terça-feira, 23 de maio de 2023

A. A. de Assis (Seu Sezefredo)

Já faz um bom tempo, numa das minhas visitas ao chão natal*, participei de um almoço com um grupo de poetas fidelenses – moqueca de robalo preparada com especial esmero pelo chefe Jaime Olé. Na saída, logo na primeira esquina, encontramos Seu Sezefredo vendendo picolé e sorvete. Rodeamos o carrinho dele e cada um de nós fez seu pedido. De pronto José Theófilo puxou conversa com o sorridente velhinho: “O senhor é uma das pessoas mais queridas desta cidade. Um dia ainda vai ser nome de rua”.  

Wálter Simão concordou: “Também acho. É um homem justo, honesto – a bondade em pessoa, e tem o carinho de toda a população. Porém me parece mais apropriado fazer uma estátua dele ao lado do carrinho, com um braço erguido, como se estivesse cantando os seus costumeiros pregões”.

Antônio Roberto acrescentou: “Seja nome de rua, seja estátua, seja o que for, seria uma justíssima homenagem. Além de ter muitas outras virtudes, ele é também um poeta. Vende suas delícias em versos – Piiicolé de tamariiiindo... quem prova fica mais lindo; sorveeete de tangeriiiina... nunca vi coisa mais fina; casquinha de goiaba... vem buscar, pois logo acaba!” 

Pedro Emílio opinou: “Tudo bem, tudo bem, mas eu penso que o ideal mesmo seria dar o nome dele a uma escola. Todas as crianças o amam. Ele faz brincadeiras com a meninada, sabe o nome de todos e todas, bota apelidos engraçados, vende fiado a quem não tem dinheiro na hora, conta historinhas, canta modinhas, onde chega é uma festa”.

Evando Salim interveio mudando o rumo da prosa: “Pois para mim a maior homenagem reservada para Seu Sezefredo virá no final de sua passagem por este mundo: ele receberá direto de Deus um convite para ir morar no céu. Tem todas as condições para isso, inclusive uma que considero primordial: é um homem que, do jeito dele, usa o seu talento para o bem da sociedade”.

Um espanto na roda de amigos. “Como assim? – perguntou Wálter.

Evando explicou: “Seu Sezefredo nasceu com o talento de vendedor ambulante. Porém não se limita a ganhar o pão de cada dia – vai muito além: faz isso com máxima simpatia, amor e ternura, adoçando a boca e o coração da freguesia. Ou seja: passa a vida inteira servindo alegria às pessoas, e assim cumpre exemplarmente sua bonita missão na Terra. Tem, então, acredito eu, todas as características de futuro cidadão do Reino da paz”.

Deu daí que a roda virou uma bela tertúlia sobre a fundamental importância de cada um fazer da melhor maneira possível, e sempre em nome do bem de todos, aquilo que nasceu para fazer. 

Final unânime: no que dependesse dos poetas de São Fidélis, Seu Sezefredo, quando fosse chamado, poderia apresentar-se tranquilamente a São Pedro. O Reino do céu é a morada dos puros de coração – um lugar de gente boa e simples igual a ele. Estaria, portanto, em casa.

Vem-me essa história à lembrança toda vez que ouço a parábola dos talentos. 
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* Assis se refere à cidade de São Fidélis/RJ, onde nasceu. 

Fonte:
Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 6.julho.2023

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXII

À TUA ESPERA

Não vês? Estou em casa à tua espera,
meu coração se agita, comovido.
Se vens aqui, renasce a primavera,
e tudo fica alegre e colorido.

Sabes que a minha vida eu já te dera
com tanto amor, feliz, enternecido,
que o meu viver, sem ti, já não quisera
nem um minuto a mais... do merecido...

Mas venhas, meu amor, que a nossa tenda
está farta de amor, não há contenda,
aqui, há paz, o mar e a verde mata...

Vivamos este amor tão envolvente,
que embriaga e nos leva ao céu fulgente
e a nos saudar a lua cor de prata!
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BENDITA SEJAS

Bendita sejas tu, musa divina
porque vens inspirar este poeta,
a tua voz suave me fascina
e chega ao fim a minha dor secreta.

Bendita sejas tu, que me ilumina
e nos meus versos tua luz projeta
além da fé, do amor que me domina
trazendo inspiração à minha meta.

Chegas tranquila, calma e de mansinho
pondo flores em todo o meu caminho,
vens perfumando o meu viver tristonho.

Que seja sempre assim, poesia amada,
amiga e companheira de jornada
buscando a paz nas regiões do sonho!
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INTERROGAÇÃO

Quando nascemos, dizem que o Destino
já vem traçado para o ser Humano,
e sendo assim, cresci, desde menino,
envolto num mistério, num engano.

