segunda-feira, 28 de maio de 2018

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos)


CANÇÃO PARA PODER VIVER

Dou-lhe tudo do que como, 
e ela me exige o último gomo. 
Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho, 
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro, 
no deserto, para lhe dar água:

E ela mata a sua sede, 
já no copo de minha mágoa

Dou-lhe o meu canto louco; faço 
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!

A FÍSICA DO SUSTO

O espelho caiu da parede. 
Caiu com ele o meu rosto. 
Com o meu rosto a minha sede. 
Com a minha sede meu desgosto. 
O meu desgosto de olhar, 
no espelho caído, o meu rosto.

A RUA

Bem sei que, muitas vezes, 
O único remédio 
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem, 
A dívida, o divertimento, 
O pedido de emprego, ou a própria alegria. 
A esperança é também uma forma 
De continuo adiamento. 
Sei que é preciso prestigiar a esperança, 
Numa sala de espera. 
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas, 
Esperança sentada. 
Não abdicação diante da vida.

A esperança 
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera. 
Nunca é figura de mulher 
Do quadro antigo. 
Sentada, dando milho aos pombos.

A OUTRA VIDA

Não espero outra vida, depois desta. 
Se esta é má 
Por que não bastará aos deuses, já, 
A pena que sofri? 
Se é boa a vida, deixará de o ser, 
Repetida.

ESPAÇO LÍRICO

Não amo o espaço que o meu corpo ocupa 
Num jardim público, num estribo de bonde. 
Mas o espaço que mora em mim, luz interior. 
Um espaço que é meu como uma flor

Que me nasceu por dentro, entre paredes. 
Nutrido à custa de secretas sedes. 
Que é a forma? Não o simples adorno. 
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço

Dentro do meu perfil, do meu contorno. 
Que haja em mim um chão vivo em cada passo 
(mesmo nas horas mais obscuras) para

Que eu possa amar a todas as criaturas. 
Morte: retorno ao incriado. Espaço: 
Virgindade do tempo em campo verde.

PAPAGAIO GAIO

Papagaio insensato, 
que te fêz assim? 
Que não sabes falar 
brasileiro 
e já sabes latim? 
Papagaio insensato, 
ave agreste, do mato, 
que diabo em ti existe, 
verde-gaio, 
que nunca estás triste?

Papagaio do mato, 
se nunca estás triste, 
quem foi que te ensinou, 
por maldade, 
a palavra saudade?

Papagaio triste, 
papagaio gaio, 
quem te fêz tão triste 
e tão gaio, 
triste mas verde-gaio?

Papagaio gaio, 
quem te ensinou, 
em mais 
do mato, a repetir, 
papagaio, 
tanto nome feio?

Gaio papagaio, 
gaio, gaio, gaio, 
que repetes tudo... 
Antes fosses 
um pássaro mundo.

Papagaio do mato, 
se nunca estás triste, 
quem foi que te ensinou, 
por maldade, 
a palavra saudade?

Papagaio gaio. 
Gaio, gaio, gaio.

domingo, 27 de maio de 2018

Cora Coralina (Poemas Diversos)

ASSIM EU VEJO A VIDA

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim 
uma cabocla velha 
de mau-olhado, 
acocorada ao pé do borralho, 
olhando pra o fogo. 
Benze quebranto. 
Bota feitiço... 
Ogum. Orixá. 
Macumba, terreiro. 
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim 
a lavadeira do Rio Vermelho, 
Seu cheiro gostoso 
d’água e sabão. 
Rodilha de pano. 
Trouxa de roupa, 
pedra de anil. 
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim 
a mulher cozinheira. 
Pimenta e cebola. 
Quitute bem feito. 
Panela de barro. 
Taipa de lenha. 
Cozinha antiga 
toda pretinha. 
Bem cacheada de picumã. 
Pedra pontuda. 
Cumbuco de coco. 
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim 
a mulher do povo. 
Bem proletária. 
Bem linguaruda, 
desabusada, sem preconceitos, 
de casca-grossa, 
de chinelinha, 
e filharada.

Vive dentro de mim 
a mulher roceira. 
– Enxerto da terra, 
meio casmurra. 
Trabalhadeira. 
Madrugadeira. 
Analfabeta. 
De pé no chão. 
Bem parideira. 
Bem criadeira. 
Seus doze filhos. 
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim 
a mulher da vida. 
Minha irmãzinha... 
tão desprezada, 
tão murmurada... 
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim: 
Na minha vida – 
a vida mera das obscuras.

