É inegável, pois, que no meio social, por toda a parte, existe sempre uma atmosfera de insidiosa e inconsciente hostilidade contra a pessoa que vence na vida. Haverá alguém tão ingênuo que a desconheça?

Nessa atmosfera é que se acha o elemento vital indispensável à germinação e rápida florescência do boato.

A escuridão do anonimato dá ao boateiro o ânimo e a proteção de que carece para agir, como a escuridão da noite protege certos insetos nojentos que propagam repugnantes infecções. É mesmo essa uma das feições que distinguem o boato de outros fenômenos sociais da mesma natureza, como o tumulto das ruas, por exemplo, que se realiza em pleno dia, por contágio quase explosivo.

No fundo, na essência, os fatos são idênticos. As coisas se tornam mais claras por meio de exemplos banais. Barnabá, da ópera Gioconda, provoca na praça um tumulto contra a cega, mãe de Gioconda, lançando sorrateiramente no meio dos marinheiros descontentes a convicção de que fora a cega quem exercera "malefícios" e ocasionara o mal que os magoava no momento. O desejo de possuir a Gioconda foi a verdadeira origem daquele tumulto. O infame Barnabá é uma criatura eterna na sociedade.

Mais belo exemplo se acha na tragédia Júlio César, é o magnífico discurso de Brutus ao povo romano. Grande conhecedor de sua alma, Shakespeare pôs na boca de Brutus as palavras inflamadas que levariam o povo a assassinar Antônio, se este não possuísse também a poderosa arte de dirigir a fera - a multidão - que o ameaçava.

A habilidade do boateiro está, como em regra nos fenômenos desse grupo da psicopatologia social, em saber despertar e açular a besta humana mal amordaçada pelas coerções do meio civilizado.

O boateiro é sempre, como se disse, uma alma defeituosa, que se agita por mesquinhos interesses. Ele tem a maldade indômita que existe na maioria dos homens, embora mais ou menos escondida. Individual no nascedouro, o boato passa logo a ser coletivo em virtude da consonância que sua tendência encontra nas almas do mesmo estofo. Despine compara a propagação dos estados afetivos nas multidões ao efeito da onda sonora de uma nota musical, que faz vibrar todas as notas iguais existentes dentro da esfera atingida pelas suas ondulações. É um principio geral nos fenômenos de contágio moral.

A perversidade influi com prontidão, porque é uma qualidade mais ativa do que a bondade, afirma Sighele. Os bons em regra, não procuram fazer o mal, são passivos; os maus "querem" fazer o mal, são ativos.

Felizmente existem também almas nobres em que essa lepra já se acha, por assim dizer, extinta. Por meio dessas pessoas o boato não caminha. Isso quer dizer que a alma humana, em geral, é suscetível de aperfeiçoamento com o envolver da civilização; a consciência se alarga no correr da evolução. É ao menos um consolo lembrar que a civilização irá melhorando cada vez mais a sociedade, onde vicejam ainda esses males, por enquanto irremediáveis. Também, se o conhecedor da alma humana só enxergasse ai o que há de mal, morreria de pavor.

O aperfeiçoamento da consciência chegará a extinguir o boato no dia em que a maioria dos homens tiver clara intuição do que acontece atualmente, em casos raros, quando um cúmplice do boateiro encontra um homem bom ele narra uma calúnia, mais ou menos nestes termos:

"Sabe que "se anda dizendo" de F...? Dizem que fez isto, aquilo e mais aquilo. Eu não creio, mas me garantiram e de fonte limpa. Estou dizendo só aqui entre nós; não convém falar, porque talvez seja invencionice. Em todo o caso é uma pena, se é verdade."

O homem bom fixa então os olhos semicerrados sobre o narrador e diz mentalmente:

"Miserável, infame! Não tens nem força para sufocar o prazer que isso te causa. Não inventaste, talvez, a mentira; mas o inventor contava contigo, com a tua covardia, com a torpeza de tua alma igual à dele, para colaborar no trabalho essencial - o da divulgação da infâmia. E tu contavas comigo, salafrário! porque não tens consciência do vil papel que neste momento representas."