Como entender que o amor do ser Divino
possa me dar sentença de tirano?
Se a predestinação me fez cretino,
como me corrigir, se sou mundano?

Que culpa cabe a mim, se esta premissa
for verdadeira e a providência omissa
para me condenar sem indulgência?

Porventura, o que a vida nos promete
nada se cumpre e apenas nos remete:
— por que nos deu o senso e a inteligência?
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IPUPIARA

Estou voltando à nossa Ipupiara
e não consigo controlar o pranto,
cidade amiga — de beleza rara —
onde aprendi o amor e seu encanto.

Quando parti, jamais imaginara
que essa tristeza me ferisse tanto.
Longe da terra, a vida me ensinara
respeitar e adorar este recanto.

Quis voltar e rever... Faz tanto tempo,
que a alegria da volta no momento
me faz sentir muitas recordações.

Ainda ouço os conselhos de meu pai
e, orando, minha mãe andando vai
entre saudades, sonhos e emoções.
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O QUE É A VIDA?

A vida é uma jornada de aventura,
o ser humano nasce, vive e morre.
Uma réstia de sonho e de ventura,
eis o prêmio maior a que concorre.

A mocidade passa e a desventura
vem apressada e pela vida escorre
impondo ao coração esta amargura
que mata devagar... e não socorre...

Eis a vida, em resumo, companheiro,
mas a esperança e a fé falam primeiro
e amenizam, no mundo, a nossa dor.

Porque depois a vida é permanente
numa escola avançada e inteligente
sempre em busca de Deus, o Criador!
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Fonte:
Enviado pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Machado de Assis (Folha rota)

Tinham dado Ave-Marias; a Sra. D. Ana Custódia saiu para ir levar umas costuras à loja que era na Rua do Hospício. Pegou das costuras, entrouxou-as, pôs um xale às costas, um rosário ao pescoço, deu cinco ou seis ordens à sobrinha e caminhou para a porta.

— Venha quem vier, não abras, disse ela com a mão no ferrolho; já sabes o costume.

— Sim, titia.

— Não me demoro nada.

— Venha cedo.

— Venho, que a chuva pode cair. O céu está preto.

— Oh! Titia, se roncar trovoada!

— Reza; mas eu volto já.

D. Ana persignou-se e saiu.

A sobrinha fechou a rótula, acendeu uma vela e foi sentar-se a uma mesa de costura.

Luísa Marques tinha dezoito anos. Não era um prodígio de beleza, mas não era feia; pelo contrário, as feições eram regulares, as maneiras gentis. O olhar meigo e cândido. Mediana de estatura, delgada, naturalmente elegante, tinha proporções para vestir bem e primar pelos adornos. Infelizmente, não tinha adornos nem os vestidos eram bem cortados. Pobres, já se vê que deviam ser. Que outras coisas seriam os vestidos de uma filha de operário, órfã de pai e mãe, condenada a coser para ajudar a sustentar a casa da tia! Era um vestido de chita grossa, cortado por ela mesma, sem arte nem inspiração.

Penteada com certo desleixo, parece que isso mesmo lhe dobrava a graça da fronte. Encostada à mesa velha de trabalho, com a cabeça inclinada sobre a costura, os dedos a correrem pela fazenda, com a agulha fina e ágil não excitava a admiração, mas despertava a simpatia.

Logo depois de sentar-se, Luísa ergueu-se duas vezes e foi até à porta. De quando em quando levantava a cabeça, como a prestar atenção. Continuava a coser. Se a tia chegasse achá-la-ia a trabalhar com uma tranquilidade verdadeiramente digna de imitação. E beijá-la-ia como costumava e lhe diria alguma coisa graciosa, que a menina ouviria com agradecimento.

 Luísa adorava a tia, que lhe servia de mãe e pai, que a educara desde os sete anos. Por outro lado, D. Ana Custódia tinha-lhe afeto verdadeiramente maternal; uma e outra não possuíam outra família. Havia certamente dois parentes mais, um correeiro, cunhado de D. Ana, e um filho deste. Mas não se frequentavam; havia até motivos para isso.

Vinte minutos depois de sair D. Ana, sentiu Luísa um rumor na rótula, como que um som leve de bengala que por ali roçasse. Estremeceu, mas não se assustou. Levantou-se devagarinho, como se a tia pudesse ouvi-la e foi até à rótula.

— Quem é? disse em voz baixa.

— Eu. Está cá?

— Não.

Luísa abriu um pouquinho a janela, uma curta fresta. Estendeu a mão por ela, e apertou-lhe um rapaz que estava do lado de fora.

