sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Soares de Passos (Catão)


Como em tarde anuviada
Em tarde de negros véus.
Para a terra contristada
Sorri o íris dos céus;
Mas quando o sol esmorece,
O íris desaparece,
Tudo é negra escuridão;
O mar ruge e se encapela,
E nas asas da procela
Corre bramindo o trovão:

Tal ao sol da liberdade
Que sobre Roma luziu,
Qual íris em tempestade,
Catão à pátria sorriu.
Mas esse astro que fulgente
Das águias brilhara à frente,
Do Capitólio baixou;
E ele, o íris da bonança,
Ele, de Roma a Esperança,
Com seu fulgor expirou.

Contra as iras da tormenta
Ó forte lutaste em vão:
Que pode a virtude isenta
Contra a geral corrupção?
Já não luziam virtudes
Como nos séculos rudes
Dessa Roma consular;
O templo da tirania
A seus ministros abria
As portas de par em par.

Inda infante, viste Mário
De Roma o sangue beber;
E envolvida num sudário
A pobre Itália gemer.
Viste Sila, o monstro infando,
Entre as cabeças folgando,
Qual tigre, no seu festim;
E, infante, bradaste ufano:
– Dai-me um ferro, e o tirano
Livremos a pátria enfim! –

Não to deram: que lucrava
O teu valor juvenil?
Dum tirano outro brotava,
Nascia a guerra civil.
Enxuto de Roma o pranto,
Eis que envolto em negro manto
Lá surge um conspirador:
Cintila a morte, a ruína
No punhal de Catilina,
De Catilina, o traidor,

Surge, víbora gerada
Dos vícios do lodaçal!
Sobre Roma descuidada
Lança o veneno fatal!
Eia, empunha o facho ardente!
Entrega a pátria inocente
Aos punhais da tua grei!
E entre o sangue, à luz do incêndio,
Num trono de vilipêndio
Vem sentar-te como rei!

Mas treme! lá soa o brado
De Marco Túlio, orador.
Treme! Catão no senado
Já dos teus vence o furor.
Sucumbiste, algoz ferino!
Oh! mas vinga-te o destino
Que Roma jurou perder.
Catão, cobre-te de luto,
Que da Gália já escuto
A guerra civil descer.

Gerou-a o triunvirato,
Esse monstro d'ambição;
Que as eras de Cincinato,
Essas eras já lá vão.
D'olhos fitos sobre a Itália
Eis desce o leão de Gália,
E Arimino já tomou.
É César! ei-lo que assoma:
Abre-lhe as portas, ó Roma,
Que às tuas portas chegou!

Ei-lo parte, e já na Espanha
Os três legados venceu!
Só em Dyrrachio lhe ganha
A espada do grão Pompeu.
Os mortos jazem aos centos:
Sobre os seus restos sangrentos
Um homem chora: é Catão.
É ele que ali deplora
Essa guerra assoladora,
Guerra d'irmão contra irmão.

A liberdade expirava:
O coração lho prediz.
Roma, a livre Roma escrava
Ia dobrar a cerviz.
Não se enganou: lá troveja
O fragor d'alta peleja
Em Farsália inda uma vez;
Pompeu vacila e fraqueia;
A liberdade baqueia
De Júlio César aos pés.

Ei-la que expira, ei-la morta...
Oh! que não! ressurge além!
Catão é vivo: que importa
Quanto César ganho tem?
De Farsália aos naufragantes
Sobre as areias distantes
Da Líbia surge um fanal:
São dele, dele as bandeiras
Juntando as rotas fileiras
Para um combate final.

Mas César lá corre ovante,
Vence Juba e Cipião;
Tudo ante ele vacilante
Se prostra enfim maldição!
Não tarda a hora funesta:
De liberdade só resta
Dentro d'Utica um fulgor.
Inda Catão lá impera:
É lá que o vencido espera
As iras do vencedor.

Que venha, que ao seu aceno
Curvado não há-de ver
Aquele rosto sereno,
Que nunca soube tremer.
Caminha, César altivo,
E acharás em teu cativo,
Em vez de preito, o desdém!
Sabes vencer, porém corre
Vem saber como se morre,
Aprende a morrer também!

