sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A. A. de Assis (Trovas do Mestre Trovador) 2


Benditos, no mundo inteiro,
os que ao plantio procedem.
– São filhos do Jardineiro
que o verde implantou no Éden!

Creio na força do amor,
creio na força do exemplo.
Um credo com tal teor
nem necessita de templo.

Das provas feitas na escola,
uma vale nota cem:
– é a de quem, fugindo à “cola”,
mostra a ética que tem.

Dentre os bens que o filho espera
receber por transmissão,
tesouro nenhum supera
o exemplo que os pais lhe dão.

Destino, fado ou o que for...
isso tudo é só brinquedo.
– Na história real do amor,
cria o amor seu próprio enredo.

Deve o mundo ao gênio humano
obras de extremo valor.
O drama é ver, ano a ano,
minguar o espaço da flor...

Entre o pássaro e o poeta
há perfeita identidade:
seu canto só se completa
se há completa liberdade.

Esta é uma lei que não muda,
portanto preste atenção:
– O Pai jamais nega ajuda
àquele que ajuda o irmão!

Facilmente me dominas,
bastando apenas piscar...
– É o feitiço das meninas
que brincam no teu olhar!

Fé é uma forma de ver,
via amor, o além-da-vista;
é a graça de perceber
como é bom que Deus exista.

Hão de nos ser muito gratas
as futuras gerações,
se, em vez de queimar as matas
queimarmos as ambições!...

Mais que os lucros do trabalho,
mais que as honras e os troféus,
o amor é o único atalho
que de fato leva aos céus.

Nesta Terra outrora linda,
que aos pouquinhos se desfaz,
o lar é a ilha onde ainda,
às vezes, se encontra a paz.

Neste planeta avarento,
onde o “ter” é o ditador,
que triste é ver o cimento
roubar o espaço da flor!

No instante em que é concebida,
entra na história a criança.
Negar-lhe o direito à vida
é um crime contra a esperança!

O bem-querer une a gente
mais que a consanguinidade.
– De que vale ser parente,
sem os elos da amizade?

Passa em voo um passarinho,
outros tantos passarão...
Que os proteja São Chiquinho
contra nós e o gavião!

Poeta nenhum se priva
de certos dengos vitais:
– Sem pão talvez sobreviva,
mas sem ternura... jamais!

Pouco a pouco, passo a passo,
vamos nós, de déu em déu...
Já conquistamos o espaço;
só falta ganhar o céu!

Qual o vento, quando muda,
leva a nuvem que o céu cobre,
muita vez pequena ajuda
muda o destino de um pobre.

Quanta falta de juízo...
Perdão, meu bom Deus, Perdão!
– Ganhamos um paraíso;
fizemos dele um lixão...

Quanta vez, meu companheiro,
para não passar por bobo,
precisa o ingênuo cordeiro
usar disfarce de lobo...

Que dó, meu doce Arquiteto,
que tamanha insensatez...
Tão lindo era o teu projeto,
mas veja o que o homem fez!

Se a justiça, um dia, enfim,
a todos der vez e voz,
Deus dirá que agora, sim,
mora no meio de nós!

Vereis nos próximos anos
a decisiva corrida:
– Cuidam do mundo os humanos,
ou cessa no mundo a vida!

Fonte:
Vida, verso e prosa

Fernando Sabino (Condôminos)


A porta estava aberta. Foi só eu surgir e arriscar  uma  espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receber-me:

- Vamos entrar, vamos entrar. Estávamos à espera do senhor para começarmos a reunião: o senhor não é o 301?

Não, eu não era o 301. Meu amigo, que morava no 301, tivera  de fazer repentinamente uma viagem, pedira-me que o representasse.

O homem estendeu-me a mão, num gesto decidido: 

-  Pois então muito prazer.

Disse que se chamava Milanês e recebeu com um sorriso à milanesa a minha escusa pelo atraso. Desconfiei  desde  logo que fosse meio surdo - só mais tarde vim a descobrir que seu ar de quem já entendeu tudo antes que a gente fale não era surdez, era burrice mesmo.