O rapaz era alto, e se não fosse noite fechada podia ver-se que tinha uns bonitos olhos, sobretudo um porte airoso. Eram graças naturais; artificiais não possuía nenhuma; vestia modestamente, sem pretensão.

— Saiu há muito tempo? – perguntou ele.

— Há pouco.

— Volta já?

— Disse que sim. Não podemos hoje falar muito tempo.

— Nem hoje, nem quase nunca.

— Que quer você, Caetaninho? – perguntou a moça tristemente. – Eu não posso abusar; titia não gosta de me ver à janela.

— Há três dias que te não vejo, Luísa! – suspirou ele.

— Eu, há um dia só.

— Viste-me ontem?

— Vi: quando você passou de tarde às cinco horas.

— Passei duas vezes; de tarde e de noite: sempre fechado.

— Titia estava em casa.

As duas mãos tornaram a encontrar-se e ficaram presas uma à outra. Correram assim alguns minutos, três ou quatro.

Caetaninho tornou a falar, a queixar-se, a gemer, a maldizer da sorte, enquanto Luísa o consolava e confortava. Na opinião do rapaz, não havia ninguém mais infeliz do que ele.

— Queres saber uma coisa? – perguntou o namorado.

— Que é?

— Penso que papai desconfia...

— E então?...

— Desconfia e não aprova.

Luísa empalideceu.

— Oh! mas não faz mal! Eu só espero poder arranjar a minha vida; depois se queira ou não queira...

— Isso não, se titio não aprova, parece feio.

— Desprezar-te?

— Você não me despreza, emendou Luísa; mas desobedecerá a seu pai.

— Obedecer em tal caso, era feio da minha parte. Não, não obedecerei nunca!

— Não digas isso!

— Deixa-me arranjar a vida, verás: verás.

Luísa estava silenciosa alguns minutos, mordendo a ponta do lenço que tinha ao pescoço.

— Mas por que motivo é que você pensa que ele desconfia?

— Penso... suponho. Ontem soltou-me uma indireta, lançou-me um olhar de ameaça e fez um gesto... Não tem dúvida, dá-lhe para não aprovar a escolha de meu coração, como se eu precisasse consultá-lo...

— Não fale assim, Caetaninho!

— Também não sei por que motivo ele não se dá com titia! Se se dessem, tudo caminhava bem; mas é a minha desgraça, é a minha desgraça!

Caetano, filho do correeiro, lastimou-se ainda durante uns dez minutos; e sendo já longo o tempo da conversa, Luísa pediu-lhe e alcançou que ele se retirasse. Não o fez o moço sem um novo aperto de mão e um pedido que Luísa recusou.

O pedido era um... ósculo, digamos ósculo, que é menos cru, ou mais poético. O rapaz pedia-o invariavelmente, e ela invariavelmente o negava.

— Luísa, disse ele, no fim da recusa, espero que muito breve estaremos casados.

— Sim; mas não faça zangar seu pai.

— Não: farei tudo de harmonia com ele. Se recusar...

— Peço a Nossa Senhora que não.

— Mas, diga você; se ele recusar, que devo eu fazer?

— Esperar.

— Pois sim! Isso é bom de dizer.

— Vá; adeus; titia pode vir.

— Até breve, Luísa!

— Adeus!

— Passarei amanhã; se você não puder estar à janela, ao menos espie por dentro, sim?

— Sim.

Novo aperto de mão; dois suspiros; ele seguiu; ela fechou de todo o postigo.

Fechado o postigo, Luísa foi sentar-se outra vez à mesa de costura. Não ia alegre, como era de supor em uma moça que acabava de falar ao namorado; ia triste. Mergulhou toda no trabalho, ao que parece para esquecer alguma coisa ou aturdir o espírito. Mas não durou muito o remédio. Daí a pouco tinha levantado a cabeça e olhava fitamente o ar. Devaneava naturalmente; mas não eram devaneios azuis, senão negros, bem negros, mais negros que seus grandes olhos tristes.

O que ela dizia consigo era que tinha duas afeições na vida, uma franca, a da tia, outra encoberta, a do primo; e não sabia se tão cedo poderia mostrá-las juntas ao mundo. A notícia de que o tio desconfiasse alguma coisa e desaprovava talvez o amor de Caetano desconsolava-a e fazia-a tremer. Talvez fosse verdade; era possível que o correeiro destinasse o filho a outra. Em todo o caso as duas famílias não se davam — não sabia Luísa por que motivo —, e este fato podia contribuir para tornar difícil a realização de seu único e modesto sonho. Essas ideias, ora vagas, ora medonhas, mas sempre tingidas da cor da melancolia, abalavam seu espírito durante alguns minutos.

