sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Carolina Ramos (Desilusão)


Azuis! Tão azuis quanto um retalho de céu de abril, os olhos de Cássio. Qualquer emoção mais forte lhes acentuava a cor, tornando-os ainda mais bonitos.

A aula terminara mais cedo. Os garotos, cuja idade não chegava aos nove, valiam-se da folga para dirimir dúvidas e acertar as turmas.

Interiorana, a cidade vibrava com o acontecimento. Papai Noel chegaria de helicóptero, na tarde seguinte, para distribuição farta de presentes á criançada.

A meninada fervilhava como formigueiro em tempo de correição.

Os grupos dividiam-se. De um lado, os sabichões que não acreditavam no bom velhinho de barbas brancas. Do outro, aqueles, talvez mais jovens, talvez mais ingênuos, que nem sequer admitiam a possibilidade de dúvidas. Cássio liderando-os.

Houve provocações, e Cássio não fugiu à polêmica. No dia imediato, todos haveriam de ver de que lado estava a razão!

O garoto que chefiava os céticos, metido a valentão, foi além:

— "Seus bobocas... Papai Noel não existe!... é o pai da gente! Será que vocês não entendem? Pai Noel é o pai da gente!"

— "Bobocas!... Bobocas!..." — o coral de vozes provocativas fez ferver o sangue de Cássio. Sentiu-se ofendido dos pés à cabeça. Sequer tinha pai. E, nem por isso, em todos os natais, seus sapatos deixavam de estar cheios de presentes, modestos, sim, mas, sempre os que mais desejara! Os olhos azuis brilhavam mais azuis do que nunca!

Retrucou, triplicando o insulto:

~ "Bobocas são vocês... seus trouxas... seus burros! Esperem só... amanhã, quero ver quem tem cara pra abrir o bico!"

As faces coradas e os pequenos punhos em guarda, falavam ainda com maior veemência.

Engalfinhados, os dois chefes rolaram na calçada, trocando sopapos, sob o estímulo vibrante dos dois grupos adversos.

Finda a luta, tão logo o diretor da escola apareceu, chamando os brigões à realidade, sobraram, como rescaldo, algumas escoriações sem importância, rasgões nas roupas e botões arrancados.

Sem sacudir as roupas, Cássio correu para casa levando joelhos esfolados e um nariz que sangrava. Relutou em entregar à mãe as causas do entrevero. Acabou cedendo. Olhos fitos nos dela, disparou a pergunta, esperando, tenso, e torcendo pela resposta afirmativa:

— Mãe, Papai Noel existe mesmo, não é? — afirmava duvidando... duvidava afirmando.

Surpresa, a mãe hesitou. Perdera o marido quando Cássio estava para nascer. Para o menino, o pai era um ídolo. Ídolo criado e alimentado pelo carinho materno, através dos tempos. Um mito que tinha raízes na ausência da figura paterna. Agora, sem coragem de roubar ao filho a ilusão que o fazia feliz, defrontava-se com um dilema. Após um segundo de hesitação, mentiu, uma vez mais; — Claro... claro que Papai Noel existe! Amanhã você vai vê-lo, não vai?

Assunto encerrado. O menino sorriu aliviado, esquecido das dores e das marcas da contenda, convicto, plenamente, de que valera a pena ter lutado pela verdade. Palavra de mãe é sagrada!

O sábado amanheceu azul, combinando com os olhos de Cássio. O almoço foi engolido às pressas, e as pernas do garoto, espigadas para a idade, foram curtas ante a ansiedade de chegar à praça.

Com meia hora de atraso, pintou, lá no alto, o helicóptero, que, em linha de modernidade, substituía com maior eficiência, o tradicional e romântico trenó tirado a renas.

Quando a porta se abriu e a cara risonha do velhinho barbudo apareceu, reinava silêncio respeitoso, que nem os mais incrédulos ousavam romper.

Fascínio absoluto! Os presentes não deslumbraram tanto os olhos de Cássio quanto a própria figura do querido velhinho! Se bem que o achou mais magro que o esperado, embora acentuadamente barrigudo. Também, os tempos não andavam fáceis e as contínuas viagens do bom Noel deveriam ser profundamente desgastantes para alguém que, mesmo não tendo idade definida, já nascera velho, O menino aquietou-se, aceitando as próprias ponderações.

Após o pasmo da chegada, veio a algazarra da distribuição dos brinquedos. E tão logo os braços cheio, as formiguinhas humanas retornaram aos lares, transportando, jubilosos, as prendas recebidas. A dúvida quanto à existência ou não do mito natalino fora banida ou momentaneamente esquecida. Mãos cheias, e tchau! — solução simplista.

Com Cássio, contudo, não foi o que aconteceu. A respeitável distância, seguiu o bom velhinho que, volta e meia, ajeitava o ventre bojudo e fazia soar as pedras da calçada com o taco de suas botas de verniz negro. Pai Noel deveria estar com fome, por isso, o encaminhavam para uma lanchonete. Cássio seguiu-o sem pressa, esgueirando-se para dentro do estabelecimento. Colado à parede, esqueceu-se de tudo, enlevado na contemplação da mesa privilegiada. Cada gesto do velhinho o fascinava! Quase não acreditou, quando seus olhos se encontraram e um aceno convidou-o a aproximar-se. Tímido, achegou-se, devagarinho.

Ao ver-lhe as mãos vazias. Papai Noel indagou:

— Então, meu filho... você não ganhou nenhum presente?!