Catão, Catão, eis chegado
O momento de partir!
Com que rosto sossegado
Te vejo à morte sorrir!
Antes do golpe supremo
Tu paras inda no extremo
A meditar com Platão:
Assim a águia alterosa
D'alta penha cavernosa
Mede sublime a amplidão.

E depois, assim como ela,
Das nuvens rompendo o véu,
Adeja sobre a procela,
Deixa a terra, e busca o céu:
Tal coa dextra sempre ousada
Cravando no seio a espada,
Partiste d'alma os grilhões;
E dentre os vaivéns da sorte
Voaste, calcando a morte,
Às etéreas regiões.

César vence, e ao Capitólio
Lá sobe triunfador;
Roma cai do altivo sólio,
Rojando aos pés dum senhor.
Catão, o livre, expirara...
No suspiro que exalara
A liberdade voou.
Começava o negro império
Que um Calígula, um Tibério,
Um Nero, monstro, gerou.

Ele, entanto, sepultado
Nas praias junto do mar,
Lá dormia descansado
Sob a lájea tumular.
Ali a queixosa vaga
Vinha, rolando na plaga,
Beijar do livre a mansão;
E inda falar com saudade,
Da pátria, da liberdade,
à estátua de Catão.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

José Roberto Torero (Tadeu x Maria Angélica)


À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais. 

No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas talvez isso só acontecesse porque os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras.

Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças.

As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio.

Tadeu comprou um uniforme azul e amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca.

Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus times acertavam um lance, nem zombar do outro quando a equipe adversária cometia algum erro.

O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: "Gooooooooool!".

E assim mesmo, com dez letras "o". 

Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava "Ê, ô, ê, ô, o meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor".

Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou:

- Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho!

- Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo?

- E do casamento. Você pisou na bola!

- Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola.

- Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio!

- Calma, eu não quero tirar o time de campo.

Vamos tentar um segundo tempo...

- Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti.

Pode ir para o chuveiro!

- Quem sabe uma prorrogação? 

- Não. Fim de jogo.

Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse: 

- Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me deixa muito triste, porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento... eu jogava por amor... 

Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem. Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo.

Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: 

"Ê, ô, ê, ô, nosso amor é um terror!"

- Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e viveram felizes para sempre.

Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Nilto Maciel (A Melhor Notícia)


A morte é a melhor notícia, até para alguns mortos, que logo depois confirmarão o fato nos jornais. Uns deixam a confirmação para o dia subsequente, a semana seguinte, mais um mês. Outros nunca dão a confirmação, sumidos nos mares, nas montanhas, florestas. São os desaparecidos. Os vivos nem ficam sabendo se aconteceu mesmo a morte: onde está o corpo? Ninguém sabe. Terá morrido de verdade? Só acredito vendo.

                   A morte é a melhor notícia. Se for morto importante, os donos dos jornais, das rádios e televisões riem à toa. As edições são reduplicadas. As manchetes tomam todas as primeiras páginas. Estampa-se imensa foto colorida do defunto. Televisões e rádios passam dias repetindo a morte súbita da autoridade, do cantor, do rico. Espicham a notícia noite afora. Fazem da morte uma novela interminável. Capítulo XX: “Como caiu o avião. Destroços em alto mar. Tubarões sedentos de sangue.”  

                   Templos se lotam no dia do enterro. Gente de todos os bairros disposta a chorar rios de lágrimas e rezar todas as orações pelo morto. No velório choram, gritam, morrem, tentam beijar a testa enrijecida. Os parentes a amigos do falecido se vestem de preto e cobrem os olhos com óculos escuros. Muitos desmaiam, as câmeras de televisão focalizam o instante crucial da dor do desconhecido.  