Depois veio a reação; a mocidade readquiriu seus direitos; a esperança trouxe a sua cor viva aos sonhos de Luísa. Ela olhou para o futuro e confiou nele. Que era um obstáculo momentâneo? Nada, se dois corações se amam. E haveria esse obstáculo? Dado que houvesse, ele seria o ramo de oliveira. No dia em que o tio soubesse que o filho a amava deveras e era correspondido, não tinha mais do que aprovar. Talvez mesmo a fosse pedir à tia D. Ana, que a estremecia, e recebê-lo-ia com lágrimas. O casamento seria o vínculo de todos os corações.

Nesses sonhos passaram ainda uns dez minutos. Luísa reparou que a costura estava atrasada e voltou de novo a atenção para ela.

D. Ana voltou; Luísa foi abrir-lhe a porta, sem hesitação porque a tia convencionara um modo de bater, a fim de evitar surpresas de gente má.

Vinha um pouco amuada a velha; mas passou logo depois do beijo à sobrinha. Trazia o dinheiro da costura que fora levar à loja. Tirou o xale, descansou um pouco; foi ela própria cuidar da ceia. Luísa ficou cosendo algum tempo. Ergueu-se depois; preparou a mesa.

Tomaram um pouco de mate as duas, sozinhas e silenciosas. Era raro o silêncio, porque D. Ana, sem ser palradora, estava longe de ser taciturna. Tinha a palavra alegre. Luísa reparou naquela mudança e receou que a tia houvesse visto o vulto do primo de longe, e, não sabendo quem fosse, naturalmente ficara molestada. Seria isso? Luísa fez esta pergunta a si mesma e sentiu corar de vergonha. Criou algumas forças, e interrogou diretamente a tia.

— Que tem, que está tão triste? perguntou a moça.

D. Ana limitou-se a levantar os ombros.

— Está zangada comigo? – murmurou Luísa.

— Contigo, meu anjo? – disse D. Ana apertando-lhe a mão –  Não, não é contigo.

— É com outra pessoa. – concluiu a sobrinha. – Posso saber quem é?

— Ninguém, ninguém. Fujo sempre de passar pela porta do Cosme e passo por outra rua; mas por desgraça, escapei ao pai e não escapei ao filho...

Luísa empalideceu.

— Ele não me viu, – continuou D. Ana - mas eu bem o conheci. Felizmente era noite.

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual a moça repetia as palavras da tia. Por desgraça! dissera D. Ana. Que havia pois entre ela e os dois parentes? Tinha vontade de a interrogar, mas não se atrevia; a velha não continuou; uma e outra refletiam caladamente.

Foi Luísa quem rompeu o silêncio:

— Mas por que foi desgraça encontrar o primo?

— Por quê?

Luísa confirmou a pergunta com um gesto de cabeça.

— Contos largos, – disse D. Ana - contos largos. Um dia te contarei tudo.

Luísa não insistiu; ficou acabrunhada. O resto da noite foi sombrio para ela; fingiu ter sono e recolheu-se mais cedo do que costumava. Não tinha sono; velou ainda duas longas horas a trabalhar com o espírito, a beber uma ou outra lágrima indiscreta ou impaciente de lhe retalhar a face juvenil. Dormiu finalmente; e como de costume acordou cedo. Tinha um plano feito e a resolução de o executar até o fim. O plano era interrogar a tia outra vez, mas então disposta a saber a verdade, qualquer que ela fosse. Foi depois do almoço, que se lhe ofereceu a melhor ocasião, quando as duas se sentaram a trabalhar. D. Ana recusou a princípio; mas a insistência de Luísa foi tal, e ela amava-a tanto, que não lhe recusou dizer o que havia.

— Tu não conheces teu tio, disse a boa velha; nunca viveste com ele. Eu conheço-o muito. Minha irmã, que ele tirou de casa para perdê-la, viveu com ele dez anos de martírio. Se eu te contasse o que ela sofreu não havias de acreditar. Basta dizer que, se não fosse o abandono em que o marido a deixou, o pouco caso que fez da moléstia, talvez ela não tivesse morrido. E daí pode ser que sim. Creio que ela estimou não tomar remédios, para acabar mais depressa. O maldito não deitou uma lágrima; jantou no dia da morte como costumava jantar nos mais dias. O enterro saiu e ele continuou a vida de antes. Coitada! Quando me lembro...

Neste ponto, D. Ana interrompeu-se para enxugar as lágrimas, e Luísa não pôde também reter as suas.

