quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Arthur Quiller-Couch * (O Natal de um Ladrão)

Ilustração: R. Zamboni
Esperava que aquele negócio rendesse muito, pois o senhor Félix, o velho solteirão em cuja casa acabava de me introduzir, passava por ter consagrado trinta anos a adornar de boas coisas o seu gabinete. Qualquer nababo ou milionário pode dar-se ao luxo de colecionar; mas, o sr. Félix, pessoa de modesta fortuna, devia ter feito uma escolha cuidadosa. Só deveria ter comprado coisas de valor. E todas elas estavam dispostas dentro de lindas e pequenas vitrinas, com as respectivas etiquetas e defendidas por fechaduras, que eu teria podido abrir com um alfinete de. cabelo.

A vitrina superior continha amuletos, mas disso eu nada entendo. A segunda, vinte ou trinta camafeus, sobre os quais eu projetava a luz da minha lanterna surda. Examinei cinco ou seis deles antes de os meter na maleta; reconheci Europa e o Touro; Ganimedes e a Águia; Agavé levando a cabeça de Penteu; Ícaro com as suas asas partidas, caindo de cabeça para o mar, aí representado por uma linha ondulada. . . Todas essas jóias eram de um valor inestimável.

Na terceira vitrina, havia uma esmeralda desmontada, digna de um resgate real; um broche com duas ametistas e um colar de pérolas negras. Tudo isso me demonstrava claramente que tinha de me haver com um artista que não amontoava coisas ao acaso, na sua coleção. "Que pena — pensava eu — ver-me na necessidade de dar um desgosto a um homem tão inteligente!"

A quarta vitrina era reservada às miniaturas, quase todas orladas de diamantes. A quinta guardava as tabaqueiras: tabaqueiras de ouro, ostentando monogramas reais; tabaqueiras de concha de tartaruga e ouro; tabaqueiras de esmalte azul, incrustadas de diamantes. Duas destas, ao caírem juntas na maleta chocaram-se. Este ligeiro ruído fêz-me estremecer, e detive-me um momento a olhar para trás.

A janela continuava aberta, tal como eu a tinha deixado. Fora, na noite calma e gelada, a neve dos telhados brilhava à luz clara do luar. Mas, embora não houvesse vento, a corrente de ar, que entrava pela janela aberta, havia avivado uma pequena chama na lareira, onde, três minutos antes, mal se via luzir o carvão. No andar de baixo, nalgum salão afastado, os violinos tocavam uma valsa e um violoncelo marcava o compasso, pois o senhor Félix dava uma festa de Natal.

Não perdi muito tempo escutando e observando o local: comecei o trabalho e peguei noutra tabaqueira. No momento em que esta caía na maleta, a música ressoou um pouquinho mais forte; uma das portas se abriu, e um homenzinho rechonchudo, de casaca, apareceu no umbral.

— Oh, lá! — exclamou com um ligeiro estremecimento de surpresa. — Não, não, meu amigo; o senhor enganou-se de sala.

Sem me dar tempo a que pudesse dominar os nervos, dirigira-se à janela fechando-a.

— O melhor que o senhor tem a fazer é não se mexer — disse. — Poderemos conversar. Há criados na escadaria, e se o senhor tentasse sair por onde entrou, encontraria três policiais, que mandei vir, para assegurar a ordem à entrada. Mas, agora que os meus convidados já entraram, devem estar precisamente aqui por baixo de nós e tenho um apito para os chamar. Tenho também um revólver.

Num abrir e fechar de olhos, tinha ido a um armário e pegara na arma.

— E está carregado — acrescentou, sempre com a mesma voz, fria e indiferente, na qual passada a primeira exclamação de supresa, eu não tinha podido distinguir nenhum sinal de espanto.

— Pois bem, seja; falemos — disse eu.

Avançou para a lareira, mas deteve-se ao ouvir a minha voz, e, voltando-se vivamente:

— Eh! Dir-se-ia que é um perfeito cavalheiro!

Pousou o revólver sobre a chaminé, tirou de um cesto um pedaço de papel, chegou-o ao fogo e julgou do seu dever acender as luzes de um antigo candelabro, que adornava a parte superior da lareira. Havia ali cinco velas c ele acendeu-as todas.

Até então não tínhamos tido outra luz senão a claridade, era distante, que vinha do corredor; mas à luz daquelas velas, pude ver que o meu interlocutor era um velho, de cara rapada, cabelos brancos e muito bem vestido. Como a princípio só o vira de perfil, as enormes dimensões do seu nariz tinham-me surpreendido. Porém, agora, verificava que a sua cabeça era suficientemente forte para manter as proporções e tirar-lhe todo o aspecto de caricatura. Os seus ombros largos eram suporte digno daquela volumosa cabeça. E enquanto ele se mantinha encostado à chaminé, pude ver que apesar do peito arqueado e do busto de atleta, não era isento de certa delicadeza de atrativos, quase femininos. Naquela atitude, fêz-me pensar num matador que linha visto diante de um touro numa praça de Sevilha. Por trás dele, a luz da lareira desenhava, claramente, o contorno das suas pernas nervosas. Tinha no braço esquerdo um sobretudo e na mão uma claque fechada, apoiada contra o peito. Ao cerrar a janela e ao pegar no revólver, bem como ao acender as velas, só se servira da mão direita.

— Será o senhor um cavalheiro? — tornou a perguntar.

— Sim; e então? — respondi-lhe nervosamente. — O senhor é certamente daqueles que associam o cavalheirismo à moralidade. . .

— Até certo ponto. . . — disse. — Além disso, todo o mundo pensa assim.

— Seja como fôr, não tenho pretensões ao título de gentleman — respondi. — Mas o senhor se engana se julga que não recebi nenhuma educação. Fui aluno de Oxford, embora não tivesse obtido todos os graus. . .

— Ah! — disse, inclinando a cabeça. — E foram as cartas que. . . ?

— De maneira alguma! — repliquei, vivamente. — Reconheço que as aparências são contra mim; mas as cartas nunca me atraíram. Na realidade, o que me deitou a perder foi. um cavalo.

Ele fêz um gesto de assentimento.

— De maneira que o senhor — retorquiu ele — embora não tenha a pretensão de ser um gentleman, reconhece também que há certa relação entre a educação e a conduta da vida. . . Ah Oxford! Se não me engano os estudantes estão, neste momento, no grande vestíbulo, a celebrar o Natal, escutando o Glória de Pergolése.

— Essa recordação me é penosa — disse eu. — Pode acreditar, quer isso lhe seja agradável ou não.

— E, além de tudo, o senhor é um sentimental! — exclamou o senhor Félix, cujos olhos brilhavam. — Ótimo! Tenho uma tarefa para o senhor. . . mas disso falaremos depois. Deixe-me apenas dizer-lhe que me apareceu aqui como que caído do céu, mesmo na hora. Vejo que até agora tenho dado demasiada importância à minha coleção, visto que há outros que a cobiçam mais do que eu. . . Por exemplo, essa tabaqueira que o senhor tem aí na mão…, em determinado momento da sua história, valia por si só cerca de duzentos x milhões. . .

Comecei a pensar que tinha de me haver com um louco.

— Ou, melhor ainda, — corrigiu: — os duzentos milhões representavam o valor de uma pitada do rapé que ela continha. Abra-a com cuidado, peço-lhe, e nela verá autêntico tabaco de cheirar, que ateou uma guerra entre a França e a Áustria. Como diz Virgílio? Sim. Si motus animorum atque haec certamina tanta Pulveris exigtii jacto. Sim, mas no meu exemplo verá que a pitada do tabaco foi realmente a causa. Ora, ouça, senhor: O embaixador da Áustria recusou-se numa tarde fatal, a cheirar o conteúdo dessa tabaqueira, e eu ouso afirmar que, três semanas depois, ele teria dado milhões para ter a honra de introduzir nela a ponta dos dedos. Repare na coroa imperial que a ornamenta e que. rodeada de abelhas, dir-se-ia estar aí para ilustrar a advertência de Virgílio. Comprei esse objeto pela módica quantia de seis ducados, mas o seu valor aumentará, atingindo provavelmente uma dezena de milhares de francos na altura da minha morte, e esses dez mil francos servirão, de certa maneira, para 0 meu monumento.

— O seu monumento?

Teve um novo gesto de assentimento.

— A seu tempo, me ouvirá falar disso, pois vejo que sabe escutar. O senhor tem qualidades, e mesmo mais do que as que julga. Quanto a mim, sou um sentimental como o senhor. Por isso, nunca quis casar-me. . . mas agora não disponho do tempo necessário para lhe expor os meus pontos-de-vista, pois, segundo ouço, parece que

O baile está no fim, e os meus convidados vão impacientar-se. . .

Calou-se, aproximou-se de mim. . . e agarrou-me vigo rosamente pela gola do casaco.

Esse movimento, que por nada eu esperava, fêz-me cambalear. Retrocedi um passo, fechando instintivamente os punhos, mas percebi que a sua mão se afrouxara, sentindo, logo a seguir, uma série de pequeninos toques no pescoço, como se o senhor Félix estivesse entretido a tocar piano sobre a minha nuca. Ouvia-o rir-se, e antes que pudesse adivinhar o que se passava, ele afastou-se. tendo na mão um coelho branco.

— Um velho truque, não é verdade? É tão simples!

Abriu a claque, meteu dentro o coelho, tornou a meter a mão, e de lá tirou os dois coelhos brancos.

— Tudo isto vai divertir os meus jovens convidados! Estudei muito prestidigitação nos meus momentos de ócio.

Pôs os coelhos no chão e dirigiu-se de novo para o armário.

~ O senhor é exatamente a pessoa que me fazia falta — disse — e vou lhe dar oportunidade de ganhar a sua ceia.

Abriu o armário e tirou uma grande capa vermelha, guarnecida de arminho.

— Eu mesmo pensava em vesti-la — disse, mostrando-~ma, .— mas. . .

Deteve-se ao ver que o meu rosto tomava uma expressão lastimosa, e desatou a rir, de uma maneira que me deu vontade de lhe deitar as mãos ao pescoço.

— Meu caro senhor — exclamou — compreendo-o perfeitamente. Pura associação de idéias com o Supremo Tribunal, não é assim? Pura analogia fortuita, pois isto não é toga de juiz, mas, muito simplesmente o traje do Papai Noel. E aqui tem agora a sua cabeleira encimada pela sagrada coroa e também a barba enorme, maravilhosamente orvalhada de prata.

Fez brilhar todos esses objetos à luz da lua que entrava pela janela, voltando-se depois para mim.

.— Vista depressa! — ordenou. — E aqui tem também as botas.

Tirou do armário um par de botas em que tinha cuidadosamente colado pedaços de algodão, para simular a neve.

— Felizmente são bastante altas — disse — de outra forma, como o traje é demasiadamente curto para o senhor, as pernas lhe ficariam à mostra.

Recuou um passo para apreciar se tudo aquilo me assentava bem.

— Há castigos e castigos — disse eu — e espero que, qualquer que seja a sua intenção, me levará em conta este de me vestir de Pierrot.

— Ah! Garanto-lhe que vai interessar-se pelo seu papel dentro em pouco — respondeu ele, esfregando as mãos.

Depois refletiu um minuto.

— O Papai Noel devia descer pela chaminé — prosseguiu, olhando para a lareira. — Estaria mais de acordo com a tradição. Esta chaminé comunica com a de baixo, e creio que o senhor não é gordo demais para não poder passar por ela; mas não tenho certeza se o meu mordomo a tenha mandado limpar recentemente. . . Evitar-lhe-ei, pois. a chaminé. *

Nos salões, a música deixara de tocar. O senhor Félix pegou nos seus coelhos, tornou a metê-los na claque, que fechou com um movimento rápido e seco, e, pum!, os coelhos eclipsaram-se.

— Desculpe-me — disse eu, enquanto ele me acompanhava até a porta; — mas essas várias coisas que eu linha metido aí na maleta. . .

— Sim! É bom traze-las, pois pode ser que tenhamos de distribuir lá embaixo alguns presentes.

Saímos do gabinete e chegamos a uma galeria, que dominava um grande hall, todo ele iluminado e decorado de hera, musgo e balões venezianos. Um grande lustre fazia rebrilhar os seus inúmeros prismas e ao pé da escadaria estavam dois criados com bandejas cobertas de doces e pastéis.