Ora, aí está como as coisas se passam, embora excepcionalmente. Na quase generalidade dos casos, entretanto, o patife encontra um homem de sua igualha, que sente o mesmo prazer que ele e vão logo adiante, confidencialmente, com ar muito contristado, na rara infâmia a um outro, e assim se espalha o boato com extrema rapidez. Ainda há pouco vimos como se espalhou no norte do Brasil o boato de uma vaia ao presidente da República, aqui em São Paulo, vaia que não passou de pura fantasia de um boateiro soez.

Há indivíduos mais afoitos, felizmente raros, que vão a um jornal e dão a falsa noticia da morte de um cidadão que está bem vivo em sua casa, onde recebe com espanto a lutuosa noticia... Os jornais já tomaram, entretanto, suas cautelas e esses casos são raríssimos. Vimos essa maldade praticada em São Paulo e não há muito anos.

Há uma diferença enorme entre o indivíduo que recebe com verdadeiro pesar uma falsa notícia e o cúmplice do boateiro, isto é, o que tem prazer em espalhá-la. O primeiro cala-se, ou procura saber de quem partiu a notícia; vai ao encontro da vitima e diz francamente quem lhe comunicara o fato. O outro não; esconde a fonte de onde lhe viera a notícia; pactua com os malfeitores e finge pudor ou discrição, sem se lembrar que em tal caso não se trata disso; ao contrário, deve-se pôr tudo à luz do sol.

É muito difícil descobrir no meio dessa obra de colaboração anônima, o verdadeiro autor dessas infâmias. O professor Jung, de Zurique, conseguiu, no caso fácil e no meio restrito de um colégio de meninas, averiguar de onde partira o boato que difamava um professor. Fez com que todos os conhecedores da notícia a escrevessem como a receberam. Notou ele o fato que nós expressamos no ditado português: "quem conta um conto aumenta um ponto". Cada um contou o fato com particularidades que variavam entre os diversos narradores; só o núcleo essencial do boato era o mesmo para todos. A invencionice era narrada como um sonho e deixava perceber um desejo erótico que inconscientemente dominava a menina, autora do boato. Tratava-se de um caso típico da mitomania de que tanto se ocupou Dupré, médico da prefeitura de Paris.

Fora desses casos, assim limitados a um meio restrito, é impossível descobrir o verdadeiro autor, no meio de tantos colaboradores.

Há épocas mais propicias, como todos sabem, para o nascimento e divulgação do boato como há tanto tempo favorável às plantações na vida agrícola. São as épocas de intensas agitações emotivas - de guerra, de epidemia, de revolução política etc.

A ambição, outra tendência fundamental humana, permite também do mesmo modo que a maldade, a criação de uma atmosférica especial em que se observam curiosos episódios de sugestão e contágio, alguns dos quais revertem em castigo cômico contra os próprios ambiciosos. Temos o exemplo na célebre fortuna que se acreditou existir num banco inglês, pertencente a brasileiros, descendentes de Amador Bueno da Ribeira. Um advogado velhaco, psicólogo prático, mandou do Rio de Janeiro, noticiar em São Paulo, há mais de trinta anos, que tinha meios de liquidar essa fortuna e distribuí-la aos supostos herdeiros de Amador Bueno. Para tanto exigia ele que cada um lhe mandasse apenas cinqüenta mil réis junto ao nome que o habilitasse como herdeiro. Eram herdeiros todas as pessoas que tinham no sobrenome - Bueno, Silveira etc.
Ora! formigaram descendentes de Amador Bueno e choveram notas de cinqüenta mil réis que deram magnífico resultado ao pândego mistificador.

Vimos nessa ocasião muita gente séria, carrancuda e circunspecta, entrar com o seu dinheirinho e discutir convictamente sobre a parte que lhe poderia caber.

Passado algum tempo, o insaciável advogado, precisando de mais dinheiro, mandou um mensageiro fazer nova colheita, para a qual trouxera instruções muito especiais. Só podiam pagar novo tributo os que tinham tais e tais sobrenomes; os outros estavam excluídos. Muitos dos excluídos importunavam a gente para conseguir entrar com as suas cotas. Nada o demovia; era preciso dar uma feição de seriedade a tal bandalheira. A nova colheita deu ainda magnífico resultado. A herança não apareceu até hoje, mas os contribuintes tiveram seu momento de prazer... de viver um sonho por algum tempo.