— Ninguém sabe para o que veio ao mundo! – exclamou sentenciosamente D. Ana - Aquela era a mais querida de meu pai; foi a mais infeliz. Destinos! destinos! O que te contei é já bastante para explicar a inimizade que nos separa. Acrescenta-lhe o gênio mau que ele tem, os modos grosseiros, e a língua... oh! a língua! Foi a língua dele que me feriu...

— Como?

— Luísa, tu és inocente, nada sabes deste mundo; mas é bom que aprendas alguma coisa. Aquele homem, depois de fazer morrer minha irmã lembrou-se de gostar de mim, e teve o atrevimento de vir declará-lo na minha casa. Eu então era outra mulher que não sou hoje; tinha cabelinho na venta. Não lhe respondi palavra; levantei a mão e castiguei-o no rosto. Vinguei-me e perdi-me. Ele recebeu o castigo calado; mas tratou de vingar-se também. Não te contarei o que disse e trabalhou contra mim; é longo e triste; basta saber que cinco meses depois, meu marido me pôs pela porta fora. Estava difamada; perdida; sem futuro nem reputação. Foi ele a causa de tudo. Meu marido era homem de boa-fé. Queria-me muito e morreu pouco depois de paixão.

Calou-se D. Ana, calou-se sem lágrimas nem gestos, mas com um rosto tão pálido de dor, que Luísa atirou-se a ela e abraçou-a. Foi esse gesto da moça que fez romper as lágrimas da velha. Chorou-as D. Ana longas e amargas; ajudou a chorá-las a sobrinha, que de envolta com ela lhe disse muita palavra consoladora. D. Ana recobrou a fala.

— Não terei razão em odiá-lo? perguntou ela.

O silêncio de Luísa foi a melhor resposta.

— Quanto ao filho nada me fez, continuou a velha; mas, se é filho de minha irmã também é filho dele. É o mesmo sangue, que eu odeio.

Luísa estremeceu.

— Titia! disse a moça.

— Odeio, sim! Ah! que a maior dor da minha vida seria... Não, não há de ser assim. Luísa, eu, se te visse casada com o filho daquele homem, morria decerto, porque perderia a única afeição, que me resta no mundo. Tu não pensas nisso; mas juras-me que em nenhum caso farás semelhante coisa?

Luísa empalideceu; hesitou um instante; mas jurou. Esse juramento foi o golpe último e mortal de suas esperanças. Nem o pai dele nem a mãe dela (D. Ana era quase mãe) consentiriam em fazê-la feliz. Luísa não se atreveu a defender o primo, a explicar que ele não tinha culpa nos atos e vilanias do pai. Que adiantaria isso, depois do que ouvira? O ódio estendia-se do pai ao filho; havia um abismo entre as duas famílias.

Naquele dia e no outro e no terceiro, chorou Luísa, nas poucas horas em que podia estar só, as lágrimas todas do desespero. No quarto dia já não tinha mais que chorar. Consolou-se como se consolam os desgraçados. Viu ir-se o único sonho da vida, a melhor esperança do futuro. Só então compreendeu a intensidade do amor que a prendia ao primo. Era o seu primeiro amor; estava destinado a ser o último.

Caetano passou ali muitas vezes; deixou de vê-la duas semanas inteiras. Supô-la doente e indagou da vizinhança. Quis escrever-lhe, mas não havia meio de entregar uma carta. Espreitava as horas em que a tia saía de casa e ia bater à porta. Trabalho inútil! A porta não se abria. Uma vez viu-a de longe à janela, apertou o passo; Luísa olhava para o lado oposto; não o viu vir. Chegando ao pé da porta, parou ele e disse:

— Enfim!

Luísa estremeceu, voltou-se e dando com o primo fechou o postigo com tanta pressa que um pedaço de manga do vestido ficou preso. Cego de dor, Caetaninho tentou empurrar o postigo, mas a moça havia-o fechado com o ferrolho. A manga do vestido foi puxada violentamente e rasgada. Caetano afastou-se com o inferno no coração; Luísa foi dali atirar-se ao leito lavada em lágrimas.

As semanas, os meses, os anos passaram. Caetaninho não foi esquecido; mas nunca mais se encontraram os olhos dos dois namorados. Oito anos depois morreu D. Ana. A sobrinha aceitou a proteção de uma vizinha e foi para casa dela, onde trabalhava dia e noite. No fim de catorze meses adoeceu de tubérculos pulmonares; arrastou uma vida aparente de dois anos. Tinha quase trinta quando morreu; enterrou-se por esmolas.