                   A caminho do cemitério, multidões saem às ruas, debruçam-se nas janelas, sobem aos viadutos. Nas casas, ruas, fábricas e bancos todos lamentam a morte do fulano. Comoção geral, feriado nacional, bandeira a meio-mastro, música fúnebre nas emissoras. Vende-se tudo nas ruas: bandeirolas, fitinhas, bandeiras do time de futebol pelo qual torcia o morto. Fofoqueiros têm motivos de sobra para conversar e passear. Nas filas, nas esperas, nos passeios, nas praças o assunto é um só: a morte de fulano. Há descobertas sensacionais: o extinto amava uma francesa nova, enquanto a esposa velha lamentava.

                   Na missa de sétimo dia, se o morto tiver sido católico, a notícia precisa ser renovada. O falecido está caindo no esquecimento. Se for cantor, compositor, tocam-se suas músicas mais conhecidas. Nas lojas aumentam-se os preços dos produtos. Os jornais publicam pôsteres coloridos: fotos de quando o fulano ou a fulana tinham 20 anos.

                   Inspiração também a morte dá: poetas fazem versos lamentosos com a palavra morte e a palavra vida. Repentistas aparecem de repente nas praças, tocando e cantando homenagens ao defunto. 

                   Todos lucram com a morte. O anônimo coveiro finalmente é entrevistado, com direito a voz e a inventar lendas; o vendedor de velas se ilumina; o jornaleiro grita emocionado; a rezadeira chora por quem foi. 

                   A morte é a melhor notícia. A morte inventa mitos, lendas, sagas, cria religiões, funda igrejas. Cristo morreu; o Cristianismo nasceu. A morte acaba guerras. Depois de Hitler, a paz. A morte acaba eras. Sem Nero, Roma se livra dos incendiários. Decapitaram Conselheiro, desapareceu Canudos. A morte acaba ciclos. Mataram Lampião, acabou-se o cangaço. A morte inicia eras. Um tiro em Vargas dá início à era pós-Vargas.  

                   Se o morto for pobre, anônimo, seus parentes e amigos lamentarão: Tão bom, mas Deus assim o quis. Os privilegiados serão notícia no obituário ou na página policial.

                   Quando queimaram um índio em Brasília, o mundo inteiro protestou, embora queimem índios desde Cabral, Hernán Cortés, Pizarro. Queimar mendigo também dá notícia, embora os assassinos nunca sejam encontrados. 

            Se criança morre de fome e sede, nos sertões e nas favelas, a morte não será notícia, mas apenas motivo de estudo e número na estatística. Os pais dirão: Deus quis assim. Dará lugar a outros. Melhor notícia só o nascimento do próximo mortal: José, Maria, Sebastião.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/233

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 19


José Corrêa da Silva Júnior
(Pilar/ AL, 22 janeiro 1893 –  Santos/SP, 9 setembro 1972).

" PUDOR “

Ama-me assim, sem ânsias nem clamores,
sem amostras no olhar de coisa alguma,
num silêncio feliz, num gesto, em suma,
furtivo às aparências exteriores.

Deixa que o teu amor a paz resuma
essas noites propícias aos amores,
em que os gritos das luzes e das cores
ficam velados através da bruma.

Ama-me assim, como se as nossas vidas
duas árvores fossem diferentes,
por desiguais radículas nutridas...

E como se a alegria que abafamos
amargasse nos frutos renascentes
e entristecesse os pássaros nos ramos. . .
===========

Corrégio de Castro
(sem dados biográficos)

" FLOR DO HELIANTO (GIRASSOL) "

Conheces, certo, aquela flor dourada
que volta a face para o sol nascente
e, tendo a face para o sol voltada,
constante o segue, desde a aurora ao poente.

E já notaste que, se anuviada
a esfera de turquesa não consente
se perceba o astro louro, a flor amada
mesmo sem vê-lo, segue o sol ausente?

Também minha alma é como a flor do helianto.
Desde o instante feliz em que te vi
como tocada de um suave encanto,

- não sei que força estranha que senti -
pois em riso ela esteja, esteja em pranto,
trago-a sempre voltada para ti!
============

Cruz e Souza
João da Cruz e Souza,
(Florianópolis/SC, 24 novembro 1862 – Antonio Carlos/MG, 19 março 1898)

" CORPO "
VII

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!