Ainda fascinado, o garoto sacudiu a cabeça negativamente, sem coragem de balbuciar qualquer palavra.

O bom velho vasculhou os bolsos à procura de algum brinquedo esquecido. Pescou alguns confeitos e um chaveiro, que estendeu, sorridente, ao menino:

— Olha... sei que é pouco, mas foi o que restou. O chaveiro é meu... talvez, por isso tenha mais valor, que tal?

Cássio agradeceu os regalos, deslumbrado, principalmente, com o chaveiro. Jamais poderia imaginar ter um dia nas mãos um objeto do próprio uso de Papai Noel! Melhor do que qualquer brinquedo! E além disso, falara com ele e tinha provas! Papai Noel existia, sim, como lhe dissera a mãe... Mãe não mente! Queria ver agora que boboca teria coragem de chamá-lo de boboca!

Num impulso agradecido, abraçou o velhinho, voltando a correr para o seu ponto de observação, escondido, desta vez, entre as dobras da cortina. Não fugia à tentação de acompanhar, por mais algum tempo, a ação de alguém tão querido. Apertado na mão, o presente precioso.

Papai Noel, por sua vez, logo esqueceu a criança, pondo-se à vontade. Enquanto conversava com o acompanhante, desvencilhou-se de tudo quanto poderia perturbar-lhe a refeição.

A barba foi a primeira a ser retirada. Logo, o travesseiro que lhe avolumava a cintura foi parar na cadeira vizinha. O gorro vermelho trouxe consigo a cabeleira branca e uma careca lustrosa, despudoramente nua, apareceu.

Atônitos, os olhos extraordinariamente azuis do menino transbordavam perplexidade. O chaveiro escorregou-lhe da mão. Deixou-o cair. Pisou-o!

Um desapontamento irado tomou conta de Cássio.

Antes de abandonar o recinto, cuspiu a bala que lhe adoçava a boca e chutou o chaveiro, acintosamente, em direção ao farsante.

Mãos vazias, correu para casa. Levava de volta um coração agitado, duplamente desiludido e que só não lhe saltava pela boca, porque um soluço magoado lhe amarrava a garganta.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Arthur de Azevedo (Fatalidade)


I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite, D. Andréia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele – um bonde do Bispo -, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andréia.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava.

II

O Tenente Remígio Soares foi para a casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas – que contrariedade! -~ as janelas de D. Andréia estavam fechadas.

O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá, patati, patatá! e as janelas não se tinham aberto!

O passeio foi novamente renovado à tarde, – o tenente passou, tornou a passar, – continuavam fechadas as janelas!

Malditas janelas!…

Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

– Mas, ao quinto dia – 0h! ventura! – ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar à patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamos-lo para vergonha daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar por muito tempo.

Ei-la:

“O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?… onde?… quando?… Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós… Como há um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.

III

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

IV

Os leitores, – e principalmente as leitoras – me desculparão de não pôr no final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

– Que tens tu?

– Ainda me perguntas!

– Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente… – Bem sabes que gozava uma saúde de ferro… Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba…. tenho tonteiras!

– Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemérito laxativo.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

“A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum namorado faria confissões dessa ordem…

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás.”

V

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três cabeças!

– Como três?

– A tua, que tinha tonteiras, – a de D. Andréia que estava cheia de fantasias, – e a do marido que andava muito arriscada.

Efetivamente, a moça não perdoou.

O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Therezinha Dieguez Brisolla (A Procura de Estrelas) I


Ao conter minha ousadia
deu-me o destino, severo,
em vez do amor que eu queria,
a saudade... que eu não quero.

Ao disfarçar a paixão,
quando na rua se olharam
bem à luz do lampião,
suas sombras... se abraçaram!

Ao reler: - "Amor... coragem...
é a vida... são contingências"...
eu descobri na mensagem,
teu adeus... nas reticências!

Ao romper os nossos laços
chego à estranha conclusão:
- A saudade não tem braços,
mas aperta o coração!

A tua língua refreia,
porque a calúnia é um defeito
de quem pela vida alheia
não tem o menor respeito!

A vida, má roteirista,
dá-me um papel... não me ensaia
e, se eu tento ser artista,
nega-me o aplauso... e me vaia!

A vida, por brincadeira
ou distração, faz da gente,
velha ponte de madeira
sempre à mercê de uma enchente!

Comparo a um pano rasgado
este amor, ao qual me rendo.
Quando parece acabado,
um de nós… faz um remendo!

Com teus disfarces fracassas
nas juras que eu sei de cor...
e entre nós, quando me abraças,
fica a distância maior!

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!

Estuda, criança, aprende,
que um livro sempre faz bem...
e a vida, às vezes, depende
da cultura que se tem.

Eu acendo a vela benta
e, com fé beijo a medalha
mas, quando você me tenta
meu anjo da guarda... falha!

Eu lutei quando quis ter
teu amor... e o consegui...
Depois, eu quis te esquecer
e esse combate... eu perdi.

Foi o segredo a guarida
que o nosso amor protegeu...
e a inconfidência da vida
nos fez Marília e Dirceu!

Hoje eu volto à antiga praça
e a saudade tem tal ânsia
que, em cada estranho que passa,
procuro o amigo de infância.

Meu tempo é o da serenata...
do flerte... da matinê...
da valsa... terno e gravata...
do primeiro amor... você!