Eram criados muito bem educados, pois, ao me verem vestido daquela maneira, não manifestaram a menor surpresa.

Um deles, ao avistar-nos pousou a bandeja e abriu-nos a porta, que se encontrava à direita da escadaria. Vime então, à entrada de uma ampla sala, deslumbrante de luz e no fundo da qual se descobria o pano de boca de um pequeno teatro. Diz-se que a velocidade da luz é maior do que a do som; não estou muito certo disso, pois seria capaz de jurar que ouvi o ruído alegre de mil vozes in-fantis. que enchiam a sala, antes de me sentir deslumbrado pela luz ofuscante que nela havia.

A sala regurgitava de crianças. Havia lá centenas delas. Algumas quase sem força para dançar, tinham-se atirado para cima dos bancos dispostos por toda a volta da sala. Mas, a maior parte estava estendida em macas ou apoiadas em muletas. Outras tinham as mãos cruzadas sobre o peito e eram cegas. Não tenho a pretensão de gostar de crianças: mas, quando descobri que quase todas as que se encontravam em casa do senhor Félix eram aleijadas, enfermas ou cegas, então senti no fundo do meu velho coração uma piedade imensa.

Em todo o caso, foram os olhos cegos os únicos que me pareceram misericordiosos, quando o senhor Félix convidava Papai Noel a segui-lo até o palco do pequeno teatro, por entre a dupla fileira das crianças. Oh! Oh! Foi o primeiro grito que elas soltaram no momento em que eu apareci à porta; e ouvi esse oh! espalhar-se e multiplicar-se sem cessar, enquanto atravessava a sala cujo chão encerado refletia os meus passos como um espelho.

Sempre precedido pelo senhor Félix, subi ao palco por um pequeno corredor, todo enfeitado de bandeiras. O meu companheiro, com um sinal da sua claque, deu ordem à orquestra para começar a bem conhecida marcha A fine old English Gentleman anunciando a minha chegada; ou, se preferir, a do Papai Noel.

Depois daquele trecho de música, avançou até o proscênio e apresentou-me: explicou que me tinha encontrado vagueando pelas dependências da casa, ocupado a esvaziar qavetas à procura de presentes para dar aos Seus pequenos convidados. Cinco ou seis vezes se interromoeu para passar as mãos pela minha barba e retirar de lá bombons e pirilampos que atirava para o meio da assembléia.

A princípio as crianças mostravam-se espantadas e admiravam-se de que o dono da casa não se importasse de sujar assim tão belo e luzidio pavimento. Mas, loqo uma parotinha mais ousada debruçou-se, apanhou um pirilampo e gritou, deliciada, que, efetivamente, era um pirilampo verdadeiro. Aquilo foi o sinal para uma barafunda indescritível. O senhor Félix continuava a falar, aparentando não perceber nada; mas a sua mão, cada vez mais ágil. passava e repassava pela minha barba, e os pirilampos choviam, em torrentes, sobre a sala. Vi vários pequenos apanhá-los para os levar aos seus irmãozinhos ou irmãzinhas cegas, pondo-lhes. às vezes, nas mãos para que verificassem que eram pirilampos autênticos.

O senhor Félix percebeu isto e a catadupa das suas palavras cessou, de repente, como se fosse interrompida mecanicamente. . .

— Sou um sentimental! — disse, para mim.

Mas ninguém o ouviu, pois, naquele momento, os pirilampos saltitavam por toda a parte, e as crianças soltavam gritos de alegria. O tumulto tinha atingido o auge; mas, o senhor Félix atraiu de novo a atenção geral, agarrando–me pelo pescoço — como fizera, momentos antes, no gabinete — e, oh! prodígio!, tirou de lá dois coelhos brancos. Atirou-os para dentro da claque, que tinha aberto, com um movimento do polegar. Um segundo mais tarde, so-prando-lhe em cima, o chapéu tornava a se fechar, e os dois coelhos tinham-se evaporado. . . Tornou a abrir a claque, com um gesto de assombro, e, franzindo as sobrancelhas, tirou de dentro muitas fitas de várias cores: vermelhas, brancas, verdes, azuis, amarelas, nas quais havia baralhos amarrados. E, enquanto as fitas iam saindo do chapéu, o senhor Félix atirava ao ar as cartas, que, depois de formar um fole debaixo do lustre, tornavam a cair, juntas.

— Isso é para o senhor! .— disse-me, exibindo uma enorme couve, que saía da claque presa à ponta das fitas.

Arremessou tudo aquilo para o centro da sala, e, agarrando na minha maleta meteu-a debaixo da capa, para logo Iornar a apresentá-la transbordando de bonecos, trombones, trombetas, árvores de Natal, caixas de soldados, etc.

— Agora é a vez do Papai Noel! — gritou com toda a força. — Deixai passar o Papai Noel!

A febre da festa tinha-se apoderado de mim, e. descendo ao palco, pus-me a distribuir o conteúdo da maleta, à direita e à esquerda. Esgotei-a antes de ter percorrido a terça parte da sala, pois distribuía com ambas as mãos e. quando uma criança cega se punha a palpar um brinquedo, ou o deixava cair, dava-lhe outro até que o seu sorriso me satisfizesse completamente.

Os brinquedos abandonados ficavam no lugar onde tinham caído. Eu estava entusiasmado. Mas, estremecia cada vez que, mexendo dentro da maleta, os meus dedos roçavam pelos objetos de ouro e de prata, que se encontravam no fundo. Em breve percebi que já não tinha mais brinquedos e que, pelo menos, dois terços das crianças linda não tinham recebido nada… Voltei para apanhar Os objetos que não tinham agradado às crianças cegas; e, ao fazê-lo, tive medo que elas percebessem a coisa. . . Mas, vi a tempo, que o senhor Félix, sempre de pé sobre o palco, me fazia um sinal. . . E, como num sonho, voltei. ..

— Perfeitamente! — disse-me, enchendo, de novo, a maleta..  …… …..

Tornei a começar a minha distribuição. Por três vezes esvaziei-a… Ah! Quanto não era preciso para encher todas aquelas mãozinhas trêmulas de desejo e de alegria! Mas, consegui, e voltei a fim de receber novas instruções.

Entretanto, o senhor Félix tinha saído do palco e fazia sinal aos músicos, que começaram a tocar um belo trecho de música. O pano desceu e, um segundo depois, tornou a subir, deixando ver um cenário, que representava uma rua coberta de neve e ladeada de lojas, com vitrinas magníficas e deslumbrantes.

Então, enquanto a música executava uma marcha alegre. Arlequim entrou em cena com Colombina: pegou-a por um braço e. com um qesto rápido, fê-la rodopiar até a janela de um barbeiro; ele próprio, logo a seguir, entrou de um salto na de um vendedor de peixe. O “clown” apareceu então, pisando com medo como se caminhasse sobre um chão escorregadio; Pantaleão seguia-o. apoiado à sua bengala, no momento em que, à esquina da rua, apareciam dois policiais, vestidos de salsichas. O clown puxou as orelhas de Pantaleão. Pantaleão esbofeteou os policiais e todos, um atrás do outro, desapareceram dentro da loja do peixeiro. O clown foi o primeiro a sair, com um grande bacalhau roubado ao comerciante; entregou-o a Pantaleão. que vinha logo atrás, enquanto os policiais perseguiam a ambos. Mas. o peixeiro, o último a sair^ começou a correr atrás do clown que, tendo voltado à passar diante da vitrina se apoderara de um barril de arenques, que enfiou pela cabeça abaixo do infeliz comerciante. Este se desembaraçou como pôde, enquanto todos os personagens atiravam uns aos outros os arenques espalhados pelo chão.

As crianças torciam-se, literalmente, de riso. Oh! Que engraçada era aquela pantomima! Foi ela que, segundo o uso, fechou o serão, e realmente, depois de uma pantomima, que melhor pode fazer uma criança se não ir deitar-se e sonhar um lindo sonho, sobretudo se tem os braços carregados de brinquedos?

Cinco minutos depois de ter descido o pano, encontrava-me no hall, ao lado do senhor Félix, que se despedia dos convidados. Na rua, os carros estavam à espera. Guardas e criados punham os abrigos nos menores tão ébrios de felicidade que nem pensavam em agradecer ao dono da casa. . . E as portinholas fechavam-se, e os veículos desapareciam nas sombras da noite.

Quando o último convidado se foi embora, o sr. Félix voltou-se para mim.

— A festa terminou — disse. — Quando eu já não viver, segundo minha vontade, ela repetir-se-á todos os anos no Hospital das Crianças Doentes. Está tudo previsto no meu testamento e esse será o tal monumento de que parece já lhe falei. . . Mas durante alguns anos espero ainda que a festa poderá celebrar-se aqui. Mas, ouça: tire esse manto e essa cabeleira e vá em paz. Gostaria de falar com o senhor um pouco mais; mas estou um tanto cansado, como pode imaginar. . . Vá embora, pois! Vá em paz!

Fazendo um sinal ao criado para que se retirasse, acompanhou-me até o último degrau da escadaria e, ali, com os pés na neve, apertou-me a mão e, enquanto eu me afastava, fez-me alguns gestos de despedida.

Tinha chegado ao extremo da rua e havia já posto o pé na ponte, quando, de repente, me lembrei, com um grande estremecimento de que as jóias roubadas deviam encontrar-se ainda no fundo da maleta. Parei, encostei-me ao parapeito e abri-a. Meti a mão e tirei. . . um arenque. . . As jóias tinham-se convertido em arenques. Tirei-os um a um e fui arrojando-os à água negra, que corria, a vinte pés por baixo. Não; não havia ali objetos de valor. Mas, em todo o caso. . . No momento em que pegava no último arenque, passeando os meus dedos pelo fundo, senti um objeto duro: era um anel ornado com uma turquesa.

Durante alguns minutos fiquei examinando-o à luz de um lampião. Meti-o no bolso e logo tornei a pegar nele sem o observar de novo…

Por fim, decidi-me e voltei para trás, refazendo todo o caminho até à morada do sr. Félix.

Ele se encontrava ainda no mesmo lugar, sobre o último degrau da escadaria, junto ao bordo do passeio, e, por cima, como uma estátua, o criado aguardava que o patrão se dispusesse a entrar.

— Perdoe-me, senhor.. . — comecei eu, tirando do bolso o anel.

— Tinha-o deixado na maleta de propósito — disse, com voz suave, o sr. Félix, — Ofereço-lhe em paga dos seus bons serviços. Comprei-o por duzentos francos e creio que vale um pouco mais. Todavia, se o senhor prefere o dinheiro, o que é natural na sua situação, tome lá! Aqui tem os duzentos francos; e repito-lhe novamente: vá em paz!
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* Sir Arthur Thomaz Quiller Couch, "scholar", homem de letras e conferencista de literatura clássica em Oxford, nasceu em Cornwall em 1863 e completou a sua educação frequentando várias escolas, inclusive o "Abbott College", o "Clifton College", etc. Desde 1912 é membro do "Jesus College" e professor de literatura inglesa na Universidade de Cambridge. A sua bagagem de escritor é das mais variadas e estende-se por mais de trinta volumes que alcançam desde a novela policial até a critica literária, passando pelo teatro e pela poesia.     Muitos dos seus trabalhos literários e algumas de suas novelas têm sido assinados com o pseudônimo de "Q" e há mesmo na sua obra um volume de histórias de mistérios assinado apenas com aquela inicial.

Quiller Couch é também bastante conhecido como escritor politico, tendo por várias vezes tratado dos negócios do seu país, que conhece a fundo. Possuindo uma vasta cultura humanista, é colaborador dos principais magazines da Inglaterra. A sua apresentação literária ao público deu-se com o romance "Dead Man’s Rock", em 1887.


Fonte:
Araújo Nabuco (seleção e notas). Livro de Natal. Livraria Martins Editora, 1955.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 42

CAPÍTULO XVIII

Ah! Que terrível efeito produziu sobre D. Margarida e mais a filha a notícia de que o colégio já não pertencia ao Coruja.

Ficaram indignadas, como se fossem vitimas de um grande roubo. Dir-se-ia que aqueles seis contos lhe saíam das algibeiras.

