domingo, 14 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 7

Dentre toda essa bela existência só uma coisa o contrariava sem que todavia deixasse o Coruja transparecer o menor desgosto contra isso: — Era a teimosa perseguição que lhe fazia D. Geminiana. A rezingueira senhora achava sempre um mau gesto ou uma palavra dura para lhe antepor aos atos mais singelos. Manifestou-se-lhe logo a impertinência a propósito da flauta do rapaz. André, coitado, não desmentia o mestre que lhe dera o acaso, e D. Geminiana, uma noite em que conversava com o noivo, depois de ouvir por algum tempo o fiel discípulo do Caixa-d’óculos arrancar do criminoso instrumento certas melodias bastante equivocas, foi ter com ele, sacou-lhe vivamente das mãos o corpo de delito e, atirando com este para cima de um canapé, tornou ao lado de Hipólito, sem dar uma palavra ao delinqüente, rico, porém, de gestos e caretas muito expressivas.

O homem das barbas ruivas e cabelo preto observou tudo isso em silêncio, contentando-se apenas com sacudir a cabeça e apertar os beiços em sinal de aprovação.

Coruja, quando os noivos mergulharam de novo no seu colóquio, retomou sorrateiramente a flauta e fugiu com ela para um caramanchão de maracujás, que havia a alguns passos da casa. Supunha que daí não seria ouvido pela ríspida senhora; mas, no dia seguinte, procurando o instrumento não o encontrou em parte alguma.

— Minha flauta?... Perguntou ele a D. Geminiana.

— Está guardada! Disse essa secamente. Só lha restituirei quando o senhor voltar para o colégio.

Coruja resignou-se, sem um gesto de contrariedade e não falou a ninguém sobre esse incidente, nem mesmo ao amigo. Com efeito, só tornou a ver sua querida flauta ao terminar das férias, quando se dispunham, ele e Teobaldo, a voltar para o internato do Dr. Mosquito.

O barão foi levá-los em pessoa ao colégio, e Santa, chorando pelo filho, despedira-se do Coruja, dizendo-lhe:

— Continue a ser amigo de Teobaldo e nós faremos com que você passe aqui as férias do ano que vem.

CAPÍTULO IX

Com o correr do seguinte ano, a dedicação do Coruja pelo amigo parecia crescer de instante para instante. Uma leoa não defenderia os seus cachorros com mais amor e mais zelos.

Já não se contentava André com resguardá-lo das ameaças e malquerenças dos colegas, como exigia também de todos que lhe rendessem a mesma estima e o mesmo respeito, que lhe tributava ele.

Teobaldo, vadio como era por natureza, quase nunca estudava as lições, e quando não lhe valiam os recursos do seu "proverbial talento" ou da sua astúcia, tinha de copiá-las quatro, cinco ou seis vezes, conforme fosse o castigo. Então se revoltava e queria protestar contra a sentença dos mestres, mas o Coruja puxava-lhe  a ponta do casaco e dizia-lhe baixinho:

— Não te importes, não te importes, que eu me encarrego de tudo...

E, com efeito, mal chegava a hora do recreio, enterrava-se André no quarto de estudo e, imitando a letra do amigo, aprontava as cópias; feliz com aquele trabalho, como se o descanso do outro fosse o seu melhor prazer. Muita vez perdeu com isso grande parte da noite, e no dia seguinte ainda encontrava tempo para tirar os significados da lição do amigo, para resolver-lhe os problemas de álgebra e fazer-lhe os temas de latim.

Uma vez, em que o Coruja se apresentou nas aulas sem haver preparado as próprias lições, o professor exclamou com surpresa.

— Oh! Pois o senhor, seu André, pois o senhor não traz a sua lição sabida!... Então que diabo fez durante o tempo de estudo o senhor que não larga os livros?...

Entretanto, o outro Teobaldo, estava perfeitamente preparado. Esta dedicação fanática de Coruja pelo amigo crescia com o desenvolvimento de ambos; mas em Teobaldo a graça, o espírito e a sagacidade eram o que mais florescia; enquanto que no outro eram os músculos, o bom senso, a força de vontade e o férreo e inquebrantável amor pelo trabalho.

Agora, o pequeno do padre já emitia opinião sobre várias coisas, já conversava; tudo isso, porém, era só com o seu amigo íntimo, com o seu Teobaldo. Parecia até que, à proporção que abria o coração para este, mais o fechava para os estranhos.

Quando terminou o ano, o filho do barão havia crescido meio palmo e o Coruja engrossado outro tanto; aquele se fizera ainda mais esbelto, mais distinto e mais formoso; este ainda mais pesado, mais insociável e mais feio. Afinal, assim tão completados, formavam entre os seus companheiros uma força irresistível. Teobaldo era a palavra cintilante e ferina, era a temeridade e o arrojo; o outro era o braço em ação, a força e o peso do músculo. Um provocava e o outro resistia.

Um era o florete aristocrático, fino e aguçado, que só tem a serventia de palitar os dentes do orgulho; o outro era o malho grosseiro e sólido, que tanto serve para esmagar, corno serve para construir.

Partiram de novo para a fazenda,, deixando atrás de si a solene gratidão do colégio pelo catálogo da biblioteca, que "eles" concluíram e ofereceram ao estabelecimento; e deixando também por parte de seus condiscípulos um rastro de ódios, ódios que serviram aliás durante o ano para melhor os aproximar e unir, acabando por constituí-los em uma espécie de ser único, do qual um era a fantasia e outro o senso prático.

Foi então que lhes chegou a notícia da morte do padre Estêvão; sucumbira inesperadamente a um aneurisma, do qual nunca desconfiou sequer, e, no testamento, legara o pouco que tinha a uma comadre e àquela criada de mau gênio que o servira.
Quanto ao Coruja, nem uma referência, nem um conselho ao menos; o que fazia crer fosse escrito o testamento antes da adoção do pequeno e nunca mais reformado.

Esta circunstância da morte do padre levou André a pensar em si, a pensar na sua vida e no seu destino. Interrogou o passado e o futuro e, pela primeira vez, encarou de frente a posição que ocupava ali, naquela fazenda do Barão do Palmar, esse protetor tão do acaso como o primeiro que tivera ele. Então notou que na sua curta e triste existência passara de uma para outra mão, que nem um fardo inútil e sem dono.

— Que será de mim? Perguntava o infeliz a si mesmo nas suas longas horas de concentração. Mas o amigo, com a prematuridade intuitiva do seu espírito, saltava-lhe em frente, antecipando razões, como se adivinhara todos os pensamentos de André.

— Em que tanto pensas tu, meu urso? Perguntava-lhe ele, quando se achavam a sós, no bosque; já ontem à noite não quiseste aparecer na sala e cada vez mais te escondes de todos, nem como se fosse um criminoso.

— E quem sabe lá?

— Quê? Se és um criminoso?...

— Sim. A necessidade, quando chega a um certo ponto de impertinência, que mais é senão um crime? Que direito tenho eu de incomodar os outros?

— Exageras.

— Não. A caridade é muito fácil de ser exercida e chega a ser até consoladora e divertida, mas só enquanto não se converte em maçada.

— Não te compreendo...

— Pois eu me farei compreender. Vou contar-te uma parábola, que o defunto padre Estêvão repetia constantemente.

— Venha a história.

— Senta-te aí nesse tronco de árvore e escuta:

Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.

"— A caridade, dizia ele, deve ser exercida sempre e apesar de tudo". Vai um caboclo, que o ouvira atentamente, perguntou-lhe depois do sermão:

“— Ó sôr padre, é caridade enterrar os mortos”?

"— Decerto, respondeu o pregador; é uma obra de misericórdia".

E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada; quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se, e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura, sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém, não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de todo a paciência e, tomando a raposa 'pelo rabo, lançou-a ao mato com estas palavras: "Leve o diabo tanta raposa morta!" Então o caboclo lhe apareceu e disse: "— Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!" Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse...

— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar...

— Decerto, porque tudo cansa neste mundo.

— És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.

— Ah! Eles não me ouvirão, podes ficar tranqüilo. Só a ti falo porque nós nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.

— Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.

— Mas não me perdoam, como tu perdoas, o fato de ser eu tão feio, tão antipático e tão desengraçado...

— Ora! Aí vens tu com a cantiga do costume. Deixa-te disso e vamos dar um passeio à rocinha do João da Cinta.

— Outra vez? Que diabo vamos lá fazer agora?

— Convidá-lo e mais a família para virem ao casamento da tia Geminiana.

— É sempre no dia 15 o casamento?

— Infalivelmente, e o alfaiate deve trazer-nos amanhã os nossos fatos novos. Mas, anda, vamos!

Coruja ergueu-se do lugar onde estava assentado e acompanhou o amigo, que já se havia posto a caminho.

Três quartos de hora depois chegavam a um grande cercado de acapu, a cuja frente corria um riacho quase escondido entre a vegetação. Teobaldo parou, disse ao amigo que esperasse um pouco por ele e, trancando pelos barrancos do riacho, foi ter à cerca e soltou um prolongado assobio. A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.

— Ah! Disse ela, vindo encostar-se às estacas.

— Não esperavas por mim?... Perguntou o rapaz. A pequena respondeu, entregando-lhe um ramilhete que trazia à sorrelfa. E perguntou depois como passava de saúde o Sr. Teobaldo.

— Com saudades tuas... Disse o moço, tomando-lhe uma das mãos.

— Mentiroso...

— Não acreditas?

Ela encolheu os ombros, a sorrir, de olhos baixos.

— Dize a teu pai que não deixe de ir com vocês ao casamento de tia Gemi. Vim convidá-los.

— Entre. Fale com mamãe. Ela está aí.

— Não; é bastante que lhe dês o recado.

E mudando de tom:

— Não faltes, hein, Joaninha?...

— Se me levarem, eu vou.

— Vá, que lhe tenho uma coisa a dizer...

Teobaldo havia conseguido passar o braço por entre duas estacas da cerca e segurava a cintura da rapariga; deu-lhe um beijo; ela o retribuiu com outro de igual sonoridade, fazendo-se muito vermelha e fugindo logo em seguida.

Este namoro, inocente de parte a parte, era o primeiro de Teobaldo. Nascera naquelas férias um dia em que ele, por acaso, encontrou a pequena a lavar no riacho em frente da casa as roupinhas do irmão mais novo. Desde então ia vê-la todas as tardes antes do jantar; falavam-se às vezes à beira do córrego, outras vezes com a cerca de permeio. De certa época em diante ela o esperava com um ramilhete; conversavam durante um quarto de hora e despediam-se com um beijo. O Coruja foi logo o depositário do segredo; Teobaldo contou-lhe a sua aventura e exigiu que ele o acompanhasse todos os dias à rocinha do João da Cinta, quedando-se a certa distância durante o tempo da entrevista.

André consentiu, sem mostrar o mais ligeiro espanto pelo que lhe revoltara o amigo.