Caetaninho viveu; aos trinta e cinco anos era casado, pai de um filho, negociante de fazendas, jogava o voltarete e engordava. Morreu juiz de uma irmandade e comendador.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 10/1878.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “06”

 

Olavo Bilac (Como a pescada)

Casados há três meses, — já o arrufo, já o ciúme, já a resigna... E Clélia quer que o marido, o Álvaro, lhe ponha já para ali toda a verdade: se foi de fato noivo de Laura, e porque é que foi expulso da casa de Laura, e porque não casou com Laura, e porque é que a família de Laura lhe tem tanta raiva...

— Mas, filhinha, sê sensata; Não nos casamos? Não somos felizes? Não te amo como um louco? Que queres mais? Beijemo-nos que me importa a mim a lembrança de Laura, se é a ti que amo, se te pertenço, se sou o teu maridinho carinhoso? — suspira Álvaro, procurando com os lábios ansiosos os lábios da arrufada Clélia...

— Não, senhor! Não, senhor! — diz a teimosa, repelindo-o — Não, senhor! quero saber tudo! vamos a isso! Foi ou não foi noivo de Laura?

— Ai! — geme o marido — Já que não há remédio... fui, queridinha, fui...

— Bem! E porque não casou com ela?

— Porque... porque o pai preferiu casá-la com o Borba, comendador Borba, sabes? Aquele muito rico e muito sujo, sabes?

— Sei... Mas isso não explica o motivo porque o pai de Laura tem tanto ódio ao senhor...

— É que... é que, compreendes... tinha havido tanta intimidade entre mim e a filha dele...

— Que intimidade? Vamos, diga tudo! O senhor costumava ficar sozinho com ela?

— Às vezes, às vezes...

— E abraçava-a?

— Às vezes...

— E beijava-a?

— Às vezes...

— E chegava-se muito para ela?

— Sim, sim... Mas não falemos nisso! Que temos nós com o passado, se nos amamos, se estamos casados, se...

— Nada! Nada! — insiste Clélia — Quero saber tudo, tudo! Vamos! E depois?

— Depois? Mais nada, filhinha, mais nada...

Clélia, porém, com um brilho singular da curiosidade maliciosa nos grandes olhos azuis, insiste ainda:

— Confesse! Confesse! Ela... ela não lhe resistiu? Não é assim?

— ...

— Diga-o! Confesse! — e abraça o marido, adulando-o...

— Pois bem! É verdade! — responde ele — Mas acabou, passou... Que importa o que houve entre mim e Laura, se nesse tempo ainda eu não te conhecia, a ti, tão pura, a ti, tão boa, a ti que, enquanto foste minha noiva, nem um só beijo me deste?

Clélia, muito séria, reflete... E, de repente:

— Mas, escuta, Álvaro! Como foi que o pai soube?

— Por ela mesma, por ela mesma! A tola contou-lhe tudo...

— Ah! Ah! Ah! — e Clélia ri como uma louca, mostrando todas as pérolas da boca — Ah! Ah! Ah! Então foi ela quem... que idiota! Que idiota! Ah! Ah! Ah! Ora já se viu que pamonha? Aí está uma coisa que eu não teria feito! — Uma asneira em que não caí nunca...

— Como? Como? — exclama o marido, aterrado — Uma asneira em que não caíste?!

— Mas, certamente, queridinho, certamente! Há coisas que se fazem, mas não se dizem...

E, enquanto Álvaro, acabrunhado, apalpa a testa — lá fora, na rua, ao luar, um violão tange o fado e a voz do fadista canta:

"Homem que casa não sabe 
Qual o destino que o espera... 
Há gente como a pescada, 
Que antes de o ser já o era...”

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.
(Quando publicado, o autor utilizou o pseudônimo "Bob").

George Abrão (Poemas Avulsos) 3

ARCO-ÍRIS

Assim como o belo arco-íris
que após a chuva enfeita o céu,
igual faz a lindíssima saíra
que com as suas penas coloridas
e também com sete cores,
enfeita as árvores do litoral
como se fosse uma joia preciosa
constantemente a dançar.
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BEM-ME-QUER?

Quanta ingenuidade havia
nos bons tempos de outrora
quando ainda se imaginava
que uma flor tinha poder.
E as pobres e belas margaridas
eram a todo dia, pelas moças, 
romanticamente despetaladas
num afã de quererem saber
se seus pretendidos as amavam.
E era: mal-me-quer, bem-me-quer,
estraçalhando a tão bonita flor.
E eram gritos de felicidade e alegria
se a última pétala era bem-me-quer,
ou de tristes muxoxos se dizia não.
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CIRANDA DOS MUNDOS