É de crer que ainda existam por esse mundo alguns dos sonhadores que naquela época concorreram para os regabofes do advogado.

O boato nem sempre é expansão de malvadez recalcada; há o boato tendencioso e o boato inócuo. Sua origem primeira é sempre um desejo inconfessável e freqüentemente inconsciente.

A perversidade geral da alma humana que serve de terreno onde se desenvolve o boato, é sempre inconsciente.

Caminha para a perfeição espiritual aquele que consegue tornar consciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim pode dominá-la. Ainda estamos longe da perfeição; não podemos exigir a extinção do boato.

Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirmador de uma doutrina exposta em princípios gerais, é hoje moda e fundada em boas razões. Quem quiser ler um belíssimo exemplo de boato em lugarejo do interior, encontrá-lo-á na novela de Amadeu Amaral A Pulseira de Ferro. Aí se acha o fenômeno magistralmente descrito.
Franco da Rocha

Fonte:
www.biblio.com.br

Antonio Prata (Pra lua)

Não foi assim logo de cara. Claro, seu Julião e dona Neuza já tinham reparado numa coincidenciazinha aqui, uma sorte acolá, mas só foram perceber que Julinho tinha mesmo um dom especial no verão de 1984, em Caraguatatuba, assim que o moleque acabou de chupar o quinto picolé, de manga.

Quinze minutos antes, ao acabar o primeiro sorvete, um Fura-bolo, Julinho pulou de alegria: o palito viera premiado, dando direito a mais um. Até aí, nada de mais... Acontece que o segundo sorvete (um Esquimó) também dava direito a outro, assim como o terceiro (de coco), o quarto (tangerina) e provavelmente todos os que chupasse se, no quinto picolé — a barriga do garoto já estava parecendo uma tela do Pollock, tantas as gotas de diversas cores que escorriam em direção à sunga verde-limão—, o sorveteiro não tivesse dado com a tampa de isopor em sua cabeça e saído soltando os palavrões mais cabeludos, cujos significados Julinho só viria a descobrir muitos anos mais tarde, na perua do colégio, numa tarde de maio — o que não vem, absolutamente, ao caso.

O que nos interessa é que nessas férias Julinho ganhou três quilos e o respeito de toda a criançada de Caraguá, com quem trocava os palitos premiados por pipas, baldinhos de areia, favores e até uma bicicleta com buzina, cestinha e farol. (A bicicleta, infelizmente, teve que ser devolvida assim que uma mãe apareceu no guarda-sol da família, trazendo um filho choroso numa mão, 45 palitos premiados na outra e exigiu a anulação da troca.)

Apesar de já saberem que ali tinha coisa, foi só quando Julinho estava na quinta série, na época que surgiram as Raspadinhas, que seus pais realmente se deram conta do potencial econômico de seu dom. Enquanto a maioria dos mortais gastava tubos do dinheiro naqueles cartões lotéricos e, na melhor das hipóteses, ganhava 50 centavos — gastos em mais uma Raspadinha que, claro, não dava em nada —, Julinho sempre tirava a sorte grande: era só raspar a camada prateada e sair pro abraço.

Em alguns meses, a família comprou uma cobertura, casa na praia, carro importado e jet ski. Não fosse o processo promovido pela Associação Brasileira dos Donos de Casas Lotéricas — que deu queixa na polícia dos prejuízos causados pelo gordinho que aparecia sempre chupando um picolé, comprava uma Raspadinha e limpava os caixas dos estabelecimentos — e a família, em pouco tempo, entraria nas listas das mais ricas do Brasil.