Ainda inocente e deveras casto, não conhecia os meandros do amor e julgava dos outros corações pelo seu, que resumia toda a gama do afeto e da ternura em uma nota única. Não calculava a que podia chegar aquele inocente namoro originado entre o filho do Sr. Barão do Palmar e uma sertaneja, que nem ler sabia.
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continua…

sábado, 13 de julho de 2013

Antonio Brás Constante (O Dia dos Solteiros Escrito por um Casado)

No dia 29 de julho comemora-se o dia do solteiro. O termo "solteiro" se traduz em uma etapa da vida do homem (e da mulher, mas vou me referir neste texto apenas aos homens). Todo mundo já foi solteiro em algum momento de sua existência, indiferente se for homem, mulher, cavalo, golfinho ou barata, isso faz parte do ciclo de vida dos seres vivos, um ciclo que quando se refere aos homens muitos descrevem afirmando assim: Os homens nascem, crescem, ficam bobos e casam (outros já acham que o homem é bobo por natureza é por isso ele não fica bobo, e sim, nasce bobo).

Navegando pela internet por esses dias li a máxima diferença entre os solteiros e os casados, onde dizia que o casamento se resumia em se trocar a admiração de várias mulheres pela critica de uma só. Ou como já dizia o comediante Rafinha Bastos: "O homem nunca está satisfeito, quando está solteiro quer casar, quando está casado quer MORRER, e por aí vai..."

O parágrafo acima é com certeza um total absurdo, falo isso com toda liberdade de uma pessoa que acaba de descobrir que a esposa está atrás de si neste exato momento, lendo cada palavra até o momento escrita... E... E... E aproveitando que minha amada e doce esposa saiu para buscar algo, lembrei de uma frase que li há poucos dias onde dizia que a celulite na mulher serve para expressar o quanto ela é gostosa, só que em braile (como existe gente asquerosamente criativa neste mundo).

Outro dia conversei com um amigo que me contou que foi questionado se sua mulher estava com ele por amor ou por interesse, e ele francamente respondeu: "Oras, logicamente por amor, porque quando transamos ela não demonstra interesse nenhum...". Porém, não devemos tratar as mulheres de forma machista, pois elas sofrem com isso, o que me faz lembrar de uma frase que traduz bem este sentimento feminino que dizia: "Quando uma mulher sofre em silêncio é porque seu celular está sem créditos"

É iNcrIveL cOmo umA mulhEr cOnSeguE chEgaR sEm faZer BarUlHO. QueRO Me desCULPAR pelA FormA coM qUe eSTou esCRevENdo agoRa, mas é DiFIciL diGItAR enqUANtO sE esTá SENdo ESGANADO pelA PropRIa ESPOSA! (Ufá! Ela Parou). Bem vou terminando estas mal traçadas linhas (se este for meu ultimo texto, lembrem-se de mim com carinho e pelo meu sorriso, e não pelos hematomas que passarei a sofrer depois de dar o ponto final).

Brincadeiras a parte (SOCORRO, ELA VAI ME MATAR!!!), o desejo da maioria dos solteiros e solteiras que vivem por aí é encontrar a sua cara metade e viverem felizes para sempre (ou enquanto o processo de divorcio durar), pois quem está de fora quer entrar e quem está dentro não quer mais sair. ADEUS...

Fonte:
O Autor

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Ruídos e Rumores

As almas têm umas irradiações pouco observadas - sem nada de comum com a transmissão de pensamento, o magnetismo e análogas complicações etéreas, ódicas e místicas.

Não há uma ciência (e ainda bem, arre!) mas há uma arte, uma pequena arte sutil sobre a caça das irradiações da personalidade, através dos rumores e das vozes.

Tenho uns vizinhos esquisitos, um casal velho que vive fechado em casa e raramente se deixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes, passos, tosses, assoadelas arrastamentos de móveis, bater de pregos, -tudo espaçado e abafado, passando através das paredes como vagas mensagens de um mundo sigiloso.

Ponho-me, às vezes, a escutar esses rumores e, à força de os ouvir e comparar, não só eduquei o ouvido para lhes perceber as menores variações, como consegui fixar o valor expressivo de alguns deles.

Cheguei à conclusão de que o homem é gordo, rude, voluntarioso, e talvez com um defeito numa das pernas. Pisa com força e peso, mas de um jeito claudicante; tosse de um modo rápido e sacudido; os ruídos que produz batendo pregos ou fechando portas são sempre céleres e inteiriços, e sua voz é robusta e serena.

Por que então não sai de casa? Provavelmente, algum incômodo ou lesão localizada, que o impede sem lhe afetar o estado geral.

Quanto à mulher, deve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seus passos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a um arrulho monótono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente gemidos. Esses espirros por si sós ainda me fornecem uma indicação: a senhora é do interior de São Paulo, provavelmente de lugar pequeno, e talvez da zona sorocabana.

Outro dia, tive um susto: o homem entrou a falar alto e ríspido, a dar passadas por toda a casa.

Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava, parava de quando em quando, falava falava, e depois punha-se a andar de novo, para de novo estacar e falar: o ritmo característico de uma crise de raiva recriminante.

Mas que poderia ter-lhe feito a pobre velhota, tão calma e resignada?

Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e só descansei quando ouvi um espirro da vizinha: atchiii!... Esse espirro, longo, pacífico, modulado pela forma exata do hábito, garantia que a zanga não era com ela.

Hoje, finalmente, viajei de bonde com o casal, que saiu conforme às revelações sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca e sumida. Ao tratarem de descer, ele puxou a corda da campainha num golpe incisivo e forte. Desceram, e então vi que ele tinha um pé inchado em chinelo.

Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha.

As vibrações indicam o sexo, a idade aproximada e o temperamento de quem as faz retinir. Há campainhadas tímidas, indecisas, distraídas, discretas, nervosas, indolentes, autoritárias, coléricas.

Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase uma quadra de distância, declarando, calmas e incisivas: "Pare aí adiante; olhe que está avisado!"

Outras exprimem certa dúvida: "Deverei saltar aqui?... Será aqui mesmo o ponto que me convém?..."

Outras enfim, após tantas, deixam transparecer a surpresa de um apalermado que de repente se achou no ponto de parada sem ter dado por isso: "Oh, diabo, cá estou; pára aí!"

A linguagem das campainhas pode, porém, exprimir coisas ainda menos triviais.

Outro dia, vinha um passageiro novato no bairro, que mandou parar em certo ponto, e não desceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha, acionada pelo condutor, um português muito plantado em si mesmo: "Bom, vamos embora."

Duas esquinas adiante, o homem dá nova ordem de parada, e ainda não desce: tinha-se enganado outra vez. Então, a correia da campainha fuzilou nos ganchos como uma chicotada, e o metal retiniu com tal expressão, que se entendeu perfeitamente: "Roda!. .. Raios o parta!"

Há um conto de Gautier O Ninho de Rouxinol, onde figuram umas jovens estranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo o universo, para elas, se traduz em música, e só em música elas traduzem o que sentem e pensam.

Realmente, não há nada que não se possa resolver em música, e é lícito conceber-se um mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e das almas. Sem irmos, porém, às alturas da imaginação, é fácil reconhecer que tudo trivialmente, em redor de nós, se manifesta por sonoridades, ruídos e silêncios.

Sabe disso toda a gente que dispõe da integridade do seu aparelho auditivo. O que pouca gente sabe é como se podem obter impressões novas, surpreendentes e divertidas das coisas e das almas que nos rodeiam, - apenas aplicando o ouvido à sondagem e interpretação dos sons.

Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missão de observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a um simples papel de serviçal obediente às determinações da vontade. Vemos tudo, mas só ouvimos o que queremos. É incrível a capacidade de que dispomos para eliminar as impressões do ouvido, no meio do rumor infernal das ruas, do bruaá de um café regurgitante de palradores.

Ainda hei de escrever um artigo sério para um jornal sério, um artigo científico, cheio de termos técnicos como um queijo cheio de saltões, a propugnar a educação e a aplicação mais racionais das faculdades auditivas. Quantos afluxos de sensações sistematicamente rejeitados, e que poderiam ser tão úteis á inteligência, e úteis à própria defesa do indivíduo!

E depois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer um uso mais consciente, mais constante e mais largo desse aparelho receptor, seria impossível que um grande número de cidadãos não se insurgissem afinal, indignados, exigentes, furiosos, contra a pandemônica, vertiginosa e martirizante barulheira da cidade, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila.

Fonte:
Domínio Público

Hilda Mendonça (O Alerta, de Charles Pereira)

O Alerta foi dado. A Vela ainda acesa. E um alerta requer certo cuidado. Tenho em mãos o livro do advogado Charles Pereira, vice-presidente da Escritores & Companhia, O Alerta. A curiosidade despertada, examino a capa, confecção gráfica impecável (Com cara de best-seller!). Vejo uma vela acesa, certos planos piramidais de fundo induzem ao mistério. Nas orelhas, citações bíblicas já nos dão um pouco a direção do fio condutor que envolve o romance. Embora obra de ficção, este Alerta nos leva a repensar realidades que estão a ocorrer no dia a dia da humanidade e à reflexão sobre os fins dos tempos. Trata-se de um romance de 190 páginas, com boa diagramação, editado em 2011 pela All Print-Editora, do autor Charles Pereira. Charles não se deixou prender a superstições que rondavam o imaginário popular sobre o terceiro Milênio, contudo não consegue fugir totalmente às indagações do tema.

Há um escritor nascido em Passos e que se assina João Passos, que também escreveu um livro profundo nesta linha: Os seis últimos dias, se não me falha a memória, pois já o li há algum tempo. Contudo, este Alerta de Charles Pereira não usa a pesquisa com documentos comprobatórios, como o caso de João Passos. Charles Pereira conseguiu, com este seu Alerta, construir uma trama bem amarrada, mantendo fidelidade ao tema proposto do início ao final, o que nem sempre é fácil, e arrematar o livro com a consciência de dever cumprido.

No capítulo 1 é interessante a descrição da cidade, não sei se imaginária ou real, pois em obra de arte às vezes nos perguntamos onde começa e termina o real ou o imaginário, tomando como real aquilo que de fato existe. Do momento em que o autor apresenta um fato ou cenário, ele existe, então perguntamos: o que é real na arte literária?

O livro O alerta nos apresenta o personagem Josué, advogado, profissão que Charles conhece tão bem, visto que também é advogado. Josué encantou-me sobremaneira, não sei se o fato de trabalhar em uma mineradora, sempre admirei essas pessoas de mineradoras e hidrelétricas, por achar que são ocupações de muita adrenalina. Josué já me é simpático de início, e é naquela noite alegre de Réveillon que tem início o mistério, mistério esse que mudaria a sua vida e a de muitos que com ele conviviam. O personagem Josué, ainda naquele torpor de que se lhe acometeu, naquela noite de Réveillon, ouviu misteriosa voz a dizer-lhe: “Estás no celeiro de meu pai”. A partir daí, o texto muito bem delineado, vai envolvendo o leitor e todo autor sabe que o leitor, uma vez “fisgado”, não mais o abandonará.