VELHO

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado 
Que vai soturno amortalhando as vidas 
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga, 
Que os teus nervosos círculos governa.

Estás velho estás morto! Ó dor, delírio, 
Alma despedaçada de martírio 
Ó desespero da desgraça eterna.

CORAÇÃO É TERRA QUE NINGUÉM VÊ

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei…

sábado, 26 de maio de 2018

Olivaldo Júnior (Como vai você?)

Que eu gosto de Música Popular Brasileira não é novidade para ninguém. E uma das canções de que mais gosto é “Como vai você”, de autoria de Antônio Marcos e de seu irmão Mário Marcos, que o Roberto Carlos gravou em 1972 e, até hoje, é uma das canções de maior sucesso da carreira desse artista. Aliás, Daniela Mercury veria essa canção gravada por ela para a novela Laços de Família, em 2000, se tornar um de seus maiores sucessos também.

Eu, para dizer a verdade, cada vez que ouço essa canção, sinto que mora em mim um poeta esquecido na lida do dia a dia. Talvez um menestrel, que tem saudade não sabe nem de quê, nem de quem, mas sente que o peito fica mais úmido quando escuta: “Como vai você / Eu preciso saber da sua vida / Peça alguém pra me contar sobre o seu dia / Anoiteceu, e eu preciso só saber”.. A beleza da simplicidade é mesmo imbatível. Responda: Como vai você?

Você que me lê há tanto tempo, você que me escuta lamentar, você que não pergunta mais de mim. Ah, como a saudade é um tema que não muda! Em vez disso, me emudece, me embranquece esta alma, os fios de aurora que recobrem a cabeça deste espírito! Espírito que não sabe há muito tempo como vai você, um velho amigo, um grande amor, ou um parente que partiu há muito tempo para longe, para perto de Deus Pai, de Nossa Mãe e dos anjos.

“Vem, que o tempo pode afastar nós dois / Não deixe tanta vida pra depois / Eu só preciso saber / Como vai você”... Que a eternidade desses versos soe forte em sua alma, mude o som do seu espírito e reanime seu coração, que sempre bate por alguém. Alguém que, quem sabe, tenha ido para o além, ou esteja ausente há algum tempo. Notícias, nem sempre chegam a contento. E, quando não nos chegam, solitários, ficamos sem saber como vai você.

Fonte: Texto enviado pelo autor

Ógui Lourenço Mauri (Poemas Escolhidos) III


A PRÁTICA DO BEM

Fazer o bem não implica
Ser de posses detentor,
O Divino Mestre explica
Que o maior bem é o amor!

Vamos repartir o pão
Nas pegadas de Jesus,
Passemos pra nosso irmão
Amor em troca de  Luz!

Pratica o bem sem a busca
De vantagens decorrentes,
Visto que a ganância ofusca
As ajudas aparentes!

Faz o bem sem manifesto,
Dá sem olhar para quem.
Cada qual recebe o gesto
Com o coração que tem!

Elimina a ostentação,
Vê quem tem necessidade;
Só teremos salvação
Praticando a caridade!

AMIGOS

Deus proíbe a livre escolha de um irmão,
Consanguíneo ser gerado pelos pais;
Mas as forças dos Céus não negam, jamais,
Um amigo de verdade a nossa opção.

Quando a dúvida me vinha por inteiro
Face a algumas derrocadas frente à vida,
Foram teus braços abertos a acolhida,
À maneira de um confrade verdadeiro.

Pelas mãos firmes do amigo, pus-me em pé...
Teu apoio proporciona-me energia.
Nossa troca de instruções é sinergia
Que nos faz crescer na vida pela fé.

Horizontes amplos, tem nossa amizade!
Aprendi muito com teus ensinamentos
E também já te passei conhecimentos;
São pilares de total fraternidade.

Sobre o próximo, nós temos convergência
Com propósitos cabais de paz e amor...
Num planeta sem conflitos e sem dor,
Com o "ser" vencendo o "ter" na convivência.

FOI TEU ABRAÇO!

Foi teu abraço que, um dia,
Dos outros todos tirou
Qualquer graça que eu sentia
Doutros que o tempo levou.

Foi teu beijo que depois
Me afastou de quem beijei.
Ficaram só pra nós dois
Os demais beijos que eu dei.

À minh'alma, finalmente,
A alma gêmea apareceu.
E o amor se fez presente
A teu coração e ao meu!