Em entrevista ao vivo no programa do Gugu, logo após serem absolvidos no processo — com o acordo de que Julinho jamais jogasse em qualquer tipo de loteria federal —, seu Julião, o pai, disse que não tinha truque nenhum: "O garoto é assim, desde pequeno: rabudo. Pede par, sai quatro, ímpar, dá cinco e, no amigo secreto do Natal, sempre é tirado pelo tio Leôncio, meu cunhado, que dá os melhores presentes." Dona Neuza, a mãe, acrescentou orgulhosa: "Hum-hum..,"

Desde o lance das Raspadinhas, seu Julião e dona Neuza já não trabalhavam: como os pais de um craque ou de um desses cantores mirins, dedicavam-se exclusivamente a desenvolver o talento do filho. Passavam o dia colocando tampas de margarina e embalagens de chocolate em envelopes e respondendo a perguntas tipo “qual é o sabão que deixa limpão"; "a bateria que nunca arria"; "o refrigerante que faz splash" ou "o absorvente da executiva moderna". Toda manhã, antes de ir para a escola, Julinho punha as cartas no correio: eram casas, caiaques, home theatres, férias em estâncias hidrominerais, fins de semana em hotéis-fazenda, um ano de supermercado grátis e outros prêmios que não acabavam mais.

Dona Neuza pôs botox, silicone, clareou os cabelos e entrou numas de Feng-Shui; seu Julião fez implante capilar, montou um bar espelhado na sala da cobertura e fazia churrasco todos os domingos; Julinho tinha um minibugue, fã-clube, todos os bonequinhos dos Comandos em Ação, Passaporte da Alegria vitalício no Playcenter e a Tilibra estava prestes a lançar uma linha de cadernos com sua foto na capa.

Apesar de todo o sucesso, Julinho estava entediado. Não havia nada que quisesse que não conseguisse: quando jogava futebol, para qualquer lugar que chutasse, a bola entrava; todo dia tropeçava com carteiras cheias de dinheiro e, quando ficava doente e perdia uma prova na escola, o professor faltava. Era muito fácil. Além do quê, não agüentava mais chupar picolé. Sem uma dificuldade, por menor que fosse, um empecilhozinho qualquer, as coisas perdiam a graça. Andando de lá para cá com seu minibugue pelas ruas do condomínio, Julinho lamentava: "Se ao menos eu tivesse que preencher algum formulário, ou pagar uma mensalidade, ou fazer duzentas abdominais toda manhã, eu sentiria que estou tendo algum trabalho, mas assim, do nada, não tem graça!". Tudo o que ele queria, como sempre nesse tipo de história, era ser como as outras crianças. Mas como?

Foi por acaso, caminhando pelo Centro de São Paulo, num dia desses em que o céu cinza parece apenas a metáfora que um escritor previsível criou para espelhar a nossa nublada configuração interna, que Julinho deu de cara com o lugar mais impressionante que seus olhos já haviam visto, um mercado onde se podiam encontrar ovos de dinossauros vietnamitas, videocassetes chineses, múmias maias, DVDs pornográficos da Hungria, parentes distantes, lança-mísseis russos e até amor verdadeiro — a galeria Pajé. E foi ali, entre um Rolex falsificado e um cachorrinho de pelúcia (que era ao mesmo tempo dicionário eletrônico, liquidificador e chapinha para cabelos), que Julinho encontrou a lâmpada árabe. Haddad, o vendedor, garantiu que a preciosidade era do século XIII e havia sido roubada pessoalmente do Museu de Bagdá, durante a invasão americana. Julinho, contando, como sempre, com a própria sorte, não vacilou.

Assim que chegou em casa e começou a lustrar a lâmpada com a manga da camisa, o ambiente encheu-se de fumaça, ouviu-se uma explosão e, depois de uma chuva de purpurina e lantejoulas, lá estava ele, translúcido e obeso, pairando a um metro do chão: o gênio da lâmpada!

— Ó amo querido, me libertaste da terrível prisão! Como recompensa, concedo-te três pedidos. Diz-me apenas quais são teus desejos e logo os satisfarei!

Julinho nem pestanejou:

— Primeiro eu queria ser como os outros, não ter tanta sorte: me dar bem às vezes, mal em outras, ter que me esforçar para conseguir o que quero. Segundo, já que a sorte me abandonará, quero apenas garantir uma regalia: que todas as mulheres que posam para a Playboy queiram fazer sexo comigo até o fim da vida. Terceiro, desde criança que penso nisso: por que chamam esse objeto dourado de lâmpada, se ele mais parece um bule?

O gênio, com aquela cara séria e atenta que gênio faz nessas horas, respondeu:

— Meu amo: teus desejos são uma ordem!