Depois deste acontecimento, ou seja, aquele estranho episódio, que não vou entrar em detalhes, para não me antecipar ao leitor, fatos estranhos ou nem tanto, pela habilidade do autor, preparam-nos para mais e mais acontecimentos inesperados. A trama flui habilmente e muito bem amarrada, e são ações e mais ações que nos remetem a certo realismo fantástico, entre ficção e realidade, na trajetória de Josué que nos leva a segui-lo até o final proposto.

O alerta não é um livro que se propõe religioso, no entanto, é todo ele recheado de religiosidade, em que o autor está muito seguro do que diz, como se para isso houvera se preparado por longas datas, mesmo sendo uma pessoa jovem.

Não vou aqui me imiscuir em recontar a história, pois isto Charles já o fez com mestria, e tiraria a surpresa do leitor. Posso dizer, entretanto, que valeu por mais esta experiência de leitura que me levou a muitas e salutares reflexões.

Charles Pereira é passense, advogado e o vice-presidente da Escritores & Companhia.

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

Almada Negreiros (Poesias Sem Fronteiras)

Maternidade (Pintura de Almada Negreiros)
ESTORVA-ME A TERRA

Estorva-me a terra por causa do sonho
estorva-me o sonho por causa da terra
eu ando na guerra do sonho com a terra.
Senhores empregados do mundo
tenham santa paciência
vale mais a vida do que a existência.

ENCONTRO

Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.

Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas
torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.

ESPERANÇA

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
não me deixes sozinho
esperança.

ERAM SETE E MEIA

Eram sete e meia.
O mais tarde que podias entrar era até às oito
e depois das oito tornava-se reparado.
Havia ordem no mundo
e meia-hora para nós,
meia-hora que não foi como queríamos
meia-hora em que cada um de nós nos prejudicava
habituados que estávamos a não nos termos visto nunca.
Levámos meia-hora a combinar outra hora para nós
meia-hora que afinal só começou depois de terminada
ao despedirmo-nos até à vista.
E até tornar a ver-te
eu não me senti, nem a fome, nem a sede
nem outra vontade que tu,
fiz como os poetas
que apagam a realidade
para lhe pôr outra melhor por cima.

A SOMBRA SOU EU

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

RONDEL DO ALENTEJO

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.

Olhos caros
de Morgada
enfeitava
com preparos
de luar.

Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são de fitas
desafogo
de luar.

Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.

Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.

Giram pés
giram passos
girassóis
os bonés,
os braços
estes dois
iram laços
o luar.

colete
esta virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

CANÇÃO DA SAUDADE

Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha
irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha
edade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemiterios - as lágens são espessas vidraças transparentes, e
eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres bellas
rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres
são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos.

Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.

RUINAS

Pandeiros rotos e côxas taças de crystal aos pés da muralha.

Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princesas mortas.

Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabeleiras embranquecidas.

Aquelas ameias cingiram uma noite pecados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites reza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castelo de nobres naquele lugar... E a lua, a contar, pára um instante - tem medo do frio dos subterrâneos.

Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e risinhos de sedas.

Aquelas ruínas são o túmulo sagrado de um beijo adormecido - cartas lacradas com ligas azuis de fechos de ouro e armas reais e lisas.

Pobres velhinhas da cor do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar...

Noites de insônia com as galés no mar e a alma nas galés.

Arqueiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos e Amazonas negras. Cavaleiros vermelhos e trombetas de ouro no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.

Uma gôndola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida dizendo pela brisa o aviso da noite.

O sapato d'Ela desatou-se nas areias, e foram calça-lo nas furnas onde ninguém vê. Nas areias ficaram as pegadas de um par que se beija.

Noticias da guerra - choros lá dentro, e crepes no brasão. Ardem círios, serpentinas. Há mãos postas entre as flores.

E a torre morena canta, molenga, doze vezes a mesma dor.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 6

Assim subiram a pequena alameda de mangueiras que conduzia à casa e, dentro em pouco, penetravam todos na sala de jantar. A despeito de se achar naquelas alturas, Emílio cercava-se de todas as comodidades que lhe permitia a época. O seu primeiro casamento abrira-lhe o gosto pelos objetos do luxo asiático e trouxera-lhe uma riquíssima coleção de louças, de sedas e cachemiras, charões, marfins, pinturas, objetos de goma-laca, tetéias de sândalo e tartaruga, e tudo mais que era de costume nesse tempo introduzirem no Brasil os portugueses vezeiros no comércio das Índias.

Viam-se ai também, pelas paredes, quadros antigos, de santos, alguns dos quais haviam pertencido a D. João VI, e das mãos deste passado às do avô de Teobaldo. Viam-se igualmente estalados retratos de damas e cavalheiros da corte de D. José e D. Maria I, detestavelmente pintados, nas suas pitorescas vestimentas do século XVIII e defronte de cujas telas inutilizadas e ressequidas pelo antiaristocrático sol brasileiro, habituara-se o velho Caetano a possuir-se de todo o respeito, porque lhe contava que entre aqueles figurões havia parentes do seu rico amo. E, ao lado da mobília, relativamente nova, descobriam-se clássicas peças de madeira preta, que juntavam ao aspecto daquelas salas uma nota religiosa e grave. Na biblioteca, aliás bem guarnecida, destacavam--se, por entre as estantes, antigas armas portuguesas, dispostas em simetria e caprichosamente entrelaçadas por arcos e flechas do Brasil. Na sala de jantar, dominando a larga e longa mesa da comida, havia um grande retrato de Cromwell, representado na ocasião em que ele invadiu o parlamento inglês de chicote em punho.

O Coruja passou por tudo isso, às cegas, sem ânimo de olhar para coisa alguma. O desgraçado sentia perfeitamente que agora, à luz das velas, a sua antipática figura havia de produzir sobre todos uma impressão ainda muito mais desagradável do que a primeira; sentia-se mais feio, mais irracional, posto em contraste com aquela gente e com aqueles objetos.

Mal se assentaram à mesa, D. Geminiana continuou a observá-lo fixamente e concluiu afinal o seu julgamento franzindo os cantos da boca em um trejeito de repugnância; Santa, porém, não se mostrou tão desagradada e chegou a sorrir para o Coruja, quando lhe passou o prato de sopa.

O barão que havia tomado a cabeceira, fizera sentar o filho ao seu lado e, segundo o costume, conversava com ele, como se estivesse defronte de um homem. Entretanto, o Coruja continuava tão mudo e tão fechado, que do meio para o fim do jantar ninguém mais se animava a dirigir-lhe a palavra.

Depois do café, Santa ergueu-se da mesa e foi pessoalmente dar suas ordens para que nada faltasse ao taciturno hóspede; mandou acrescentar uma cama no quarto do filho e disse ao outro que podia recolher-se quando quisesse. Coruja apertou a mão de todos, um por um, e meteu-se no quarto.

Já vais? Perguntou-lhe o amigo. És um mau companheiro!

Na sala, onde ficou ainda a família, a conversar por algum tempo, veio o Coruja à discussão. Emílio contou o diálogo que ouvira entre o padre e o diretor do colégio, e Geminiana, que parecia disposta a não perdoar ao órfão o ser tão desengraçado, acabou ela própria louvando o procedimento do cunhado.

CAPÍTULO VIII

Ninguém seria capaz de descrever a comoção que se apoderou do Coruja na sua primeira manhã daquelas férias. Ergueu-se antes do despontar do sol, vestiu uma roupa de Teobaldo, que lhe mandaram pôr ao lado da cama, e, com as calças e as mangas dobradas, saiu mais o companheiro ao encontro do barão, que já esperava por eles à margem de um rio, situado a cinqüenta passos do fundo da casa. Era aí que Emílio dava ao filho as suas lições de natação. Mas não houve meio de conseguir que o Coruja se despisse na presença dos outros. Já em casa do padre, e também no colégio, observava-se a mesma coisa; tinha o Coruja um pudor exageradíssimo, uma invencível vergonha da nudez; não podia admitir que ninguém lhe visse a pele do corpo. E só depois que o barão e o filho se banharam, consentiu ele, bem certo de que não era espiado, em meter-se n’água.

Sem dar demonstração, o Coruja estava maravilhado com tudo que ia se patenteando em torno dele. Seu coração puro e compassivo, abria-se para receber amplamente aquela grande paz do campo tão simpática às precoces melancolias de sua pobre alma. E as castas propensões do Coruja, os gostos imaculados que dormiam a sono solto dentro dele, tudo isso acordou alegremente aos primeiros rumores da floresta e as primeiras irradiações da aurora como um bando de pássaros quando vai amanhecendo.

Nunca se julgou assim feliz. Todas aquelas, vozes da natureza. todo aquele aspecto tranqüilo das matas e das montanhas, tudo o fascinava secretamente, como se ele tivera nascido ali, entre aquelas coisas tão calmas, tão boas, tão comunicativas. Os currais, os trabalhos agrícolas, o gado grosso e o gado miúdo, a criação dos animais domésticos, a cultura dos legumes e hortaliças, tudo isso tinha para ele um encanto muito particular e muito suave.

— Então? Que tal achas isto aqui? Perguntou-lhe Teobaldo, depois de mostrar ao amigo as benfeitorias da fazenda.

— Tudo muito bom, respondeu ele.

— E o velho? Que tal!

— Bom, muito bom.

— E Santa?

— Uma Santa.

— E a tia Gemi?

— Não é má.

— Um pouquinho resingueira, não e verdade? Mas não faças caso, que ela se chegará as boas. Olha! Se a quiseres agradar, faze-te devoto; reza-lhe dois padre-nossos e tê-la-ás conquistado.

E mudando logo de tom;

— Depois do almoço temos um passeio com o velho. Vais ver o que é bom! Sabes montar a cavalo?

— Não, mas aprendo. Onde é o passeio?

— À fazenda, do Hipólito. Não é longe.

— Que Hipólito?

— Um vizinho nosso, amigo do velho e pretendente à mão da tia Gemi.

— Ah!

— Vem comigo à estrebaria.

Defronte dos animais, Teobaldo chamou a atenção do amigo para um belo cavalo alazão, meio sangue, que o pai lhe havia comprado ainda o ano passado.

— Eu preferia aquele burro... Disse o Coruja, depois de examinar minuciosamente as bestas.

— Quê? Pois preferes o jumento àquele belo alazão?...

— Decerto.

— Mas, por quê?

— Não sei: gosto mais do burro que do cavalo.

— Que gosto! Antes andar a pé.

E acrescentou ainda apontando para o alazão:

— Olha só para aquilo! É um animal nobre! Parece que tem consciência do seu valor!

Terminado o almoço e vestido o Coruja pelo melhor que se pôde arranjar, o barão, os dois meninos e o velho Caetano abandonaram a casa e encaminharam-se para a estrebaria.

— Sabes, papai? O André prefere ir no burro.

— Porque não é cavaleiro. O burro com efeito é muito menos perigoso para ele. Anda com isso, ó Caetano.

Prontos os animais, o velho criado ajudou Coruja a cavalgar o burro.

— Não tenha medo! Gritou-lhe, a segurar a brida. Esta besta é mais mansa do que uma pomba!

André, todo vergado sobre o peito e a segurar as rédeas com ambas as mãos, não conseguia endireitar-se na sela do animal, por mais que o amigo lhe gritasse.