Pendentes no espaço sideral
lá vamos nós perdidos
em meio à ciranda dos mundos.
Mundos maiores, menores,
que em enorme velocidade
e em perfeito sincronismo
não se cansam do seu giro eterno.
Em meio a planetas como o nosso,
estrelas, satélites, outras astros,
e cometas que velozmente passam.
E onde nos levará esta viagem?
Onde aportaremos ao final dela?
Quem é o exímio coordenador de tudo?
Questionamentos infundados
quando a resposta para tudo
resume-se a uma só Palavra: Deus!
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DECEPÇÃO

O belo pássaro frutívoro,
que passava voando alto,
viu um belo almoço servido
e ao seu encontro desceu
pousando sobre as frutas.
Mas quando deu a bicada,
quanta decepção...
eram frutas artificiais,
tão belas e perfeitas
que o conseguiram enganar!
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OLHAR DE MULHER

Ah! O olhar feminino
rutilante como a estrela,
plácido como um lago,
profundo como o oceano,
complicado como um teorema,
melancólico como crepúsculo,
misterioso como a noite,
ou veemente como uma fera.
O olhar feminino tudo revela:
o seu vigor espiritual,
a sua tranquilidade de ser,
a complexidade de sentimentos,
a dificuldade em se fazer entender,
a sua tristeza indefinida,
os segredos da sua alma,
ou a sua fúria às vezes incontida.
Mas se penetrarmos no seu olhar,
em sua profundidade encontraremos
uma  mulher que quer amar e ser amada.
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SAUDADE I

Que imensa e dorida saudade
guarda tão pequeno gesto:
o beijo na bela rosa rosada.
Saudade do que já se foi;
saudade da feliz infância;
saudade do amor perdido;
saudade da grande felicidade;
saudade dos entes queridos;
saudade da vida que passou;
saudade do que nunca viveu.
Porque sempre há lembranças,
e lembranças trazem saudade!
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SAUDADE II

E se saudade não existisse?
Não a palavra “saudade”
que só existe no português,
mas do profundo sentimento,
que nos golpeia a alma
ou que nos traz felicidade.
Da saudade do que passou;
da saudade alegre, divertida;
da saudade triste, dolorida;
da que nos faz rir ou faz chorar;
da saudade de alguém ou de algo
que nos faz voltar no tempo;
das festas com muita alegria,
ou de encontros com amigos;
saudade dos bancos escolares
e dos colegas/amigos de classe;
saudade dos carinhos dos pais,
e essa é a saudade que dói mais;
saudade dos irmãos/amigos;
das coisas que deixamos passar;
de tudo o que eu deixamos de fazer.

Fonte:

Artur de Azevedo (contos em versos) Um passeio de bonde

(Produção dos 17 anos)

— Psiu! Para onde
Segue este bonde? —
O cocheiro interrogado
— Para a Estação — me responde;
A tabuleta não vê? —
— Muito obrigado.
— Não há de quê.

Era um bonde fechado.

Sentei-me, carrancudo,
Pensando em nada ou em tudo,
Que tudo ou nada vem a dar no mesmo,
E eu penso em tudo e em nada
Todas as vezes que passeio a esmo,
Por dar alívio à mente atribulada.

O bonde parte. Eu estava só. Ninguém
Me fazia
Companhia.
Porém
Alguém
Lá vem:
Uma moça e uma velha entram no carro,
E eu, por ser cavalheiro,
Renuncio a fumar o meu cigarro inteiro,
E deito fora a ponta do cigarro.

A moça não é feia nem bonita.
Modesta no trajar, traz um vestido
De ramalhuda chita,
E um chapéu já muitíssimo batido.

A velha é magra, é alta,
E parece que chora quando ri.
Os dentes lhe fizeram muita falta...
Uma velha mais feia nunca vi!

Aquela hedionda cara
Muito pé de cabelo e muita ruga
Me depara,
Sem falar na verruga,
Coisa rara,
Que não sara,
No nariz,
De pingos de tabaco chafariz.

Pente descomunal, de tartaruga,
Lhe adorna a cabeleira, que tresanda
Ao tal sebo de Holanda.
Enquanto a velha enxuga
O pingo eternamente pendurado,
A moça o verbo namorar conjuga

Co’um janota caolho,
Que entrara há pouco e lhe piscara um olho,
O único olho que possui — coitado!

Fica a velha de orelha
Em pé, e logo enruga
A branca sobrancelha,
E incha, como incha a negra sanguessuga
Que o Zeferino aluga.

A moça não se importa,
E dirige ao rapaz, leviana e franca,
Pecaminoso olhar de enchova morta,
Que o enleva e transporta,
E suspiros estrídulos lhe arranca.