Mais fumaça, mais chuva de purpurina e lantejoulas e, quando tudo se acalmou, no lugar que antes o gênio sobrevoava, havia um bilhete:

“Caro amo, temo avisar-te que ocorreu uma falha na execução de teus desejos. Acontece uma vez a cada mil anos o que nós, gênios da lâmpada, chamamos de paradoxo retroativo. Teu primeiro desejo foi imediatamente aceito e teu azar, portanto, começou ali mesmo, fazendo com que os efeitos desse gênio não tenham efeito nenhum. Em outras palavras: tudo continuará como antes, tu continuarás sortudo. Se fizeres sexo com playmates ou descobrires por que esse bule é uma lâmpada será porque nasceste virado para a lua, não por conta de meus serviços. Agora, devo ir-me, haverá uma convenção de gênios da lâmpada no Rotary Club de Ribeirão Preto e não posso perdê-la por nada. Adeus e obrigado."

Julinho, desesperado, resolveu jogar a toalha. E a toalha, no caso, era ele mesmo: olhou seu quarto pela última vez, derramou uma lágrima de despedida e saltou pela janela da cobertura. Enquanto caía, pensava no infortúnio de não ter nenhum infortúnio, na desgraça da graça a ele concedida e, sabe-se lá por quê, num short amarelo de que gostava muito quando era pequeno.

Vinte e cinco andares e sete segundos depois, para surpresa dos pedestres, lá estava ele, vivo e consciente, estatelado sobre uma Kombi azul. Naquele momento, ainda zonzo por causa da queda e surdo com o esporro do japonês, que reclamava dos estragos causados ao veículo e perguntava como era que ele ia fazer agora para trazer o shimeji de Cotia todo dia, Julinho compreendeu sua sina: era imortal, sortudo demais para morrer.

Uns dizem que foi o tombo, outros comentam que a coisa já vinha de longe, que ele sempre teve um parafuso a menos, mas o fato é que todo dia, desde o salto, Julinho tenta, inutilmente, tirar a própria vida. Depois de beber cianeto (estava vencido), cortar os pulsos (a faca quebrou), enforcar-se (a árvore tombou) e tentar todos os outros métodos conhecidos e desconhecidos de suicídio — chegou até a alimentar-se por uma semana só de detergente de maçã —, Julinho perdeu de vez o juízo. Vaga doido pelo mundo, magro, descalço e barbudo. De vez em quando, engole espadas, caminha sobre brasas, deixa jamantas passarem por cima de seu corpo e faz cooper em campos minados de Angola, sempre em vão. Para piorar, uma multidão de fiéis o segue aonde vá, acreditando ser a volta de Jesus à Terra. Alguns rabinos discutem se é ou não o messias, as playmates não lhe dão sossego e produtores de televisão ligam todo dia, insistindo em fazer um documentário para o Discovery Channel.

Agora, por exemplo, Julinho está em Foz do Iguaçu, chorando arrependido da remota manhã em que foi pedir aquele maldito Fura-bolo em Caraguatatuba. Em instantes se atirará do alto da mais alta das cataratas — de onde será resgatado, alguns minutos depois, vivo e limpinho, pelos bravos homens do Corpo de Bombeiros do Brasil.

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Sobre o Autor:
Antonio Prata (24/08/1977) é paulista e tem os seguintes livros publicados: "Cabras, Caderno de Viagem", com Paulo Werneck, Chico Matoso e Zé Vicente da Veiga, "Douglas e outras histórias", “As pernas da tia Corália” ,"Estive pensando" e "O inferno atrás da pia".

Fernando Morais, escritor reconhecido no Brasil e no exterior, assim se manifestou sobre “Douglas": ”... Seria um livro de contos? De ensaios? De reflexões sobre o mundo? Não sei dizer. O que eu sei é que é um dos mais espirituosos e divertidos livros que li nos últimos tempos. Não me pejo, assim, de (mais uma vez?) valer-me da fantasia de Ruy Castro: aconselho-os a acompanhar a carreira do jovem escritor Antonio Prata. Ele tem espantoso futuro. Continuem lendo e observando-o". E termina:"Pela qualidade do texto, fica dispensado o teste do DNA: Antonio é mesmo filho de Marta Góes e de Mario Prata".