Foi teu calor que acoplou
A meus carinhos os teus.
Foi nosso amor que alcançou
Beneplácito de Deus.

Este é o encontro atual,
Prescrito em nossos pretéritos;
Dos céus, chegam, afinal,
Dádivas por nossos méritos.

BEIJOS DE VERDADE
> Anadiplose <  (*)

Verdade! Beijos poéticos, dei!...
Dei no rosto, com afeto e carinho.
Carinho à cova dos seios, sonhei;
Sonhei e me deliciei de mansinho.

De mansinho, fui; te beijei na nuca;
Na nuca, sempre pensei te beijar.
Beijar devagar, te deixar maluca;
Maluca, enfim, sem poder disfarçar.

Disfarçar, nunca foi, aliás, teu forte.
Forte é, mesmo, o amor que sinto por ti.
Por ti, faço tudo, busco meu norte.
Meu norte é teu rumo, eu não desisti.

Eu não desisti de abraçar-te ao vivo.
Ao vivo, em cores, sentir teu calor.
Calor presente, eis um forte motivo.
Motivo que sublima nosso amor.

Amor tão sofrido alimenta os sonhos.
Sonhos tais de te abraçar à vontade...
Vontade de ver teus lábios risonhos.
Risonhos, para beijos de verdade!
________________________________
Nota:
(*) - Figura de linguagem que consiste na repetição da palavra (ou últimas  palavras) de um verso (frase) como palavra(s) inicial(ais) do verso seguinte.

Fonte: Poemas enviados pelo poeta

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Stanislaw Ponte Preta (Por Vários Motivos Principais)

Durante uma recepção elegante, a flor dos Ponte Pretas estava a mastigar o excelente jantar, quando uma senhora que me fora apresentada pouco antes disse que adorou meus livros e que está ávida de ler o próximo.

— Como vai se chamar?

Fiquei meio chateado de revelar o nome do próximo livro. Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse:

— "Vaca Porém Honesta." (*)

Madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original. Depois — confessando-se sempre leitora implacável, dessas que sabem até de cor o que a gente escreve —, madame pediu para que não deixássemos de incluir aquela crônica do afogado.

— Qual? — perguntei.

— Aquela do camarada que ia se afogando, aí os carros foram parando na praia de Botafogo para ver se salvavam o homem. Depois um carro bateu no outro, houve confusão e até hoje ninguém sabe se o afogado morreu ou salvou-se. Lembra-se? Aquela é uma de suas melhores crônicas.

Foi então que eu contei pra ela o caso do colecionador de partituras famosas, que um dia foi a um editor de música procurando o original de certa sonata que fora composta por Haydn e Schumann juntos. O editor ficou olhando para ele e o colecionador esclareceu: - Sei que essa partitura é raríssima, mas eu pagaria qualquer preço por ela.

— Vai ser um pouco difícil — disse o editor — conseguir uma partitura composta por Haydn e Schumann juntos, por vários motivos. Primeiro: quando Schumann nasceu, Haydn tinha morrido no ano anterior.

A leitora que se lembra de tudo que eu escrevi estranhou e perguntou:

— Por que me contou essa história?

— Porque lembra a história que estamos vivendo agora. A crônica sobre o afogado que a senhora diz ser uma das minhas melhores crônicas... quem escreveu foi Fernando Sabino.

Ela achou engraçadíssimo. Papai agrada em festa.
_____________________
(*) O título, mais tarde, foi trocado, porque a vaca protestou.

Fonte:
O melhor da crônica brasileira.  
Rio de Janeiro/RJ: José Olympio Editora, 1997.

Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) II


A palavra de conforto,
nas trevas da dor mais viva,
é luz que conduz ao porto
um pobre barco à deriva.

Aquele teu galanteio
distraído e displicente,
estraçalhou todo o freio
ao meu coração carente.

A uma farpa contundente,
o silêncio é, muitas vezes,
retorno mais eloquente
que mil frases descorteses.

Como em milagre, o cipreste,
junto à campa rude e pobre,
sopra o seu perfume agreste,
e a torna mística e nobre.

De nosso outono chegando,
vêm lembrar-nos, em segredo,
as folhas mortas tombando
ao murmúrio do arvoredo.

De uma sereia ao regaço,
soluça a estrela-do-mar;
veio à tona, galga o espaço…
mas não sabe cintilar.