Não me zango se ele tarda
ou se o espero e ele não vem.
É que o meu anjo da guarda
deve estar velho... também!

Nesta vida alucinante
e de ilusões passageiras,
às vezes, um breve instante
vale mais que horas inteiras!

"Ontem passou"... ele disse
pedindo, outra vez, perdão.
Eu não sei se fiz tolice
mas, desta vez, disse: - Não!

O seu olhar tem tal brilho
que chega à sublimidade...
Toda mãe, que espera um filho,
tem um "quê" de majestade!

Passam sorrindo ao meu lado
avó e neto... amor puro!
Nela, revivo o passado...
Nele, adivinho o futuro.

Por mais que o mundo me agrida,
minha fé não arrefece...
Mesmo no inverno da vida,
Deus manda o sol que me aquece!

Quando desfazes a trança,
jogando longe teus grampos,
tu me recordas a dança
do trigo dourando os campos!

Quase ao fim da caminhada,
meu coração não tem jeito!...
Sempre um toque de alvorada
acorda o sonho… em meu peito!

Que eu não me esqueça, jamais,
que a moral é a diretriz
e ter ética é bem mais
do que a gente pensa e diz!

Se a cruz é leve ou pesada,
para quem crê, não importa!...
Deus nos dá, para a jornada
o peso que a fé suporta.

Se de amor o velho fala,
corre o seu pranto… e, de manso,
a saudade, calma, embala
a cadeira de balanço.

Sei que este amor é veneno
do qual bebo... e o que é pior:
- Desejo, quanto mais peno,
sempre uma dose maior!

Se, um dia, o amor acabar
e as juras você esquecer,
basta um recado no olhar
e eu saberei entender.

Sorrindo, tento esconder
toda a mágoa que me inspiras.
Finges me amar... finjo crer...
Nós somos duas mentiras!

Tanto amor na despedida!!!
Voltas... E eu não sinto nada...
Pior que o adeus, na partida,
foi nosso adeus, na chegada!

"Um doutor", o pai almeja...
e a mãe, a sorrir, lhe diz
que amor e paz lhe deseja...
Só quer que seja... feliz!

Fonte:
Livro cedido pela trovadora
Therezinha Dieguez Brisolla. A procura de estrelas. Porto Alegre/RS: Odisseia, 2014.

Lima Barreto (Um Especialista)


Era hábito dos dois, todas as tardes, após o jantar, jogar uma partida de bilhar em cinquenta pontos, finda a qual iam, em pequenos passos, até ao Largo da Carioca tomar café e licores, e, na mesa do botequim, trocando confidências, ficarem esperando a hora dos teatros, enquanto que, dos charutos, fumaças azuladas espiralavam preguiçosamente pelo ar.

Em geral, eram as conquistas amorosas o tema da palestra; mas, às vezes; incidentemente, tratavam dos negócios, do estado da praça e da cotação das apólices.

Amor e dinheiro, eles juntavam bem e sabiamente.

O comendador era português, tinha seus cinquenta anos, e viera para o Rio aos vinte e quatro, tendo estado antes seis no Recife. O seu amigo, o Coronel Carvalho, também era português, viera, porém, aos sete para o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar, caixeiro de venda, feitor e administrador de fazenda, influência política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara com propriedades, ficando daí em diante senhor de uma boa fortuna e da patente de coronel da Guarda Nacional. Era um plácido burguês, gordo, ventrudo, cheio de brilhantes, empregando a sua mole atividade na gerência de uma fábrica de fósforos. Viúvo, sem filhos, levava a vida de moço rico. Frequentava cocotes; conhecia as escusas casas de rendez-vous, onde era assíduo c considerado; o outro, o comendador, que era casado, deixando, porém, a mulher só no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar pelos namoricos das filhas, tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.

Gostava das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um amador de raridades.

À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-as, joeirando-as com olhos chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais airosa pelas ruas de baixa prostituição.

– A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é, enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses, desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar.

O coronel era justamente o contrário: só queria às estrangeiras; as francesas e italianas, bailarinas, cantoras ou simplesmente meretrizes, era o seu fraco.

Entretanto havia já quinze dias, que não se encontravam no 1ugar aprazado e a faltar era o comendador, a quem o coronel sabia bem por informações do seu guarda-livros.

Ao acabar a segunda semana dessa ausência imprevista, o coronel, maçado e saudoso, foi procurar o amigo na sua loja à Rua dos Pescadores. Lá o encontrou amável e de boa saúde. Explicaram-se; e entre eles ficou assentado que se veriam naquele dia, à tarde, na hora e lugar habituais.

Como sempre, jantaram fartamente e regiamente regaram o repasto com bons vinhos portugueses. Jogaram a partida de bilhar e depois, como encarrilhados, seguiram para o café de costume no Largo da Carioca.

No princípio, conversaram sobre a questão das minas de Itaoca, vindo então à baila a inépcia e a desonestidade do governo; mas logo depois, o Coronel que “tinha a pulga atrás da orelha”, indagou do companheiro o motivo de tão longa ausência.

– Oh! Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o comendador, depois de chupar fortemente o charuto e soltar uma volumosa baforada; um petisco que encontrei… Uma mulata deliciosa, Chico ! Só vendo o que é, disse a rematar, estalando os beiços.

– Como foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como foi? Conta lá!

– Assim. A Ultima vez que estivemos juntos, não te disse que no dia seguinte iria a bordo de um paquete buscar um amigo que chegava do Norte?