— Mas, onde diabo meteu este homem tanto dinheiro?... Bradava a velha no auge da fúria. Ora pois! Que ele consigo não se arruinou decerto! E ninguém me tira da cabeça que em tudo isto anda grande maroteira se é que aquele cara de boi morto não enterrou tudo no jogo!

A história do tiro no pé muito intrigou igualmente a D. Margarida. Sendo uma das versões, o tiro fora disparado por Teobaldo em um exercício de atirar ao alvo e, segundo outra, o Coruja fora o próprio a ferir-se, metendo-se a carregar uma arma, que ele não conhecia. Havia ainda uma outra versão, e era que, entrando Teobaldo em casa e encontrando André, fizera fogo sobre ele, na persuasão de que surpreendia um vagabundo dentro de seu quarto.

Esta última versão fora levantada pelo alferes Picuinha, que agora não perdia ocasião de meter a ridículo o pretendente de Inês. D. Margarida, ou fosse por cortesia ou por mera curiosidade, apresentou-se, acompanhada com a filha, em casa de Teobaldo, dizendo que iam fazer uma visita ao Sr. Miranda.

Este, mal foi interrogado pelas duas senhoras, confirmou o boato de haver ele próprio se ferido; depois do que teve de tratar a respeito do seu casamento, assunto para o qual estivera até ai D. Margarida a empurrar a conversa.

— Não sei, minha senhora, não sei que lhe diga, murmurou o Coruja com um suspiro.

— Como não sabe o que me diga?...

— É que as coisas me correram muito ao contrário do que eu esperava...

— Mas o senhor não tinha dito que o casamento seria agora sem falta...

— Disse, é exato, mas esperava estar também com a minha vida segura e confesso que nunca a tive tão mal amparada!

— Isso quer dizer que ainda não é desta vez que se faz o casamento?

— É verdade, ainda não pode ser desta vez.

A velha, ao ouvir isto, ficou mais vermelha do que o xale de Alcobaça que ela trazia ao ombro e, erguendo-se de repente, exclamou possessa:

— Olhe! Você quer saber de uma coisa?! Vá plantar batatas, você e mais quem lhe der ouvidos! Eu é que já não estou disposta a aturá-lo, sabe? E passe muito bem! E, agarrando a filha pelo braço: — Vem daí tu também, ó pequena! Larga o diabo deste impostor, que, digam o que disser, não é outro quem nos tem encaiporado a vida!

E saiu, muito furiosa, a clamar desde então contra "aquele cara do inferno".

— Pena é não lhe haver acertado deveras o tiro! Praguejava ela, se o maldito prestasse para alguma coisa teria morrido! E é sempre assim. Deus me perdoe, credo!

Os vizinhos de D. Margarida viram-na esse dia atravessar a rua como um foguete.

O demônio da velha ia com o diabo no corpo.

— Ora! Pois também se o tal noivo das dúzias estava há tanto tempo a mangar!

— Não! Que uma coisa assim até parecia escândalo!

— E a pobre Inês, coitada! É que havia de amargar, porque perdera o seu tempo à espera do homem!

— Não fossem tolas! Pois não viam logo que daquela mata não podia sair coelho?...

O caso do Coruja ganhou imediata circulação entre os amigos e conhecidos das duas senhoras, que principiaram logo a ver no inofensivo professor um terrível monstro, tão feio de alma quanto de corpo.

Quem não se mostrou desgostoso com o fato foi o Picuinha, que até já havia dito por mais de uma vez:

— Pois se o homem não quer a rapariga, é despachar, que há mais quem a queira.

D. Margarida, justiça se lhe faça, não desejava trocar o professor pelo alferes de polícia, mas à vista do "indigno procedimento" daquele, e á vista do empenho que fazia o outro em casar com Inês, alterou a sua opinião a respeito de ambos e, como a filha era "aquela mesma" que "tanto se lhe dava, como se lhe desse" acabou declarando que o melhor seria mesmo agarrar o Picuinha e mandar o Coruja pentear monos!

— Homem! Querem saber? Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar!

De sorte que, ainda bem o Coruja não conseguia se ter de pé. Já a sua noiva era ligada ao alferes por todos os vínculos ao alcance dos dois, inclusive o conjugal.

— Ora... Resmungou aquele ao saber disto, não me posso queixar!... Foi melhor mesmo que a rapariga se desenganasse pelo meu lado e tratasse de se arranjar por outro! Ao menos tiro um peso da consciência!

Não obstante, seu coração carpia em segredo o desaparecimento de mais essa ilusão que, à semelhança de quase todas as da sua triste existência, o abandonava para sempre.

Depois que Inês casara, todo o empenho e toda a esperança de André voltaram-se para a sua querida história do Brasil. Enquanto esteve de cama muito trabalhara nessa obra, mas o seu esforço recrudesceu com aquele fato e era provável que agora a levasse ao termo.

O pior estava em que a implacável velha e mais a sua gente não perdiam ocasião de desmoralizá-lo perante o público, dizendo horrores a respeito dele. Estas maledicências, ligadas ao descrédito comercial que lhe provinha do mal desempenho dos seus negócios com o Banco, foram por tal forma o prejudicando moralmente, que em breve o desgraçado se viu tido por homem mau, sem dignidade própria, nem respeito pela alheia.

A continuarem as coisas desse modo acabaria por não poder ganhar o seu pão. Ninguém mais lhe queria confiar trabalho; ninguém já o quer para nada. As famílias fechavam-lhe as portas; os seus ex-discípulos puxavam-lhe o paletó no meio da rua; um dos antigos credores do colégio chegou a chamar-lhe "tratante", cara a cara, e o Coruja não respondeu ao insulto, porque no fim de contas essa era a verdade.

Com Teobaldo não contava absolutamente, porque ninguém melhor do que ele sabia da triste situação em que se achava agora o amigo.

E, desgraçadamente para ambos, a posição de Teobaldo não podia ser mais falsa.

Depois do seu formidável desastre com as cambiais, nunca mais conseguiu levantar deveras a cabeça e, posto ele afirmasse o contrário, seus negócios corriam de mal a pior. Tanto que, para manter ainda a sua casa particular com uma certa decência, era-lhe já preciso contrair dívidas tais, que só os juros delas lhe levavam o que ele ganhava na praça.

É impossível imaginar a ginástica que aquele demônio punha em jogo para disfarçar o seu verdadeiro estado de pobreza. Sentia-se perdido a cada instante, mas ninguém o diria pelas aparências.

Não despediu nenhum dos seus criados, nem deixou fugir nenhuma das suas boas relações.

É que ele esperava que a fortuna, aquela fortuna nunca o desamparou, chegasse de um momento para outro em seu socorro e transformasse tudo. Como sempre esperava, sem saber donde e sem saber porque, mas esperava: não confiava em si absolutamente, mas confiava muito do acaso. Agora a sua grande ambição era a política. Teobaldo votou-se abertamente para ela, como se voltaria para qualquer outro lado; voltou-se unicamente. porque o seu espírito, de tão inconstante, não podia estar por muito tempo sem mudar de posição.

Mas, apesar disso, compreendia que, sem dinheiro, nem influência de família e só com um pouco de prestígio de um talento que ele fingia ter, era preciso arranjar bons amigos e por de parte uns tantos escrúpulos.

E principiou a falar muito de política por toda a parte, começou a intrometer-se nas intriguinhas dos partidos e a escrever nos a pedidos das folhas; fez-se um conservador originalíssimo, um conservador capaz de dar a última gota do seu sangue pelo monarca e também pela constituição do Império, mas disposto a devorá-los a ambos no dia em que semelhante coisa fosse necessária para a felicidade do povo.

— Sim, porque, disse ele ao próprio Imperador em uma das muitas vezes em que o foi visitar, se eu amo Vossa Majestade com tanta dedicação, procuro servir a vossa causa, é porque entendo une Vossa Majestade é, foi e será sempre o maior, o mais sincero amigo de todo o brasileiro!

CAPÍTULO XIX

Nada disso, porém, teria produzido efeito, se um acaso feliz, um desses acasos com que Teobaldo contava sempre, não viesse em auxílio das suas aspirações políticas.

Foi o caso que um dos seus bons amigos. homem de vistas grossas, mas de influência real em certa circunscrição eleitoral, depois de preparar a candidatura de um rapaz protegido seu, descobriu que este lhe pagava esse obséquio tentando corromper-lhe a esposa, e então o bom homem, sem querer saber de mais nada, pôs o seu afilhado de parte e resolveu despejar sobre a cabeça do primeiro que se apresentasse tudo o que para aquele havia destinado.

Ora, o primeiro que se apresentou foi Teobaldo, e eis aí como este, quando ninguém esperava, surgiu deputado geral por um círculo, que ele mal conhecia. Todos passaram defronte deste fato, menos Branca, que era afinal a única pessoa que tinha sobre aquele pantomimeiro um juízo havia muito determinado e certo.

E a cada palavra que lhe diziam em honra do marido, ela sorria, sem deixar transparecer no seu gesto coisa alguma que se pudesse tomar por orgulho, por contentamento, nem por desprezo ou indiferença. Sorria para não falar. E o fato é que o marido, sempre tão jatancioso e parlapatão para com os mais espertos e atrevidos, retraía-se defronte daquele sorriso frio e desafetado, sem conseguir dominar a sua perturbação. E, quanto mais Teobaldo se sentia crescer aos olhos do público, tanto menor e mais mesquinho julgava-se aos olhos da mulher.

Todavia, com a sua nova posição, voltou-lhe de novo a coragem e redobrou a confiança que ele depositava na sua boa estrela. Como sempre, não tinha agora uma idéia segura sobre o que ia fazer; não tinha orientação política; não tinha intenções patrióticas; entrava para a câmara com uma única idéia: — Ser deputado e produzir sobre o público o mais brilhante efeito que lhe fosse possível. Entrava para a câmara como até ai entrara em toda a parte, dominado por um único entusiasmo: o entusiasmo de si mesmo. O interesse que o levava era o interesse próprio e nenhum outro.

Mas, quem o visse à noite, em meio de sua sala, falando e gesticulando defronte dos amigos, havia de jurar que ali estava o mais intrépido defensor da nação e o mais desinteressado dos políticos da terra.

E com que habilidade, nas belas reuniões que ele agora fazia em casa, não sabia o grande artista chamar para derredor de si as vistas mais distraídas dos homens que lhe eram necessários?... Com que sutileza não fingia discutir todas as questões de interesse geral, quando aliás não estava a discutir senão a sua própria pessoa?

Nunca o seu privilegiado talento de insinuar-se em cada um, a quem ele queria agradar, teve tanta ocasião de fazer valer a sua força: a todos comunicava o insinuante mestiço uma faísca do seu espírito sedutor; a tudo um reflexo do seu diletantismo aristocrata.

E tão depressa o viam cercado por um grupo de colegas, a convencê-lo sobre qualquer ponto de política, como ao lado das damas, a conversar sobre as mais deliciosas futilidades. E, assim como não se podia adivinhar os sacrifícios e os milagres inventados por Teobaldo para manter aquela aparência de grandeza, ninguém seria capaz de desconfiar que, durante essas reuniões, um desgraçado perdia as noites lá em cima, no sótão, entregue a um trabalho sem tréguas, a compulsar livros, a mergulhar em alfarrábios, a passar horas e horas estático defronte de uma página, só com a esperança de esclarecer algum ponto mais obscuro da história do seu país.

Ah! Se jamais a vida de Teobaldo foi tão brilhante, a de Coruja nunca foi tão obscura, tão despercebida e tão difícil. Agora precisava o pobre diabo empregar todos os esforços para fazer algum dinheiro; o círculo dos seus recursos apertava-se vertiginosamente. Incapaz de mentir, incapaz do menor charlatanismo, ele tinha em si mesmo o seu maior inimigo.

Em tais apertos lembrou-se de entrar em concurso para uma cadeira de professor; mas, apesar da sua incontestável competência sobre matéria, fez uma figura tristíssima. Até lhe faltaram as palavras na ocasião do exame; viu-se sem idéias; sentiu-se estúpido e ridículo, sem ânimo de afrontar o riso que se levantava em torno da sua desengraçada perturbação.

Definitivamente nada arranjaria por meio de concurso. Era tirar daí a idéia. E, contudo, urgia descobrir algum meio de ganhar dinheiro para viver, porque ele, coitado, bem percebia que o seu maldito tipo ia-se tornando de todo incompatível com a casa de Teobaldo.