Conduziu-me ao interior do apartamento onde várias pessoas, umas onze ou doze, já estavam reunidas ao redor da  mesa. À minha entrada, todos  levantaram a cabeça,  como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido e enfeitado, nesta exuberância de mau gosto a que se convencionou chamar de decoração. O Milanês fez as apresentações:

- Aqui é o Dr. Matoso, do 302. Quando precisar de um médico. . .  Ali o Capitão Barata, do 304 - representante das gloriosas Forças Armadas. Dona Georgina e Dona Mirtes, irmãs, não se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é o Dr. Lupiscínio, do 201, nosso futuro síndico...
       
Suas palavras eram recebidas com risadinhas chochas, a indicar que vinha repetindo as mesmas graças a cada um que chegava. Cumprimentei o médico, um sujeito com  cara  mesmo de Matoso, o capitão com seu bigodinho ainda de tenente, as duas velhas de preto, não se sabia qual mais feia, o futuro síndico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as ideias, sentando-se empertigado à cabeceira. Busquei o único lugar vago do outro lado e acomodei-me. A mulher do Milanês passou-me um copo de refresco de maracujá - só então percebi que todos bebericavam refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte do ritual, convinha imitá-los. Um dos presentes, solene, papel na mão, aguardava que se restabelecesse a ordem para prosseguir.

- Desculpem a interrupção - gaguejei. - Podem continuar.

– Não havíamos começado ainda - escusou-se o Milanês, todo simpaticão. - Estávamos apenas trocando ideias.

 - Se o senhor  quiser, recomeçamos tudo - emendou a Milanesa, mais prática. - Ali o nosso Jorge, do 203, dizia que precisávamos...

- Perdão, quem dizia era o Dr. Lupiscínio - e o nosso Jorge do 203,  um rapaz roliço como uma salsicha de óculos, passou para o extrema. A  esta altura interveio o capitão, chutando em gol:

 - Pode prosseguir a leitura.

Alguém a meu lado explicou:

- O Dr. Lupiscínio fez um esboço de regulamento. O senhor sabe, um regulamento sempre é necessário.

O Dr. Lupiscínio pigarreou e leu em voz alta:

- Quinto: é vedado aos moradores... Espere – voltou-se para mim: - O senhor quer que leia os quatro primeiros?

 - Não é preciso - interveio o Milanês: - Os quatro primeiros servem apenas para introduzir o quinto. Vamos lá.

- Quinto: é vedado aos moradores guardar nos apartamentos explosivos de qualquer espécie...

O capitão se inclinou, interessado:

- É isso que eu dizia. Este artigo não está certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite...

- O senhor vai ter dinamites em casa, capitão?  – espantou-se  uma  das velhas, a Dona Mirtes.

- Não, não vou ter. Mas posso um dia cismar de trazer...

- Um perigo, capitão!

- Meu Deus, as crianças - e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mão à peitaria.

- Pois é o que eu  digo: um perigo - tornou o capitão.-  Devíamos proibir.

- Pois então?

Ninguém entendia o que o capitão  queria  dizer.  Ele  voltou  à carga:

- E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Não, é preciso deixar bem claro no regulamento: NÃO é vedado ter em casa explosivos de qualquer espécie.

- NÃO é vedado? Quer dizer que pode ter? – desafiou o autor do regulamento, já meio irritado.

- Quer dizer que não pode ter explosivos - respondeu o capitão, quase a explodir.

O capitão não sabia o que queria dizer a palavra vedado - e dali não passariam nunca se o Jorge, do 203, não tivesse levantado a lebre:

- Vedado é proibido, capitão. Vedado explosivo: proibido explosivo.

- Vedado proibido?

Confundia-se, mas não dava o braço a torcer:

- Eu sei, mas acho que devíamos deixar mais claro que é  proibido. Isto de explosivo é perigoso, vedado só é pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NÃO. Para dar mais ênfase, compreendem? NÃO é vedado...

- Continue - ordenou o Milanês.