– Disseste-me. E daí?

– Ouve. Espera. C'os diabos isto não vai a matar! Pois bem, fui a bordo. O amigo não veio… Não era bem meu amigo… Relações comerciais… Em troca…

Por essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou em frente ao café e por ele adentro entrou uma gorda mulher, cheia de plumas e sedas, e para vê-la virou-se o comendador, que estava de costas, interrompendo a narração. Olhou-a e continuou depois:

– Como te dizia: não veio o homem, mas enquanto tomava cerveja com o comissário, vi atravessar a sala uma esplêndida mulata; e tu sabes que eu…

Deixou de fumar e com olhares canalhas sublinhou a frase magnificamente.

– De indagação em indagação, soube que viera com um alferes do Exército; e murmuravam a bordo que a Alice (era seu nome, soube também) aproveitara a companhia, somente para melhor mercar aqui os seus encantos. Fazer a vida… Propositalmente, me pareceu, eu me achava ali e não perdia vaza, como tu vais ver.

Dizendo isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a cabeça, e seguiu narrando:

– Saltamos juntos, pois viemos juntos na mesma lancha – a que eu alugara. Compreendes? E, quando embarcamos num carro, no Largo do Paço, para a pensão, já éramos conhecimentos velhos; assim pois…

– E o alferes?

– Que alferes?

– O alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste ?

– Ah! Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da Guerra e nunca mais o vi.

– Está direito. Continua lá a coisa.

– E… e… Onde é que estava? Hein?

– Ficaste: quando ao saltar, foram para a pensão.

– É isto ! Fomos para a Pensão Baldut, no Catete; e foi, pois, assim que me apossei de um lindo primor – uma maravilha, filho, que tem feito os meus encantos nestes quinze dias – com os raros intervalos em que me aborreço em casa, ou na loja, já se vê bem.

Repousou um pouco e, retomando logo após a palavra, assim foi dizendo:

– É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta, filho, nem a que conheci em Pernambuco há uns vinte e sete anos! Qual! Nem de longe! Calcula que ela é alta, esguia, de bom corpo; cabelos negros corridos, bem corridos: olhos pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem quentes… Só vendo mesmo! Só! Não se descreve.

O comendador falara com um ardor desusado nele; acalorara-se e se entusiasmara deveras, a ponto de haver na sua fisionomia estranhas mutações. Por todo ele havia aspecto de um suíno, cheio de lascívia, inebriado de gozo. Os olhos arredondaram-se e diminuíram; os lábios se haviam apertado fortemente e impelidos pra diante se juntavam ao jeito de um focinho; o rosto destilava gordura; e, ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era de um colossal suíno.

– O que pretendes fazer dela? Dizes lá.

– É boa… Que pergunta ! Prová-la, enfeitá-la, enfeitá-la e “lançá-la” E é pouco?

– Não! Acho até que te excedes. Vê lá, tu!

– Hein? Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco… Uma miséria!

Acendeu o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:

– Vou buscá-la de carro, porquanto vamos ao cassino, e tu me esperas lá, pois tenho um camarote. Até já.

Saindo o seu amigo, o coronel considerou um pouco, mandou vir água Apolináris, bebeu e saiu também.

Eram oito horas da noite.

Defronte ao café, o casarão de uma ordem terceira ensombrava a praça parcamente iluminada pelos combustores de gás e por um foco elétrico ao centro. Das ruas que nela terminavam, delgados filetes de gente saíam e entravam constantemente. A praça era como um tanque a se encher e a se esvaziar equitativamente. Os bondes da Jardim semeavam pelos lados a branca luz de seus focos e, de onde em onde, um carro, um tilburi, a atravessava célere.

O coronel esteve algum tempo olhando o largo, preparou um novo charuto, acendeu-o, foi até à porta, mirou um e outro transeunte, olhou o céu recamado de estrelas, e, finalmente, devagar, partiu em direção à Lapa.

Quando entrou no cassino, ainda o espetáculo não havia começado.

Sentou-se a um banco no jardim, serviu-se de cerveja e entrou a pensar.

Aos poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele instante entrava um. Via-se pelo acanhamento, que era um estranho às usanças da casa. Esmerado no vestir, no calçar, não tinha em troca o desembaraço com que se anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não fosse a estreiteza de seus movimentos. Era um visitante ocasional, recém-chegado, talvez, do interior, que procurava ali uma curiosidade, um prazer da cidade.

Em seguida, entrou um senhor barbado, de maçãs salientes, rosto redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo ar solene, pelo olhar desdenhoso que atirava em volta, descobria-se nele um legislador da Cadeia Velha, deputado, representante de algum Estado do Norte, que, com certeza, há duas legislaturas influía poderosamente nos destinos do país com o seu resignado apoiado. E assim, um a um, depois aos magotes, foram entrando os espectadores. Ao fim, na cauda, retardados, vieram os frequentadores assíduos – pessoas de variadas de profissão e moral que com frequência desejavam saber os nomes das cocotes, a proveniência delas e as suas excentricidades libertinas. Entre os que entravam naquele momento, entrara também o comendador e o ” achado” .

A primeira parte do espetáculo correra quase friamente.

Todos, homens e mulheres, guardavam as maneiras convencionadas de se estar em público. Era cedo ainda.