Fonte:
PRATA, Antonio. O inferno atrás da pia. RJ: Editora Objetiva, 2004.
http://www.releituras.com/

Antonio Prata (Receita)

Fazer um texto não é difícil. Como tudo na vida, basta que sigamos um método. Depois de muitos estudos sobre o assunto, tendo consultado desde os mais ancestrais pergaminhos ciganos da Checoslováquia até as últimas pesquisas científicas norte-americanas, juntei conhecimento suficiente para produzir um pequeno tratado sobre o tema. Se o publico aqui não é por vaidade ou capricho, mas porque acho que todo conhecimento deve ser compartido. Dessa forma, tenho esperança, chegará o dia em que todo o saber humano poderá ser reunido e centralizado em um único programa de computador, ou software — que é o termo correto — e vendido a preços módicos nas bancas de jornal, postos de gasolina ou virão grátis nas compras acima de 50 reais nos supermercados Mambo(*). Aí vai, portanto, a minha modesta contribuição.

Como escrever um texto

Assim como para fazer uma sopa é preciso, antes de mais nada, escolher os ingredientes, para escrever um texto é necessário, primeiramente, selecionar as palavras que vamos usar. Se para os ingredientes da sopa vamos ao mercado, para encontrarmos as palavras recorremos ao dicionário.

Algumas considerações desnecessárias (porém interessantes)

O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das palavras não cresce a cada dia — como ocorre com os legumes no mercado —, posto que todas são de graça. Ademais, os dicionários podem ser guardados na estante da sala, o que seria impossível de se fazer com um mercado — não por sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários, mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e sim escrever um texto). Há uma diferença básica entre os mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem assim que fiquem velhos, no segundo não se encontra um só artigo novo, pois ser velho é condição sine qua non para estarem ali. Apesar das considerações anteriores, é impossível provar logicamente a superioridade de um mercado sobre um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos tanto encontrar dicionário em um bom mercado, como mercado em um bom dicionário. Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis e voltemos ao tema em questão: como escrever um texto.

Agora sim, como escrever um texto, parte I: Ritmo

Tanto os pergaminhos ciganos da Checoslováquia como os cientistas norte-americanos estão de acordo em um ponto: um texto deve ter ritmo. Por isso, uma vez aberto o mercado, perdão, o dicionário, é importante ter em mente que um bom escrito leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes. Um método infalível na hora de separar as palavras é, sempre que escolhermos uma curta, como chá, lua ou oi, buscarmos imediatamente uma comprida, como halterofilismo, mononucleose ou antropomorficamente.

Assim que você sentir que já tem em mãos um bom número de palavras curtas e longas — isso depende do tamanho do texto que quiser escrever —, parta para a busca de um número igual de palavras médias, tais como sudorese, abobado ou alicate. Aconselha-se anotar essas palavras num papel, com lápis ou caneta, ou datilografá-las num computador ou máquina de escrever, de acordo com as condições infra-estruturais de cada um. (O texto final, no entanto, poderá ser escrito de muitas outras maneiras, como com sangue nas paredes, com canivete num tronco de árvore ou com um arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara, dependendo não só das condições infra-estruturais como do efeito desejado. Isso fica a cargo do autor.)

Parte II: Etiqueta ou bom senso

Se para uma sopa de batatas precisamos de muitas batatas e para uma sopa de beterraba muitas beterrabas, para um texto triste precisamos de palavras tristes, para um texto audacioso de palavras audaciosas e para um texto semi-erótico de palavras semi-eróticas. Se o autor tem em vista um texto fúnebre, por exemplo, não cairão bem as palavras lantejoula ou meretrizes, assim como num convite de casamento dificilmente se poderá usar a palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É sempre bom observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita.

Parte III: Pontuação

Nesta altura o futuro autor já tem consigo um bom número de palavras, harmoniosamente divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície de celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os pontos são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber usá-los. Para cada cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um ponto. Para cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação.

Algumas dicas: para um texto mais picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas interrogações se o texto se destina a um grande público. Por último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula, pois são de sabor muito forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre ou o curry na culinária.