Sim, o Coruja compreendia perfeitamente que a sua grotesca pessoa era uma nota desafinada entre aquelas salas de bom gosto e aquela gente tão distinta; compreendia que, se não o haviam já enxotado como se enxota um cão leproso, era simplesmente porque se julgavam empenhados para com ele em dívidas de gratidão; ou talvez porque receassem que o infeliz não tivesse onde cair morto.

A certeza de que a sua presença era por toda e qualquer forma penosa ao amigo o constrangia e mortificava muito mais pela idéia de separar-se dele do que pelas dificuldades de arranjar um canto onde se metesse.

Oh! Quanto não sofria o infeliz quando era surpreendido nas salas de Teobaldo por algum amigo deste! Quanto não lhe custava a sofrer o exame das pessoas que o pilhavam às vezes de improviso, sem que ele tivesse tempo de fugir para o seu sótão.

Teobaldo não ficava menos contrariado com isso, e via-se em sérios embaraços para justificar aos olhos das suas visitas aquela amizade tão estranha. Então, como recurso de aperto, apresentava o Coruja na qualidade de um desses tipos excêntricos que, a força de extravagâncias, são, nem só previamente desculpadas por todas as suas esquisitices, como até suportados por gosto.

E passava a pintá-lo exageradamente.

— Um verdadeiro tipo! Dizia, o maior esquisitão que eu até hoje tenho conhecido! Ah! Não imaginam! É magnífico! É uma raridade! Inalterável como uma torre! Dêem-lhe alguns alfarrábios, deixem-no a sós, e ele estará como quer! Se não lhe puxarem pela língua, será capaz de ficar mudo durante um século! Podem cortar-lhe uma das orelhas, que ele não dá por isso, e, se der, também perdoa logo a quem a cortou!

— É um louco! Afirmavam os que ouviam isto. É um alienado! É um bicho!

E o senhor Teobaldo, que conhecia perfeitamente o amigo; o senhor Teobaldo, que tivera mil ocasiões para saber quem era e quanto valia o Coruja, não tinha entretanto a coragem de defendê-lo, e chegava até a confirmar tacitamente o triste juízo que a respeito dele formava meia dúzia de sujeitos a quem no íntimo desprezava.

Quando, porém, Teobaldo caía nessa fraqueza, voltava instintivamente os olhos para a esposa. E lá estava nos lábios de Branca o tal sorrisozinho que o desconcertava.

Então, sem se dirigir a ela, mas falando só para ela, acrescentava com a sua ênfase predileta:

— Pois não! No fim de contas aquela invariável bondade; aquele eterno altruísmo; aquele monótono desinteresse, até a um santo acabaria por enfastiar! Oh! É que tudo cansa neste mundo! Qualquer coisa, por melhor que ela seja, se no-la derem sempre e sempre, se converterá em um martírio! Além disso, a virtude em demasia é um defeito como outro qualquer! Um homem afinal deve ser um homem! E quem não souber castigar o mal que lhe fazem, dificilmente reconhecerá o bem que lhe dedicam! Não compreendo um bom amigo que não saiba ser um melhor inimigo, e cada vez estou mais convencido de que descuidar-se a gente da sua própria pessoa é cometer a maior maldade que se pode fazer contra uma criatura humana, a não ser que essa pessoa pretenda abdicar dos seus foros de homem.

E o penetrante sorriso de Branca não se alterava.
–––––––––––-
continua…

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Aparecido Raimundo de Souza* (A Astúcia do Cachorro)

Fábula recontada e adaptada do Cancioneiro Popular.

No tempo em que os animais falavam

Conta uma lenda, um cachorro estava no meio da floresta, se banqueteando com restos de ossos, quando, atrás dele, uma onça faminta, de garfinho, faca e guardanapo no pescoço, se preparou para dar o bote. Pressentindo que iria virar almoço, o coitado, mais que depressa, pensou rapidamente numa saída. Assim, sem se virar gritou o mais alto que pode:

— HUMM!... QUE ONÇA DELICIOSA ACABEI DE DEVORAR...

Ouvindo essas palavras, a onça se assustou. Ato contínuo abortou o pulo pretendido, deu meia volta e saiu correndo, só parando alguns quilômetros depois, exausta, à beira de um riacho de águas cristalinas:

— Escapei por pouco, daquele cachorro!...

Entretanto, do alto de um abacateiro, um sem vergonha de um macaco assanhado assistiu a tudo. Dando uma de fofoqueiro, correu a contar sobre o golpe do cachorro:

— Então é isso?

— Sem tirar nem por...

— Pois ele me paga!... Venha atrás de mim e veja o que faço com quem tenta me passar a perna.

Fula da vida e babando de raiva, a onça mais que depressa empreendeu o regresso ao local levando o primata a tiracolo. Como se esperasse pelo retorno da inimiga, o cachorro, sem pensar duas vezes e, vendo a difícil situação em que se achava metido, não perdeu a esportiva e jogou a derradeira carta que lhe restava ao alcance das patas. Ou salvava a pele, ou virava, de uma vez, o prato principal da furiosa ferina, aliás, de presas afiadas, e com o sangue a aflorar a pele pintada. Sem se mexer, e ao menos se virar para o casal que estancou a poucos passos de seu rabo (podia até sentir o hálito quente dos dois), berrou com todas as forças que conseguiu reunir no fundo da garganta:

— CADÊ AQUELE MALDITO MACACO? JÁ FAZ MAIS DE MEIA HORA QUE MANDEI O SAFADO BUSCAR OUTRA ONÇA E ATÉ AGORA, NEM SINAL DO DESGRAÇADO. VOU SAIR À CATA DELE, AGORA!

Ouvindo essas palavras, o macaco que seguia a onça tratou de dar o fora trepando na primeira árvore que avistou pela frente. Na subida esqueceu algumas bananas que trazia para o almoço.

A onça, sem ação, fez o mesmo. Empreendeu meia volta, às carreiras e se embrenhou na mata virgem, deixando o cachorro às voltas com um largo sorriso de satisfação entre os dentes.

MORAL DA HISTÓRIA.
Às vezes vale mais um pensamento rápido que a fome de mil onças.

–––––––––––––––-
Aparecido nasceu no Paraná, mas se radicou em Vitória, no Espírito Santo. Jornalista de renome da Revista Isto É, a meu convite, esteve presente no dia de ontem na Semana Literária do SESC Maringá, ocasião em que autografou seu último livro (este que conta a fábula acima) e realizou uma palestra sobre o mesmo. (José Feldman)

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP : Ed. Sucesso, 2012.

Ligia Tomarchio (Poemas Avulsos)

Atemporal

Tic-tac
Tic-tac
Coração vazio.
Tum... tum...
Horas vazias
Sonhos...
Longo túnel percorrido
nenhuma luz.
Sol, onde estás?
Sonâmbula vida
esquecida.
Tic-tac
Tum... tum...
soluço
solução?
Alucinante paisagem
transe malévolo
místico cristal
alado
pedras, pedras...
água, água...
trégua!

Colégio interno

Interino e profundo
jaz colégio da vida.
Minutos de sabedoria soterrados
no porão da saudade.

Idade reporta momentos
de infinita sofreguidão.
Desconsolo maldito
destempero de sorte.
Menino de oito anos
tragado pelo colégio maldito.
Chora ao pai rígido
raiva da separação.
Inesperada incompreensão
causadora de mal estar.
Fecha a tumba com lágrimas
caminha a passos lentos.
Recepcionado por um anjo
espectro de horror.
Apenas oito anos de idade
adentra o colégio interno.
Sorverá talvez sapiência
sofrerá certeira faisã de dor.
Menino sábio de oito anos
retornará magoado ao pai.
Consolo é seu tesouro.
Liberdade é sua salvação.

Cativeiro

Incrustado na bruma
- o luar
as águas rodopiam
intenso descobrir

- não revela
o amanhã breve
talvez desnude
- mudo
em surdo remoer
- subvertido
à claridade vã
de profundas lidas
no afã de acordar
- o reencontro.
Um maremoto ensolarado
nas profanas esperanças
- submerso
interino entre pedras
- o pernoite
suposto e cruel
- permanecido
sereno éter
vapor cósmico
insípido sabor
- pasmo
borralho úmido
- engasgado
- cristal bruto
- âmbar
- esmeralda pálida
girinos sobrevoando
toda existência contida.

A esquina

Transe intransitivo
endireita esquina
aberta
Esgueiram-se
lampejos
ângulo semi-reto
coágulos entrelaçam
pétalas escondidas
prestes a emergir
frescor humilde
aguarda ancião
indeciso ao aviso
qual a direção?
segmento corrupto

és o espelho
reflexo da náusea?

Insônia

A noite bate à porta
açoita mentes insanas
libera demônios
aclama os ânimos.
Devora

cérebro doente
em chamas
molhadas de dor.
Emoção maior
universal
agonia vivida
agora escrita.
Vazão de sentimentos
na leveza do papel
no sangue do lápis
que transcreve.
Voraz vontade de escrever
loucura em viver
paixão em morrer
paz em transcender.

Mensagem

Navegam lembranças
ondulando mensagens
nas marés
a lua testemunha
estrelas indicam o rumo
sem bússola, desnorteadas.
O amor espuma
resume em poucas letras
rabisca um mapa
pede socorro
horror da solidão?
Descreve a paisagem
Suave entardecer breve
entreabre o vão

na memória do autor
retorna encharcada de dor
às areias da eternidade.

Nostalgia

Confesso e afirmo
penso e relembro
não me arrependo
mas quero viver...

Viver sem temer
pensamentos vãos
que atormentam
massacram, traem...
Trair a mim mesma
ira repentina
serpentina caindo
colorindo minha culpa...
Culpa, mas qual
quem não a tem
ater-se por que
a tanta tortura?
Tortura conhecida
por todos que choram
moram em si mesmos
temem mudanças...
Mudança de padrão
social, cultural, qual?
Tudo igual à ontem
e amanhã, amanhã, amanhã...
Amanhã choverá
águas quentes verterão
pedras vão rolar...
Quem jogará a primeira pedra?
Pedra, feito meu coração
rolando pra lá e pra cá
sem rumo certo
incorreto, melancólico...
Melancólico é meu pensamento

traidor, indolor, sofredor...
Quisera saber morrer...
É preciso correr o risco?

Cofre de Luzes

Cofre de luzes
submersas
na densa escuridão.

Pensamentos resgatam
tremores antigos
surtos, espasmos.

Quase suspensos
os sons invadem
estreitos vãos,
frestas oprimidas.

Olhar luzes sonoras
por frestas segredadas
no cofre da saudade.

Mal dos tempos
menos atentos
ao som do imaginário,
no armário
o esconder da luz.

Fonte:
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/l/ligia.htm
http://www.ligia.poeta.ws/

Folclore dos Estados Unidos (Lenda dos Pimas: A História da Criação)

Mulher Pima
Introdução:

O ancião, Comalk Hwak-Kih (Carmurça Fina) começou dizendo que estas eram estórias que ele costumava ouvir seu pai contar, sendo passada de pai para filho, e quando ele era pequeno ele não dava muita atenção, mas quando ele se tornou homem ele decidiu que iria aprendê-las, e pediu a seu pai que as ensinasse, o que o seu pai fez, e agora ele sabia todas elas.

A História da criação

No começo, não havia terra, água – nada. Havia apenas uma Pessoa, Juh-wert-a-Mai-kai (O Curandeiro da Terra).

Ele apenas flutuava, pois não havia lugar para ele pisar. Não havia sol, nem luz, e ele apenas flutuava na escuridão, que era a própria Escuridão.

Ele vagava por lugar nenhum até que ele decidiu que já tinha vagado demais. Então ele esfregou em seu peito e  tirou moah-hahttach, que é a respiração, ou terra gordurosa. Isto ele esfregou na palma e sua mão e equilibrou. Ela caiu três vezes, mas na quarta vez ficou suspensa no meio do ar e lá permanece até agora como o que chamamos de Terra.

O primeiro arbusto ele criou foi o arbusto greasewood (1).

E ele fez formigas, formigas pequeninas, para viver naquele arbusto, sobre a seiva que saia de seu tronco.