Em meio, porém, da segunda, as atitudes mudaram. Na cena, uma delgadinha senhora (chanteuse à diction – no cartaz) berrava uma cançoneta francesa. Os espectadores, com batidos das bengalas nas mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos comprometida, estribilhavam-na doidamente. O espetáculo ia no auge. Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro – um odor azedo de orgia.

Centenas de charutos e cigarros a fumegar enevoavam todo ambiente.

Desprendimentos do tabaco, emanações alcoólicas, e, a mais, uma fortíssima exalação de sensualidade e lubricidade, davam à sala o aspecto repugnante de uma vasta bodega.

Mais ou menos embriagado, cada um dos espectadores tinha para com a mulher com quem bebia, gestos livres de alcova. Francesas, italianas, húngaras, espanholas, essas mulheres, de dentro das rendas, surgiam espectrais, apagadas, lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse o álcool ou o prestígio de peregrinas, tinham sobre aqueles homens um misterioso ascendente. A esquerda, na plateia, o majestoso deputado da entrada coçava despudoradamente a nuca da Dermalet, uma francesa; em frente o doutor Castrioto, lente de uma escola superior, babava-se todo a olhar as pernas da cantora em cena, enquanto em um camarote defronte, o Juiz Siqueira apertava-se à Mercedes, uma bailarina espanhola, com o fogo de um recém-casado à noiva.

Um sopro de deboche percorria homem a homem.

Dessa forma o espetáculo desenvolvia-se no mais fervoroso entusiasmo e o coronel, no camarote, de soslaio, pusera-se a observar a mulata. Era bonita de fato e elegante também. Viera com um vestido creme de pintas pretas, que lhe assentava magnificamente.

O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico chapéu de palha preta, saía firme do pescoço roliço que a blusa decotada deixava ver. Seus olhos curiosos, inquietos, voavam de um lado a outro e a tez de bronze novo cintilava à luz dos focos. Através do vestido se lhe adivinhavam as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava de volúpia…

O comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo e fora do costume, pouco conversou. O amigo, pudicamente não insistiu no exame.

Quando saíram de permeio à multidão, acumulada no corredor da entrada, o coronel teve ocasião de verificar o efeito que fizera a companheira do amigo. Ficando mais atrás, pôde ir recolhendo os ditos e as observações que a passagem deles ia sugerindo a cada um.

Um rapazola dissera:

– Que “mulatão”!

Um outro refletiu:

– Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro. Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente observou:

– Parecem pai e filha.

E essa reflexão de pequeno alcance na boca que a proferiu, calou fundo no ânimo do coronel.

Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas, também; o ar, um não sei quê de ambos assemelhavam-se… Vagas semelhanças, concluiu o coronel ao sair à rua, quando uma baforada de brisa marinha lhe acariciou o rosto afogueado.

Já o carro rolava rápido pela rua quieta – quietude agora perturbada pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos e pelas falsas risadas de suas companheiras – quando o comendador, levantando-se no estrado da carruagem, ordenou ao cocheiro que parasse no hotel, antes de tocar para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha sempre por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia nela; as sedas roçantes e os chapéus vistosos das mulheres; a profusão de luzes, o irisado das plumas, os perfumes requintados que voavam pelo ambiente; transmudavam-na de sua habitual fisionomia pacata e remediada. As pequenas mesas, pejadas de pratos e garrafas, estavam todas elas ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres sentavam-se, seguidas de um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do francês, sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações italianas, chocavam-se, brigavam.

Do português nada se ouvia, parecia que se escondera de vergonha.

Alice, o comendador e o coronel, sentaram-se a uma mesa redonda em frente à entrada. A ceia foi lauta e abundante. A sobremesa, os três convivas repentinamente animados, puseram-se a conversar com calor. A mulata não gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim ! O céu era outro; as comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Quem não se recordaria sempre de uma frigideira de camarões com maturins ou de um bom feijão com leite de coco?

Depois, mesmo a cidade era mais bonita; as pontes, os rios, o teatro, as igrejas.

E os bairros então? A Madalena, Olinda… No Rio, ela concordava, havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife era outra coisa, era tudo…

– Você tem razão, disse o comendador; Recife é bonito, e muito mais . .

– O senhor, já esteve lá ?

– Seis anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à altura dos olhos, correu-a pela testa, contornou com ela a cabeça, descansou-a afinal na perna e acrescentou: comecei lá minha carreira comercial e tenho muitas saudades. Onde você morava?

– Ultimamente à Rua da Penha, mas nasci na de João de Barro, perto do Hospital de Santa Águeda…

– Morei lá também, disse ele distraído.

– Criei-me pelas bandas de Olinda, continuou Alice, e por morte de minha mãe vim para a casa do doutor Hildebrando, colocada pelo juiz…

Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.

– Há oito anos quase, respondeu ela.

– Há muito tempo, refletiu o coronel; e logo perguntou: que idade tens?

– Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando de mão em mão, ora nesta, ora naquela, a minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido três homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles! – só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam, espancavam-me, maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento de Polícia, ele chegou em casa embriagado, tendo jogado e perdido tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-réis, fosse como fosse. Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas que eu lavava, só chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-me. Ofendeu-me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço, esbofeteou-me, deitou-me em terra, deixando-me sem fala e a tratar-me no hospital. Um outro – um malvado em cujas mãos não sei como fui cair – certa vez, altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal.! Tem sido um tormento… Bem me dizia minha mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai comigo…

– Como?… Como foi isso? interrogou admirado o coronel.