Lembra a Torre de Belém,
essa eterna sentinela,
o sonho ousado que alguém
levou numa caravela.

Marcaram-me a doce infância
meus campos, o velho moinho,
e a vela acesa à distância,
iluminando o caminho.

Na noite mística e morna,
a lua nos inebria
do perfume que ela entorna
das ânforas da Poesia.

Não se desfaz a utopia…
Lua é só pedra e areia;
mas quem resiste à poesia
e ao feitiço de uma cheia?!

Nosso romance desfeito,
pelas mágoas que deixou,
lembra-me seixos no leito
de um riacho que secou.

Numa foto desbotada,
pequeno par se embalança,
e a vovó lembra, enlevada,
seu namoro de criança.

Os erros que fiz na vida
quero apagar sem alarde;
mas a consciência revida,
e aos brados me diz: “É tarde!”

“Para sempre!” Será mesmo?
Não importa a duração;
é promessa feita a esmo,
mas aquece o coração.

Perfume em frasco vazado,
marca indelével do ausente,
lembra um sonho sufocado
que ainda respira na gente.

Que bom se pudesse, a gente
sentir da vida o sabor,
como a graça de um pão quente
afastando a fome e a dor!

Que o véu da floresta se abra,
e mostre o fogo, em afã,
no ensaio à dança macabra
para o balé do amanhã!

Sem cautela, os homens, loucos,
do ambiente às investidas,
nem se apercebem, que aos poucos,
vão perdendo as próprias vidas.

“Uma flor” … costume antigo,
guarda, como no passado,
quer em festa ou em jazigo,
seu terno significado.

Velho tronco na queimada,
em dolorosa utopia,
sonha ouvir a passarada
que em vida abrigou… um dia.

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da tarde: trovas. 
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Mário Quintana (Velha história)

Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. 

Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no 17! - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:

“Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!”

Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n'água. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado…

Fonte:
Mário Quintana. Sapato florido. 
Porto Alegre/RS: Editora Globo, 1948.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Caldeirão Poético 6


ANA PAULA COSTA BRASIL
Santana de Parnaíba/SP

Você!

Corri... como corri
Para pular em seu colo
Fundir nossos corpos
Morder seus lábios
Acariciar seu corpo... sentir sua pele
Provar de seu gosto... descobrir minha alma
Mesclar nossos braços... misturas os cabelos
Entrelaçar nossas pernas
Mas... Corri... como corri
Quando vi que você não era você
Que eu nem mesmo conhecia você
Eu fantasiava... construía um você
Como corri por não saber quem é esse outro você
Que não é o meu você
Você... meu você
Fez-me viver... fez-me voltar a sonhar
Fez-me querer... fez-me fazer
Você... o outro você
Fez-me chorar... fez-me sofrer
Fez-me esquecer
O quanto amei
Oh! Meu você
O você que construí para amar
O meu você
________________________

APARECIDO DONIZETTI HERNANDEZ
Itapevi/SP

Amor Oculto

Quanto te esperei... quanto te esperei!...
Não viestes..., onde estavas?
Não respondas, eu sei...
Estavas junto aos anjos.

Te esperei... e quanto te esperei!...
Não perguntarei onde estavas,
Pois sei, estavas junto aos anjos
Esperando a hora de vires,
Mas será que é essa a hora?!
Quanto te esperei!... esperei...

Somente agora os anjos a deixas vir,
Deixarás os céus com anjos tristonhos
E me fará feliz!
______________________

HENRIQUE DO CERRO AZUL
Fortaleza/CE

Contraste

Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu:- os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
- Quanto mais longe tanto mais unidos,
- Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
____________________

RAFAEL DOS SANTOS BARROS
Pernambuco

As Mãos de Vitalino*

Vitalino com mãos sujas e santas
modelava em barro os nordestinos
e transportava a dor e os desatinos
para os bonecos tantas vezes, tantas.

Bonecos mudos, quantas vezes quantas,
Minha alma cega por meus olhos viu?
A tua dor meu coração sentiu
no canto triste que ainda hoje cantas.

Soprou a vida num boneco mudo
que sem falar, assim, dizia tudo
dos nordestinos, dos desatinos seus,

advertência dos que nascem pobres
pelas mãos rudes que ficaram nobres,
abençoadas pelas mãos de Deus.