ENCLAUSURADA

Ó Monja dos estranhos sacrifícios.
Meu amor imortal! Ave de garras
e asas gloriosas, triunfais, bizarras,
alquebradas ao peso dos cilícios.

Reclusa flor que os mais revéis flagícios
abalaram com as trágicas fanfarras,
quando em formas exóticas de jarras
teu corpo tinha a embriaguez dos vícios.

Para onde foste, ó graça das mulheres,
graça viçosa dos vergéis de Ceres,
sem que o meu pensamento te persiga?!

Por onde eternamente enclausuraste
aquela ideal delicadeza de haste,
de esbelta e fina ateniense antiga?!

" MAGNÓLIA DOS TRÓPICOS "
                                                 À Araújo Figueredo

Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas,
Ó magnólia de luz, cotovia dos mares,
Formaram-te talvez os brancos nenúfares
Da tua carne ideal, de correções felinas.

O teu colo pagão de virgens curvas finas
É o mais imaculado e flóreo dos altares,
Donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares
Viáticos de amor e preces diamantinas.

Abre, pois, para mim os teus braços de seda
E do verso através a límpida alameda
Onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;

Vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,
No alvoroço febril de um pássaro cantando,
Vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.
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Cruz Oliveira
(Júlio Auto da Cruz Oliveira)
(Maceió/ AL, 5 dezembro 1880 – ????)

" OLHOS "

Olhos! Tantos amei quantos me abandonaram. . .
Tantos cobri de bens, de inefáveis ternuras,
quantos me querem mal, que em lugar me deixaram
de minhas ilusões, desilusões bem duras.

E dizer que os perdoei: que mau grado amarguras
de que venho de encher dias que se passaram,
só lhes desejo o bem das carícias mais puras
- que hoje me apraz perdoar os que me não perdoaram!

E isso me cura um pouco esse desgosto imenso
de amá-los, esse tédio, a fartura, o cansaço
da vida; e me dá mesmo um prazer quando penso

nas vezes em que a sós eles se consideram
e me admiram mais, pelo bem que lhes faço,
do que eles pelo mal que sempre me fizeram.
===========

Cynthia Castello Branco
(sem dados biográficos)

" PROFANAÇÃO "

Tenho-lhe um ódio quase extravagante
depois de havê-lo amado com loucura...
As vezes penso que se o amor não dura,
tece correntes, mesmo agonizante!

Sinto-me escrava dele e a cada instante
pergunto-me a razão desta clausura! . . .
Talvez porque nascendo é uma ventura,
o amor que morre é sempre vigilante.

Quero afastar os laços que me prendem
ao meu destino, assim como se eu fora
este chão que ele pisa . . . E, entretanto,

garras do Tempo sobre mim se estendem
e é uma vertigem doida, embriagadora,
odiá-lo assim depois de amá-lo tanto!

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Acruche Collection - Trova 10

Imagem com trova obtida no Facebook do Trovadot

Contos do Folclore Brasileiro (O Menino e a Vó Gulosa)


O menino só possuía um guiné. Numa ocasião de necessidade matou o guinezinho e saiu pra adquirir farinha. Quando voltou, a avó, que morava com ele, comera o guinezinho inteiro. O menino reclamou muito e avó lhe deu um machadinho.

 Saiu o menino pela estrada e encontrou o pica-pau furando uma árvore com o bico.

 — Pica-pau! Não se usa mais o bico para cortar pau. Usa-se um machadinho como esse…

 — Oh! Menino! Empreste-me o machadinho.

 O menino emprestou o machadinho ao pica-pau e este tanto bateu que o quebrou.

 O menino recomeçou a choradeira:

 — Pica-pau, quero meu machadinho que minha avó me deu, matei meu guinezinho e minha avó comeu.

 O pica-pau deu ao menino um cabacinho de mel de abelhas. O menino continuou a viagem e lá adiante viu o papa-mel lambendo um barreiro que só tinha lama.