Mas essas formiguinhas não faziam nada de bom, então ele criou as formigas brancas, e estas trabalhavam e aumentavam a Terra; e elas a mantinham crescendo, maior e maior, até que ficou grande o suficiente para ele permanecer sobre ela.

Então ele criou a Pessoa. Ele o fez de seu olho, tirado da sombra de seus olhos, para o ajudá-lo, para ser como ele, e para ajudá-lo a criar árvores e seres humanos e tudo o que estava sobre a Terra.

O nome deste ser era Noo-ee (o Abutre).

A Nooee foi dado todo o poder, mas ele não trabalhou para o que ele foi criado. Ele não ligava em ajudar Juhwertamahkai, mas ele o deixou por sua própria conta.

E assim o Curandeiro da Terra criou ele mesmo as montanhas e tudo o que foi semeado e bom de comer. Pois se ele tivesse criado os seres humanos primeiro eles não teriam nada para se sustentar.

Mas depois de fazer Nooee e antes de fazer as montanhas e sementes para comida, Juhwertamahkai fez o sol.

A fim de fazer o sol ele primeiro fez a água, e então ele a colocou num vaso oco, como um prato de barro (hwas-hah-ah) para ficar duro como gelo. E esta bola dura ele colocou no céu. Primeiro ele colocou ela no Norte, mas isso não funcionou; então ele a colocou no Oeste, mas isto não funcionou; então ele a colocou no Sul, mas isto não funcionou; então ele a colocou no Oeste e lá ele funcionou como ele queria.

E a lua ele fez do mesmo jeito e ele tentou nos mesmo lugares, como os mesmos resultados.

Mas quando ele fez as estrelas ele encheu a boca de água e cuspiu nos céus. Mas na primeira noite as estrelas não iluminaram o bastante. Então ele pegou a Pedra Curandeira (diamante), o tone-dum-hw-teh, e a despedaçou, e pegou os pedaços e os jogou nos céus para se misturar com a água nas estrelas, e então houve luz bastante.

E assim Juhwertamahkai, esfregou o seu peito novamente, e dessa substância ele obteve dois bonequinhos, e ele os colocou na Terra. E eles eram seres humanos, homem e mulher.

E assim por um tempo as pessoas se multiplicaram até que encheram a Terra. Pois os primeiros pais era perfeitos, e não havia doença e nem morte. Mas quando a Terra se encheu, então não havia nada para comer, então eles mataram e comeram uns aos outros.

Mas Juhwertamahkai não gostou do jeito que seu povo agiu, matando-se uns aos outros, e então ele deixou que o céu caísse sobre eles e os matasse. Mas quando o céu caiu ele pegou uma estaca e quebrou um buraco nele, através do qual ele e Nooee emergiram e escaparam, deixando atrás deles toda a gente morta.

E Juhwertamahkai, estando agora no topo do céu caído, fez de novo o homem e a mulher, do mesmo jeito que antes. Mas esse homem e mulher ficaram cinzas quando velhos, e suas crianças ficaram cinzas mesmo jovens, e seus filhos ficaram cinzas ainda mais jovens, e assim foi até que os bebês ficaram cinzas ainda no berço.

E Juhwertamahkai não gostou disso, e deixou o céu cair de novo, e criou tudo de novo do mesmo jeito, e dessa vez ele criou a terra como é hoje.

Mas no início a inclinação do mundo estava para o ocidente, e não havia montanhas subindo dessa inclinação e não havia verdadeiros vales, e toda a água cáia e não havia água para o povo beber. Então Juhwertamahkai mandou Nooee para voar entre as montanhas, e sobre a terra, para cortar vales com suas asas, assim a água poderia ser contida e distribuída e haveria bastante para as pessoas beberem.

Assim o sol era macho e a lua era fêmea e eles se encontravam uma vez por mês. E a lua se tornou mãe e foi para uma montanha chamda Tahs-my-et-tahn Toe-ahk (montanha do sol maravilhoso) e lá deu à luz a um bebê. Mas ela tinha tarefas para fazer, virar-se e prover luz, assim ela fez um cantinho para sua criança juntando arbustos de ervas daninhas e o deixou lá. E a criança, não tendo leite, foi nutrida pela terra.

E essa criança era o coiote, e quando ele cresceu, ele saiu para caminhar e nessas andanças ele chegou até a casa de Juhwertamahkai e Nooee, onde ele ficou vivendo.

E quando ele chegou lá Juhwertamahkai reconheceu ele e o chamou de Toe-hahvs, porque ele esta deitado nos arbustos com esse nome.

Mas agora lá do Norte veio outro poderoso personagem, que tinha dois nomes, See-ur-huh e Ee-ee-toy.

Assim Seeurhuh significa irmão mais velho, e quando esse personagem veio até Juhwertamahkai, Nooee e Toehahvs ele chamou eles de seus irmãos mais novos. Mas eles afirmara que eles estavam aqui primeiro e eram mais velhos que ele, e havia uma disputa entre eles, Mas finalmente ele insistiu tanto, e apenas para agradá-lo, eles o deixaram ser chamado de irmão mais velho.

Notas:

Greasewood é um arbusto encontrado em solos alcalinos e salinos desde o Canadá até o México. Os indígenas usam as sementes e folhas como alimento, pois tem gosto salgado. Os Hope e outros antivos as usam para combustível e varas de plantação. que tem gosto Indians used the seeds and leaves, which taste salty, for food (Elmore, 1976). The Hopi and other Native Americans use greasewood for fuel and for planting sticks (USDA Plant Profiles). No Parque Histórico Nacional da Cultura Chaco é utilizado para a construção, especialmente de vergas, de combustível, sendo uma das madeira preferida para fogueiras usado pelo povo Kiva.


Fonte: 
LLOYD, J. Williams. Aw-Aw-Tam Indian Nights, 1911.
http://www.sacred-texts.com/nam/sw/ain/index.htm

Célio Simões * (O Extraordinário Miguel Venâncio)

  
  Quando definitivamente passei a residir em Belém, o Miguel era um atleta de futebol, mas ainda não havia sido promovido a rei. Contentava-se nos desfiles de sete de setembro com o título de imperador, réplica improvisada de Dom Pedro I, aquele um que às margens do tal riacho Ipiranga, mais estreito que o córrego do Curuçambá ou do Irurá, desembainhou a espada e proclamou a independência do Brasil, tantos eram os abusos da Corte Portuguesa contra suas colônias, num processo predatório que se ao mesmo tempo garantiu a integridade do território nacional, por outro lado carregou para Lisboa e de lá direto para a Inglaterra, grande parte das nossas reservas auríferas, ainda por cima esmagando o povo com impostos escorchantes. Vem de lá, penso eu, nossa sobrecarga tributária, uma das mais desumanas do mundo. Sorte que não descobriram Serra Pelada ou as minas de Carajás, caso contrário, o sacrifício de Tiradentes teria sido um gesto inútil.

    Inexistia e aí falo do tempo que morei na Cidade Presépio, um único evento que não contasse com a participação do Miguel Venâncio, devidamente caracterizado, a compatibilizar a personagem com a comemoração. Se na data magna da nacionalidade, lá vinha ele cavalgando seu ginete, encarnando nosso libertador político. Se no carnaval do mascarado fobó, preferia trajar-se de Zorro, capa preta, máscara e espada reluzente, a duelar ao som das marchinhas com seu amistoso antagonista, o excelente zagueiro do Paraense Esporte Clube cujo apelido – Canela de Vidro – dá bem uma ideia de quanto sofriam os atacantes adversários em uma peleja no antigo Estádio General Rego Barros.

    Guardadas as devidas proporções, Miguel me lembra um sujeito que morava em Marabá quando lá trabalhei no ano de 1969. O nome o tempo apagou. Suas presepadas não. Nas festas juninas, era o mais animado nas “quadrilhas”, nas quais rebolava vestido de mulher, braço dado com seu cavalheiro, ambos em trajes caipiras. No carnaval, instalava-se principescamente sobre um carro alegórico, com indumentária e adereços que lembravam Clóvis Bornay; na pungente “Procissão do Encontro”, que marca o ápice da Semana Santa, lá estava ele pregado na cruz, coroa de espinhos na cabeça, sangue de mentirinha escorrendo dos ferros cravados nos pés, mãos e do golpe na costela, fazendo o papel de Jesus Cristo. Alfaiate habilidoso, produzia suas próprias vestimentas e adereços. Era fato público sua excentricidade, aspecto que não lhe empanava a criatividade, justo porque o talento e a arte independem de orientação sexual.

    O Venâncio, todos o sabem, jogava no time dos aprimoradores da eugenia masculina, mesmo quando pulava o carnaval vestido de baiana. Ademais, suas personagens e modo de vida assim o demonstravam. Dos que anualmente se entregavam à folia na antiga Praça do Quartel, onde os blocos explodem em animação num dos mais badalados carnavais do interior paraense, sempre ele caprichava nas fantasias e se destacava nos desfiles encantando platéias embasbacadas com seu vigor físico, conquanto já tivesse ultrapassado os setenta anos. E se o cortejo extravasa os limites da praça para exibir-se pela cidade, lá ia o lépido setentão subindo as ladeiras da velha Pauxis, como um adolescente ainda na flor da juventude.

    Incentivado para sobre ele escrever, fiquei inicialmente sem elementos factuais para fazê-lo, buscando na memória as magníficas performances nas efemérides em que testemunhei seu desempenho. Salvo engano, além de vigoroso futebolista, que atuava no gramado com o calção amarrado um palmo acima do estômago, sempre foi pessoa pacífica, cordata, gente fina, simpática a seus conterrâneos em especial pelo seu inegável carisma. Seus momentos de hostilidade ele os guardava para os duelos de faz-de-conta que antes me reportei e destes não admitia sair derrotado; na quadra carnavalesca, qualquer que seja o antagonista ele os enfrentava de forma destemida, em implacáveis batalhas de confetes, propiciando shows que definitivamente o elevaram ao patamar de grande figura popular.

    Em 2008 tive uma grata surpresa e constatei seu especial pendor para viver de bem com a vida. Festa de Sant´Ana dia 26 de Julho, cliper da praça botando gente pelo ladrão, após a gritaria infernal do leilão teve início o arrasta-pé no acanhado espaço reservado a essa finalidade. Vi pares conhecidos, outros nem tanto, caboclo de Oriximiná dançando como se estivesse no mafuá do “Macaxeira” e lá pelas tantas surgiu o Miguel Venâncio. Pávulo, sestroso e pândego, materializou-se dançando sozinho. Mas sua dança não era algo comum, como estamos acostumados a ver. O Miguel dançava com ele mesmo, inventava passos que desafiavam o equilíbrio corporal, transmudava sua imagem em moldura superposta que dele se libertava para petrificar-se longe do dono e a ele retornava em fraterna união entre criador e criatura. Sua postura rítmica dava aos movimentos que inventava um significado estético de perenidade, em continuada comunhão com a música, pernas trançadas em incrível geometria, olhar de conquistador, chamando para esse jogo de habilidades sua parceira, uma senhora que atendia aos compassos da música com a mesma disposição com que ingeria generosas doses da “água que passarinho não bebe”, até tombar derreada no duro piso do salão sob o avantajado peso do corpo. Um show à parte!

Em homenagem a Momo, o Miguel protagonizou várias personalidades, dentro do escorreito feitio de sua fértil imaginação. Não só da história universal, como daquelas diretamente ligados à conquista da Amazônia e do Rio Amazonas, que ele se ufanava de haver nascido às margens e conhecer como poucos.

Já se trajara de Vasco da Gama e de Francisco de Orelana. Alguém lhe disse que este foi companheiro dos Pizarro, que representando os espanhóis conquistaram o Peru pelo Oceano Pacífico, assenhoreando-se da planície por força do tratado de Tordesilhas, chegando a Quito e de lá até a Europa, dando nome ao grande rio. Também de Pedro Teixeira, que fez o trajeto em sentido contrário, do Atlântico até os Andes, plantando nos pontos estratégicos do grande rio os fortes para a defesa do território, misturando fortalezas militares com missões religiosas, traçando definitivamente na Amazônia o contorno lusitano, aceito como fato consumado após a separação das coroas ibéricas, formalizada no século XVIII pelo princípio do uti possidetis, nos tratados de Madri e Santo Ildefonso. Isto sem esquecer de Raposo Tavares, com seu imenso chapéu por ele mesmo confeccionado, esse admirável bandeirante que partindo de São Paulo pelo planalto central, subiu os vales dos rios Paraná e Paraguai, atingiu o Amazonas navegando o Rio Madeira, tendo como destino a cidade de Gurupá, antecipando-se em 250 anos à mesma trajetória feita pelo General Cândido Rondon. Miguel, pelas condições financeiras modestíssima em que viveu, nunca incursionou pelos livros de História. Apenas ouvia as estórias. 