_________________
*Nota sobre Vitalino:
Vitalino Pereira da Silva nasceu no dia 10 de julho de 1909, no Sítio Campos, em Caruaru, Pernambuco. Seu pai, humilde lavrador, preparava o forno para queimar peças de cerâmica que sua mãe fazia, para melhorar o orçamento familiar. E sua mãe, artesã, preparava o barro que ia buscar nas margens do Rio Ipojuca. Depois, sem usar o torno, ia fazendo peças de cerâmica utilitária, que vendia na feira. Levava a cerâmica nos caçuás (cestos grandes) colocados nas cangalhas do jegue (burrico). Com apenas seis anos (1915), Vitalino iniciou-se na arte do artesanato de barro. O material que ele usava para as suas peças era o massapê, que retirava da vazante do Rio Ipojuca e transportava em balaios para casa. O barro era molhado e deixado em um depósito por dois dias para ser curtido, sendo então amassado e modelado. As peças eram cozidas em forno circular, construído ao ar livre, atrás da casa.

Sua capacidade criadora se desenvolveu de tal maneira que acabou se tornando o maior ceramista popular do Brasil.

No início, a aplicação da cor nos bonecos era feita com barro de diferentes tons — tauá, vermelho, branco. Depois, Vitalino passou a usar produtos industriais na pintura dos seus bonecos. As peças da primeira fase não possuíam marca de autoria. Posteriormente, o artista passou a assinalar com lápis e tinta preta as iniciais V.P.S., no reverso da base dos grandes grupos, e, a partir de 1947, começou a utilizar o carimbo, também de barro, com as mesmas iniciais V.P.S., adotando, em 1949, o seu nome de batismo.

Casado com Joana Maria da Conceição, teve 18 filhos e, destes, somente cinco viveram até a idade adulta. Dono de um grande talento musical, aprendeu a tocar pífano (espécie de flauta sem claves e com sete furos) e, com apenas 15 anos, montou sua própria banda, a Zabumba Vitalino.

Mestre Vitalino morreu de varíola aos 20 de janeiro de 1963 A partir dessa época, os bonecos de barro de Vitalino ganharam fama como obras de arte e passaram a percorrer o Brasil e o mundo.

Sua produção é estimada em cerca de 130 peças, que são cuidadosamente reproduzidas pela família. Os seus filhos, netos e bisnetos continuam o seu trabalho até hoje.
(Fonte: http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=908)

Nilto Maciel (O Livro de Pedro Amaro)

Sentia-se tonto, o mundo todo de pernas para o ar, feito barata emborcada, a remexer-se em agonia de moribundo sem vela. As palavras perdiam a conotação lógica dos textos regulares de uma lei, tratado sobre a natureza humana, curso dos rios. Via-se lendo a macabra língua dos mitos. O chão virava teto, a cadeira pregava-se como aranha às vigas de uma teia de circo, as linhas proféticas das mãos metamorfoseavam-se em desenhos misteriosos de capas clássicas.

Não sabia explicar se não aceitava aquela mistura de arcaísmos, tupi e expressões populares, ou se apenas tinha medo de sonhar com livros cabalísticos.

Chegava ao fim da leitura com nojo de Pedro Amaro, estupefato diante daquele monstro que confessava sua torpeza: “Perguntado por que razão passara a lambedeira no cangote de um curumim, disse que a causa disso fora porque carecia de se espichar debaixo da jaqueira onde o mesmo estava deitado.”

Nunca mais leria tamanho cinismo. Aquilo deveria ser ficção de algum doido. Nada daquilo ficaria em sua memória, aquelas páginas de extrema virulência, por mais que lhe tivesse ferido os olhos. Se não, apagaria letra por letra, até não se lembrar mais sequer dos vocábulos arcaicos. Sobretudo aquele parágrafo nauseante: “Perguntado se no tempo que lá andou praticava malvadezas, disse que não; somente por rir metia a faca no bucho dos curumins quando dava na veneta desenferrujar o aço mas que não era de fazer marteiros nem de viver de ribaldarias nem de culpas”.

Jogou o livro para cima, irritado, acertou a lâmpada, que se espatifou. Houve um papoco e cacos finos caíram-lhe como neve sobre os cabelos. E ao relâmpago sucedeu a treva, e gritaram: – Seu Amaro, o que foi isso? Enxotou a empregada da sala, quando a infeliz tentava apanhar o livro estatelado aos seus pés. – Não pegue nisso, é porcaria. E continuou a falar do matador de índios, assassino, desalmado, monstro. E berrava: Queime isso, esse Pedro Amaro é um demônio.