Parte IV: Prosa e poesia

Tendo os ingredientes e os temperos todos à frente , é chegado um momento muito importante, a hora de se decidir que tipo de texto se quer escrever. Há somente dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as outras, formando pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos, pula-se uma linha e começa-se um novo. Os textos de prosa são mais consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão da página, desde a margem esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está terrivelmente atrasado para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse caso, vale a pena seguir alguns passos.

1 — Volte ao dicionário e busque algumas interjeições como Oh! e Ah!. Não economize também nas reticências, exclamações e interrogações. São pequenos detalhes, mas muito úteis. Mesmo a mais simples das frases, se antecipada por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um novo alento, uma vaguidão que facilmente será confundida com profundidade, como você pode comprovar no exemplo a seguir:

Antes:
Havia casas azuis.
Depois:
Oh! Havia casas... Azuis?!

Caso o futuro autor disponha de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa, não encontrará grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente selecionadas e dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho. Tente sempre mesclar as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as exclamações e interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e comece outra embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo.

Os antigos pergaminhos da Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e da clareza em um texto. As últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que essas questões são absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca demonstrará que há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem o sentido são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas, exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas.

Por último, cabe destacar que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG ou instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos e cobertores para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar de mencionar que um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser guardado na estante da sala e não precisa ser resfriado nem muito menos congelado.

Apesar das considerações anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou vice-versa. Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas, quanto sopas nas boas letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os textos e as sopas, os mercados e os dicionários, as palavras grandes, os ingredientes, eu, você, os cientistas norte-americanos e os pergaminhos da Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa: todos, em algum momento, chegamos ao fim.

(*) Promoção válida apenas para as lojas Mambo em São Paulo (capital), Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Macapá, Acre e Roraima: que se danem!

Fonte:
PRATA, Antonio. As pernas da tia Corália. RJ: Editora Objetiva, 2003
http://www.releituras.com/
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Antônio Torres (Por Um Pé de Feijão)

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:

- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.
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Sobre o Autor:
Antônio Torres nasceu no dia 13 de setembro de 1940 num lugarejo chamado Junco (hoje município de Sátiro Dias), na Bahia. Aos 20 anos, em São Paulo, foi chefe de reportagem de esportes do jornal "Última Hora". Redator de publicidade desde 1963, trabalhou em algumas das principais agências do País, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sua estréia literária se deu com o romance "Um Cão Uivando nas Trevas", publicado em 1972. Em seguida, viria a publicar mais quatro romances: "Os Homens dos Pés Redondos" (1973), "Essa Terra" (1976), "Carta ao Bispo" (1979), "Adeus, Velho" (1981), "Um Táxi para Viena D´Áustria" (1991), "Balada da Infância Perdida" (1996), "O Cachorro e o Lobo" (1997) e "Meu Querido Canibal" (2000), entre outros. Pelo conjunto de sua obra, foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 2000.

Embora se considere essencialmente um romancista, Antônio Torres tem alguns contos, que publicou em livros e antologias, no Brasil e no Exterior.

Fonte:
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. RJ: Editora Objetiva, 2000.
http://www.releituras.com

Artur de Carvalho (Uma Gata)

Era noite e ela ainda não havia voltado. Fez de conta que não estava ligando, continuou assistindo TV como se não estivesse acontecendo nada. Olhava pela janela de vez em quando. Voltava para a frente da TV, controle remoto na mão. Ficava olhando a telinha azul despencando imagens sem sentido. O controle remoto criou uma nova programação. São programas onde imagens aleatórias de desenhos animados e de comentaristas políticos se intercalam, numa corrida sem sentido. São programas diferentes todos os dias, mas iguais em sua falta de objetividade. Desligou a TV, ligou o aparelho de som. Sintonizou uma rádio, para não precisar ficar trocando de CD. A música sertaneja invadiu as FMs. Ele era do tempo em que as FMs só tocavam música americana. Ou MPB. Não faz muito tempo não, até você deve se lembrar. E agora... só sertaneja. Ou pagode, essas coisas. Levantou e olhou pela janela de novo. O relógio. Ela devia ter chegado há mais de três horas. Deveria haver uma explicação lógica. Começou a tocar outra do Leandro e Leonardo. Resolveu colocar um CD. Aquela casa estava uma confusão. Procurou. Entre suas coisas tinha um CD com a trilha sonora do "Blade Runner", não achava. Desistiu de procurar. Devia estar perdido debaixo de alguma dessas almofadas. Ela gosta de almofadas. Tinha tantas por causa dela. Primeiro gostava daquelas menores, depois ele começou a trazer para casa aqueles almofadões. Deitavam e ficavam assistindo TV Eles nem sentavam mais no sofá. Com o tempo, dispensou os dois módulos, um com três lugares, outro com dois. A sala ficou maior, arrumou mais almofadas. Tropeçava nelas quando entrava em casa, no escuro. De vez em quando ela estava ali, enroscada com as almofadas, dormindo. Tropeçava nela também. Às vezes se agarrava em suas pernas e o fazia cair. Ele ria, se abraçava a ela e fazia cócegas na sua barriga. Ela não agüentava cócegas na barriga. Se davam bem.