    Sua imaginação era espantosa para sua baixa escolaridade. Dizem que sua pesquisa, aleatória e superficial, era realizada durante o ano todo, em opiniões de amigos, livros e revistas emprestados, a partir dos quais decidia como seria sua fantasia no carnaval do ano subseqüente. Orelana, os Pizarro, Pedro Teixeira, Raposo Tavares, Rondon qualquer desses andarilhos incomparáveis, o que interessava mesmo era o deleite de cada comemoração onde pontificava sua imaginação delirante e seu espírito inovador. Carpinteiro por profissão, seresteiro, exímio tocador de banjo, daqueles que não enjeitava uma roda de samba, na verdade eu o reputava um artista popular de muitos méritos, que a todos encantava com suas performances, enquanto seguia extraindo da vida o que ela tinha de melhor - a construção de um largo círculo de admiradores, que dele virou público cativo por aquele hábil sapateado festeiro cuja extravagância mereceu do compositor paraense Eduardo Dias expressa referência numa de suas excelentes músicas.   

    Na folia de 2009 o Miguel novamente abrilhantou os blocos de rua em que desfilou. Restou inconteste sua habilidade na produção da própria fantasia, se é que ele próprio não viveu num mundo de fantasia, só existente nos recônditos de sua imaginação. Não há como negar que à sua maneira, com seu jeito especial no apogeu dos seus setenta anos, esse inteligente ribeirinho nos propiciava uma lição de muito proveito. Protagonista de sua própria existência, ele levou a vida como brincava o carnaval e brincava o carnaval como levou a vida: com leveza, criatividade, descontração e felicidade - nem aí para os que se arvoram a criticá-lo.

    Finalmente, o Miguel Venâncio nos deixou. Sujeito teimoso, recusou-se a se submeter a uma prosaica cirurgia para curar-se de uma hérnia. A par do meu profundo lamento, sinto na alma o conforto de tê-lo condecorado ainda em vida, em Julho/2010, com a Medalha “Cidade Presépio”, da Academia de Letras de Óbidos (quando eu a presidia), troféu destinado a premiar os filhos da terra que contribuíram para a preservação e o resgate do folclore e das tradições culturais do nosso Município, o que ele fez a vida toda. Na sessão solene de entrega, vi seus olhos brilharem de felicidade. Agradeceu-me comovido, dizendo que guardaria a preciosa láurea para mostrar aos parentes, netos e bisnetos, confessando-me ser o primeiro e único reconhecimento oficial que recebera durante toda sua existência. 

    Ficamos sem Miguel Venâncio. E o samba, o lundu, a desfeiteira, as serestas, os folguedos juninos e o carnaval, sem o extraordinário protagonista que hoje deve estar empenhado em animar o suave ambiente da corte celeste, pois na terra não fez outra coisa enquanto viveu.
–––––––––––––––––––––-
(*) Advogado. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IGTap) e da Academia Paraense de Jornalismo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Delcy Canalles (Monólogo da Desintegração)

Sempre disseste que és meu amigo
E  que entendes
esta  imensa  tristeza ,
que  trago  comigo ...
Talvez, por isto, eu sinta, hoje,
esta  necessidade  estranha ,
esta  necessidade  tamanha
de  falar  contigo,
de  dialogar ,
desabafar  ,
de  explodir,
de  chorar !
E é em meio a este desespero,
que  eu  quero,
que eu  espero,
que  eu imploro,
quase  em choro,
que  me  ouças ,
que compreendas,
que  escutes
e  que  entendas
esta  catarse sem peias ,
que eu sinto correr nas veias,
buscando  liberação,
para esta angústia incontida,
para esta  tristeza  sentida ,
que oprime meu coração !
Tu, que estudaste o átomo,
em  sua  contextura ,
elementos, dimensão,
ajuda-me a descobrir a essência
_qual  estudioso  da  ciência _
do que é desintegração!
Não da matéria bruta, inanimada,
mas da matéria viva,
 orgânica, humanizada!
Não podes me ajudar?
Eu já sabia!
Eu sentia! Eu temia! Eu previa!
É que as leis ,que os cientistas formularam,
se  aplicam à matéria  inerte, fria!
Por isso, tens de calar!
Mas eu não. Eu quero falar!
Quero contar-te, agora,o meu exemplo,
como se eu me confessasse, a  ti ,
num grandioso e extraordinário templo,
onde serias tu , amigo , o confessor ,
e  eu , aquele que busca ,
busca , em ti , um consolo pra dor!
Imagina um ser humano machucado pela vida,
arranhado  pelo destino ,
violentado em sua própria alma,
afastado da pessoa que mais ama,
privado de descanso, paz, sossego e calma!
E se isso, meu amigo, não  bastasse,
jogassem , contra ele , uma bomba fantástica,
da  maneira mais drástica,
como aquela que abateu Hiroshima
e, não ,apenas, matou,
mas destruiu, desintegrou,
tornou aquela terra, dantes,tão povoada,
um  vazio de vidas ,
um deserto  de nadas!
Tu ris ? – Eu  acabo de ver!
E  tens razão de rir,
pois não chegaste a entender
o que eu quis te dizer !
E, então , como tu, eu também rio:
Ah !  Ah ! Ah !
Mas o meu riso é triste,é desolado,
é um riso nervoso, é um riso aparvalhado,
é um riso falso de tristeza e dor!
É um mecanismo. Entendes ?
De  defesa !
É formação  reativa
do meu estado  interior !
Tu choras , amigo  meu ?
Choremos juntos , então.
Enfim , tu compreendeste
o que é  desintegração !
Esse  alguém , de triste  fado,
que um dia,
há muito , nasceu !
Hoje, desintegrado,
ainda  existe :
– Sou  Eu !!!

Fonte:
http://www.delcy.poeta.ws/

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : Ao Cigarro)

Canção

Cigarro, minhas delícias,
Quem de ti não gostará?
Depois do café, ou chá,
Há nada mais saboroso
Que um cigarro de Campinas
De fino fumo cheiroso?

Cigarro, quanto és ditoso!
Já reinas em todo mundo,
E esse teu vapor jucundo
Por toda parte esvoaça.
Até as moças bonitas
Já te fumam por chalaça!...

Sim; — já por dedos de neve
Posto entre lábios de rosa,
Em gentil boca mimosa
Tu te ostentas com vaidade.
Que sorte digna de inveja!
Que pura felicidade!

Anália, se de teus lábios
Desprendes subtil fumaça,
Ah! tu redobras de graça,
Nem sabes que encantos tens.
À invenção do cigarro
Tu deves dar parabéns.

Qual caçoula de rubim
Exalando âmbar celeste,
Tua boca se reveste
Do mais primoroso chiste.

A tão sedutoras graças
Nenhum coração resiste.

Embora tenha o charuto
Dos fidalgos a afeição,
E do conde ou do barão
Seja embora o favorito;
Mas o querido do povo
Ës tu só, meu cigarrito.

Quem pode ver sem desgosto,
Esse charuto tão grosso,
Esse feio e negro troço
Nos lábios da formosura?...
É uma profanação,
Que o bom gosto não atura.

Mas um cigarrinho chique,
Alvo, mimoso e faceiro,
A um rostinho fagueiro
Dá realce encantador.
É incenso que vapora
Sobre os altares de amor.

O cachimbo oriental
Também nos dá seus regalos;
Porém nos beiços faz calos,
E nos faz a boca torta.
De tais canudos o peso
Não sei como se suporta!...

Deixemos lá o grão-turco
No tapete acocorado
Com seu cachimbo danado
Encher as barbas de sarro.
Quanto a nós, ó meus amigos,
Fumemos nosso cigarro.

Cigarro, minhas delícias,
Quem de ti não gostará?
Certo no mundo não há
Quem negue tuas vantagens.
Todos às tuas virtudes
Rendem cultos e homenagens.

És do bronco sertanejo
Infalível companheiro;
E ao cansado caminheiro
Tu és no pouso o regalo;
Em sua rede deitado
Tu sabes adormentá-lo.

Tu não fazes distinção,
És do plebeu e do nobre,
És do rico e és do pobre,
És da roça e da cidade.
Em toda a extensão professas
O direito de igualdade.

Vem pois, ó meu bom amigo,
Cigarro, minhas delícias;
Nestas horas tão propícias
Vem dar-me tuas fumaças.
Dá-mas em troco deste hino,
Que fiz-te em ação de graças.

Rio de Janeiro, 1864

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 41

CAPÍTULO XVI

No dia seguinte, ela procurou de novo o marido para saber se ele estava ou não disposto a tomar qualquer deliberação a respeito dos negócios do Aguiar.

Teobaldo respondeu já meio impacientado:

– Que o deixassem em paz e não o estivessem apoquentando com tolices! Já bastante tinha com que se aborrecer e não era pouco! A mulher, se queria ser atendida, que diabo! Dissesse a razão que levava a semelhante exigência e, se não estava resolvida a desembuchar, que não lhe desse mais uma palavra sobre o tal assunto!

Branca, todavia, hesitou ainda. Seu espírito, aliás tão forte para entestar com outras provações, seu espírito orgulhoso e sempre vencedor, quando abria luta contra a bestialidade da carne, acobardava-se agora defronte da hipótese de um escândalo social.

— Um escândalo! Que horror!

Não podia conformar-se com a idéia de que seu nome fosse correr as ruas, de boca em boca, despertando em uns a curiosidade e o direito de desejá-la também e em outros a simples vontade de rir; não podia aceitar enfim que um fato de sua vida caísse no domínio público e servisse de divertimento à multidão, igualando-a com qualquer artista tapageuse ou com qualquer meretriz de espavento, que precisa do escândalo para não ser esquecida.

Via-se entalada por um dilema, cuja saída havia de ser fatalmente escandalosa, porque das duas uma: ou tudo confessava ao marido e a questão daria um escândalo doméstico; ou deixava que a vingança do Aguiar corresse à revelia e neste caso o escândalo teria um caráter todo comercial. Preferia o último. Mas desde então terrível sobressalto apoderou-se dela e começou a crescer à proporção que os dias se passavam; afinal era já um martírio de todo o instante urna agonia sem tréguas, que lhe não deixava um momento de repouso.

Nesta conjuntura lembrou-se de André e resolveu contar-lhe tudo. E tal idéia lhe chamou logo aos lábios um suspiro, como se ela, só por si, fora já uma consolação completa. Entretanto, não podia a pobre senhora explicar qual era o estranho motivo dessa confiança que lhe inspirava o Coruja.

— Que mais podia esperar dele, além de conselho ou algumas palavras de animação? O fato, porém, é que Branca só com a idéia de lhe confiar aquilo que ela não quis confiar ao marido, sentiu-se menos oprimida e mais sobranceira ao perigo.

Uma inexplicável esperança, uma espécie de fé a arrastava para junto daquele homem honrado, daquele anjo de bondade que sempre encontrava meios de proteger todo o infeliz que ia procurar abrigo à sombra das suas asas.

Havia um quer que seja de religioso naquela confiança de Branca por André; ela esperava dele a proteção como os crentes quando se dirigem a Deus, sem mesmo indagar quais os meios que este empregará para isso. E, nesta ilusão, tinha de si para si que chegaria ao Coruja tão facilmente como uma devota supõe chegar ao objeto de sua crença; mas, uma vez ao lado dele, sentiu-se vazia, sem encontrar o que dizer, sem uma palavra para principiar.

André estranhou-a e quedou-se igualmente mudo.

Houve um silêncio, durante o qual Branca de olhos baixos; torcia e distorcia o debrum de seu casaquinho de musselina preta, ao passo que ele, sem se animar a encará-la, olhava para os lados, meneando o corpo da direita para a esquerda.

— A senhora, se não me engano, balbuciou afinal o pobre André, creio que disse ter alguma coisa a comunicar-me. Não é exato?