– Não sei bem como foi, retrucou ela. Minha mãe me contava que ela era honesta; que vivia na cidade do Cabo com seus pais, de cuja companhia fora seduzida por um caixeiro português que lá aparecera e com quem veio para o Recife. Nasci deles e dois meses, ou mais depois do meu nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por morte de seus pais. Vindo de receber a herança, partiu dias depois para aqui e nunca mais ela soube notícias dele, nem do dinheiro, que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.

– Como se chamava teu pai? indagou o comendador com estranho entono.

– Não me 1embra bem; era Mota ou Costa… Não sei… Mas o que é isso? disse ela de repente, olhando o comendador. Que tem o senhor ?

– Nada… Nada… retrucou o comendador experimentando um sorriso. Você não se 1embra das feições desse homem? interrogou ele.

– Não me 1embra, não. Que interesse! Quem sabe que o senhor não é meu pai? gracejou ela.

O gracejo caiu de chofre naqueles dois espíritos tensos, como uma ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador que tinha as faces em brasa; este, àquele; por fim depois de alguns segundos o coronel querendo dar uma saída à situação, simulou rir-se e perguntou:

– Você nunca mais soube alguma coisa… qualquer coisa ? Hein ?

– Nada… Que me 1embre, nada… Ah ! Espere… Foi… É. Sim! Seis meses antes da morte de minha mãe, ouvi dizer em casa, não sei por quem, que ele estava no Rio implicado num caso de moeda falsa. É o que me 1embra, disse ela.

– O que? Quando foi isso? indagou pressuroso o comendador.

A mulata, que ainda não se havia bem apercebido do estado do comendador, respondeu ingenuamente:- Mamãe morreu em setembro de 1893, por ocasião da revolta… Ouvi contar essa história em fevereiro. É isso.

O comendador não perdera uma sílaba; e, com a boca meio aberta, parecia querê-las engolir uma e uma; com as faces congestionadas e os olhos esbugalhados, a sua fisionomia estava horrível.

O coronel e a mulata, estáticos, estuporados, entreolhavam-se.

Durante um segundo nada se lhes antolhava fazer. Ficaram como idiotas; em breve, porém, o comendador, num supremo esforço, disse com voz sumida:- Meu Deus! É minha filha!

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Monteiro Lobato (O Luzeiro Agrícola)


Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil-réis.

Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era pé de café, mas entendia de pés métricos, pés-quebrados e fazia pé de alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassílabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, églogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslizar como alma penada pela cidade, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:

— Não é poesia, não, coitado, é fome...

O editor artilhava a cara de carrancas más quando Capistrano lhe surgia escritório adentro com a maçaroca de versos candidatos à edição.

— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios de alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.

— E arruinar o meu patrimônio econômico — retorquia a fera. — Do lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e não se vendem nem a peso.

— Ó vil metal! — murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. — Ó mundo vil! Ó torpe humanidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Manes de Juvenal! Eumênides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterize até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...

— Rapazes — berrava o livreiro à caixeirada —, ponham-me este vate no olho da rua!

Ante o manu militari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida altivez ossiânica, objurgava para dentro da loja hostil:

— A Posteridade me vingará, javardos!

E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente à esquina próxima, em torva atitude, à espera dum conhecido esfaqueável, a quem, com gestos soberbos de Bergerac, extorquisse um níquel.

Cansado, entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto do aedo pelo ar avacalhado do pretendente, e à força de pistolões guindou-se às cumeadas do Morro da Graça.(1) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpétua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. 

Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é um boi gordo, semelhante àquela estátua equestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.

Foi apresentado ao Pinheiro.

— Então, menino, que quer?

— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.

— E para que presta você, menino?

— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor-de-rosa, as auroras boreais, a natureza, enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evoluído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzéis de Herédia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Verba, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...

O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.

— Poeta — disse ele —, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas herói-cômicos. Conheces a Hermeida? É obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. “A mulher de César!” “Os levitas do Alcorão!” Hein? Tu me caíste em graça e, pois, acolho-te sob o meu pálio. Que queres ser?

— Inspetor.

— De quarteirão?

— Isso não.

— Agrícola?

— Ou avícola...

— De que região?

— Não faço questão.

— Sê-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?

— Já cultivei batatas gramaticais.

— E de pecuária, entendes? Distingues um Zebu dum galo Brama? Um pampa dum murzelo?

— Já cavalguei Pégaso em pelo.

— Conheces a suinocultura? Sabes como se cria o canastrão?

— Sei trincá-lo com tutu de feijão.

— És um gênio, não há que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da República. Teu nome?

— Sizenando. Capistrano é sobrenome.

— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal…

II

Sizenando Capistrano, mal se pilhou transformado de famélico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e por fim compareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.

O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e:

— Escreva um relatório — sugeriu.

— Sobre que, Excia.?

— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há. Relate.

— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia., sobre o tema do relatório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...

— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.

Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do doutor Grifado (2) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente.

Como por essa época a lua de mel entrasse em plena minguante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pelo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o célebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obus culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.

— Eureca! — berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se da mesa precipitadamente e correu ao escritório. A mulherzinha, entre colérica e pasmada, perguntou de si para si:

— Estará louco?

Sizenando deitou mãos à tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis, vulgo beldroega, e sua aplicação na culinária. 

O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoimá-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papa-fina, em ótimo papel e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do ministro e do diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquério, do Frontim, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?

Foi ao ministro.