Resolveu comer um pouco. Foi até a cozinha e esquentou um pouco de leite. Um pouco de leite quente o acalmava. Fez uma gemada. Bateu as gemas com açúcar e colocou no leite. Ficou mexendo com a colher de pau, até dissolver bem. Ela adorava gemada. Deixou um pouco na caneca, no caso dela voltar. Abriu a geladeira e tinha umas bolachas de maizena no pacote aberto. Pegou algumas. Gemada e bolachas de maizena.

É o que há.

Agora sim, havia ficado bem tarde. Novamente se aproximou da janela, a xícara com a gemada na mão, deu uma última expiada. Talvez não volte hoje. Já havia feito isso muitas vezes. Acabava voltando. Voltava com o rabo entre as pernas, como quem a pedir perdão. Ele sorria e sempre a desculpava. Não era de guardar rancores.

Mais uma hora ou duas se passaram, percebeu que iria dormir sozinho aquela noite. Ligou a TV novamente. Deixou na Globo mesmo, a transmissão não se interrompia. Sempre acordava quando deixava em outros canais, a programação acabava, acordava com o chiado da TV fora do ar. A Globo ficava a noite inteira. Arrumou umas almofadas, se deitou. Estava passando um filme de adolescentes de férias, seios, garotas loiras de biquíni. Os olhos começaram a piscar. Fechou os olhos. Ainda ouvia o filme, depois nem isso. Dormiu.

Acordou com o hálito quente e forte dela. Era um cheiro conhecido. Depois de um tempo a gente se acostuma com os cheiros. Ela tinha um hálito diferente, adocicado. Sentia até saudades daquele cheiro. Ela se acomodou ao seu lado, buscando o calor de seu corpo. Ele a abraçou e sorriu.

Ela sempre voltava.
14 de julho de 1998
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Sobre o autor:

O cartunista e escritor Custódio fala sobre o autor:
"Artur de Carvalho poderia ser muita coisa na vida. Poderia ser arquiteto ou junkie, dono de padaria ou desenhista, pai careta ou um bicho grilo amalucado. Poderia ainda ser galã easygoing ou um marido correto, profissional talentoso e sujeito de bom caráter. Mas isso seria pouco. Artur resolveu ser então...
Tudo isso. TUDO.

Na luta para incorporar todos esses personagens em sua Távola Redonda, Artur, rei de múltiplas faces, acabou adquirindo bronquite crônica, cirrose crônica, e uma crônica humanidade que lhe dá uma força tão grande quanto desapercebida. Claro, Artur virou cronista. Da felicidade dele em descobrir sua verdadeira vocação, vem a nossa, de descobrir seus textos leves, suas observações reluzentes, seu humor doído de tão humano.

E assim, sem podermos ter as múltiplas faces que o autor colecionou pela vida, somos brindados pela doce viagem de sermos sócios delas, e entrarmos em sua casa, sua família, sua Votuporanga, que poderia ser Porto Alegre, São Paulo ou Nova Iorque. O Incrível Homem de Quatro Olhos é um livro arrebatador. Não arrebatador como aqueles torpedos certeiros que partem de uma esquadra bem armada. Mas sim arrebatador como uma brisa suave* que venha carregada de lembranças felizes.

*Brisa Suave, em tupi, é Votuporanga".
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Artur de Carvalho colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003, que acaba de chegar às livrarias.
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Fonte:
http://www.releituras.com/