É exato... Fez Branca, tornando-se ainda mais pálida.

— Pois então...

— Mas é que...

— Tenha a bondade de falar com franqueza...

— Sim, eu, ouça-me... Eu...

E ela não achava ânimo.

— Então!

— Vai ouvir tudo. Aguiar, sabe?...

— Seu primo?

— Sim; o Aguiar tem procurado todos os meios de me seduzir.

André sorriu lividamente. Ela acrescentou:

— Não me deixa há muito tempo, e, se bem que nenhum perigo houvesse nisso até agora, porque sou bastante honesta e virtuosa para não temê-lo... Receio todavia quê...

— Quê?...

— Que ele, aproveitando-se das nossas circunstâncias atuais, se lembre de fazer-nos alguma maldade...

— Mas como?

— Ora! Ele é credor de Teobaldo.

— Oh! É impossível, porém, que aquele rapaz leve a esse ponto semelhante perseguição. Não creio que haja no mundo um homem capaz disso!

— É porque supõe os outros por si.

— E Teobaldo? Que diz ele a respeito disto?

— Nada, porque nada sabe.

— Pois a senhora não lhe contou tudo?

— Não.

— Por quê?

— Receando um escândalo.

— Ah! E o que tenciona fazer agora?

— Não sei, e é isso justamente que eu desejo ouvir de sua boca. O senhor, como o modelo dos homens honestos, deve saber aconselhar-me, dirigir os meus passos. Quero evitar um escândalo e quero conservar-me imaculada; diga-me: o que compete fazer?

— Mas...

— Oh! Não hesite por amor de Deus! É impossível que o senhor não tenha uma boa resposta para me dar. É impossível que o senhor, tão bom, tão amigo dos outros, não encontre meio de me valer, quando eu venho pedir o seu auxílio.

Coruja não respondeu e pôs-se a coçar a cabeça.

— Então? Disse ela. Vamos, fale. Diga-me alguma coisa!

E Branca sacudiu-lhe o braço.

Ele ia responder afinal, quando foram interrompidos por um criado, que vinha anunciar o Aguiar.

— Ainda?! Exclamou Branca, deveras surpreendida. Pois meu primo tem ainda o atrevimento de voltar?

— Receba-o, disse o Coruja enfim.

E acrescentou, encaminhando-se para uma porta que havia na sala:

— Eu fico aqui escondido por detrás desta cortina. Receba-o sem o menor escrúpulo, porque a senhora não está só.

— Faça entrar meu primo, ordenou Branca ao criado.

Daí a pouco Aguiar estava defronte dela.

— Que deseja? Perguntou a senhora, vendo que a visita não se resolvia a falar.

— Venho receber a confirmação do que há dias a senhora me disse.

— Ora essa! De que espécie de confirmação fala o senhor?

— Da confirmação das suas últimas palavras. Não quero que me pese na consciência a menor sombra de remorso pelo que vou fazer...

— Contra quem?

— Contra a senhora e contra seu marido.

Branca, por única resposta, apontou-lhe a porta, como da primeira vez.

— Pense um instante! Disse ele ainda. Veja bem o que faz!...

— Rua!

— Branca!

— Saia! Já lhe disse!

— Mas repare que a senhora me obriga a ser pior do que sou!

— Se não sair, mando-o despejar lá fora pelo criado!

— Sim?! Pois não sairei!

— Hein?!

— Não saio, porque não quero!

E, pondo o chapéu na cabeça:

— Já não se trata aqui de pedir amor em troca de amor; agora trato apenas de exigir o que me compete de direito! Quero para aqui o que me devem!

— Miserável!

— Oh! Pois não! A senhora entende que me deve humilhar a seu gosto e eu devo ficar de cabeça baixa! Engana-se! Por bem sou capaz de todos os sacrifícios; por mal sou capaz de todas as crueldades. Já não é a recusa do seu amor o que me revolta; farte-se com ele quem quiser; mas o seu atrevimento, a sua insolência, o seu orgulho mal entendido!

Branca, lívida e trêmula, mas sem dar uma palavra, encaminhou-se para a mesa onde estava o tímpano, com a intenção de chamar um criado.

— É inútil! Observou Aguiar, cortando-lhe o passo; é inútil fazer vir alguém, porque eu não sairei. Já não é com a senhora que tenho de me entender e sim com o seu marido!

E, sacando do bolso algumas letras:

— Exijo o pagamento destas letras ou elas serão protestadas!

Nisto, porém, afastou-se o reposteiro do quarto, onde estava escondido o Coruja, e Aguiar viu com espanto surgir o vulto maltrapilho do professor e encaminhar-se tranqüilamente para ele com um terrível sorriso nos lábios. A sua primeira menção foi de sair, mas o outro o deteve com um gesto cheio de delicadeza.

— Espere, disse, o senhor vai imediatamente ser embolsado do que lhe deve o marido desta senhora. Fui encarregado por ele de tratar disto.

O Aguiar mediu-o de alto a baixo com um olhar em que transparecia mais decepção do que altivez. André, sem se alterar. afastou-se e voltou depois com um grosso maço de dinheiro.

— Faça o favor de verificar se está certo, acrescentou.

E, como o outro hesitasse ainda:

— Então, vamos, confira!

E, para o animar, principiou ele próprio a contar o dinheiro, nota por nota.

— Bem! Fez, logo que estava a soma conferida; creio que agora já ninguém lhe deve nada nesta casa. Pode retirar-se.

Aguiar, muito pálido e constrangido, tomou o chapéu com a mão a tremer e encaminhou-se para a saída, sem ânimo de levantar os olhos sobre nenhum dos dois outros.

Entretanto Branca presenciara isto imóvel e com a vista presa ao Coruja, como se contemplara um Deus.

André foi acompanhar o outro até à porta da rua e disse-lhe, empurrando-o brandamente para fora de casa:

— Agora, muito cuidadinho com a língua, porque não é só com Teobaldo que terás de te haver! A respeito do que se passou aqui, nem uma palavra! Compreendes? Anda. Vai-te embora, desgraçado!

Feito isto, voltou tranqüilamente ao seu sótão, fechou a gaveta da sua secretária, que ele deixara aberta com a precipitação de buscar o dinheiro, e desceu ao gabinete de Teobaldo.

Branca, porém, foi ao encontro dele e, passando-lhe os braços em volta do pescoço, deu-lhe um beijo em pleno rosto e desatou a soluçar. Mas a porta do gabinete acabava de abrir-se, e Teobaldo aparecia defronte dos dois com um flamejante olhar de leão cioso.

CAPÍTULO XVII

Com a chegada de Teobaldo, Branca e o Coruja separaram-se instintivamente, enquanto aquele, tirando da algibeira o seu revólver, precipitou-se sobre o amigo.

A mulher lançou-se entre eles, tentando desviar o tiro, mas a bala partiu e foi cravar-se no calcanhar esquerdo de André, que caiu, amparando-se à parede.

— Fizeste mal... Disse a vítima com um gemido.

E Branca, soltando um grito, exclamou para o outro:

— Desgraçado! Acaba de ferir o salvador da sua e da minha honra!

— Expliquem-se!

Branca apresentou-lhe as letras do Aguiar e acrescentou:

— Já que o senhor assim o quer, saberá tudo. Fiz o possível para não lhe falar em semelhante coisa; vejo, porém, que era muito mal empregado o meu escrúpulo.

— Deixemos-nos de palavras e venham os fatos! Quero a explicação do que acaba de se passar aqui e quero saber a razão por que essas letras se acham em seu poder!

— Estas letras aquele pobre homem resgatou-as ainda há pouco.

— Resgatou-as? E por quê?

— Porque assim era preciso, como aliás já o senhor sabia.

— Mas, afinal, porque era necessário resgatá-las?

— Pelo simples motivo de que o seu amigo Aguiar queria se prevalecer dessa dívida para me obrigar a esquecer os meus deveres de mulher casada.

— Será possível? interrogou Teobaldo, vencido agora pelo implacável olhar da esposa e pelo sereno gesto de perdão que transparecia já no rosto do Coruja.

Houve um silêncio.

— Oh! Maldito seja eu! Exclamou Teobaldo por fim, correndo a erguer nos braços o ferido.

— Não és culpado! Disse este. Foi um instante de loucura! Não te incomodes comigo! Isto nada vale!

À detonação do tiro os criados haviam acudido; Coruja foi carregado para uma cama; descalçaram-no e banharam-lhe o pé com arnica, enquanto não chegava o médico, que se fora chamar a toda pressa.

Teobaldo parecia louco, estava atarantado, ia e vinha do gabinete ao quarto, esmurrando a cabeça, torcendo os punhos, sem encontrar palavras bastantes para se maldizer.

É que duas idéias o atormentavam: a de haver ferido o amigo e a de vingar-se do outro.

— Ah! Resmungava de vez em quando, aquele miserável há de cair-me nas mãos! E há de pagar-me bem caro a sua infâmia!

Logo que o médico declarou que o ferido não apresentava maior perigo, Teobaldo enterrou o chapéu na cabeça e teria ganho a rua se gente de casa, por ordem de Branca não lhe impedisse a saída.

Foi, porém, necessária a intervenção do Coruja para que ele consentisse em ficar.

— Não saias ainda, pediu-lhe aquele; o médico acaba de dizer que a extração da bala há de ser um tanto dolorosa; fica para me animares com a tua companhia.

Teobaldo compreendeu a intenção de tais palavras e assentou-se resignado junto à cama de André.

Entretanto fez-se a operação logo que a ferida esfriou. Branca, enquanto não viu o Coruja com o pé aparelhado, não se desprendeu do lado dele, cercando-o de desvelos, ameigando-o e servindo de ajudante ao médico. Este, apesar das repetidas perguntas que ela lhe fazia a respeito do ferido, não quis logo falar abertamente e só ao despedir-se, confessou que o Coruja havia de ficar aleijado, visto que a bala lhe cortara vários tendões do pé; mas que não tinham a recear amputação, se não descuidassem de lhe dar o tratamento necessário.

Com efeito, durante os dias que a isto se seguiram, era André a maior preocupação dos que moravam naquela casa. Todos os cuidados de Branca lhe pertenciam.

Teobaldo, porém, achava-se em terrível estado de inquietação, já porque lhe chegara aos ouvidos a notícia de que o Aguiar havia arribado para a Europa, e já porque as suas circunstâncias não lhe permitiam naquela ocasião restituir ao amigo o dinheiro de que este se privara por causa dele.

— Todavia, disse-lhe o Coruja, acho que, para evitares um escândalo à tua esposa, deves fazer acreditar a todos que o pagamento das letras do Aguiar foi feito por ti e não por mim; e, então, quando puderes, me restituirás a quantia, sem ser necessário que mais ninguém além de nós saiba de tais particularidades.

Teobaldo jurou que, desse momento em diante, não descansaria enquanto não tivesse obtido o dinheiro necessário para evitar que o amigo ficasse em falta com o Banco. Mas o dia destinado à primeira prestação do Coruja chegou, sem que o outro tivesse obtido coisa alguma. E, para maior desgraça, André ainda não podia andar, senão de muletas.

O colégio foi posto de novo em arrecadação e vendido em proveito do Banco.
––––––––
continua…

domingo, 15 de setembro de 2013

Ialmar Pio Schneider (Anita Garibaldi)

Anita, por Jorge Bichuetti
POEMA ANITA GARIBALDI
Para a tradicionalista e entusiasta Elma Sant´Ana, que tanto se dedica à causa da heroína.

Heroína dos Dois Mundos,
Esposa de Garibaldi,
A luta não foi embalde
Em prol de nobre ideal,
Sempre valente e leal,
Cavalgando com firmeza,
Que além de sua beleza
Era enérgica e jovial !

Nascida em Laguna ou Lages,
Só Deus o sabe; mas viu
O Giuseppe em seu navio,
No porto catarinense,
Quando o amor que tudo vence
Surgiu em seu coração
E ela plena de emoção,
No convés da nau subiu...

E desde então começou
Aquela união de bravura,
Nascida pela ternura
De duas almas fagueiras
Que seriam companheiras,
Constituindo família
Nessa Pátria Farroupilha,
Das dignas lides guerreiras !

Em sua curta existência
Foi mãe heroica e exemplar,
Nunca deixou de lutar
Pelo lema: “Liberdade,
Igualdade, Humanidade”;
Que norteou os Farroupilhas
A seguirem novas trilhas,
Na conquista da verdade.

Viva Anita Garibaldi,
No dia do seu nascimento,
Embora em qualquer momento
Devemos lembrar a glória
Da grande mulher da história
De nossa querência amada,
Pois não será sepultada
Sua imagem de vitória !

Porto Alegre, RS, 30 de agosto de 2013

Malba Tahan (O Mensageiro da Morte)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibete. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os monges imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão.

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li. Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

- Han-Ru, ó gênio desapiedado! - exclamou. - Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-lí? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

- A tua inquietação é legítima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Lí-Tsen-li vai morrer!

- Piedade, Han-Ru! Piedade! - implorou Te-ha-tá. - Ela é tão jovem, e tão prendada! Deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse: - Sei que tens direito a uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver.  Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante? Aceitas essa proposta?

As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

- A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e me orientaram na vida?

- Farei como pedes, meu amigo - respondeu o Anjo da Morte. - Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deverás voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.

Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram muito apreciados.

Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

- A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Nian-si não se conteve.

- É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas. Aqui mesmo (no Tibete) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.

A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-ta.

- Vou ouvir - pensou o jovem - a opinião do prudente Kín-Sa. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kín-Sa, citado no Tibete como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

- Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer motivo, não se mostrar digna de teu sacrifício, perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

- Fizeste bem em hesitar. A hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.

Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sa, e levou-a, sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

- Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim "emprestada".

Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibete. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa "minha vida querida".

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou Ti-long-li e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

- Onde está Ti-long-li? - perguntou, ansioso, aos amigos. - Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à Ti-long-li?

Disse um dos amigos:

- Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá ! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

- Desgraça? - repetiu, aflito, Te-ha-tá. - Horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está Ti-long-li?

- Morreu!

- Morreu! - gritou Te-ha-tá, desesperado. - Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador. Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

- Han-Ru! - bradou, num tom de incontido rancor. - Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de Ti-long-li?

- Escuta, Te-ha-tá - respondeu Han-Ru. - Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

- E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela, mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!

 Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Guilherme de Azevedo (Alma Nova)VII

foi mantida a grafia original.
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A CRISTO

Precisamos Jesus, se não Te sentes velho,
Que cinjas novamente o resplendor da luz
E venhas explicar a letra do evangelho
A muitos que hoje vês prostrados ante a cruz!

Ainda não cessou, de todo, essa contenda
Que um dia, há muito já, tentaste debelar:
E aqueles que são bons e adoram Tua lenda
Desejavam também ouvir-Te hoje falar.

Apenas ressoasse o Teu verbo indignado,
O látego febril das grandes corrupções,
Iria atrás de Ti um mundo revoltado
Que sente na consciência a luz das redenções.

E embora não houvesse, aqui, outra alma gémea
Da Tua, e tão ungida em bálsamos dos céus,
Havias de encontrar essa alma de boémia
Que sonha uma justiça e sente em si um Deus!

Mas não, não voltes cá: Teu corpo combalido
Não pode suportar os gelos da manhã.
Precisavas de pão, de abrigo e de vestido
E a vida aqui é cara e longo o macadam!

Terias de encontrar, decerto, mil estorvos
No mundo revolvido, e escuta-me Jesus:
Se não fosses, enfim, comido pelos corvos
Talvez Te fuzilasse um cura Santa-Cruz!

Serias apontado a dedo, muitas vezes,
Como um simples bandido, um agitador feroz,
E haviam de esconder seus ouros os burgueses
Apenas ressoasse, ao longe, a Tua voz!

Depois vinhas achar a par do proletário,
Ao pé do que se inunda em bagas de suor,
Aquele velho Pedro, agora milionário,
E triste por pensar que já esteve melhor!

E perto do ócio vil à sombra do qual medra
O egoísmo feroz que extingue o coração,
Lutando todo o dia o britador de pedra
A quem à noite espera, em casa, um negro pão;

E uns pequenos sem cor; talvez cheios de fome,
Com pouca luz no olhar; atrofiados, nus;
Abrindo os olhos muito à côdea que ele come
E indo-se deitar sem roupas e sem luz!

Assim deixa-Te estar. O Teu cadáver triste
Recende uma fragrância etérea e divinal,
Enquanto o mundo segue e vai de lança em riste
Sem tréguas combatendo as legiões do Mal!

Tu foste o paladino, o trovador sagrado,
Que falaste do amor, da paz e do perdão,
E o ferro que varou Teu corpo lado a lado
Contudo inda reluz altivo em muita mão!

Nós, hoje, quando em luta erguemos sobre a liça
O gládio vingador das opressões cruéis,
Soltamos, num sorriso, o nome da Justiça,
E há quem saiba morrer sem bênçãos nem lauréis!

Descansa pois Jesus! Bem basta que Tu sintas,
Nesse velho sepulcro, o imenso vozear
Dos mineiros sem luz, das legiões famintas,
Que nunca, um dia só, deixaram de lutar,

Mas que hão de enfim vencer, porque a suprema essência
A jorros cai do Céu nas mãos dos Prometeus,
E tanto vai subindo a vaga da consciência
Que um dia há de abismar-se em nós o próprio Deus!

Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizê-lo.
Era em praia deserta, em frente a um longo mar:
Nos céus havia a névoa, a mãe do Pesadelo,
E o vago, o incerto, o informe em tudo a oscilar!

De súbito surgiu, na praia, uma criança
De olhar profundo e bom, de angélica expressão,
E o mar contemplou com tanta confiança
Que nem que visse nele o berço dum irmão!

Mas a vaga subindo, em cada extremo arranco
Levando ia consigo aquela flor dos céus!
E em breve só boiava um ténue vulto branco
No mar onde flutua o espírito de Deus!

Mais tarde à beira-mar chegava a pura imagem
Da mais casta mulher que em vida pude ver.
Detinha-se distante: — a espuma da voragem
Só meia extenuada aos pés lhe ia morrer! -

O imenso mar, porém, crescia a cada instante
Mais turvo e mais veloz! Depois... Não quis ver mais.
Ergui-me e caminhei de vale em vale errante
Pensando tristemente em coisas ideais! -

Ao longe, muito além, na serra desviada
De súbito encontrei — ó estranha aparição! -
Uma pobre velhita enferma e desolada
Trazendo já no olhar a grande cerração!

Que ideia me assaltou não sei dizê-lo agora.
Aonde iria o espectro, aquela sombra vã?
Iria aonde vai o que ontem foi aurora
E aonde irão também as rosas de amanhã?...

Dos meus instantes bons, ó lúcida quimera,
Bem vês que os sonhos maus são fáceis de esquecer!
Que importa a grande noite em plena primavera,
Que importa o que tu foste, o que és, e o que hás de ser!!

O GRANDE TEMPLO

Eu não trajo o burel do magro cenobita
Nem me posso infligir cruéis macerações;
Mas não rio de alguém que busca a paz bendita
No seio casto e bom das grandes solidões.

Bem sei que há na montanha aromas penetrantes
E certas vibrações que podem fazer mal;
Mas se é preciso Deus, direi que é melhor antes
Amá-Lo com fervor no templo universal!

Enquanto sobre o altar das serras azuladas
Mil lâmpadas do céu derramam toda a luz,
Nas velhas catedrais, já meio arruinadas,
O tempo — o grande verme! — até devora a cruz!

Depois é fácil ver, por entre os arabescos,
Que a arte sensual traçou com tanto amor,
As vezes, o sorrir dos Sátiros grotescos
Pungindo cruelmente a face do Senhor.

Ou mais; podemos nós voar todos cativos
Do sereno ideal, daquele sumo bem,
Ao vermos tanta vez os Faunos mais lascivos
Olhando de revés a virgem nossa mãe?!

E ainda mil traições: as músicas, as flores,
Os lindos serafins voando todos nus;
Da seda que se arrasta os lânguidos rumores,
Do incenso as espirais; os turbilhões de luz!

Oh! Visto haver de tudo; aromas e decotes,
O vinho cintilante, a viva luz do gás;
Que a vossa rouca voz, pomposos sacerdotes,
Não cante apenas Deus; que solte alguns hurras!

O fumo dessa festa, a mim, pouco me assusta.
Se eu quero alguma vez fugir do pó, voar,
Eu tenho o vale profundo ou a floresta augusta,
As montanhas, os céus, e o belo, o vasto mar!

Da casta natureza ó templo gigantesco,
Tu és mais amplo, sim; mais livre, muito mais!
O meigo e doce olhar do Cristo romanesco
A multidão gentil não chama aos teus umbrais.

Alexandre Garcia (Sentar-se à janela do avião)

Era criança quando, pela primeira vez, entrei em um avião. A ansiedade de voar era enorme.

Eu queria me sentar ao lado da janela de qualquer jeito, acompanhar o vôo desde o primeiro momento e sentir o avião correndo na pista cada vez mais rápido até a decolagem.

Ao olhar pela janela via, sem palavras, o avião rompendo as nuvens, chegando ao céu azul.

Tudo era novidade e fantasia...

Cresci, me formei, e comecei a trabalhar. No meu trabalho, desde o início, voar era uma necessidade constante. As reuniões em outras cidades e a correria me obrigavam, às vezes, a estar em dois lugares num mesmo dia.

No início pedia sempre poltronas ao lado da janela, e, ainda com olhos de menino, fitava as nuvens, curtia a viagem, e nem me incomodava de esperar um pouco mais para sair do avião, pegar a bagagem, coisa e tal.

O tempo foi passando, a correria aumentando, e já não fazia questão de me sentar à janela, nem mesmo de ver as nuvens, o sol, as cidades abaixo, o mar ou qualquer paisagem que fosse.

Perdi o encanto. Pensava somente em chegar e sair, me acomodar rápido e sair rápido.

As poltronas do corredor agora eram exigência. Mais fáceis para sair sem ter que esperar ninguém, sempre e sempre preocupado com a hora, com o compromisso, com tudo, menos com a viagem, com a paisagem, comigo mesmo.

Por um desses maravilhosos 'acasos' do destino, estava eu louco para voltar de São Paulo numa tarde chuvosa, precisando chegar em Curitiba o mais rápido possível.

O vôo estava lotado e o único lugar disponível era uma janela, na última poltrona.

Sem pensar concordei de imediato, peguei meu bilhete e fui para o embarque.

Embarquei no avião, me acomodei na poltrona indicada: a janela. Janela que há muito eu não via, ou melhor, pela qual já não me preocupava em olhar.

E, num rompante, assim que o avião decolou, lembrei-me da primeira vez que voara. Senti novamente e estranhamente aquela ansiedade, aquele frio na barriga. Olhava o avião rompendo as nuvens escuras até que, tendo passado pela chuva, apareceu o céu.

Era de um azul tão lindo como jamais tinha visto. E também o sol, que brilhava como se tivesse acabado de nascer.

Naquele instante, em que voltei a ser criança, percebi que estava deixando de viver um pouco a cada viagem em que desprezava aquela vista.

Pensei comigo mesmo: será que em relação às outras coisas da minha vida eu também não havia deixado de me sentar à janela, como, por exemplo, olhar pela janela das minhas amizades, do meu casamento, do meu trabalho e convívio pessoal?

Creio que aos poucos, e mesmo sem perceber, deixamos de olhar pela janela da nossa vida.

A vida também é uma viagem e se não nos sentarmos à janela, perdemos o que há de melhor: as paisagens, que são nossos amores, alegrias, tristezas, enfim, tudo o que nos mantém vivos.

Se viajarmos somente na poltrona do corredor, com pressa de chegar, sabe-se lá aonde, perderemos a oportunidade de apreciar as belezas que a viagem nos oferece.

Se você também está num ritmo acelerado, pedindo sempre poltronas do corredor, para embarcar e desembarcar rápido e 'ganhar tempo', pare um pouco e reflita sobre aonde você quer chegar. A aeronave da nossa existência voa célere e a duração da viagem não é anunciada pelo comandante.

Não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Por essa razão, vale a pena sentar próximo da janela para não perder nenhum detalhe.

Afinal, 'a vida, a felicidade e a paz são caminhos e não destinos'.

Fonte:
www.quemtemsedevenha.com.br (site desativado)