— Excelência! De acordo com as sábias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.

— Que papalvo? Que relatório? — inquiriu o ministro, deslembrado.

— O que V. Excia. me incumbiu de escrever.

— Quando?

— Haverá dois anos.

— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.

Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreendendo aquela estuporação, o ministro sorriu.

— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a beldroega? Que o pusesse à venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste ministério, o mais prático é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha vossa senhoria que é o mais razoável? Retire o que quiser e forno com o resto.

— E depois, que devo fazer? — indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo ministerial.

— Escrever outro relatório — respondeu sem vacilar o ministro.

— Para ser queimado novamente? — atreveu-se a murmurar o poeta inspetor.

— Está claro, homem! Para que diabo despendeu o Governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor ideia do Governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios, função capital deste ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilíbrio capaz de induzir o Governo à supressão da Imprensa e do meu ministério. O forno sanou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Dámocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o caruru, por exemplo.

Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o! Viu com dor de alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.

Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o caruru quando a política apeou da administrança o doutor Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.

O novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números de Chácaras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, criação de canários etc. Fez dessas uras o seu programa. 

No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no ministério quase todos e verdadeiros hortaliças em matéria agrícola.

— A monocultura, senhores, é o grande mal; a policultura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, cerefólio, grão-de-bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra...

(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assistentes, que se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)

— ... cebolinha, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Trácia, uvas de Corinto, violetas de Parma...

— Bravíssimo!

— ... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num soco basáltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esforços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que etc. etc.

Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor dúvida! 

O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual às anteriores. Tinha programa. Visava confundir a rotina monocultora com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.

Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tangê-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses etc., preluzida no discurso do ministro.

Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abundante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inauguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um “rapador” a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito municipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paróquia, o fiscal da iluminação pública, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guarda chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo à parte.

Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobre-excelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.

— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados à química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo o progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!

Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodearam-no os circunstantes, como a um animal raro.

— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.

A assistência abria a boca.

— Vejamos-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!

Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.

— Senhor Primeiro Arador, arar!

O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.

— ‘amo, Bordado! Puxa, Malhado!

Os dois caracus moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.

— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica — o que equivale a um adubamento copioso.

Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemitério, o qual não conteve um sincero “Muito bem!”.

Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de música, para disfarçar a entaladela, rompeu o Vem cá mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.

A segunda constituiu no destorroamento e no gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Primeiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!

Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho. A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, batatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.

— Os senhores verão — concluiu Sizenando — que maravilhosa messe vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso! 

— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a imprensa — contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.

— Será — retrucou Sizenando —; mas se uma, a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!

— Bravíssimo! — rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. — Isto é que é!

— Sim, senhor, muito bem! — grunhiram outros.

Rubro de gozo pelo sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.

Desbarretaram-se todos. Ereto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, de olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à República com três “erres”.

Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.

Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à saúva, à quenquém, à geada, a isto e mais aquilo.

Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: “Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espírito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional”.

Os jornais transcreveram com garbos estes e outros pedacinhos de ouro. E o conde de Afonso Celso se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
__________________________
Notas:
[1] Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.

[2] Um ministro da Agricultura da época que não era doutor mas não protestava contra o tratamento.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

domingo, 22 de setembro de 2019

Francisca Júlia (O Sabiá Doente)


Era pequeno ainda o sabiá, quase implume, quando caiu do ninho onde nasceu. Curioso, invejando o voo de outros passarinhos menores que ele, tentou também voar: — abriu as asas mal empenadas, fez um esforço e caiu. Ao cair, foi resvalando pelos galhos, pelas folhas da árvore, de modo que a queda foi pequena e não o magoou.

Quando caiu na grama, começou a ensaiar o voo para subir de novo até ao ninho, arrependido de o ter deixado, piando, piando de medo.

Um homem, que passou, levou-o consigo.

O passarinho cresceu preso na gaiola.

À tarde, quando os outros pássaros cortavam o ar em busca do repouso, ele sonhava com a tepidez do ninho escondido num galho, perdido no meio do bosque. Léguas em redor tudo era verde, coberto de folhagens que o vento agitava.

Além, escorregava entre fileiras de murtas, seixos. O ar livre do campo, a frescura das manhãs, o marulho das folhas, tudo acudia ao seu espírito, o fazia sonhar por muito tempo, arrancando-lhe da sonora garganta as mais angustiosas queixas.

E com a cabecinha no ar, os olhos cerrados, os nervos agitados de comoção, traduzindo a tristeza que o invadia, cantava, cantava horas inteiras, às vezes triste, alegre às vezes, executando escalas e gorjeios ou prolongando numa nota toda a amargura de sua alma.

Os que lhe ouviam o canto, paravam a escutá-lo, encantados.

Assim viveu o sabiá por muitos anos, sempre preso, sem conhecer a liberdade de que gozam os outros pássaros que ele via através da grade, a uma vertiginosa altura, espalhados pelo azul.

Voar! Quem lhe dera também um dia em que a porta da prisão amanhecesse aberta, fugir, e, de asas entendidas, voar, voar, ir muito alto, muito alto, e gozar, até à embriaguez, da vertigem de luz que deve haver lá em cima!.

E o pobre pássaro sentia no corpo estremeções de ânsia, agitações de desejo, e abria as asas; mas a ilusão desfazia-se e ele fechava-as de novo, recolhendo-se à sua tristeza de encarcerado.