Despachou a moça, que apanhou o livro e o levou para os fundos do quintal. Chamou-a de ladra e imediatamente telefonou para a polícia: “Roubou um livro meu, peça rara, documento histórico adquirido por uma fortuna.”

“Ao chegarem os policiais, há muito se havia arrependido da acusação. Lia para a empregada o livro. E recebeu as visitas com extrema inquietação. – Escutem só esta maluquice.”

Figura curiosa a daquele velho português. Verdadeiramente um bicho, mas todo bicho é curioso ao homem. Para que ter medo da realidade? Ali estava um estranho personagem. Necessário reler aquelas confissões. Teria sido um louco? Vissem: “Perguntado se era lembrado dizer alguma hora que seu preço era mais alto do que o de el-rei, disse que si, porque nunca tivera receança, posto não dormisse, nem sofresse, nem falasse, mas que antes não era de capitania, era só e elle”.

Relia o livro tintim por tintim, devagar, olhos grudados nas letrinhas miúdas, esquecido de cheques e notas fiscais, fumando feito uma caipora, consultando dicionários e enciclopédias, detendo-se nesta e naquela palavra, neste e naquele parágrafo, coçando o queixo, pensando, sonhando. Intrigava-o a insolência do colonizador: “Perguntado se dizia ele que se siso fosse bom era era regedor de poder, capitão de regimento, disse que si, e que sua sanha era só de esfolar, porque nunca teve coita, durão e brabo de peito e coração.”

Entendia já termo por termo e sentia-se convencido da existência real de Pedro Amaro. – Passou à história, embora em rodapé, como o típico colonizador. Porém alguma coisa ainda escapava ao seu entendimento, inclusive certos vocábulos em desuso e que nem os dicionários mais completos mencionavam. Mister então ler, reler, tresler o texto, como o joalheiro que olha, reolha, tresolha a pedraria que engasta na joia.

Não perdia ocasião de abrir o livro, sempre à mão, como antes conduzia a pasta repleta de documentos mercantis. Ao acordar, em vez de ler os jornais, lia o interrogatório.

Certa feita pôs-se a ler para um amigo, em plena rua, trechos do livro, assim de repente, como se o outro soubesse do seu interesse: “Perguntado si disse alguma hora que não havia de nunca vestir costume de rei, disse que si e disse mais que andar carecia de sujidade e feitio de onça, para assustar os medrosos, e que seu aspeito era esse de bicho do mato, sem respeito à vida”. O amigo ouvia calado, mas, como se aborrecesse com o prolongado da leitura, riu e o interrompeu para saber o que significava aquilo. Pedro mostrou-se surpreso: – Então o amigo não conhecia o interrogatório de Pedro Amaro? À negativa, expôs sua opinião a respeito do colonizador, no que foi contestado pelo outro: – Pelo que acabei de ouvir, trata-se de um criminoso dos mais bárbaros. Pedro irritou-se, defendeu com unhas e dentes seu homônimo, concluindo ter sido apenas um homem forte no meio de um magote de selvagens, e que seus atos, chamados de crimes, podiam ser muito bem explicados, embora tivessem sido praticados com alguma crueldade. – Vamos levar em conta o meio em que os praticou.

De sua mesa de trabalho ordenou que a moça retirasse os papelórios e as pastas. Não queria desviar os olhos do livro. Necessitava de ler mais o texto antigo. Também não o interrompesse à toa.

Há tempos andava daquele jeito. Se a empregada vinha dar recados, irritava-se. Não lhe tomasse o tempo com recadinhos idiotas. Se lhe vinha pedir ordens, só faltava espaldeirar a coitada. Resolvesse tudo sozinha, não torrasse sua paciência.

Deixava cheques por assinar, documentos bancários esquecidos, relatórios por ler e abraçava o livro com sofreguidão de colegial aplicado. Balançava a cabeça como que aprovando as respostas do interrogado: “Perguntado si era lembrado dizer alguma hora que lugar de argel era debaixo dos sete palmos do chão, fosse galalau ou tamborete-de-forró, que o bicho era ele, disse que si e que isso devia merecer aplausos até dos bugiadões.”

A cada dia mais se tornava irresponsável com os próprios negócios. Em vez de discutir preços com os fregueses, discutia a personalidade do outro Pedro Amaro, sempre a defendê-lo. Súbito encheu-se de fúria, pegou o revólver e disparou seis vezes contra a moça.

E voltou ao livro.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.