O capitão vedado pela própria ignorância, calou o bico. O Dr. Lupiscínio continuou a leitura e em pouco já ninguém estava prestando atenção: todos concordavam com a cabeça ao fim de cada artigo, quando o homem corria os olhos pela sala, para recolher aprovação. O Milanês, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da eleição do síndico - já se fazia tarde e dali haveria de sair um síndico naquela noite. A  Milanesa se aproveitou para ir lá dentro buscar mais refresco.

- Sugiro que aclamemos o nome do Dr. Lupiscínio para síndico – disse uma das velhas, desta vez a Dona Georgina.

Todos aprovaram, menos o Milanês que, pelo jeito, queria ser síndico também.

- Estamos numa democracia - falou, tentando o engraçadinho: - E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro Dr. Lupiscínio, acho que devemos lançar mão da mais importante das instituições democráticas: o voto secreto.

- Não precisa ser secreto - sorriu o Dr. Lupiscínio, certo da vitória: - Somos poucos, todos conhecidos, quase uma família.

- Que acha o 301? – perguntou-me o Milanês, tentando conquistar o meu voto. Eu, porém, incorruptível, votaria no Dr. Lupiscínio - a menos que a dona da casa, até o momento da eleição, se lembrasse de servir-me alguma coisa além de refresco de maracujá.

Disse-lhe que preferia não intervir, já que apenas representava um dos proprietários.

 - O senhor não é condômino? – estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. –  Então quem é que está em cima de mim? Eu sou 202.

Expliquei-lhe que não era condômino - esta palavra era uma das razões pelas quais até  então não tivera coragem de comprar um apartamento.

- Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o Dr. Matoso, que, se ouvi bem, é 302.

Dr. Matoso sorriu amável, concordando:

- Faço muito barulho, minha senhora?

- Absolutamente - protestou ela, levando de novo a mão ao peito. - Mal ouço o senhor à noite descalçando os sapatos e botando os chinelos.

- A senhora é 202? – perguntou uma das velhas, novamente a Dona Mirtes. – Pois então seu ralo deve estar entupido: está pingando água no banheiro da gente.

A outra velha confirmou silenciosamente com a cabeça a  acusação terrível. Enquanto isso o Milanês providenciava a votação: cortou  lenta e caprichosamente uma folha de papel em doze pedaços, distribuiu-os a cada um de nós:

- E a urna? Onde está a urna?

A urna seria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de  voto. Procedeu-se à apuração e o vencedor foi mesmo o Dr. Lupiscínio, do 201, por  esmagadora maioria: o Milanês ganhou apenas um voto, o seu próprio, naturalmente.

E a Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto, mas não foi dela, desconfio que foi da  senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares à socapa. Felicitei o novo síndico, escusei-me e caí fora: ameaçavam retornar ao regulamento, e o capitão dizia:

 - Por "áreas comuns" entenda-se: escada, corredores, vestíbulo, entrada de serviço, garagem. E elevador, que é próprio, mas também não deixa de ser comum...

À saída notei, de passagem, que o edifício não tinha elevador.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. Rio  de  Janeiro: Record, 1976.

Contos e Lendas do Mundo (França: A Princesa do Bosque Encantado)

Era uma vez um rei, pai de três jovens príncipes, todos em idade de casar. Um dia, os nobres, reunidos na corte, perguntaram-lhe se já havia pensado nisso.

- Digam-me quem é a princesa mais bela e mais rica que conhecem e enviarei um deles para lhe pedir a mão - foi a resposta pronta.

Eles declararam que era a princesa do bosque encantado.

- Também não me ocorreria outra melhor, mas vai ser difícil. Muitos outros candidatos tentaram chegar até ela. Internaram-se no bosque, mas nenhum regressou.

- O príncipe tem de passar pela Pousada dos Quatro Gorriões, onde lhe explicarão como deve ultrapassar o primeiro obstáculo.

Depois de se apetrechar devidamente, o príncipe mais velho pôs-se imediatamente a caminho. Quando chegou à Pousada dos Quatro Gorriões, disseram-lhe que, para penetrar no bosque, tinha de matar a serpente de guarda à entrada.

Ao vê-lo aproximar, esta ergueu-se e ele tentou abatê-la, mas a espada limitou-se a roçá-la e ela indicou:

- Continua!