Então pensava que, quando ficasse velho e sua voz se tornasse rouca, haviam de apiedar-se dele e dar-lhe a tão desejada liberdade. Vivia dessa esperança.

Envelheceu. Sua vista foi-se escurecendo aos poucos. O sabiá estava cego.

Uma manhã, passeando pelo chão da gaiola, aproximou-se da porta, como de costume, a sentir se estava aberta.

Estava aberta a porta.

Pôs a cabecinha de fora, aspirou o ar, agitou o corpo, sacudiu as asas entorpecidas pela velhice e quis voar. Mas, como já estava cego, teve receio de bater-se contra a parede, no ímpeto do voo, em vez de tomar a direção do campo; então recolheu-se de novo e chorou abundantemente .

Daí em diante nunca mais da sua sonora garganta saíram os gorjeios de outrora.

Fonte:
Francisca Júlia César da Silva Münster. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Nilto Maciel (Legenda)


De pé, José Cristiano, silaque, calça frouxa. Cigarro pela metade no canto esquerdo da boca, sorriso morrendo nos lábios e nos olhos negros. Cabelo meio assanhado, diferentemente dos demais personagens. Bigode a Estaline e as primeiras rugas identificando muito cansaço para tão pouca vida. Contava então 28 anos de idade, por mais que se queira ou se presuma.

Sentada, pernas estiradas e juntas, Maria Virgínia. Vestido decotado e cheio de voltas, espalhado pelo capim, como uma enorme dália. Não completara ainda 23 anos de idade. Sorriso de meio palmo no rosto belo, como se fosse grande demais a felicidade. No entanto, no dia seguinte foi recolhida a um manicômio, em estado de completa loucura, após a morte do marido.

Aninhado nas coxas grossas de Maria, o pequeno César também sorri. Morreria aos 22 anos de idade, ao participar de uma rixa entre marginais num bar. Sua mãe, ao tomar conhecimento do crime, tornou-se santa. Falam da produção de uma bela imagem sua, a ser adorada pelos cristãos da cidade: os Moretis.

Na fotografia, o menino mostra um ar de estupenda admiração. Olha fixamente para a câmera. Veste calça curta azul-turquesa e blusinha justa de gola larga. Os cabelos longos espalhados pela testa e sobre as orelhas, que não se veem. Calça botinhas pretas e novas, pelo estado.

Depois da morte do pai e da loucura da mãe, César passou aos cuidados de seus avós maternos, por decisão judicial. Apesar da luta dos avós paternos, que alegaram ter sido Maria a causadora direta da morte de Cristiano. Surgiu então a célebre guerra entre Nascimentos e Moretis, de que resultou até agora a morte de mais de vinte pessoas, inclusive mulheres e crianças. A última vítima, provavelmente assassinada por um Nascimento, foi Maria. Aconteceu em agosto do corrente ano, nas dependências do manicômio onde vivia.

Desde criança César viveu de rusgas nas ruas. Vez por outra, sua mãe conseguia burlar a vigilância dos carcereiros e saía a procurá-lo pelas ruas e ruelas da cidade. Um dia se encontraram. Ela já velha, feia, desdentada, suja, magra. Ele violento, robusto, entre a adolescência e a velhice. Abraçaram-se e choraram.

– És tu, meu adorado César Augusto?

– Sim, mãe amada.

– E que fazes no mundo?

– Atiro pedras em monumentos, igrejas, cemitérios...

– Por que não atiras nos homens?

– É verdade! Por que não atirar pedras nos homens?

– São os melhores alvos.

– E tu onde estás?

– Estou presa por loucos.

– E por que não foges para mim?

– Não temos para onde ir. Nosso lugar era meu marido e teu pai.

– E para onde ele foi?

– Para o Paraíso.

– É verdade?

– Sim, foi para o Paraíso, onde habitam as serpentes.

– Irei procurá-lo.

E se despediram, alegres, como nos velhos tempos de mocidade, infância e felicidade.

Ao fundo, a antiga Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com suas largas portas abertas. Alguns fiéis voltam para suas casas. Duas velhas de mãos dadas (talvez irmãs), um velho com uma bengala cabo de cabeça de cascavel e outros rostos ainda no interior do templo. No patamar, um carrinho de fazer e vender pipocas e o provável pipoqueiro a coçar o queixo.

Entre as torres, um céu azul como pano de fundo. Nuvens brancas dão ideia de um crocodilo em perseguição a um carneirinho, um elefante e outras diversas figuras decorativas.

Após desembolsar a bagatela de trinta mil réis, José satisfez as insistências de Maria e apareceram na coluna "Society Braziliense", assinada por Miharbi, do jornal “A República”.

Publicada na edição do dia seguinte, 23 de agosto de 1954, traz a seguinte legenda: “Na foto, o Sr. José Cristiano do Nascimento, sua digníssima consorte, D. Maria Virgínia Moreti do Nascimento, que comemoraram ontem mais um aniversário de matrimônio, o terceiro do feliz enlace, e o lindíssimo garotinho César Augusto, filho do casal. O jovem par é muito benquisto em nosso grand monde, razão pela qual foi efusivamente cumprimentado durante todo o dia que passou, em sua mansion, localizada no elegante e fidalgo bairro das Flores”.

No dia 24, José, sem nada pagar, foi notícia em diversos jornais. Desta feita, na primeira página e em letras quase descomunais: SUICIDA-SE CRISTIANO DO NASCIMENTO.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.