 — Papa-mel! Não se usa mais beber lama. Usa-se beber um melzinho como esse…

 — Oh! Menino! Me dê um pouquinho desse mel!

 Que pouquinho foi esse que o papa-mel engoliu todo o mel e ainda quebrou o cabacinho. O menino abriu a boca no mundo, berrando. O papa-mel presenteou-o com uma linda pena de pato. O menino seguiu.

 Lá na frente encontrou um escrivão escrevendo com uma pena velha e estragada.

 — Escrivão! Não se usa mais escrever com uma pena estragada como essa e sim com uma boa e novinha como esta aqui…

 — Oh! Menino! Empresta-me tua pena…

 O bobo do menino emprestou a pena. Num instante o escrivão estragou a pena. O menino cai no prato. O escrivão lhe deu uma corda.

 Depois de muito andar, o menino avistou um vaqueiro tentando laçar um boi com um cipó do mato.

 — Vaqueiro! Não se usa mais laçar boi com cipó e sim com uma corda como essa.

 — Oh! Menino! Me empresta essa corda.

 O menino, vai, emprestou. Num minuto o vaqueiro laçou o boi mas rebentou a corda.

 Novo chororô do menino. O vaqueiro lhe deu um boi.

 O menino viu a onça, uma enorme, comento um resto de carniça.

 — Onça! Não se usa mais comer carniça e sim um boi como esse meu!

 — Oh! Menino! Me dê o seu boi!

 E comeu o boi. O menino ficou no soluço, choramingando e pedindo o boi:

 — Onça, me dê meu boi que o vaqueiro me deu; o vaqueiro quebrou minha cordinha, a cordinha que o escrivão me deu; o escrivão quebrou minha peninha, a peninha que o papa-mel me deu; o papa-mel bebeu meu melzinho, o melzinho que o pica-pau me deu; pica-pau quebrou meu machadinho, o machadinho que minha avó me deu; matei meu guinezinho e minha avó comeu!

 A onça como não tinha coisa alguma para dar ao menino, disse, rosnando:

 — O boi foi pouco e vou comer você!

 E comeu o menino.

Fonte:
Jangada Brasil. Setembro 2010. Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário.

Jandira Mello de Almeida Cahet (Cristais Poéticos)


UM GRITO DE AMOR

Docemente imersa e submersa
na doçura do seu olhar
ardendo em chamas secretas
numa louca sinfonia
  
Vem com o encanto do momento
florido com a luz da lua
com desejo de ser amado
 nos encantando de prazer
  
Seu amor desarrumou meu coração,
mas arrumou minh'alma solitária
há uma primavera agora nos meus dias
perdida na imensidão de tanto querer
  
Alguém modula no teclado
um belo noturno raro
que nos acompanha na noite em flor
partitura que embalamos
para dar forma ao nosso amor
  
Tem um canto de doçura 
na flor que abre no meu peito
nas suas palavras nasce a loucura
do sonoro mar quando me deito

NOTURNO DA DESOLAÇÃO

Em triste sussurrante refúgio de agonia
após noite indormida debaixo da ponte,
resignado, só o abandono lhe assedia
tremulando de ternura e sem horizonte

Sob um tíbio luar quase adormecido
com fragmento que escora sua ruína
traz lampejo de um cometa envelhecido
só a morte neste mundo lhe fascina

Seqüela de solidão na aparência
descobre que esperar não pode mais
pela vida que o excluiu com negligência
e pelos seres irmãos por diferenças sociais

Nenhum tempo de júbilo para os que caminham
denegando a dúbia forma de desesperança
sob fortes sinas que advinham
como vozes que fenecem sem lembranças

Na súplica da última anunciação
galga a escada dos martírios
paira nos céus da consolação
submerso no mundo dos delírios.

RE - ENCONTROS

E nos dizem as predições:
Interregno fez-se magia,
Pois falaram alto as emoções
Dos encontros com alegria.

Consta nos astros a alquimia
Existente entre afetos
Psicanálise e poesia
passam por filhos e netos

Tempos idos sofreguidão
Tempos lindos alvorecer
O final da abstração
Início d'um renascer.