O príncipe embrenhou-se num bosque magnífico, cheio de árvores esplêndidas, povoado por aves de todas as cores e o solo coberto de flores odoríferas. Não tardou a sentir-se atraído por uma bela música de violinos e sanfonas, acompanhados por um coro. Jovens belos que dançavam convidaram-no a reunir-se a eles e ele não hesitou em aceitar.

Sucederam-se os dias sem que o rei tivesse notícias do filho mais velho. Por fim, o do meio anunciou-lhe:

- Também quero pôr-me a caminho.

Tampouco conseguiu matar a serpente, limitando-se a produzir-lhe pouco mais do que um arranhão com a espada, após o que ela indicou:

- Continua!

Quando chegou ao local onde se encontravam os dançarmos, o príncipe deteve-se, surpreendido com aquela música e coros de pessoas que o convidavam a reunir-se a eles. Reconheceu então o irmão e, tal como este, não seguiu em frente.

Como não chegavam notícias dos dois príncipes à corte do rei, o mais jovem comunicou ao pai:

- Agora, quero partir eu.

O monarca não desejava consentir, porém, o filho pegou na espada do avô, mandou-a abençoar e pôs-se a caminho.

Desta vez, a serpente recebeu um golpe mortal. Todavia, no mesmo instante, o príncipe viu que, no lugar do réptil, havia agora uma pequena e admirável raposa à qual faltava uma pata, como se lhe tivessem cortado.

- Vem comigo, príncipe - convidou-o. - Segue-me, mas procura não te deteres com os dançarinos.

Quando ouviu a música, ele voltou-se para o outro lado e prosseguiu o seu caminho, apesar de ter reconhecido as vozes dos seus irmãos, que o chamavam pelo nome. Quando os acordes deixaram de se ouvir, viu que a pequena e admirável raposa já só se apoiava às duas patas que lhe restavam. Apesar disso, ela indicou:

- Vem, vem, meu pequeno príncipe! Verás numerosos pássaros, cada um numa bela gaiola de ouro. Alguns cantam maravilhosamente bem e possuem plumagem deslumbrante. Não te detenhas junto deles. No entanto, quando vires uma gaiola com um pássaro de olhos tristes e penas eriçadas, apodera-te dela.

E, com efeito, o príncipe apoderou-se da gaiola do pássaro de penas eriçadas. No mesmo momento, deu-se conta de que a pequena e preciosa raposa caminhava sobre três patas, pois recuperara uma das perdidas.

- Agora, continua com a tua gaiola e, quando chegares ao palácio, apodera-te de uma mula que um gigante deixou aí a pastar - recomendou ela.

O gigante lamentou-se e rogou ao príncipe que não se apoderasse da mula, mas o jovem príncipe não cedeu aos seus pedidos insistentes, nem às ameaças. Desta vez, a pequena raposa, que recuperara a quarta pata, indicou-lhe:

- Ata a mula à portas do palácio, entra e pergunta ao rei se te concede a mão da filha.

O monarca respondeu que lhe concedia com o maior prazer. No mesmo momento, o pássaro de penas eriçadas transformou-se na princesa mais linda do mundo, a qual aceitou em se tornar esposa do príncipe e pediu-lhe que a levasse imediatamente à corte do pai. A pequena raposa, que aguardava à porta, recomendou ao príncipe:

- Montem ambos na mula e, se aproximar algum perigo, chamem-me com as seguintes palavras: "Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!"

Quando o príncipe passou junto dos dançarinos, os irmãos voltaram a reconhecê-lo. A noite, ele e a princesa desmontaram da mula para descansar. De repente, surgiram dois homens jovens, um dos quais se apoderou da princesa e o outro da mula. E enquanto um levava a princesa sequestrada, o outro - o seu irmão do meio - atirou o príncipe a um poço que havia muito perto dali.

O infortunado príncipe estava prestes a afogar-se, quando se lembrou da raposa e gritou:
- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

No instante imediato, ela apareceu no topo do poço e indicou:

- Agarra-te à minha cauda!

Quando ele se encontrava quase no cume, da cauda soltou-se e voltou a cair na água.

- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

Ela voltou a aparecer e desta vez conseguiu retirá-lo do poço. Em seguida, informou:

- Regressa à cidade onde vive o rei, teu pai. Pelo caminho, encontrarás uma ferradura que a mula perdeu. Guarda-a. Quando chegares à cidade, veste-te de ferreiro e, depois de todos os outros terem tentado ferrar a mula, oferece-te para o fazer. A seguir, dá-te a conhecer ao teu pai e explica-lhe que foste tu que conseguiste chegar até à princesa do bosque encantado.

Os ferreiros foram passando um após outro, mas nenhum conseguiu aproximar-se da mula, que não parava de desferir coices, na presença do rei, com os seus dois filhos. Finalmente, apresentou-se um jovem ferreiro, que se acercou dela, levantou-lhe a pata e puxou de uma ferradura, que se lhe ajustou perfeitamente.

O príncipe deu-se então a conhecer e, cheia de alegria, a princesa abraçou-o. O monarca determinou que o casamento se celebrasse imediatamente.

Jamais se tinha assistido a uma boda tão faustosa. E hoje, o príncipe e a sua princesa são esposos jovens e felizes e trouxeram ao mundo vários principezinhos.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999
.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 181


Rubem Braga (Recenseamento)


São Paulo vai se recensear. O governo quer saber quantas pessoas governa. A indagação atingirá a fauna e a flora domesticadas.  Bois, mulheres e  algodoeiros  serão  reduzidos  a  números  e  invertidos  em estatísticas.
        
O homem do censo entrará pelos bangalôs, pelas pensões, pelas casas de barro e de cimento armado, pelo sobradinho e pelo apartamento, pelo cortiço e pelo hotel, perguntando:

- Quantos são aqui?

Pergunta triste, de resto. Um homem dirá:

- Aqui havia mulheres e criancinhas. Agora,  felizmente, só há pulgas e ratos.
        
E outro:

- Amigo, tenho aqui esta mulher, este papagaio, esta sogra e algumas baratas. Tome nota de seus nomes, se quiser. Querendo levar todos, é favor.

E outro:

- Eu? Tinha um amigo e um cachorro. O amigo se foi, levando minhas gravatas e deixando a conta da lavadeira. O cachorro está aí, chama-se Lord, tem três anos e meio e morde como um funcionário público.

E outro:

- Oh! sede bem-vindo. Aqui somos eu e ela, só nós dois. Mas  nós dois somos apenas um. Breve, seremos três. Oh!

E outro:

- Dois, cidadão, somos dois. Naturalmente o sr. não  a  vê.  Mas ela está aqui, está, está! A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de meu peito!

E outro:

- Aqui moro eu. Quer saber o meu nome? Procure uma senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina, à direita. O meu nome está escrito na palma de sua mão.

E outro:

- Hoje não é possível, não há dinheiro  nenhum. Volte amanhã. Hein? Ah, o sr. é do recenseamento? Uff! Quantos somos? Somos vinte, somos mil. Tenho oito filhos e cinco filhas. Total: quinze pestes. Mas todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. Meu nome? Ahn... João Lourenço, seu criado. Jesus Cristo João Lourenço. A minha  idade? Oh! pergunte à minha filha, pergunte. É aquela jovem sirigaita que está dando murros naquele piano. Ontem quis ir não sei onde com um patife que ela chama de "meu pequeno". Não deixei, está claro. Ela disse que eu sou da idade da pedra lascada. Escreva isso, cavalheiro, escreva. Nome: João Lourenço; profissão: idiota; idade: da pedra lascada.  Está  satisfeito? Não, não faça caretas, cavalheiro. Creia que eu o aprecio muito. O sr. pelo menos não é parente da mulher. Isso é uma grande qualidade, cavalheiro! É a virtude que eu mais admiro! O sr. é divino, cavalheiro, o sr. é meu amigo íntimo desde já, para a  vida  e para a morte!