— Espicha as pernas, rapaz! Levanta a cabeça! Pareces um macaco!

O barão e o filho, uma vez montados, meteram entre os seus cavalos o jumento em que ia o Coruja, e puseram-se a caminho, seguidos a certa distância pelo criado, cuja libré dava à modesta cavalgata um ligeiro colorido de aristocracia. Os primeiros minutos do passeio foram todos gastos com André, que, diga-se  a verdade, fazia o possível para bem aproveitar as lições.

— Assim! Assim! Gritou-lhe Teobaldo, metendo as esporas no animal; afrouxa um pouco mais a rédea e mete-lhe o chicote com vontade! Não tenhas medo! Coruja foi pôr em prática esta ordem, mas com tal precipitação o fez que o burro se espantou e, dando um salto, cuspiu-o por terra.

— Ó diabo! Exclamou Emílio, fazendo parar o seu cavalo.

— Ficaste magoado? Perguntou Teobaldo ao amigo.

— Foi nada! Disse o Coruja, erguendo-se a segurar o asno pela rédea, e, antes que lhe pusessem embargos, tomou o estribo, galgou de um pulo a sela e, tocando o animal com certa energia, gritou aos companheiros:

— Vamos adiante!

E às quatro da tarde, sem nenhum outro incidente desagradável, voltavam à fazenda, trazendo consigo o tal Hipólito, que parecia embirrar com o Coruja ainda mais do que a própria noiva.

Mas com quem não embirraria aquele demônio de barbas pretas e cabelo ruivo, eterno maldizente, capaz de encontrar pontos de censura na vida de Santa Maria e nas de S. José?

O barão suportava-o, tão somente para não prejudicar a trintona cunhada, que arriscava-se a ficar solteira se lhe escapasse ocasião de ter marido. Hipólito era já um bom arranjo, tinha algum dinheiro e prometia ir muito mais longe com o seu sistema de economia que orçava sensivelmente pela avareza.

A política era talvez a sua paixão dominante; ele, porém, a disfarçava quanto possível e não se metia com os partidos, receoso de gastar alguma coisa. Aparecia freqüentemente na fazenda de Emílio e estava sempre a criticar, em segredo com a noiva, a educação que davam a Teobaldo.

— Deus queira que não venham a amargar mais tarde! Dizia Hipólito, cheio de repreensão. Nunca vi em dias de minha vida semelhante gênero de ensino! Pois se até o fedelho trata aos pais por tu, como se estivesse a falar com os negros! Enfim cada um faz o que entende; eu, porém, tenho o direito de achar bom ou mau.

 Outro pretexto constante para a sua indignação era a vida dispendiosa de Emílio.

— Para que tanta prosápia e tanta galanice? Resmungava frenético. Ora eu, que sei perfeitamente com que linhas ele se cose, não posso ver isto a sangue frio!  As conseqüências deste esbanjamento bem sei eu quais são: os parentes que se apertem! Mas, não há de ser comigo que ninguém se arranjará: Cá sei quanto me custa a conservar o que tenho! E já não é pouco!

Que importava, porém, a mastigação do serrazina, se ela ficava sepultada nas discretas orelhas de D. Geminiana? Não seria por isso que as matilhas do Sr. Barão deixariam de acordar as florestas com seus latidos, à madrugada, em busca de anta ou do porco bravo; não seria por isso que a mesa do fidalgo seria menos farta. os seus cavalos menos de raça e os seus vinhos menos escolhidos e generosos.

Assim se abria para o Coruja uma existência completamente nova e imprevista, mas muito ao sabor do seu gênio rústico e simples. A certos divertimentos ia entretanto só pela satisfação de acompanhar o amigo, porque, à medida que ele se familiarizava com o campo, acentuavam-lhe os gostos e as preferências. Não trocaria, por exemplo, a mais modesta pescaria pela melhor caçada; desagradava-lhe o alvoroço, o grito dos batedores, o barulho dos cães e não gostava de ver cair ao tiro das escopetas a pobre besta foragida e tonta de terror.

A pesca, sim, era um prazer afinado pelo seu temperamento calmo e silencioso; passava horas esquecidas, de caniço em punho, à espera que se chimpasse um peixe no anzol. Teobaldo às vezes o acompanhava ao rio por condescendência, mas levava sempre consigo uma espingarda passarinheira. Era interessante de ver aqueles dois meninos tão contrários e tão unidos, partirem de madrugada para o mato, onde passavam quase sempre as melhores horas do dia. André carregava consigo os utensílios da pesca e raro dizia uma palavra enquanto matejava; o outro, com a sua passarinheira a tiracolo, falava por si e por ele, descrevendo entusiasmado as façanhas do pai ou do avô, que muitas vezes, em noite de invernada, ouvira da boca do velho Caetano.

Todavia, um adorava o sossego, a doce e morna tranqüilidade dos vales ou as margens frondosas e sombreadas do rio, para onde levava os seus livros favoritos, entre os quais Robinson Crusoé tinha o primeiro lugar; o outro, não; o outro só queria da floresta aquilo que ela lhe pudesse dar de imprevisto e aventuroso: queria a sensação, o perigo, o romanesco e o transcendente.

Às vezes, enquanto o Coruja lia ou pescava à beira d’água, Teobaldo, ao seu lado, deitado sobre a relva, olhos fitos na verde-negra cúpula das árvores, sonhava-se herói de mil conquistas, cada uma do seu gênero; tão depressa se via um grande poeta, como um político inexcedível ou um divino orador. Idealizava-se em toda as atitudes gloriosas dos grandes vultos; não lhe passava pela vista a biografia de qualquer celebridade, fosse esta conquistada pelo talento, pela energia, pela fortuna, pela intrepidez ou pela grandeza d’alma, que ele não descobrisse logo em si muitos pontos de contato com o biografado.

Teobaldo não amava o campo, aceitava-o apenas como um fundo pitoresco em que devia destacar-se maravilhosamente a sua "extraordinária figura", aceitava-o como simples acessório das suas fantasias. Nunca lhe compreendera as vozes misteriosas nem jamais comunicara a sua alma com a dele. Tanta assim que naqueles passeios, o que mais o preocupava não era a contemplação da natureza e sim os pequenos detalhes elegantes que diziam respeito particularmente à sua pessoa, como a roupa, o aspecto do animal que montava e a distinção do exercício que escolhia.

Ele nunca saía a passear sem as suas trabalhadas botas de polimento, sem o seu calção de flanela, a sua blusa abotoada até ao pescoço e cingida ao estômago por um cinturão com fivela de prata; não saía sem o seu chapéu de pluma, a sua bolsa de caça, o seu polvarinho, o seu chumbeiro e, ainda que tivesse a certeza de não precisar da espingarda, levava-a, porque a espingarda fazia parte do figurino.

Um dia exigiu que o pai lhe desse uma pistola e um punhal.

– Para que diabo queres tu todo esse armamento? Perguntou-lhe o barão, sem poder deixar de rir.

— Para o que der e vier...

— Descansa, que por aqui não terás necessidade disso.

— Mas eu queria...

— Pois bem, havemos de ver.

E, para não contrariar de todo o filho, o que não estava em suas mãos, Albuquerque estabeleceu nos fundos da casa um tirocínio de pontaria ao alvo e consentiu que o rapaz nos seus passeios à mata trouxesse à cinta um rico punhal de ouro e prata que pertencera ao avô.

— Tu não queres também uma arma? Perguntou Teobaldo ao Coruja.

— Não; só se fosse um facão para cortar mato.

— Ora, vocês não querem também uma peça de artilharia? Exclamou o barão, quando o filho lhe foi pedir o que desejava o amigo.

Enquanto Teobaldo fazia tanta questão das aparências e das exterioridades, André, enfronhado em um fato de ordinária ganga amarela, que nem era dele, com um grande chapéu de palha na cabeça e às vezes descalço, comprazia-se em percorrer a fazenda, não em busca de aventuras como o amigo, mas de alguém que lhe ensinasse o nome de cada árvore, a utilidade e a serventia de todas elas, assim como o processo empregado na cultura de tais e tais plantações, o modo de semear e colher este ou aqueles cereais; qual a época para isto qual a época para aquilo; queria que lhe explicassem tudo! Uma de suas mais arraigadas preocupações era a obscura existência dos insetos; interessava-se principalmente pelos alados, procurando acompanhar-lhes as metamorfoses, desde o estado de larva à mariposa.

Se lhe despejassem as algibeiras, haviam de encontrar aí várias crisálidas, besouros e cigarras secas, como encontrariam igualmente vários caroços de fruta e pedrinhas de todos os feitios.

Algumas semanas depois de sua estada na fazenda era ele quem mais se desvelava pelos carneiros e pelos porcos e quem ia dar quase sempre a ração aos cavalos. E, quando havia uma ferradura a pregar ou qualquer tratamento a fazer nos animais, mostrava-se tão afoito que parecia o único responsável por isso.

No fim do primeiro mês das férias já o Coruja sabia nadar, correr a cavalo, atirar ao alvo e, por tal forma havia-se familiarizado com a vegetação, com a terra viva, com o sol e com a chuva, que parecia não ter tido nunca outro meio que não fosse aquele.

Em geral acordava muito mais cedo que o amigo e ainda dormia este a sono solto, já andava ele a dar uma vista d’olhos pelo serviço das hortas e dos currais.
––––––––-
continua…

Adelto Gonçalves* (A Influência Russa na Literatura Brasileira)

I

Que a literatura russa influenciou boa parte da literatura produzida no Brasil, especialmente no final do século XIX e na primeira metade do século XX, nenhum crítico de bom senso pode colocar em dúvida. Até que ponto chegou essa influência e como seu deu, pois, na maioria, por desconhecimento do idioma russo, os autores tiveram acesso apenas a traduções de segunda mão do francês, é que nunca ninguém havia estabelecido.

Essa questão, porém, já está devidamente esclarecida e aprofundada, depois da pesquisa de proporções ciclópicas empreendida pelo professor Bruno Barretto Gomide em sua tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em junho de 2004, que saiu em livro em 2011 pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp): Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), Prêmio Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Teoria e Crítica Literária.

As fontes deste livro foram extraídas de arquivos particulares de escritores e de uma extensa pesquisa que o estudioso fez em jornais, revistas e livros publicados entre 1887 e 1936, valendo-se também de consulta não só em arquivos públicos e de universidades em Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro como nos Estados Unidos, especialmente nas bibliotecas das universidades de Illinois, Indiana, Stanford e Califórnia.

Neste livro, a recepção da literatura russa no Brasil é estudada a partir de dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e estudo da vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da literatura russa no Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas discussões específicas fornecidas pela crítica literária e pela historiografia da cultura brasileira, como observa o autor na introdução.

Os primeiros textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto a questões literárias candentes no Brasil datam da segunda metade da década de 1880. Já o final da década de 1930 marca um momento em que tais discussões perdem sua força e deixam de ser relevantes para a crítica. O trabalho conta ainda com um anexo que reproduz algumas fontes significativas, privilegiando as de mais difícil acesso.