Consta na vida a empatia
Dores doídas, regressões
Trocamos saber, catexia
Como queria a ilusão

Urge o tempo e nosso vinho
Sonhos sonhados, traçador
Entrelaçados de carinho
Do silêncio tecedor.

DISSONÂNCIA

Na favela a miséria disfarça a fome
e a vida não se revela
boca sem dentes:  não se come
sequer a solidão floresce amarela

 A favela encobre a miséria;
 casebres, fendas, emendas
 alastram e consomem a matéria
e a fome traz torturas horrendas

Na favela as crianças pulsam no espaço
- sussurro de lamentação materna -
 o silêncio é escasso,
pois a lei do burguês  governa

As unhas de encardidas mãos
num clamor de súplica, dos desesperados,
aquele que vivia em vão
e os que estão vivos agonizados

Vivem para além do desespero e da esperança
na ignorância e no saber dos abandonados
o efeito de ser ferido que transmuta em vingança
o crepúsculo de nascer e morrer dos renegados.

SONATA AO LUAR

Acordei como flores sorrindo
os rios estavam cantando
todo meu ser vive florindo
 com os humores trocando

Quando a natureza canta
fico em cima de um oiteiro
meu pensamento se encontra
voando para o Rio de Janeiro

Ah! é o teu canto que aparece
que pousa um momento em mim
é um encanto o que me acontece
no verso quando sonho com jasmim

Longe de mim a vida não existe
se estás longe corro e me procuro
 sombra é o movimento que consiste
na eterna felicidade que mensuro

a lua quando desce a terra 
piso nos astros distraída
sua luz perfeita encerra
toda doçura desta vida

A VIDA

A vida é como certa chuva,
 ergue-se do mar ao encontro das nuvens
 A grinalda enfeitada de uva
 e de angúnstias perde-se os bens.

 Ninfas cantam Euterpa a Alegria,
 jasmins bailam no paraíso,
 a beleza persegue Afrodite com euforia 
 e Eco embala o amor de Narciso.

 Ouço sonho de velhos companheiros
 rodopiando em torno da silente vida
 com temores de pássaros faceiros
 que o tempo não elucida.

 Chove cá embaixo nas horas incertas
 Sócrates faz parir idéias pela maiêutica,
 o nirvana é a paz para o humano,
 para o texto sagrado a hermenêutica 
 e a vida dos mortais um engano

CANTO DO AMOR PERDIDO

 Entre as estrelas mais perfumadas
 floresceu um amor como o arco-íris
 por um segundo pensei encontrar-me sonhando
 e neste tempo minh'alma se encantou

 Ao cantar do melro tagarela
 comecei a fazer versos tão amados
 o amor me pegou desprevenida
 e no descompasso do meu coração
 comecei a viver esta ilusão

 Doces beijos e carícias tresloucadas
 me despertavam a todo instante
 o céu me parecia mais azulado
 meu ser cantava em euforia

 Nos lençóis macios do amanhecer
 me encontrei a sorrir despreocupada
 seria a felicidade acontecendo
 ou mais uma ilusão dos apaixonados?

PERFUME DE MULHER

 Acordei como flores sorrindo
 Os rios estavam cantando
 Todo meu ser vive dormindo
 E com os humores trocando

 Pois quando a natureza canta
 Fico no cimo de um oiteiro
 Meu pensamento se encontra
 Voando para o Rio de Janeiro

 Não, não é o teu canto que aparece
 Que pousa um momento em mim
 mas o fantasma que acontece
 No verso com cheiro jasmim

 Longe de mim, só em mim existe
 Depois do teu amor violáceo
 E o olor que persiste
 É açucena verbenáceo

 A lua quando desce a terra 
 Pisa nos astros distraída
 Sua luz perfeita encerra
 Toda doçura desta vida.

Fontes:
http://www.teiadosamigos.com.br/Nossos_Poetas/jandira.html
http://www.avspe.eti.br/poetas1/jandira.htm 

Cláudia Dimer (Os Passos dos Meus Sonhos)