Fonte:
Rubem Braga. 50  Crônicas  Escolhidas.  Rio  de  Janeiro:  José Olympio, 1951.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 180


Altino Afonso Costa (Fazenda Santa Rosa)


Terra dos meus sonhos que me viu nascer, com minha própria mãe fazendo o parto; sentiste meus pés descalços nas incansáveis caminhadas de moleque, caçador de passarinhos, com estilingue no pescoço e bornal repleto de bolas de argila secadas ao sol.

As andanças à toa, cavalgando a mula Roseira, sem arreios, com o espírito  povoado de temores de almas de outro mundo, quando eu atravessava na frente do cemitério...

Como era o meu mundo de fantasia, quando à noite ia dormir na casa grande de madeira, coberta de folhas de zinco, cheias de buracos e que nos dias de chuva enchia as salas e os quartos de goteiras compassadas.

E o barulho monótono da chuva no telhado e o terror de ouvir os trovões que sacudiam o chão e os raios que riscavam o céu, em tons ameaçadores.

O colchão de palha de milho, desfiada, que fazia um barulho inesquecível quando movia o nosso corpo para acomodá-lo no sono que custava a chegar.

E o cheiro de urina de moleque mijão...

E as pulgas que incomodavam à noite, mesmo com os galhos de erva Santa Maria, que minha mãe jogava sob a cama rústica.

A lamparina a querosene, o fogão caipira de lenha; a linguiça portuguesa defumada e exalando um cheiro de carne de porco, temperada com vinho tinto. E a carne de porco cozida, mergulhada em lata de gordura.

E a broa sobre a mesa, e o aroma de vinho tinto que vinha da adega... e o caldo verde transbordando da tigela...

Minha velha Fazenda Santa Rosa, quanta saudade da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos.

E os assados na noite de Natal e as fogueiras de S. João, S. Pedro e Santo Antônio, com o estouro dos rojões, busca-pés, e o amendoim, batata doce e mandioca assados na brasa tardia da fogueira,,,

Quanta lembrança e saudades me trazes, terra da minha infância feliz...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas. Paranavaí/PR, 2001.
 Livro enviado por Dinair Leite.

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 3




DECISÃO

Estranhos encontros,
estranhas partidas.
Hoje vendo meus móveis
na casa da vida,
Ainda vou chorar um pouco.
Mas não deixarei
que sujem mais o meu rosto
porque já não há
mais tanto sal a gastar
de dentro do meu corpo.
**********************************

DECLARAÇÃO

Amo-te, ó viandante,
que parte numa caminhada
sem sentido neste deserto
em busca de um deus descolorido.

Amo-te, ó tarde dominadora,
que implora meus passos,
porém sou teu grande fiasco:
covarde demolidora.

Amo-te, ó bocejo dos oprimidos:
carvão senhorial
nutrindo as labaredas do mal.
**********************************

METAMORFOSE

A noite de outrora silencia.
Pelas mãos do destino se cala
até que surja um novo dia
no seu coração, para um regresso à fala.

Podem ocorrer seres desnudos,
vagos e tristes seres de segredos,
carregando o peso do mundo
em seus fardos de medo.

A noite não importará esta brusca espera
até que passem as trevas sobre a matéria
quando a Divindade retém o julgamento.

A metamorfose da própria vida
transforma a dor de uma fenda
no mais sincero dos depoimentos.
**********************************

MURMÚRIO

Antes que eu volte um dia
para o lar de mim mesma
onde uma réstia de luz
não esmaece
a verdade primeira de todas as coisas
por serem laços da alma,
antes que te vás
ou somente te desprendas,
ouve.
Que estranhamente te percebo
pelos caminhos. Como se fossem planos.
Mas não são.
Como se anjos andassem curvos.
Mas não andam.
Como se a terra fosse ausente.
Mas não é.
Uma gota no oceano
em selvagem dose cósmica.
Alquimia de pássaros
despojados de si mesmos.
Em ventos transmudando, exiláveis.
**********************************

ORAÇÃO

Antes que eu envelheça
tire da minha boca
este sabor de sono.
Semelhante a um oráculo mudo
tenho deuses dormindo
em nichos vivos.
Ainda não é tempo
do linho branco.
Para que eu desperte novamente
necessito água corrente
sobre meus pântanos.
**********************************

RENOVAÇÃO

Eu quero a vida
não consumida
pelos ratos do amor
que levam medalhas polidas
e a si mesmos num andor.

Eu quero uma bela chama
que eu mesma possa acender
embaixo da minha cama
para um claro anoitecer.

Eu quero tudo
e principalmente
experimentar uma vida nova
sem ter que no espelho
me pôr à prova.

Fonte:
Maria Lúcia Siqueira (Lúcia Constantino). Asas ao anoitecer. Curitiba/PR: M.L. Siqueira, 2004.

Arthur de Azevedo (O Cuco)




Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.

A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.
* * *

O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.

As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.
* * *

Uma noite foi o nosso herói ao Cassino Nacional, e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses (cantoras), uma gommeuse (janota) e outra excentrique.

Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.

Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!

Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.

O seu quarto - seu e de sua esposa - era contíguo à sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.

Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.

Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e disse consigo:

- Sebo! lá acordei minha mulher!

Ela perguntou:

- És tu, Roberto?

- Sim, sou eu, sinhazinha.

E o marido acrescentou para si:

- Felizmente não sabe que horas são.

Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."

- Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma ideia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.

O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.

- Onze horas - disse ele depois do décimo primeiro cuco -. Julguei que fosse mais cedo!

E começou a despir-se.

A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: Uma Cabeça)

Era uma vez um homem e uma mulher, que teve um filho depois de sete anos de casada; porém o filho era apenas uma cabeça. Passaram mais sete anos, e a cabeça completou catorze. Quis então ter por esposa a princesa, pelo que solicitou ao pai que lhe pedisse a mão em seu nome.

— Diz a verdade — recomendou-lhe. — Explica como sou, não mintas.

O pai procurou o rei e disse-lhe:

— Majestade, o meu filho deseja a princesa para esposa.

— Que espécie de pessoa é? — quis saber o monarca.

— Não passa de uma cabeça.

— Se, até amanhã, ele me trouxer cinco raposas vivas, talvez lhe conceda a mão de minha filha.

O pai chegou a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer, rapaz.

— Não? Porquê?

— Porque o rei quer que, até amanhã, lhe leves cinco raposas vivas. Então, talvez te conceda a mão da filha.

— Estou cheio de calor! Leva-me à porta! — rogou o filho, que ficou fora de casa até à manhã seguinte.

Nessa altura, quando os outros se levantaram, havia cinco raposas vivas diante da entrada, e o jovem indicou ao pai:

— Agora, leva-as ao rei e pede a mão da princesa em troca.

O pai assim fez e disse ao monarca:

— Agora, suponho que concederá a mão de sua filha?

— Só se, até amanhã, o teu filho me enviar cinco ursos vivos.

O pai chegou a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer.

— Não? Porquê?

— Porque o rei quer que, até amanhã, lhe leves cinco ursos vivos.

E o jovem voltou a dizer:

— Estou cheio de calor! Leva-me à porta!

O pai apressou-se a comprazê-lo.

Na manhã seguinte, quando os outros se levantaram, havia cinco ursos vivos diante da entrada, e o jovem indicou ao pai:

— Agora, leva-os ao rei e pede a mão da princesa em troca. O pai assim fez e reiterou o pedido da mão da princesa, ao que monarca respondeu:

— Bem, já que ele é um homem capaz de conseguir o que se propõe, diz-lhe que construa um palácio como o meu, e poderá então vir buscar a moça.

O velho regressou de novo a casa e anunciou:

— Não há nada a fazer.

— Não? Porquê?

— Tens de construir, ate amanhã, um palácio como o dele, que contenha tudo o que é próprio de um imperador.

— Leva-me lá fora, querido pai — pediu o jovem.

Enquanto o velho obedecia, o filho acrescentou:

— Se ouvirem muito barulho durante a noite, não se levantem ver de que se trata. Continuem deitados.

Os operários não tardaram a iniciar os trabalhos, e o pai queixou-se:

— Que barulho tão esquisito está a fazer o rapaz, lá fora! Vou ver o que se passa.

Mas a mãe advertiu-o:

— Não ouviste o que ele nos recomendou, esta tarde? Disse que não fôssemos ver.

No entanto, passados alguns momentos, admitiu:

— De fato convinha ver de que se trata.

Agora, todavia, foi o pai que lhe lembrou:

— E o que o rapaz nos recomendou?

Foram, assim, dissuadindo-se mutuamente de ir espreitar. Quando, de manhã, se levantaram, o velho desceu a escada e, ao assomar à porta, ia desmaiando de pasmo. Viu que se encontrava num palácio que resplandecia de ouro e prata. Então, o filho disse-lhe:

— Prepara um tiro de três cavalos, pai.

Aparelharam três cavalos, montaram o jovem na respectiva carruagem e dirigiram-se ao palácio real, a fim de recolher a noiva. O rei manteve a palavra dada e concedeu a mão da filha ao jovem.

Os esponsais realizaram-se pouco depois e comeu-se e bebeu-se com abundância. No entanto, a noiva tinha uma madrasta. Organizou-se a seguir um suntuoso baile a que a princesa compareceu. E a cabeça do noivo também. O jovem disse então à noiva:

— Ficaste a saber como sou, mas não o divulgues. Não entrarei no salão, pois ficarei no outro, contíguo, à janela. Não penses sequer em revelar a minha natureza, repito. Se o fizeres, partirei a janela e voarei como um pombo, rumo ao Sul.

A princesa compareceu ao baile e, ao vê-la só, a madrasta perguntou-lhe:

— Então, que espécie de homem é o teu esposo?

— Não passa de uma cabeça.

Levou-a consigo para um canto do salão, embriagou-a e continuou a fazer-lhe perguntas. E, já totalmente alheia ao que dizia, a infortunada jovem referiu:

As pernas são de prata até aos joelhos
e os braços de ouro até aos cotovelos.
Na risca do cabelo, há uma estrela, um sol na fronte
e uma lua na nuca.
Quando fala, brotam-lhe flores douradas da boca e do nariz.

No momento em que o jovem ouviu estas palavras, quebrou a janela e partiu a voar em direção ao Sul. Quando a embriaguez se dissipou, a princesa começou a procurá-lo, mas ele tinha desaparecido. Resolveu então tentar localizá-lo e viajou sete anos num único.

Chegou finalmente a uma pequena casa, entrou e deu os bons-dias.

Os que se encontravam dentro retribuíram a saudação, e ela perguntou:

— Não passou por aqui um viajante?

— Sim, mas já há sete anos. Descansou no sótão e confiou-nos uma encomenda, para que a entregássemos a uma mulher.

Foram buscá-la e, em seguida, ela continuou a sua viagem durante catorze anos, no final dos quais chegou de novo a uma pequena casa, entrou, apresentou saudações, que lhe foram retribuídas, e tomou a perguntar:

— Não passou por aqui um viajante?

— Sim, mas já há catorze anos. Descansou no sótão e confiou-nos uma encomenda, para que a entregássemos a uma mulher.

Na primeira, havia grande variedade de comida e bebida e, na segunda, todo o vestuário de mulher que se pudesse desejar.

Antes que ela se retirasse, as pessoas da casa aconselharam-na.

— Dirige-te à cidade e aguarda no primeiro cruzamento de ruas, onde o verás. É um excelente caçador.

A jovem procedeu como lhe indicaram e postou-se no cruzamento referido. Quando o avistou ao partir para a caça, dirigiu-se-lhe e perguntou:

— E agora, que será de nós, querido amigo? Que faremos, depois de eu vir de tão longe à tua procura?

Ao vê-la, ele abraçou-a e respondeu:

— Querida jovem, não te posso responder até enviar cartas a todos os reinos do mundo a perguntar que matrimônio devo conservar: o atual ou o antigo.

Escreveu a todas as partes do mundo e obteve respostas similares: "Deves conservar o primeiro matrimônio."

Em face disto, ele informou a nova noiva:

— Podes voltar para de onde vieste, pois fico com a minha antiga noiva.

A seguir, empreenderam a viagem — primeiro durante catorze anos e depois sete — até regressarem à pátria. Uma vez aí, voltaram a celebrar os esponsais e encarregaram-me de divulgar todas estas mentiras.

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