II

É observar que a chegada do romance russo ao Brasil foi uma consequência marginal de um processo internacional iniciado na França, que o tornou uma sensação europeia em meados da década de 1880. Foi quando surgiram as traduções em escala industrial e livros de crítica que assinalavam a recepção desses romances em língua francesa.

Gomide aponta o ensaio O Romance Russo, de Eugène-Melchior de Vogüé (1848-1910), publicado em 1886, como o elemento basilar dessa recepção, pois era a ele que recorria a maior parte dos ensaístas, inclusive no Brasil. Entre os romancistas brasileiros, Lima Barreto (1881-1922) foi o que mais se deixou influenciar pelas ideias que os romances russos traziam implícitas, especialmente a partir do prefácio que Vogüé escreveu para Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski (1821-1881).

O pesquisador observa que já havia conhecimento da literatura russa no Brasil antes mesmo da década de 1880, mas esses contatos se davam em escala diminuta. A partir daquela data, o seu “surgimento súbito” no País, em função do que ocorria na França, passou a atiçar a criação de uma literatura genuinamente nacional, como observaram ao tempo José Carlos Jr. (?-?), um crítico paraibano hoje quase esquecido e justamente “ressuscitado” por Gomide, e Clóvis Bevilacqua (1859-1944). Mas, como constata Gomide, essa interpretação não foi unânime. Para Tobias Barreto (1839-1889), por exemplo, os romancistas russos eram a negação de tudo o que a cultura francesa representava.

Para Silvio Romero (1851-1914), os russos seriam também o melhor exemplo antípoda de Machado de Assis (1839-1908). Se o escritor fluminense construía delicados estados psicológicos de suas personagens à maneira do francês Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), Romero fazia o contraste com a estética radical do choque, exemplificada por Edgar Allan Poe (1809-1849) e Dostoiévski, observa Gomide. E acrescenta: para Romero, o autor fluminense ficava “bem abaixo de Dostoiévski, Poe e até de Hoffmann (1766-1822), quando este envereda, como o próprio Machado diria, pelo distrito da patologia literária”.

Portanto, o caráter inovador da prosa russa foi imediatamente detectado pelos críticos brasileiros, que passaram a utilizá-lo largamente como termo de comparação em suas críticas e recensões. E até a apresentá-lo como um modelo de emancipação para a literatura brasileira.

III

Na primeira parte de seu livro, Gomide trata da divulgação dos romancistas russos a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883 a 1886. E apresenta exemplos do aumento vertiginoso do número de traduções e do entusiasmo nos meios intelectuais pelo novo fenômeno literário. Mostra ainda que, quando a revolução de 1917 assustou o mundo, já havia no Brasil uma tradição de três décadas de discussão do romance russo em periódicos e livros de crítica.

Portanto, associar autores como Dostoiévski, Turgueniev (1818-1883), Leon Tolstói (1828-1910) e Alexandr Pushkin (1799-1837) ao bolchevismo só podia partir de mentes obnubiladas, o que não é de admirar, pois, à época da última ditadura militar (1964-1985), o livro Juan Rulfo: Autobiografia Armada (Buenos Aires, Corregidor, 1973), de Reina Roffé, teve a sua importação barrada, por volta de 1975, porque o censor fez uma interpretação beligerante da palavra “armada”, quando o título queria dizer apenas que a autobiografia havia sido “armada” com declarações do escritor retiradas de entrevistas publicadas em épocas diversas. Santa ignorância...

Na segunda parte de seu trabalho, Gomide estuda as décadas de 1920 e 1930, quando era flagrante o impacto da revolução bolchevique. E mostra claramente que, ao contrário do que se supõe, a literatura russa nunca foi uma espécie de patrimônio da esquerda, pois intelectuais católicos, como Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), Tasso da Silveira (1895-1968) e Jackson Figueiredo (1891-1928), já discutiam sua influência na literatura mundial, especialmente a partir de Dostoiévski, Máximo Górki (1868-1936) e Leon Tolstói.

A segunda parte do livro apresenta, além de um panorama do mercado editorial da década de 1930, textos que desconfiam abertamente das interpretações geradas no fim do século e tentam cercar os romancistas russos por outros ângulos. E contestam a ideia de que o niilismo de Dostoievski e de outros escritores russos teria preparado terreno para o avanço do comunismo e a vitória dos bolcheviques em 1917, apenas porque a literatura russa sempre esteve associada a questões sociais. Na conclusão, Gomide defende que é anacrônico reler os primeiros momentos da recepção da literatura russa no Brasil de acordo com os resultados posteriores à revolução de 1917.

Como o livro vai até 1936, fora da análise de Gomide fica o recente renascimento do interesse do leitor brasileiro pelo romance russo que, a rigor, deu-se depois do lançamento, em 2001, da primeira tradução de Crime e Castigo, de Dostoiévski, feita diretamente do russo por Paulo Bezerra, pela Editora 34, de São Paulo. Em seguida, saíram vários livros traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra, Boris Schnaiderman, Fátima Bianchi, Lucas Simone e outros. Em 2011, saiu também Gente Pobre, de Dostoiévski, com tradução de Luíz Avelima, pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP.

IV

Bruno Gomide (1972) é doutor em Letras pela Unicamp, com estágio de doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Realizou cursos nas universidades de Illinois, Indiana, Cambridge e Linguística de Moscou. Foi pesquisador-visitante no Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). É o organizador do grupo de trabalho de Literatura Russa da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).

Organizou a Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998), lançada recentemente pela Editora 34, que reúne nomes conhecidos no Brasil como Pushkin, Gógol, Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói, Pasternak, Bábel e Nabókov e outros menos conhecidos, como Odóievski, Grin, Chalámov, Kharms, Platónov e Sorókin, num total de 40. Tem publicado artigos em periódicos internacionais, como Tolstoy Studies Journal e Vopróssi Literaturi, e participado dos principais congressos de eslavística.
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DA ESTEPE À CAATINGA: O ROMANCE RUSSO NO BRASIL (1887-1936), de Bruno Barretto Gomide. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 768 págs., 2011.
E-mail: edusp@usp.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Izo Goldman Falece nesta Manhã

FALECEU NA MANHÃ DE HOJE, 12, O GRANDE TROVADOR IZO GOLDMAN.

A CERIMÔNIA FÚNEBRE ESTÁ SENDO REALIZADA NO CREMATÓRIO HORTO DA PAZ, À RUA HORTO DA PAZ, 191, ITAPECERICA DA SERRA, SP
 
CREMAÇÃO DO CORPO PREVISTA PARA AS 17 HORAS

IZO GOLDMAN, por ele mesmo



É tão "soft" o meu vizinho,
seu "cooper" tão devagar,
que até correndo sozinho,
chega em segundo lugar...

    Nasci  em  Porto  Alegre, em 06 /11/1932, filho  de Alberto e Esperança Goldman, estudei no Colégio Julio de Castilhos até os 12 anos quando, por motivos familiares, mudei-me para São Paulo.

    Em São Paulo estudei no Liceu Pasteur e no Colégio Vera Cruz, mas não cheguei a completar o científico, como era chamado na época.

    Mais tarde  trabalhei  na  loja de meu pai  até que, querendo independência, fui trabalhar na Texaco no controle de distribuição de combustível.

    Sai da Texaco para casar e montar um armazém de secos e molhados; tendo dois filhos Márcio e Hélio; vendi o armazém e fui trabalhar como propagandista no Laboratório Pfizer onde passei a Supervisor e Gerente de Filial.

    Por motivos pessoais mudei-me para Niterói e, ainda dentro do ramo, trabalhei no Instituto Fontoura, fabricante do Biotônico  Fontoura, como Gerente de Filial e posteriormente, voltando a São Paulo fui Gerente de Vendas da Revlon e depois da Yardley  no  ramo de perfumaria e cosméticos.

    Com estas colocações acabei conhecendo grande parte do Brasil.

    Separado de minha esposa, tive uma companheira e, com ela, dois filhos Ivan e Tatiana.

    Com a mudança para Niterói propiciei meu começo na Trova, de uma forma curiosa: dava um Curso de Chefia e Liderança para jovens no Clube Hebraica .

    Ao  mesmo tempo a Trovadora Madalena Léa fazia, no Clube, palestras sobre Psicologia Infantil, onde os pais se queixavam de que ela só dava razão para as crianças.

    Certo  dia, Madalena ainda não havia chegado e passando pela sala, deixei um recado:

Esta seria uma cena
de não se esquecer jamais,
ver a dona Madalena
dar razão aos pobres pais...

    Quando ambos saímos de nossas  reuniões, nos encontramos e a conversa foi até  quase  meia noite.
   
Madalena  me explicando o que era a Trova e a UBT e insistindo para que eu entrasse na UBT-Seção Rio de Janeiro.

    O problema é que as reuniões da UBT-Rio  eram domingos à tarde e eu jogava futebol de salão pela manhã, então ficava difícil jogar, almoçar, ir para as barcas, atravessar para o Rio  e,  ainda tomar condução  até  o  local  da  reunião.

    Era muito para mim!

    O tempo passou  e  em  outubro de 1972 houve eleições, eu que só lia os jornais do Rio, tive que comprar o “Fluminense” de Niterói, para ver onde votava.

    Depois de votar, fiquei folheando o jornal e me deparei com a seguinte matéria: “Trovadores de Niterói fazem seu Concurso”.

    Li, achei  interessante,  lembrando Madalena Léa e resolvi concorrer.

    Mandei cinco Trovas no Tema “Tiradentes”, sendo três de pé quebrado!

Em  novembro  recebi  a  comunicação de que havia ganho uma Menção Honrosa!

Fui  à festa de entrega de prêmios, no Teatro Municipal de Niterói, e fiquei encantado, embora não conhecesse ninguém; ouvi alguém comentar de um Concurso em Curitiba e, curioso, aproximei-me de um Trovador alto, trajando calça preta, camisa branca e paletó azul.

-“O Senhor é de Curitiba?”

Ele me olhou, lá do alto, como se fosse um pecado eu não saber de onde ele era, e respondeu:

-“Eu sou da UBT Nova Friburgo”.

Era Rodolpho Abbud de que mais tarde me tornei amigo.

Mas descobri que o Tema Humorístico em Curitiba era “Biquini”.

Resolvi concorrer e mandei cinco das minhas “Trovas”, sendo três de pé quebrado.

A Presidente da UBT-Curitiba era Vera Vargas que usava os  Concursos  para descobrir “Novos Trovadores “ da seguinte forma: quando aparecia um nome “Novo” ela passava um telegrama:

“Parabéns! Você foi premiado nos Jogos Florais de Curitiba.    

Procure.................(dava o nome do Delegado ou Presidente da Seção de onde era o premiado)!

    Isto fazia com que o Delegado ou Presidente “trouxesse para a UBT o novo Trovador.

    Recebi um telegrama assim, constando o nome de Milton Nunes Loureiro e, fui procurá-lo: eu havia ganho uma Menção Honrosa em “Biquini”!

    Fiquei todo feliz e pensei vaidosamente:

     - “Eu  sou bom mesmo! Dois Concursos e duas premiações!

    Depois descobri que não era bem assim, eu tinha que aprender muito!

    Passei  a  freqüentar as reuniões na casa do Milton, junto com Manita, Sávio Soares de Souza e outros Trovadores.

     Percorri  todos os “sebos” de Niterói e do Rio procurando, comprando livros de Trovas ou sobre a Trova.

     Na época, como Gerente de Vendas de uma multinacional, eu viajava muito, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Salvador, Recife e Belém e em todas estas cidades eu garimpei livros de ou sobre a Trova.

    Assim, fui formando  minha modesta biblioteca de Trovador e também a realmente fazer Trova.

    Hoje, decorrido quase 40 anos, tenho cerca de 700 ou 750 Trovas premiadas:

sou Magnífico Trovador na UBT-Nova Friburgo;
Emérito Trovador na UBT – Pouso Alegre e
possuo o Prêmio “Lilinha Fernandes” da UBT Porto Alegre;
em 2000 fiz um livro: “Trovas de quem ama a Trova”, com 300 Trovas, que se encontra esgotado.
   
Creio que minha maior contribuição para o Movimento Trovadoresco foram as inúmeras Oficinas de  Trova que fiz e alguns Concursos onde fui o Organizador; tendo feito também um “Jogral de Trovas” apresentado em diversos lugares sempre com muito sucesso.

    Por volta da 1977 mudei-me para São Paulo, com a recomendação do Presidente Nacional da UBT de organizar a Seção Local.

    Cheguei a São Paulo com uma lista de nove Trovadores: três já haviam falecido, três tinham mudado de endereço e três não ouviam falar há muito tempo da UBT!

    O “Presidente da Seção” era Antonio Lafayete, substituindo Tereza Cavalheiro que havia deixado a Seção.

    O Lafayete era Vice-Presidente da Casa do Poeta, onde não se falou nenhuma palavra sobre Trova; ao final da reunião fui conversar com o “Presidente”, me apresentei e, ele, muito feliz disse que poderíamos incentivar a Trova em São Paulo.

    Mas, depois de três meses descobri que nada se fazia pela Trova.

    Em contato com o Presidente Estadual mostrei a situação.

    Ele tentou de tudo para que movimento deslanchasse, mas não conseguiu nada.

    A solução drástica foi desativar a Seção e criar no seu lugar uma Delegacia, e nomear um Delegado.

    Comecei a trabalhar e alguns meses depois fiz uma reunião em minha casa, com nove Trovadores.

    Em 1977 comecei a fazer circulares com os Concursos em andamento e, finalmente, em agosto de 1978 saiu o primeiro número do “Informativo”.

    Ainda em 78 fizemos um Concurso para Novos Trovadores com o Tema Trova ( Lírica e Humorística); recebemos 83 Trovas e os vencedores foram, em Trovas Líricas: - Alice B. de Oliveira; Fernando A. Costa (3) Maria Luiz M. Campos; Maristela Giorgi e Regina Melillo de Souza (4).

    Em Humorísticas: Fernando A. Costa, Maria Luiza M. Campos e Maristela Giorgio.

    Continuamos em 1978, foi feita uma circular para colher dados e sugestões dos Trovadores, muito bem aceita e respondida por todos que a esta altura, já era dezesseis.

    Em março de 1979 fizemos o I Concurso Nacional. Tema: Comunidade; e, em maio sai “oficialmente” o Nº 1 do Informativo.

    Em novembro, dia 10, de 1979, uma Reunião Especial elevando a Delegacia a Seção com as presenças de Carolina Ramos ( Presidente Regional da UBT); Dias Monteiro ( Presidente Estadual da UBT), ao mesmo tempo foi feita a eleição da Diretoria da Seção e, eu fui eleito Presidente; houve 28 Trovadores presentes.

    Em outubro de 79 foi criada a categoria de “Assinante do Informativo” que começou logo com vinte assinantes.

    E assim a história continua,

    em setembro de 1981 fui eleito Presidente Estadual da UBT;            

em 1981 o Concurso Nacional de Trova “Monteiro Lobato” e

    em 1982 o Concurso Intersedes e a publicação de uma ficha completa, para atualizar o arquivo da UBT, além da criação da UBT São Bernardo do Campo e início da publicação de Trovas, uma página inteira, na Drogazeta.

    Em setembro o Concurso de Trovas da Drogazeta (Drogasil); e, Tarde da Trova, no Terraço Itália, de onde foram jogadas 300 Trovas Coloridas sobre São Paulo.

    Em setembro artigo citando o Sr. Eno Teodoro  Wanke e refutando suas opiniões sobre a UBT . (Falando de Trova) Informativo Nº 52.

    Ia esquecendo, em julho de 1981 conseguimos junto à ECT a emissão e uso de um carimbo comemorativo do “Dia do Trovador”.

    Em outubro de 1982, reeleito Presidente da Seção São Paulo.

    Abril de 1983, Nº 58, artigo contra a criação de uma Associação Nacional de Trovas por Eno Theodoro Wanke.

    Em Agosto de 1983 o I Concurso Nacional de Trovas de São Paulo.

    Já indo mais adiante, foram Presidentes da UBT –São Paulo, Thalma Tavares, Domitilla Borges Beltrame e atualmente Selma Patti Spinelli.

    Uma curiosidade: possuo uma coleção de imagens não religiosas de São Francisco de Assis, Padroeiro dos Trovadores, pela admiração que tenho à uma das maiores figuras que o mundo já conheceu.

    Minha contribuição pelo Movimento Trovadoresco deve ser julgado pelos Trovadores do Brasil, será mais justo.

    O que eu não conseguí  é o sonho de todos os Trovadores do Brasil: uma sede própria para a UBT-Nacional. Isto é claro, teria o problema de troca do Presidente Nacional mas, é um sonho, e não é proibido sonhar!

Fonte:
União Brasileira de Trovadores do Estado de São Paulo

Izo Goldman (Trovas de Quem Era Apaixonado Pela Trova)

A casa toda quebrada,
e o casal diz numa "boa":
- "Mas que furacão, que nada,
foi só uma briguinha à - toa!...

A Coroa... A Cruz... Os Cravos...
Por que deixaste, Senhor,
pagarmos com tais agravos
tanta fé e tanto AMOR?!...

A cozinha da maloca
é tão baixinha e apertada,
que, na panela, a pipoca,
não pula... fica sentada!!!

A esperança é uma resposta
com malícia de mulher:
-- Sabendo o que a gente gosta,
promete o que a gente quer...

A galinha está... chocada...
e o galo velho, uma bala,
porque existe na ninhada
um pinto verde... que fala!!!

A grandeza imaginária
que todo vaidoso tem,
é uma estrela solitária
brilhando sobre... ninguém...

A Independência eu relembro,
meu Brasil, com muito orgulho:
sonho em Sete de Setembro,
realidade em Dois de Julho!

A mais grave das ofensas
quase sempre tem raízes
quando dizes o que pensas
ou não pensas no que dizes.

A mini saia amarela
da professora, eu bendigo...
pois, em frente à mesa dela
é que eu fiquei de castigo!...

A mulher do carvoeiro
diz que o marido é uma... "graça".
pois faz fogo o dia inteiro
mas, de noite, é só fumaça...

A noiva esconde a... "cintura"...
com as dobras do vestido;
e, na igreja, alguém murmura:
-- Casório... pré concebido…

A noiva, por ironia,
na mala só vai levar
a camisola-do-dia,
que à noite... nem vai usar...

Ao galo meio inibido,
diz a pata sem recato:
-- Não tenha medo, querido,
meu marido é mesmo um... pato!

Ao ouvido do negrinho,
diz a negrinha "espoleta":
-- Se formos para o escurinho,
a coisa vai ficar... preta...

Ao ser preso, o vigarista,
explica, muito matreiro:
- "Sou apenas cientista,
faço "clones" de... dinheiro!

Ao ver um vulto suspeito,
o ciumento não poupa:
dá dois tiros bem no peito
do espelho do guarda-roupa...

A queimada é um jogo insano...
A floresta pega fogo...
E, no fim, o ser humano
é o perdedor deste jogo!

A saudade me consome
e as angústias são pesadas,
quando eu murmuro teu nome
e o vento... dá gargalhadas...

A saudade não me poupa,
desenhando, fio a fio,
o perfil da tua roupa
no guarda-roupa vazio...

A sorte, esquiva e malvada,
não dá “chance”, só trabalho...
Eu a sigo pela estrada,
e ela foge pelo atalho!...

A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz…

A violência eu detesto,
porque é pelo amor que eu luto,
sem amor o mundo é um “resto”
eternamente de luto!

Bate o sino em tom profundo,
lembrando a mulher que um dia
entregou seu Filho ao mundo,
sabendo que O perderia!

Cara cheia...Perna bamba,
ele mesmo se conforta,
olha a rua e diz: - "Caramba!"
Nunca vi rua mais torta!...

“Cara-metade”, em verdade,
é uma expressão... trapaceira...
- a gente quer a metade
mas tem que “engolir”... inteira…

"Casamento... - alguém já disse -
é chegar à encruzilhada
onde acaba a criancice
e começa...a criançada..."

Castro Alves, teu valor
está na contradição
do eterno escravo do amor
lutar contra a escravidão.

"Causa mortis" de um otário:
alergia ou resfriado.
Espirrou dentro do armário,
e o marido estava armado!

Chegando além do horizonte,
a vida é estrada comprida;
no fim da vida, uma ponte:
no fim da ponte, outra vida…

Chuva e sol, tela encantada,
onde o maior dos pintores
pinta a curva caprichada
de um arco de sete cores!

Coitado do Zé Maria:
a mulher quase o esfola,
pois voltou da... pescaria...
co'um biquíni na sacola...

Com seu valor aumentado,
saudade é a restituição
do que já nos foi cobrado
pelos sonhos e a ilusão...

Contradição bem marcada,
que teima em nos separar:
- Meu amor toca a alvorada,
e o teu não quer acordar..

Coração não tem idade
quando vive de lembrança;
se a lembrança tem saudade,
faz, da saudade, "esperança''!

Depois que tu foste embora,
no meu peito, o desencanto
não desabafa nem chora,
não tem voz e não tem pranto...

Dois sentimentos moldados
no mesmo barro sem cor:
- é o ódio, pelos pecados,
pelas virtudes, o amor!…

É "Carcará" o apelido
do Zé, porque... come... e cisca...
Mas a mulher diz: "Duvido!
Aqui em casa nem... belisca..."

Ele trouxe ao seu rebanho
muito amor e muita luz.
Barqueiro de um barco estranho,
talhado em forma de cruz!

É no rosto da criança
que o sorriso é mais bonito:
- tem a força da Esperança
e o tamanho do Infinito!

É nos momentos tristonhos
que eu peço à minha lembrança
que traga de volta os sonhos,
no aconchego da esperança…

Enquanto a guerra inundar
num dilúvio, a Terra inteira,
onde a pomba irá buscar
outro ramo de oliveira?!…

Enquanto eu tirava espinhos
das rosas que te ofertava,
deixavas nos meus caminhos
os espinhos que eu tirava...

"Esta peixada está quente!"
reclamava o Zé Maria;
e o dono do bar: "Ó xente,
'se qué',  tem pexera fria!”

Estás só...Mas, mesmo assim,
como se fora um castigo,
sinto um ciúme sem fim
do "ninguém" que está contigo!

És um arbusto florido...
Eu sou o vento que passa,
e, num delírio atrevido,
te despe e depois... te abraça..

Esta vida é uma contenda,
é um eterno desafio.
Vem o sonho – faz a renda;
vem a vida – puxa o fio.

Eu, na vida, sou barqueiro
dos meus sonhos sem destino:
sonho bom é o passageiro,
sonho mau é o clandestino.

Eu sou príncipe tristonho
porque, na história real,
não há, na escada do sonho,
sapatinhos de cristal!...

Ficou rico o Zé Maria
na seca do Juazeiro,
vendendo "fotografia
de chuva"...por "dois cruzeiro"...

Foi no Grito do Ipiranga
que o povo outrora servil
sacudiu do jugo a canga
e fez gigante o Brasil!

Fui pirata, aventureiro,
no Mar da Felicidade;
hoje, a ferros, sou remeiro
na galera da saudade.

Jogam “xadrez” as nações,
e, no “jogo” em que se empenham,
sacrificam os “peões”,
para que os reis se mantenham.

Lá na casa da Maria
é muito estranha a porteira ...
Não faz barulho de dia,
bate e range a noite inteira …

Marcando suas fronteiras
as bandeiras eram trapos,
e, os trapos eram bandeiras,
na Querência dos Farrapos!

Meu conflito e meu fracasso
é que as trovas que componho
têm sempre os versos que eu faço,
e nunca os versos que eu sonho…

Na Barra o que mais encanta
é o contraste bem marcado: -
o Rio, passando, canta,
e o sertão canta parado...

Na briga que o meu cabelo,
e a careca estão travando
lamento ter que dizê-lo,
a careca está ganhando...

Na cidadania existem
os deveres e os direitos,
e os "direitos" só persistem
se os "deveres" forem feitos!

Na imensa feira da vida,
as barracas da ironia:
a das culpas - concorrida!...
a dos remorsos - vazia...

Na jangada a vela panda
parece um ouvido atento,
à espera de prece branda
que há no murmúrio do vento.

Na velhice, as incertezas,
para ocupar os espaços,
vão empilhando tristezas
e acumulando cansaços..

Nem o Sol pode entender
a estrela que ele namora:
- É “Vésper” no anoitecer,
mas é “D’Alva” à luz da aurora…

Nesta "corrida" da vida,
quando o Destino nos solta,
só sabemos na "saída",
que a "corrida"... não tem volta!

Neste sesquicentenário,
meu Brasil, sinto presente
teu passado legendário
e o teu futuro ascendente!

No seu biquini apertado,
Maria me deixa mudo,
pois nunca vi "tanto nada"
cobrindo, tão pouco ..."tudo"...

No viver o que mais cansa
são estas andanças vãs,
correndo atrás da esperança
e perseguindo amanhãs.

O pai da moça, que é mau,
Chega em casa e acaba o "baile"...
É que o Zé, "cara de pau",
tava namorando em..."braile"!!!

O teu gesto de ternura,
na minha vida sofrida,
foi um copo de água pura
matando a sede da vida! ...

- " O trabalho é que enobrece!"
Dizem todos ao Raul.
E ele responde: - "Acontece,
que eu detesto sangue azul!"

Partir é quase morrer...
É deixar na despedida
um pouco do próprio ser
e muito da própria vida…

Partiste, e eu fiz o que pude,
num brinde à felicidade,
mas, quando eu disse -"saúde!"
ela respondeu...-"Saudade..."

Peixinho mais mascarado
do que aquele eu nunca vi:
só belisca anzol marcado,
"minhoca com... pedigre"…

Perdoa, amor, o meu jeito
de te olhar quando te vejo,
teu olhar me diz... “Respeito!”,
meu olhar te diz... “Desejo!”...

Pergunta o padre ao noivinho:
-"É de espontânea vontade?"
e ele respondeu baixinho:
-"Não senhor...necessidade!...”

Poeta do cativeiro,
nos teus versos triunfantes,
eu vejo um "Navio Negreiro",
sobre "Espumas Flutuantes"!

Por artes do coração
Castro Alves foi vencido;
lutou contra a escravidão,
sendo escravo de Cupido!

Pulando do nono andar,
o otimista diz a alguém
que, no quarto, o vê passar:
- Até agora... tudo bem!!!

Quando o silêncio é uma prece,
sob a lua, em noite calma,
no meu bairro até parece
que as velhas ruas, têm alma...

Quando os "Dezoito do Forte"
marcharam, cabeça erguida,
não foi por desprezo à morte
e sim por respeito à vida!

Quando pergunta o burrinho,
diz a mula envergonhada:
- "Tu nasceste, meu filhinho,
por causa de uma...burrada!..."

Queimadas... Devastação...
Natureza poluída...
e os homens, por ambição,
destroem a própria vida!

Quem morreu naquela Cruz,
foi o Corpo e nada mais:
ninguém apaga uma Luz
crucificando ideais!

Quem pela força conquista,
não conquista de verdade;
não há força que resista
à força da liberdade!!!

Sai do museu, braço dado
com sua sogra, o Sinfrônio:
e o guarda grita, alarmado:
- "Tão roubando o patrimônio!"

Se a gente fosse dar crédito
ao que diz a maioria,
só de "autor de livro inédito"
tinha uns mil na Academia!...

Se a saudade embala a rede,
meu amor, de olhar frustrado,
vê, no branco da parede,
teu semblante desenhado…

Se a tua ausência magoa,
magoa mais a saudade...
Muitas vezes a garoa
molha mais que a tempestade…

Se disseres que, hoje em dia,
vivo no "mundo da lua",
depois de um beijo, eu diria:
-"Vivo sim! E a culpa é tua!...”

Se eu me rendo ao teu agrado,
meu coração, quase louco,
bate no peito e, zangado,
desabafa: - É muito pouco!…

Sem esquinas ... sem saídas ...
muitas vidas são assim ...
Ruas retas e compridas,
e um grande portão no fim …

Sempre que aquela viúva
atravessa o meu caminho
lembro que ela é uma uva
e eu sou tarado por vinho.

Se tu queres divulgar
uma notícia qualquer,
basta o fato confiar,
em segredo... a uma mulher…

Tem mais nobreza e valor
o triunfo conseguido,
quando, humilde, o vencedor
aperta a mão do vencido!

Têm uma força tamanha
as nossas trovas singelas,
que acendem, "Flor da Montanha",
mais cento e cinquenta velas!

Teu "Adeus" eu não censuro,
censuro é um erro fatal:
meu amor não fez "Seguro"
que pague a "perda total"…

Todo "barbeiro" sustenta
que a "batida" foi assim:
-"Veio um poste a mais de oitenta,
na contra-mão, contra mim!..."

Última fonte de luz
entre as trevas da saudade,
a esperança ainda produz
um pouco de claridade...

Uma devota a rezar
é o que a rendeira parece,
faz da almofada um altar,
de cada renda, uma prece!

Velho Chico, eu te saúdo,
pois vencendo o rude agreste,
fazes, acima de tudo,
a redenção do Nordeste!

-"Vem aí um furacão!!!",
avisa a rádio, - "Cuidado!!!"
e o genro por ...precaução...
põe a sogra...no telhado!!!

Vencendo medos e mágoas
foi que o sublime barqueiro
que andava por sobre as águas
trouxe luz ao mundo inteiro.

Vendo alguém varrer o chão,
ele deita de comprido,
e, dá logo a explicação:
- "Quero ser...doido varrido..."

Virtude é fazer o bem
pelo prazer de fazê-lo,
mesmo sendo para alguém
que não fez por merecê-lo.

Zé Pescador não sossega,
mente tanto que dá gosto,
só que os peixes que ele... "pega"
têm carimbo do entreposto.


Fontes Principais:
http://www.ubtnacional.com.br/
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/
http://ubtrova.com.br/
Boletins da UBT – Nacional
Revistas Trovamar (Portal CEN)
Antologia Literária 2, da Academia Bauruense de Letras. Bauru: EDUSC, 2003.
Boletins de vários Concursos.
Izo Goldman. Trovas de quem ama a trova.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 5

E agora, visto aos cinqüenta e tantos anos, aquele tipo correto na forma e um pouco desabrido nas maneiras, estava ainda a dizer a sua procedência mestiça. Por mais despejado que fosse todavia, cativava sempre com muita graça e muita insinuação. Ar gentil e franco, gestos largos, coração tão aberto a tudo e a todos, que até ao mal franquearia a entrada, desde que houvesse lá por dentro uma idéia de vingança.

Possuía ele um destes temperamentos desensofridos e ao mesmo tempo saturados de bom humor; tão prontos a zombar dos grandes perigos, como a inflamar-se à menor palavra que de longe lhe tocasse em pontos de honra. Temperamentos que não conhecem meio termo e que vão da pilhéria à bofetada com a rapidez de um salto.

Amava loucamente a mulher e adorava o filho. Todas as suas paixões de outrora, todos os seus gostos e hábitos sacrificados ao atual meio em que ele vivia, como que se transformaram em um sentimento único, em um amor de quintaessência, em uma dedicação sem limites por Teobaldo. Mas não sabia educa-lo e por cegueira da afeição permitia-lhe todos os caprichos. A mais extravagante fantasia do menino era uma lei em casa do Sr. Barão.

Defronte daquele pequeno Deus, ninguém seria capaz de levantar a voz.  Teobaldo vivia entre os seus parentes como um príncipe no meio da sua corte; o pai, a mãe, uma irmã desta, que agora a acompanhava, todos pareciam apostados em merecer-lhe as graças em troca de amor e submissão.

Pode-se, pois, facilmente calcular qual não seria a comoção de Emílio ao ver o filho, quando o foi buscar nas férias, depois de tantos meses de ausência.

– Teobaldo! Exclamou o barão, correndo para ele de braços abertos.

O menino saltou-lhe ao pescoço e deixou-se beijar, enquanto perguntava pelos de casa. E depois, a queixar-se:

— Ora! Prometeste que virias visitar-me, e nem uma vez!...

— Não pude abandonar a fazenda um só dia durante o ano! Aquilo por lá tem sido o diabo!...

Ia continuar, mas interrompeu-se para dizer ao filho:

— Anda daí rapaz! Mexe-te, que, ao contrário chegaremos muito tarde!. ... Vamos! Eu te ajudo preparar a mala. Onde é o teu quarto?

Teobaldo tomou de carreira a direção do dormitório e o pai acompanhou-o, a mexer com todos os pequenos que encontrava no caminho.

— Quem é o tal André, de que falas tu nas cartas com tanta insistência? perguntou ao filho, enquanto este emalava a sua roupa.

— Ah! O Coruja? É o meu amigo; mostro-to já; espera ai.

E, quando atravessavam o salão, já com a mala pronta, Teobaldo exclamou, puxando o braço do pai:

— Olha! É aquele! Aquele que está ao lado do diretor.

— E aquele padre, quem é? Aquele que conversa com o Dr. Mosquito?

— Deve ser o tutor de André.

— O tutor?

— Sim, porque André já não tem pai, nem mãe; foi o vigário quem tornou conta dele e quem o meteu no colégio.

— E agora veio buscá-lo e leva-o para casa durante as férias?...

— Talvez não. Já o ano passado, deixou-o ficar aqui sozinho com os criados.

— Mas pode ser que desta vez não aconteça o mesmo...

Emílio foi, porém, convencido logo do contrário pelo que ouviu entre o diretor e o padre, cujo diálogo ia se esquentando a ponto de lhe chegar perfeitamente ao ouvidos.

— Abuso?... Exclamava o vigário. Não vejo onde esteja o abuso!

— Pois não! Replicava o diretor. Pois não! V Revma. vem ter comigo e pede-me que tome conta de seu pupilo pela metade do que recebo pelos outros alunos; eu consenti, consenti, porque sabia que o pobre menino não tem outra proteção além da sua... Pois bem! Chegam as férias; o senhor não manda buscar, o que é sempre um inconveniente para um estabelecimento desta ordem, e...

— Não sei por quê... Interrompeu o padre.

— Sei eu, gritou o diretor. E a prova, olhe, é que tencionava fazer pelas férias um passeio à corte com minha família, e não fiz!...

— Sim, mas o senhor, naturalmente, não foi detido só por este...

— Engana-se; seu pupilo foi o único aluno que ficou no colégio durante as férias!

— Não é culpa minha!

— De acordo e não é disso que faço questão. Deixa-me continuar...

— Pode continuar.

— Como dizia: o senhor, não satisfeito com o abatimento que lhe fiz durante o ano inteiro, pediu-me ainda que lhe fizesse um novo abatimento durante as férias. Permita que lhe diga: o que V. Rev.ma pagou não deu sequer para as comedorias, porque não é com tão pouco que se alimenta aquele rapaz! Não imagina que apetite
tem ele!

André, ao ouvir esta acusação, abaixou o rosto, envergonhado como um criminoso, e pôs-se a roer as unhas, sentindo sobre si o olhar colérico do padre, que o media da cabeça aos pés.

— Pois bem! Prosseguiu o diretor; chegam de novo as férias e, quando estou resolvido a remeter-lhe o menino, vem o senhor e diz que desta vez não pode pagar tanto como das outras!... Ora! Há de V. Rev.ma convir que isto não tem jeito!

— Seria uma obra de caridade!... Objetou o padre.

— Sim, mas eu já fiz o que pude...

— Pois vá! Pagarei o mesmo que nas férias do ano passado.

— Não, senhor, não serve! V. Rev.ma leva o menino e, se quiser, pode apresentar-mo de novo em Janeiro. De outra forma não!

— Tenho então de levar o pequeno comigo? Exclamou o padre, fazendo-se vermelho.

— De certo, respondeu o diretor sem hesitar. As férias Inventaram-se para descanso e eu não posso fica tranqüilo, sabendo que há um aluno em casa. Dá-me mesmo trabalho que me dariam vinte! Não! Não.

— Mas, doutor!.

— Não, não quero! É um cuidado constante. Retiram-se todos os empregados e fica aí o menino só com o servente; de um momento para outro, uma travessura, uma tolice de criança, pode ocasionar qualquer desgraça, e serei eu por ela o único responsável! Não quero!

— E se eu pagar o mesmo que pago durante ano? Perguntou o reverendo já impaciente e cada vez mais vermelho.

— Nem assim.

— Nem assim? E quanto é preciso então que eu pague?

— Nada, porque estou resolvido a não aceitar.

— De sorte que eu tenho por força de levar o pequeno?...

— Fatalmente.

— Pois então, pílulas! Exclamou o padre, deixando transbordar de todo a cólera; pílulas!

E, voltando-se para o Coruja:

— Vá! Vá fazer a trouxa e avie-se!

O Coruja afastou-se tristemente enquanto o padre resmungava: Peste! Só me serve para me dar maçadas e fazer-me gastar o que não posso! O barão. que a certa distância ouvira tudo ao lado do filho, disse a este em voz baixa:

— Pergunta ao teu amigo se ele quer vir conosco passar as férias na fazenda.

Teobaldo, satisfeito com as palavras do pai, foi de carreira ter com o Coruja e voltou logo com uma resposta afirmativa.

— Reverendo, disse então o fidalgo aproximando-se do padre com suma cortesia. Por sua conversação com o Dr. Mosquito fiquei sabendo que o contraria não poder deixar o seu pupilo no colégio; lembrei-me, pois, se não houver nisso algum inconveniente, de levá-o com o meu filho, a passar as férias na fazenda em que resido.

O diretor deu-se pressa em apresentá-lo um ao outro, desfazendo-se em zumbaias com o barão. E o padre, cuja fisionomia se iluminara à proposta do adulado, respondeu curvando-se:

— Meu Deus! O Sr. barão pode determinar o que bem quiser!... Receio apenas que o meu pupilo não saiba talvez corresponder a tamanha gentileza; uma vez, porém, que o generoso coração de V. Exa. sente vontade de praticar esse ato de caridade...

— Não, não é caridade! Atalhou Emílio, francamente. Não é por seu pupilo que faço isto, mas só para ser agradável a meu filho... Eles são amigos.

— Se V. Exa. faz gesto nisso.

— Todo o gosto.

— Pois então pequeno está às ordens de V. Exa.

— Bem. Ficamos entendidos. Levo-o comigo e trá-lo-ei com Teobaldo, quando se abrirem de novo as aulas.

O reverendo entendeu a propósito contar ao Sr. barão, pelo miúdo, a história do "pobre órfão"; como ele o recolhera e sustentava, repetindo no fim de cada frase "Que não estava arrependido" e, terminando com a financeira e conhecida máxima: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus!..."

CAPÍTULO VII

— É bem feiozinho, benza-o Deus! O tal teu amigo!... Disse o barão ao filho, enquanto André se afastava para ir buscar a sua trouxa.

— Sim, mas um belo rapaz, respondeu Teobaldo. Tem por mim uma cega dedicação.

— Embora! É muito antipático! Está sempre a olhar tão desconfiado para a  gente!... E parece mudo — só me respondeu com a cabeça e com os ombros às perguntas que lhe fiz.

— É assim com todos.

— Nem sei como vocês se fizeram amigos. Então tu, que, segundo me disse ainda há pouco o Mosquito, não te chegas muito para os teus colegas.

— Só me chego para o Coruja. É o único. Coitado! O reverendo, ao que parece, não morre de amores por ele; nem à mão de Deus Padre queria carregá-lo para casa.

— Um mau sujeito, o tal reverendo!

— Mas, com certeza não foi por maldade que o recolheu à sua proteção.

— Não sei. Talvez!...

Emílio olhou mais atentamente para o filho e disse sorrindo:

— Tens as vezes coisas que me surpreendem. Com quem aprendeste tu a desconfiar desse modo dos teus semelhantes?

— Contigo. Não me tens dito tantas vezes que gente deve desconfiar de todo o mundo?

— Para não sofrer decepções a cada passo... Exato!

— E que, no caso de erro, é preferível sempre nos enganarmos contra, do que a favor de quem quer que seja!…

— De certo. O homem deve sempre colocar-se superior a tudo e fazer por dominar a todos. O mundo meu filho, compõe-se apenas de duas classes — a dos fortes e a dos fracos; os fortes governam, os outros obedecem. Ama aos teus semelhantes, mas não tanto como a ti mesmo, e entre amar e ser amado, prefere sempre o último; da mesma forma que deves preferir sempre — dar, a pedir, principalmente se o obséquio for de dinheiro.

— Achas mau que eu seja amigo do Coruja?

— Ao contrário, acho excelente. Essa escolha, entre tantos colegas mais bem parecidos, confirma o bom juízo que faço do teu orgulho, e mostra que tens sabido aproveitar-te dos meus conselhos.

— Não compreendo.

— Também ainda é cedo para isso. É preciso dar tempo ao tempo.

O Coruja reapareceu sobraçando a sua pequena mala de couro cru
.
— Pronto? Perguntou-lhe Teobaldo.

O outro meneou a cabeça, afirmativamente.

— Pois então a caminho! Exclamou Emílio, descendo a escada na frente dos rapazes.

Um carro os esperava à porta do colégio; o cocheiro tomou conta das bagagens; Emílio fez subir os dois meninos e sentou-se defronte deles. André, muito esquerdo com a sua roupinha de sarja, que ia já lhe ficando curta, não olhava de frente para os companheiros e parecia aflito naquela posição; ao passo que Teobaldo, muito filho de seu pai, conversava pelos cotovelos, dizia o que vira, praticara e assistira durante o ano, criticando os colegas, ridicularizando os professores e, ao mesmo tempo, fazendo espirituosos comentários sobre tudo que lhe passava defronte dos olhos pela estrada.

Chegaram à fazenda às oito horas da noite. Vieram recebê-los ao portão a Sra. baronesa e mais a irmã, D. Geminiana, acompanhadas ambas pelo Caetano, que trazia uma lanterna.

Santa lançou-se ao encontro do filho, cobrindo-o de beijos sôfregos e a chorar e a rir ao mesmo tempo, enquanto um escravo, que acudira logo, desembarcava as malas e ajudava o cocheiro a desatrelar os animais.

Teobaldo passou dos braços da mãe para os da tia, que não menos o idolatrava, apesar de ser um tanto resingueira de gênio.

— O nosso morgado traz-lhe um hóspede! Declarou o barão, empurrando brandamente o Coruja para junto das senhoras É aquele amigo de que ele fala nas cartas. Vem fazer-lhe companhia durante as férias.

André, muito atrapalhado de sua vida, porque jamais se vira em tais situações, quando deu por si estava nos braços da mãe do seu amigo e recebia um beijo na testa.

Coitado! Que estranhas sensações não lhe produziu aquele beijo, ainda quente da ternura com que foram dados os outros no verdadeiro filho! Há quanto tempo não aspirava o pobre órfão essa flor ideal do amor, essa flor sonora — o beijo! Depois de sua mãe ninguém mais o beijara. E Santa, sem saber, acabava de abrir o coração do desgraçado um sulco luminoso, que penetrava até às suas mais fundas reminiscências da infância.

— Este menino está chorando! Considerou D. Geminiana, que até aí observara o Coruja como quem contempla um bicho raro.

— Que tens tu? Perguntou Teobaldo ao amigo.

— Nada, respondeu este, limpando as lágrimas na manga da jaqueta.

E o seu gesto era tão desgracioso, coitadinho, que todos, à exceção de Santa, puseram-se a rir.

— Não é nada, com efeito! A comoção talvez!... Exclamou Emílio, batendo levemente nas costas de André. — Há muito tempo que não se vê entre família!

Daqui a pouco nem se lembrará que chorou,... Não é verdade, amiguinho?

O Coruja disse que sim, enterrando a cabeça nos ombros.

— Mas, vamos para cima, que eu estou morrendo por comer! Protestou Teobaldo, passando os braços em volta da cinta das duas senhoras e obrigando-as a acompanhá-lo.
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continua…
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