Mas as damas chegaram
Ao seu destino. Ambas se levantaram.
A moça faz um sinal
Ao condutor, que repara,
E, com o choque especial
Que produz sempre o bonde quando para,
Cai o moço sobre a velha,
Que estava olhando de esguelha;
Cai a velha sobre o moço;
Cai o moço sobre mim!
Que alvoroço!
Que chinfrim!

Saíram todos três. Fiquei pisado,
E ansioso por saber se o resultado
Daquela barafunda
Seria um casamento ou uma tunda.

Um casamento foi. Passado um mês,
Encontrei o caolho namorado
Na rua do Alecrim, de braço dado
À moça, e a tal velhota desta vez
Tinha em casa ficado.

(Maranhão, 1872)

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Arthur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909.

domingo, 21 de maio de 2023

Isabel Furini (Poema 44): Expressão

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook. 

Fábio Siqueira do Amaral (O Relógio)

Fato não inédito... mas, verdadeiro 
como os outros que o antecederam...

Fora meu presente de aniversário, isso lá pelos idos de 1986. Jamais parou, nunca atrasou nem um minuto sequer. Rigoroso no horário. Implacável no momento de estrilar sua campainha pela manhã, fazia-me saltar da cama com os olhos ainda semicerrados e a boca toda babada...

Segundo as informações do Vicentinho, naquela tarde – logo após o festivo almoço de comemoração –, o relógio funcionava sem corda e sem pilha... Bastaria agitá-lo por uns momentos, de um lado para o outro, para pô-lo em movimento.     Caso acontecesse esquecer-me dessa norma, e ele cessasse de “trabalhar” – sem problemas! –, que sacudisse mais um pouco o artefato e pronto... Silencioso... Não se ouvia nenhum tic-tac... Se apertasse aquele botãozinho preto, a luzinha azul acenderia e era possível ver o horário no escuro do quarto.

Casei-me, mudei de emprego, deixei minha pacata cidade, meus pais, meus amigos, fui para a Capital e o relógio foi junto, trazendo as lembranças do meu grande amigo.

Por telefone, mantinha contato com o Vicentinho.

Abandonou-me a mulher, quando, pela recessão, fui demitido, e alguns meses depois consegui novo ofício numa pequena firma, ganhando menos da metade do antigo ordenado. Ela levou tudo o que pôde... Só deixou meu relógio.

Vi-me obrigado a sair do ótimo apartamento, meu ninho de felicidade por alguns tempos. Aluguei a minúscula kitchenette com telefone, porém, miseravelmente mobiliada, num prédio decrépito, sujo e maltratado, numa das ruas mais do que vagabunda e mal falada da bela São Paulo.

Meus velhos, por várias cartas, chamaram-me de volta... Vicentinho, eterno amigo prestativo, muito querido, sincero e devotado, exigiu que voltasse... Ele conseguiria melhor ocupação para mim, na empresa dos pais dele.  Agradeci muito, mas não retornaria. Não queria depender nem dever obrigação a ninguém.  

O tempo foi passando. As ligações telefônicas foram rareando de minha parte por contenção de despesas. Vicentinho também deixou de ligar, acreditando, talvez, no meu desinteresse pela nossa antiga amizade. 

Hoje, domingo, acordei antes do toque de despertar com muita saudade desse meu amigo. Uma nostalgia pesava-me, por assim dizer, quase sufocante. Poderia dormir mais, não era dia de trabalho mesmo. Vi pelas frestas da basculante que já raiara o sol. Peguei o relógio. O horário marcava três horas e treze minutos. Fui até a janela e a abri. A claridade ia alta... Eu dormira demais e o relógio estava parado. O relógio de pulso indicava ser quinze para o meio dia... Sacudi o relógio, presente de meu aniversário. Ele não funcionou... Sacudi com força e demoradamente... Nada...

Achei que àquela hora de almoço era apropriada para fazer surpresa ao Vicentinho.

Liguei para ele.

A demora ao atendimento causou-me alguma frustração. Finalmente a voz estranha deu o ar da graça:

— Alô...

— Alô... Quem fala? – perguntei.

— É a Nancy...

A Nancy, prima do Vicentinho.

— Oi, Nancy... Como vai...? Gostaria de falar com o Vicentinho...

— Infelizmente não será possível... Ele morreu nessa madrugada...

— Como?! Morreu?!

— Sim... Na última sexta-feira, Vicentinho sofreu um acidente de carro... Estava internado em estado gravíssimo. Hoje, às três e treze da madrugada, ele deixou de respirar.

Não respondi nada mais, ou, se respondi não me lembro... Desliguei o telefone e chorei como nunca havia chorado por um amigo.

O relógio – recordação do Vicentinho –, cristalizado naquele fatídico horário – 3h13min – nunca mais voltou a funcionar.

Fonte: