domingo, 29 de outubro de 2023

Maria Amália Vaz de Carvalho (O Tio Sebastião)

I
Não havia coisa que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhinho que conheci em uma aldeia perto de Braga, do que falarem-lhe no filho que estudava em Coimbra.

Sorriam-se-lhe os olhos, e um contentamento intraduzível espelhava-se-lhe no rosto.

Quando lhe elogiavam o caráter, o talento, a bondade e a aplicação do rapaz, ele fingia que não acreditava, dizia que não era tanto assim... e repetia:

— Favores, meu amigo, favores...

Mas lá no íntimo agradecia aquilo tudo, e tinha vontade de apertar nos braços a pessoa que falava com tamanho louvor do filho estremecido.

Quando ele descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença outro rapaz, outro estudante.

— Sim, sim, mas como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho, mas disse-me o prior, e olhe que o prior não é nenhum tolo, pois disse-me o prior que o meu pequeno era o melhor estudante que andava nas aulas de Braga, que lhe tinham dito os próprios mestres. Aquilo tem uma memória! E então ler! Às vezes estava horas e horas a ouvi-lo, fazia gosto. O talho da letra já foi melhor, isso foi, mas o prior, a quem eu disse isto, consolou-me, dizendo-me que todos os doutores tinham má letra. Assim será, mas as primeiras cartas que o pequeno me escreveu, quando foi para o estudo, podem mostrar-se... Quer você ver uma dessas cartas?...

Toda a gente da aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que para o lisonjear, ao encontra-lo, lhe não perguntasse pelo filho.

— Obrigado, vai bem! – e com um sorriso doce, enternecido e caridoso envolvia o da pergunta.

O tempo das férias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco, e se fazem filhós (bolo de farinha e ovos), e se conversa animadamente em volta da lareira, era ansiosa e impacientemente esperado pelo velho; todas as noites ia ao baú, que tinha à cabeceira da cama, e pondo uma cruz no dia que findara, dizia jubiloso:

— É de menos um!

Na véspera da chegada do filho, era uma azáfama, um revolver as velhas arcas de onde se exala um forte cheiro de maçãs camoezas, e um andar tudo numa poeira naquela casa.

— Esta cama não tem bastante roupa, Joanna, dizia para a criada; vá buscar mais um cobertor!

E alisava a colcha, endireitando a fronha do travesseirinho, e repetindo:

— O estudante é muito mimoso, e depois faz frio que não é brincadeira!

Ia à cozinha, era preciso comprar isto e mais aquilo. Examinava os armários, passava revista aos frascos das compotas, e punha de banda as garrafas de vinho antigo.

— Não que ele gosta do que é bom!

Na rua não esperava que lhe perguntassem pelo filho:

— Chega amanhã, chega amanhã!

As ansiedades eram no dia da chegada. Vinha para a porta, esfregando as mãos, rutilante de prazer. Todo o pobre que passava tinha uma esmola, todo o transeunte um cumprimento benévolo e afável. Os vizinhos exploravam aquele grandíssimo e sagrado afeto.

— Com que então é hoje, hein?

— É verdade, pelo menos assim o espero. Queira Deus que lhe não suceda alguma no caminho. Isto de rapazes...

— Há rapazes e rapazes. O seu é uma joia...

— Sim, sim, mas há más companhias...

— Qual! E então o juízo e o talento para que servem? Eu tenho ido com ele algumas vezes a Braga, e bem vejo as pessoas com quem o seu menino se dá. É tudo gente da melhor. E não lhe fazem favor. Todos me gabam a sabedoria do seu estudante, todos...

— E eu que o diga. – afirmava outro.

— Então porque não entram? Vejam se apanham uma tosse! Está muito frio. Ó Joanna, traze duas tigelas daquele vinho que sabes, e não te esqueças de trazer uma talhada de presunto. Vão beber pinga de substância! Este é do tal que faz peito, hê, hê, hê!

— Com que então, — diziam os biltres — á saúde do sr. doutor!

— Que Deus fará! – Tornava o bom do lavrador, com as lágrimas nos olhos. – Mas eu não tenho tigela, traze-me também uma, que quero beber à saúde aqui dos amigos.

E bebia de um trago, valentemente, com alma.

O estudante às vezes, na vinda de Coimbra, chegava a Braga, onde tinha amigos e condiscípulos antigos, e ficava mais um dia. De forma que o velho esperava, e ia deitar-se cheio de cuidados; não pregava olho toda a noite.

A Joanna, que bebera o mesmo leite que Sebastião, ouvindo-o gemer e suspirar, erguia-se, e perguntava-lhe:

— Tem alguma coisa, sô Sebastião?

— Que é? O estudante chegou? Já me levanto, traze-me a candeia!

E era preciso que a velha lhe explicasse tudo, e que o embalasse carinhosamente com aquelas doces palavras com que as mães adormecem os filhos rabugentos.
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O tio Sebastião, quando casou, tinha cinquenta anos, uns cinquenta anos limpos e rijos como não há aí muitos trinta.

Enquanto a mãe foi viva, não lhe quis dar nora.

— Nada! – dizia às pessoas que lhe aconselhavam o casamento, nada! – Que lucro eu com isso? A velhinha podia não se dar com o gênio da mulher que eu trouxesse para casa e isso era o inferno para mim. Quem manda naquela casa é minha mãe, e há de mandar em quanto for viva. Ela ralha, ela grita, ela dá por paus e por pedras, por dá cá aquela palha. Deixa-a! Quando rabuja demais, saio de casa, e a Joanna que a ature! São mulheres, e lá se entendem. Se eu me casasse, tinha de acudir por uma ou por outra... Nada! boi solto lambe-se todo...

E ainda solteiro fechou os olhos da mãe que lhe morreu nos braços.

Joanna ficou senhora de tudo. Era ela que olhava pela casa, que dava ordens, a verdadeira dona da casa, enfim. Aquele novo modo de vida, porém, começou a pesar-lhe, entrou a ter saudades do antigo jugo, queria receber ordens e não dá-las; a domesticidade era para ela um hábito de que não havia de desacostuma-la.

— Sabe o que mais, sô Sebastião? – disse ela um dia ao patrão. – O tempo das rapaziadas passou. Por que não toma estado? Moças é que não faltam. É verdade que o mundo vai perdido de todo, mas ainda há raparigas perfeitas e tementes a Deus.

— Endoideceste, Joanna! Eu lá caso nesta idade! Só se for contigo...

— Lá começa ele com as tolices de costume.

Água mole em pedra dura...

O tio Sebastião entrou um dia em casa com noiva. Era órfã de pai e mãe, era pobre, não tinha parentes a não ser um irmão que fora para o Brasil, e de quem não havia notícias há muito tempo; contava trinta e tantos anos, mas era madrugadora como um galo, direita como um vime, e valia por dois homens no cultivo da vida.

Quando o tio Sebastião lhe falou em casamento, ela fez-se vermelha como uma papoula, hesitou um momento, e atirando com a foice com que andava a cegar feno, lançou-se-lhe nos braços, e num amplexo formidável de leoa, rompeu com isto:

— Esperava esta felicidade há dez anos. Abrace-me, sô Sebastião, que se não fosse consigo, não me casava senão com a cova.

Vinha de longe o afeto desta mulher pelo bondoso homem.

O pai de Carlota caiu entrevado; o tio Sebastião ao passar-lhe um dia à porta ouviu choros e lamentações; entrou e soube que havia ali necessidade e quase fome; a filha única do inválido, Carlota, tinha de ficar à cabeceira do catre; as últimas economias haviam-se extinguido pouco a pouco.

O tio Sebastião socorreu aquela gente, mandou chamar o médico à Vila Verde, pagou os remédios da botica e por fim o enterro do infeliz.

Entre as poucas pessoas que acompanharam à igreja o modesto ataúde, ia o tio Sebastião curvado, melancólico, com o seu rosto barbeado, e cheio de bondade e lhaneza.

Carlota, que chorava a um canto do albergue, com as mãos atadas à cabeça despenteada, ao ver entrar o benfeitor, não lhe agradeceu as esmolas com palavras ociosas — arrastou-se para ele de joelhos, e agarrando-lhe nas mãos beijou-as com devota sofreguidão.

Passados tempos o tio Sebastião esquecera-se daquele episódio, e nem sequer reparou que a melhor cantora do lugar, que inquestionavelmente era a Carlota, deixava de cantar todas as vezes que ele passava por uma certa azinhaga...

Se ele volvesse o rosto veria no meio das ervas altas e úmidas, ou em cima dos castanheiros folhudos e entrelaçados de pâmpanos (Haste da videira coberta de folhas e de frutos), um vulto de mulher voltado para ele, a devora-lo com o olhar, a segui-lo, a banha-lo na luz carinhosa de um longo olhar enamorado.

Não deu por tal o tio Sebastião; Joanna, porém, que era amiga de Carlota, adivinhou o segredo, e o resultado sabe-o o leitor.
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Três anos depois do casamento o tio Sebastião enviuvara.

Ficou-lhe um filho, uma criancinha loura e adorável, o retrato vivo da mãe.

O lavrador concentrava no pequeno todos os afetos, amava-o até a insanidade.

O rapaz cresceu rodeado de carícias, de mimos e de ternos cuidados.

Não havia vontade que se lhe não fizesse. Era um pequeno rei despótico a cuja voz o pai e a velha Joanna se curvavam com cega obediência.

Ao completar seis anos, por conselho do prior, começou o pequeno a estudar as primeiras letras com o professor régio da freguesia.

— Temos homem, dizia o prior ao velho; o rapaz vai bem, estuda e aprende com facilidade.

— Quando me lembro que posso morrer sem o ouvir cantar a missa nova, parece-me que estalo de pena.

— Ó senhor prior, o meu rapaz dava ou não dava um padre de mão cheia?

Era para padre que o velho destinava o filho, sonhava todas as noites com a sua primeira missa, via-o com as vestimentas engomadas e duras do sacerdócio, diante do altar da igreja da freguesia, no meio de nuvens de incenso, enquanto os padres cantarolavam ao som plangente e arrastado do órgão, e os sinos tangiam alegres repiques, e subiam ao ar as girândolas de foguetes impregnando de um espesso cheiro de pólvora o adro enramilhetado de murtas...

Pronto nas primeiras letras, foi o pequeno Sebastião para Braga onde se matriculou no Liceu.

Neste entrementes chegou do Brasil o irmão de Carlota. Foi à aldeia natal, procurou os parentes, e soube que todos tinham falecido, restando-lhe tão somente um sobrinho.

O brasileiro era solteiro, e doente; não vinha milionário, mas tinha mais do que o suficiente para dar uma bonita carreira ao estudante.

— Olhe, mano, disse ao cunhado, deixe isso ao meu cuidado, eu me encarrego do menino. O bem que desejava fazer a meus pais, que infelizmente não encontrei, hei de reverte-lo em favor de meu sobrinho. Uma condição exijo: não quero que o rapaz se ordene. Quero dizer, se isso for da sua vontade, dele, não me oponho, mas deixemos o tempo ao tempo. Cá a minha opinião é que ele deve estudar medicina. Os médicos ganham muito dinheiro em toda a parte, e no Brasil sobretudo, onde o mais relés tem carruagem. Está certo isto? O rapaz quando acabar os estudos em Braga vai para Coimbra?

O tio Sebastião custou a descer daquele sonho em que andara tantos anos embevecido. Mas por fim cedeu.

O brasileiro demorou-se alguns anos ainda em Portugal. A quebra, porém, de uma casa importante do Rio chamou-o ao Brasil, para onde partiu deixando ao sobrinho, que até então se havia portado com singular e exemplaríssimo discernimento, ordem franca para receber tudo que lhe fosse preciso numa das casas mais acreditadas do Porto.
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Um dos estudantes que mais dinheiro gastava em Coimbra por aqueles tempos era Sebastião Alves, a quem a convivência com os rapazes oriundos das mais nobres famílias de Portugal empavonara e envaidecera extremamente.

No seu quarto, que ele adornara com excessivo e inaudito luxo para um estudante, reuniam-se todos os que sobressaiam em Coimbra pela fidalguia, pela força, e pela estroinice.

Sebastião começou a ser explorado; pediam-lhe dinheiro que nunca era restituído, vestiam-lhe o fato, calçavam-lhe as botas, e comiam-lhe ceias abundantes e regadas de vinhos caros.

Com aquela vida era incompatível o estudo e a reflexão. Deixou de ir às aulas. Enganava o tio e o pai, enviando-lhes certidões falsas dos atos que nunca fizera.

Havia dois anos já que não ia à aldeia, cujo viver lhe aborrecia e se lhe figurava mesquinho e chato.

Quando os estudantes partiam para férias, contentes e alegres para os abraços da família, Sebastião Alves deixava também Coimbra, percorria as praias, ia ao Porto, a Cintra, ao Bussaco.

Aquela vida inútil e vária era de quando em quando remordida pelo remorso, todas as vezes que o vadio recebia as cartas do pai que, apesar de não terem ortografia, e de serem escritas com uma letra grotesca e pesada, lhe avivavam o entranhado amor com que ele era querido por aquele amantíssimo coração de velho.

II
O brasileiro voltara a Portugal. Em Santa Apolônia comprou bilhete para Coimbra, mas adormecendo profundamente só acordou quando ouviu um empregado gritar: Granja!

— É o mesmo, disse consigo. Até é melhor. Fico no Porto, e escrevo ao Sebastião que venha ter comigo se quer ir ver o filho a Coimbra.

Escreveu. Se o tio Sebastião queria ir a Coimbra! Nisso pensava ele havia semanas, porque já não podia com as saudades.

— Já cá estão dois carros e uns pozinhos, dizia ele, se não fosse isto, quem ia ver o rapaz era o filho de minha mãe...

O convite do cunhado alvoroçara-o de alegria e de desusado contentamento. Ria alto, andava radiante, cantava:

À uma hora nasci,
Às duas fui batizado,
Às três andava de amores,
Às quatro estava casado.

— Queres tu vir daí, Joanna? – dizia ele para a criada que lhe arranjava a mala. – É verdade, ó Joanna, não te lembras assim de uma coisa que o estudante goste? Uma coisa bonita...

A criada que era gulosa, lembrava-lhe marmelada, doce de ginja, peras em calda...

— Upa! coisa melhor...

— Quer saber? – disse a velha, com os olhos acesos de quem achou um tesouro, – e a mim que não me lembrou logo! Eu cá se fosse o sô Sebastião comprava uma medalha de ouro como a que o sr. Morgado traz no cordão do relógio; metia-lhe dentro o retrato da falecida, e levava isso ao menino que há de ficar no céu ao ver a mãezinha que Deus lhe levou.

O tio Sebastião aprovou a ideia. O retrato foi tirado da parede, tinha sido feito em Braga, logo nos primeiros tempos do casamento. Representava Carlota vestida com uma saia de seda preta, lustrosa, cheia de vincos, com grossas arrecadas, e uns enormes grilhões no peito largo e arfante, os pés nus numas chinelas bicudas de verniz. Na mão direita tinha um lenço cheio de bordados, tufado. À esquerda descansava nas costas de uma cadeira, e os grossos dedos dessa mão pendiam para a palhinha, lanzudos, reluzentes de anéis. Nos olhos de Carlota havia o espanto de quem vê bruxaria, uma espécie de pavor disfarçado.

O lavrador pegou no retrato, e esteve a olhar para a mulher. Não chorou, nem teve saudades, estava absorvido por um sentimento superior.

— Ó Joanna, mas o retrato é grande e a medalha pequena. Eu não tenho alma de degolar o retrato...

A criada sorriu-se.

— Pois leve o retrato e a medalha ao menino, e ele lá que o mande arranjar...

Na manhã seguinte almoçava o tio Sebastião com o cunhado, e partia nessa mesma tarde para Coimbra, onde chegaram de noite. O brasileiro, cheio de cansaço, adoentado, propôs que se adiasse a visita ao estudante para o outro dia. Que eram horas dele estar a estudar; que não era bom distraí-lo das suas obrigações. O tio Sebastião, porém, não se convenceu. Disse que iria só, que não podia esperar, que não dormiria bem sem dar um abraço no filho. Partiram ambos.

Os viajantes bateram à porta da casa de Sebastião Alves, maravilhados de verem as janelas abertas e a casa completamente às escuras. Ninguém lhes respondeu.

Bateram de novo.

Uma vizinha com a sua voz fina e cantada perguntou o que desejavam, e explicou que o sr. Sebastião Alves tinha ido cear com uns amigos em uma hospedaria da baixa.

Perguntou o brasileiro onde era essa hospedaria, e para lá se encaminhou com o ansioso companheiro, que ao vê-lo meditativo resmungava como que para atenuar a extravagância:

— Rapazes! Um dia não são dias.

As ruas da alta estavam solenemente silenciosas, os transeuntes eram raros.

Ao passarem por uma casa, cujo primeiro andar tinha as janelas abertas, viram um estudante com a cabeça encostada às mãos, absorvido e com os olhos em uns livros...

— Aquele também é rapaz, tornou o brasileiro com gesto sentencioso, mas faz a sua obrigação. Quem vem para aqui é para estudar...

Ao subirem as escadas da hospedaria ouviram um grande rumor, vivas, e hurras frenéticos e entusiásticos; os criados açodados, vermelhos, passavam com largas travessas fumegantes...

— Desejamos saber, disse o brasileiro a um dos criados, se o sr. Sebastião Alves está aqui.

— Está, sim senhor, se lhe querem falar, vou dar-lhe parte...

O brasileiro tirou meia coroa da bolsa de prata, e dando-a ao criado continuou:

— Não queremos perturbar o sr. Sebastião, falar-lhe-emos depois. O que desejamos é um quarto onde possamos esperar até que finde a ceia. Faça favor de lhe não revelar que estamos aqui, é uma surpresa que queremos fazer ao estudante; e sorriu contrafeito.

O criado conduziu-os a uma sala, separada daquela em que os estudantes ceavam simplesmente por uma porta.

O tio Sebastião tinha o coração aos pulos dentro do peito.

— Eu vou lá; dizia baixo com a voz tremula, quero vê-lo.

O cunhado conteve-o.

— Espreite pelo buraco dessa fechadura que já o vê.

O velho curvou-se e olhou.

— Lá está ele! Lá o vejo. Está mais magro... aquilo talvez seja do estudo. Coitado! Mas que valentão que ele anda! Os outros ao pé dele parecem uns pobretões! Um até tem as vestes toda rota e cheia de nódoas. Aquilo que eles trazem é assim a modo de batina de padre... pois não é? Espera, ó mano! Lá vai o meu filho levantar-se. Ó meu rico filho da minha alma!

Sebastião levantara-se de fato para fazer um brinde.

Tinham bebido à saúde das mulheres, do amor, da glória, do talento...

Sebastião, um tanto inflamado de repetidas libações, fez uma saúde a um velho que estava sentado à mesa, um pouco distanciado do grupo dos estudantes.

O brinde foi estrepitosamente aceito.

O velho agradeceu nestes termos:

«Muito obrigado, meus senhores! Reconhecido pela deferência com que me honram, consintam que beba à saúde do pai do cavalheiro que me brindou.»

O brasileiro disse:

— Tome, mano! Aquilo é consigo!

— Mas eu vou lá, vou dar um abraço naquele honrado homem que se lembrou de mim...

Os estudantes ergueram os copos.

— Á saúde de teu pai, clamaram.

— Que infelizmente está longe, disse comovido pelo vinho Sebastião Alves.

— Longe! qual longe, nem meio longe, tartamudeou o tio Sebastião, e ia para lançar-se pelo corredor afora, quando o brasileiro de novo o reteve.

— Espere homem! O rapaz talvez fique envergonhado se lhe aparecermos assim de repente.

— É verdade, meus senhores, disse um dos da roda, um que passava por orador e que gostava de fazer estilo.

«O pai de Sebastião está longe, vive em plagas distantes, em terra de Santa Cruz nesse país fecundo, monstruoso, gigante, que se chama Brasil, e onde os nossos recebem uma hospitalidade tão franca e tão generosa. Brindando ao pai de Sebastião, brindo aos nossos irmãos de além-mar.»

— O que diz ele? resmungou o tio Sebastião, que eu estou no Brasil? Não é má!... e continha o riso.

O brasileiro compreendeu tudo e murmurou: canalha!...

Um dos rapazes que fora condiscípulo de Sebastião em Braga, voltando-se para este, disse:

— É verdade, ó Sebastião, aquele velhinho que uma vez te acompanhou à mala posta, e que eu vi a chorar como uma criança na rua da Conega quando se despediu de ti, era teu avô? Muito gostei eu do velhinho. Parece que o estou a ver a acenar-te com o lenço, correndo com as suas pernas trôpegas e cansadas atrás da carruagem, a dizer: O Senhor vá na tua companhia!

Sebastião avincou o rosto, um rubor súbito incendiou-lhe as faces, e partindo uma noz, respondeu:

— Esse velho era caseiro de uma quinta que meu pai comprou quando esteve ultimamente em Portugal.

O tio Sebastião voltou-se para o brasileiro. Estava lívido, tinha os lábios apertadamente unidos, os olhos injetados de sangue. Esteve um segundo, com os olhos fitos nos do cunhado, sem poder articular uma palavra, bamboleando a cabeça, respirando ofegantemente pelas narinas palpitantes e dilatadas; depois caiu nos braços do cunhado e prorrompeu num soluçar dilacerante e pungente:

— Ingrato! ingrato!
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Quando o tio Sebastião chegou em sua aldeia, vinha pálido, desfeito, parecia desenterrado.

A velha Joanna assustada perguntou-lhe:

— Que foi? Que foi? E o menino?

— Morreu!

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

sábado, 28 de outubro de 2023

Trova ao Vento – 002

Criação JFeldman com Microsoft Bing
 

Mensagem na garrafa – 21 -

 
Criação JFeldman com Microsoft Bing

David M. Romano
(Harris County/Texas/EUA)

QUANDO O AMANHÃ COMEÇAR SEM MIM

Quando o amanhã começar sem mim,
E eu não estiver lá para ver,
Se o sol nascer e encontrar seus olhos
Cheios de lágrimas por mim,
Eu gostaria que você não chorasse
Da maneira que chorou hoje,
Enquanto pensava nas muitas coisas
... Que deixamos de dizer.
Sei quanto você me ama,
E quanto amo você,
E cada vez que você pensa em mim,
Sei que sente a minha falta.

Mas quando o amanhã começar sem mim,
Por favor, tente entender
Que um anjo veio e chamou meu nome,
Tomou-me pela mão
E disse que meu lugar estava pronto
Nas moradas celestiais
E que eu tinha de deixar para trás
Todos os que eu tanto amava.

Mas quando me virei para ir embora
Uma lágrima escorreu-me pela face
Por toda vida eu pensei
Que não queria morrer.
Eu tinha tanto para viver,
E pareceu quase impossível
Que eu estivesse ido sem você.
Pensei em nossos dias passados,
Nos dias bons e nos dias ruins,
Em todo amor que vivemos,
Em toda alegria que tivemos.
Se eu pudesse reviver o ontem
Ainda que só por um instante,
Eu diria adeus e lhe daria um beijo
E talvez visse você sorrir.

Só então descobri
Que isso não aconteceria,
Pois o vazio e as lembranças
Ocupariam meu lugar.
Quando pensei nas coisas deste mundo
Vi que posso não voltar amanhã,
Então pensei em você
E meu coração se encheu de dor.

Mas quando cruzei os portões do céu
Eu me senti em casa
Quando Deus olhou para mim e sorriu
De seu grande trono dourado,
Ele disse: “Isto é a eternidade
E tudo que lhe prometi.
Agora sua vida na Terra é passado
Mas aqui uma nova vida começa.
Eu prometo que não haverá amanhã,
Mas que o hoje durará para sempre.
E como todos os dias serão iguais,
Não haverá saudades do passado.

Você foi tão fiel
Tão confiável e verdadeiro,
Embora tivesse feito coisas
Que sabia que não deveria.
Mas você foi perdoado
E agora finalmente está livre.
Então que tal me dar a mão
E compartilhar da minha vida?”

Logo, quando o amanhã começar sem mim,
Não pense que estamos separados,
Pois todas as vezes que pensar em mim,
Eu estarei dentro do seu coração.

Carolina Ramos (O meu Sanhaço)

Outro momento emblemático a ser lembrado, foi aquele do encontro com o "Meu sanhaço". Fato descrito no texto que se segue, publicado, sob o mesmo título, no jornal santista - "A Tribuna",

O MEU SANHAÇO

Vez ou outra, até que é bom fechar os olhos ao panorama atual, com suas crises e cataclismos que nos puxam para baixo, e abrir o cofre das lembranças, deixando aflorar aquilo que vier de mais leve.

Desta vez, foi um sanhaço que saiu voando do baú, em forma de crônica escrita há algum tempo, em apoio à surpreendente repercussão alcançada por outra, publicada, e na qual o autor falava de um sanhaço em sua vida. Crônica que acabou por levar-me à tentação de também dizer algo a respeito daquele que eu costumo chamar de o "meu sanhaço".

O interesse demonstrado pela publicação, a enfocar essa avezinha silvestre, veio provar que a sensibilidade humana, mesmo embotada pelas calamidades divulgadas todos os dias, ainda não está de todo morta, admitindo algumas fugas pelas janelas da alma.

Assim sendo, permitam que eu diga que também existiu um sanhaço em minha vida. Azul como um retalho de céu! Foi meu, por espaço mínimo, mas valeu a pena... Como, também, valerá a pena contar o porquê:

Era amplo, o quintal da casa de meus pais. Coisa rara em nossos dias. Casa com pomar, no qual não faltavam galhos acolhedores a permitir escalada. Casa com galinheiro - mais raro ainda! Portanto, com direito a clarinadas de galo pela manhã e pintinhos a bicar o ovo pelo lado de dentro - o milagre da vida!

Coisas que poucas crianças têm hoje o privilégio de testemunhar, fora da área rural. A tal clarinada dos galos talvez que ainda possa ser ouvida nas vizinhanças, vinda de uma dessas casas velhas que paulatinamente cedem espaço aos espigões de concreto, vítimas das pressões financeiras que levam as famílias a se empoleirarem em prédios espigados - alguns tortos, como os da orla santista.

Naquela tarde distante, em que o irrequieto sanhaço entra nesta história, eu chegava ao amplo quintal de minha antiga casa, a meia quadra da praia, onde agora um prédio moderno exibe o garbo. Levava almoço para dois gatos, cujos miados festivos me aguardavam, quando, a meus pés, abate-se um punhado de penas azuis e asas agitadas a despertar pronto interesse dos bichanos ronronantes.

O sanhaço debatia-se em desespero, bico aberto, garganta trancada por um grão de milho, a exigir ação imediata.

Voei atrás de uma pinça! Com a ajuda de Deus, foi extraído o grão assassino que, sem matar a fome, quase matara o faminto.

Bem grande seria aquela fome, uma vez que sanhaços, (frugívoros), alimentam-se de frutas, não de grãos.

Segundos depois, asas ligeiras arrebatariam de mim aquele pássaro renascido, devolvendo-o ao espaço, tão azul quanto ele, num maravilhoso voo de redenção!

Por ter resgatado da asfixia a avezinha indefesa e por tê-la livrado das garras ávidas dos gatos, prontos para saboreá-la como sobremesa, guardo dupla e gratificante sensação de ter salvado, não só uma, mas por duas vezes, aquela preciosa joia emplumada.

Assim sendo, embora nunca mais o tenha visto ou reconhecido, creio ter todo direito de chamar o pequenino herói desta crônica, muito afetivamente, de: - O "Meu sanhaço".

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Sílvia Araújo Motta (Sonetos Sáficos-Heroicos) – 2 -


A ILUSÃO do [TER]

Desapegar dos bens é ter noção:
fugacidade desta trilha humana,
sintetizada em meta, ser lição,
cuja ascensão demonstra o Bem que emana.

Quanta ilusão faz parte da aflição,
na delação de alguém que sempre engana,
fraude comprova após rever moção,
a difusão trinômia em nada ufana.

Quando morremos, nem levamos nada:
reclamações, riquezas... tudo lançam
aos confins livres; têm real jornada!

Refletir não existe mal algum;
fraternidade, paz, justiça alcançam...
Humanidade quer o bem comum.
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ÁRVORES VELHAS 

(Á)rvores são amigas, desde cedo;
c(R)iança, idoso, jovens dão sinal,
di(V)idem flores, frutos, negam medo:
cert(O)s abrigos causam riso igual.

Nos arvo(R)edos, ninhos têm segredo;
a gestação (E)ncanta o ser total...
trinar dos bicos(S) não traduz arredo.
(V)elhas raízes; força ganha aval.

D(E)smatamento ou fogo põe terror...
Sim! (L)ute lá na mata contra a serra,
que o (H)omem traz ao mundo, dor, pavor. 

Todos os di(A)s usem voz serena.
Saudemos velha(S) plantas desta terra.
... Árvores dão lições de vida plena
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ESTAÇÕES DA VIDA

(E)m ciclo humano trevas vão surgir,
via(S) diversas, luzes, sol, aquecem,
incer(T)as brisas fazem corpo rir;
não h(Á) surpresa, todos já conhecem.

Bonan(Ç)a passa, sonho quer luzir.
Plano p(Õ)e regras, lutas não iludem,
delas ningu(E)m escapa é só seguir:
contraditória(S) forças: mal ou bem.

Invernos ... (D)obram frios, mui penosos;
possíveis perd(A)s deixam marcas fúteis,
com frustração (V)erões, cruéis, maldosos...

A natureza... ex(I)ge dor e ações.
Felicidade é meta em (D)ados úteis;
na primavera eterna há est(A)ções.
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GRATIDÃO (2)

A gratidão liberta, cura a dor,
a depressão, tristeza, insônia e traz
transformação do Ser, sorriso em cor,
pois a partilha torna o olhar capaz...

Qual brisa mansa vê canteiro em flor
na vida breve, todo mal desfaz;
tempero na alma dá o melhor sabor,
tesouro raro brilha tem cartaz.

É lamentável ver difícil volta
de quem recebe o bem, sem ter razão...
A ingratidão esfria, fio solta.

Se receber favor de rico ou pobre;
não perca tempo, faça seu brasão:
– Agradecer demonstra gesto nobre.
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HOMEM DE BEM

Se a humanidade planta a má semente,
o livre-arbítrio mostra a causa e efeito;
o ser (H)umano deve ter em mente
valor do am(O)r, justiça sem defeito.

A caridade pede (M)ais, mormente
defende o fraco, ped(E) paz, respeito,
promete ao pobre, ter poder, não (M)ente:
agir em prol (D)o bem comum, somente.

Iluminados Mestr(E)s dão melhor
exemplo a quem tam(B)ém a Luz procura,
na caridade cumprem L(E)i Maior.                                          

Perdão ao outro dá lição nor(M)al:
entre esmeraldas raras, a alma é pura.
Homens de Bem espantam todo mal.

Geraldo Pereira (Cartas de Amor)

Comprou um livro com designação e com destinação mais que específicas, a tirar pelo título da obra, quase um opúsculo, na verdade: Cartas de Amor. Leu o todo do texto com o arrebatamento dos apaixonados e o releu depois, com a calma dos amantes saciados, passando folha por folha, grifando aqui e ali palavras incompreensíveis em seu vocabulário, contanto que pudesse escolher uma daquelas missivas para a eleita de seu coração e fez a cópia manuscrita da que considerou a melhor.

Ora, afinal, os flertes dos últimos meses, correspondidos sempre, davam-lhe a impressão, nítida e forte, de um namoro à vista, materializado até, em furtivos encontros pras bandas da Sorveteria Xaxá, na qual se reuniam rapazes e moças daquelas cercanias, da rua Gervásio Pires, sobretudo. Meninos e meninas que cresceram e viraram gente!

Mas, não esperava que as tias da casadoura moçoila decretassem o veto cruel aos afetos que guardava e aos afagos que nunca ensaiara! A proibição veio de logo, assim que descobriram as saídas mal explicadas e as idas desnecessárias ao Colégio Coração Eucarístico de Jesus, onde estudava à tarde, no Curso Pedagógico. E por isso, não deveria aproveitar as folgas que havia no serviço dos Fuzileiros Navais para sair em plena manhã e se encontrar com o soldado de cujo número ninguém mais se lembra! Passou a andar de guarda-costas, com uma ou duas de suas parentes, irmãs do pai, pois que mãe não tinha, vigiando-lhe os passos. A rua inteira se apresentou em solidariedade ao amigo destroçado, que chorava as lágrimas dos impedimentos amorosos ou o pranto das separações impostas.

De nada serviram essas manifestações de apoio e desvelo, o homem não se cansava de repetir as palavras do Cristo: “Tudo está consumado!” 

Varou madrugadas em confissões intermináveis aos garçons da velha Cabana, no Parque 13 de Maio e salvou sonhos, sem querer antecipar do poeta a expressão do sentimento maior, a do espírito, que embala a alma: “Quem salva sonhos! Salva vidas!” 

Ficava horas a fio defronte à casa, moradia de sua musa encantada, encastelada agora, sob as sete chaves desses rigores dos antanhos, aproveitando-se de uma ou de outra aparição na janela ou das ocasiões em que vestida com o encarnado forte da saia e com a pureza virginal do branco de sua blusa, dirigia-se à escola, uma tia à frente e outra tia atrás! Apreciava-lhe a face, de uma porcelana lúdica quase, como aquela das bonecas que ela própria tivera nos anos da infância.

Desesperou-se e correu à livraria, percorreu a rua da Imperatriz todinha, parou no estabelecimento que levava o nome daquela via pública de um comércio que se foi, encantado no tempo deste Recife dos pretéritos vividos e adquiriu o desejado exemplar de suas vontades. Selecionou a epístola mais bonita que achou e rabiscou no alvo do papel: “A perspicácia que te caracteriza, dá margens a que o meu amor por ti se concretize...”. E não houve quem lembrasse de mais nada da sequência daquelas declarações de amor, que aqui recordo, tomou duas páginas do pergaminho tupiniquim, do melhor que existia, adquirido por lá mesmo, na seção de papelaria da loja de livros do judeu, Berestein por sobrenome. Escrevera, mas não entendera o sentido das frases e dos parágrafos, confessou, pedindo-me que lhe esclarecesse os pensamentos e até os sentimentos. Eu, também, não sabia!

E os anos se passaram, um pra lá e outro pra cá, casaram-se com gente diferente e tiveram filhos, plantaram árvores e colheram os frutos. Livros não escreveram, que os saiba, pelo menos, pra contar que sequer a perspicácia serviu para selar o amor que supera a dor. A meninada, da mesma forma, foi se aninhando em braços femininos! Alguns - poucos, todavia –, com as moças do lugar. Distantes, agora, nessa roda viva do existir humano, de quando em vez se encontram no efêmero das conversas, pois que a intimidade do antes foi perdida já, como defende Luiz Fernando Veríssimo e remontam cenas desses outroras, mas se vão, novamente, cada qual pra seu lugar, onde não há espaço para lembranças de passagens assim, simplórias, mas carregadas de sentimentos! E os amores se esvaíram com o peso dos anos!

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Estante De Livros (Alceste, de Eurípides)


Esta é a mais antiga das obras conservadas de Eurípides. Admeto está condenado a morrer cedo, mas o deus Apolo convence as Parcas a permitirem que ele se livre da morte no dia marcado pelo destino, desde que encontre alguém disposto a morrer em seu lugar. Os velhos pais do rei se recusam a salvar o filho, e somente sua mulher, Alceste, prontifica-se ao sacrifício e deve morrer naquele mesmo dia. Hércules, grande herói trágico que se hospeda nesse mesmo dia na casa de Admeto se oferece para salvar Alceste das garras da Morte.

Conhecem-se diferentes versões do fim da estória de Alceste. Ora os deuses apiedam-se e permitem à rainha retornar à vida, ora o herói Héracles desce aos infernos e a resgata.

O poeta retrata Alceste como uma figura de grande virtude, esposa, mãe e rainha piedosa. a morte de Alceste é, em Eurípides, uma escolha motivada pelo amor, uma decisão que não lhe era obrigatória e que ela, como os pais de Admeto, poderia ter recusado

A Alceste, além do final feliz, apresenta alguns aspectos que a aproximam do drama satírico; é uma tragédia leve, considerada precursora do gênero melodrama.

A figura de Alceste foi vista, durante toda a Antiguidade, como um exemplo maior da virtude feminina. Platão afirma que os deuses mesmos a admiravam e Juvenal, cujas opiniões sobre o sexo oposto não eram menos que misoginia, menciona-a como um paradigma de decência ao qual as mulheres romanas, adúlteras e criminosas, não se podiam igualar. Em um epigrama funerário grego, uma mulher declara-se uma “nova Alceste”, porque morreu por seu marido, o único homem que amou. A partir da época romana, a imagem de Alceste, com a cabeça e os ombros cobertos em sinal de modéstia, era um dos motivos preferidos da decoração sepulcral.

O sacrifício voluntário de Alceste nunca cessou de inspirar poetas e artistas, dos quais só damos poucos exemplos. Christoph Wilibald Gluck fez da estória uma das mais belas óperas do período clássico (Alceste, 1767). Rainer Maria Rilke cantou a o amor incorruptível e devoção da mulher que permite ao homem um vislumbre do transcendental (Alkestis, 1907).
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RESUMO

Alceste era a mais bela das filhas do rei Pélias. Por isso foi pedida em casamento por vários reis e príncipes. Mas para não arriscar sua posição política recusando alguns desses reis e príncipes, o rei Pélias declarou que àquele que conseguisse atrelar um javali e um leão em um mesmo carro de corrida e o dirigisse em torno do estádio, seria concedida a mão de Alceste.

Ao ter conhecimento disso, Admeto, rei de Feras, invocou o deus Apolo e rogou-lhe que o ajudasse a cumprir as exigências do rei Pélias para obter a mão de Alceste. E tendo-lhe atendido o deus, conseguiu Admeto, com uma mãozinha de Héracles, atrelar os animais e dirigir o carro puxado por esses ao redor do estádio.

Tendo sucesso na empreita, Admeto fez um sacrifício à deusa Artêmis antes de se casar com Alceste. Mas não se sabe por qual razão ele omitiu esse sacrifício, o que deixou a deusa furiosa, querendo rapidamente puni-lo. Na noite de núpcias do rei, não havia uma linda esposa esperando-o, mas um gigantesco nó de serpentes.

Recorrendo novamente ao deus Apolo, Admeto conseguiu que esse interviesse com a deusa, o que acabou acontecendo, pois ele ofereceu o sacrifício esquecido. Porém, para obter sua amada de volta o rei deveria, quando chegasse a hora, sacrificar sua vida, a não ser que algum membro da família o substituísse por amor a ele, sacrifício em nome do amor.

O dia inesperado da morte de Admeto chegou mais cedo que o imaginado. Hermes (deus mensageiro) entrou em seu palácio certa noite e o intimou ao Tártaro (lugar para onde vão os mortos). 

Admeto não se preocupa muito com essa condição pensando em todos seus servos que lhe deviam favores e que gostavam muito dele e fica muito alegre com a nova esperança. No momento de sua morte, porém, ninguém se habilita, nem seus velhos pais; apenas Alceste oferece-se como substituta. Admeto tinha muito amor à vida, mas não desejava mantê-la a tal custo. Porém a condição das Parcas fora satisfeita e enquanto Admeto ia recuperando as forças, Alceste adoecia. Mas o trágico e também mágico é que, por amor, Alceste tomou veneno e se sacrificou por seu amado, indo para o Tártaro em seu lugar e cumprindo a promessa feita à deusa Artêmis. Hércules, que passava por lá ouve o lamento dos servos que não queriam perder uma querida senhora e tão dedicada esposa, espera na porta do quarto de Alceste a chegada da Morte. Quando esta chega Hércules a agarra e obriga-a a desistir de seu intento de roubar a vida de Alceste. Assim ela vai se recuperando e pôde continuar a viver ao lado de seu amado marido.

Portanto, quem se sacrifica por alguém, acaba sendo recompensado, pois o amor sempre se identifica no outro que nos completa. E Alceste completou Admeto que a tinha trazido de volta.

Fontes:
– João Francisco Pereira Cabral. in "Admeto e Alceste". Brasil Escola. 
– Gabriel Nocchi Macedo, in Alceste ou a morte em troca da vida (Excertos). Estadão 26/08/2017. 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 37: Pagador de pecados

 

Mensagem na garrafa - 20 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

 António Feijó
Ponte de Lima/Portugal (1859 - 1917) Estocolmo/Suécia

A CIDADE DO SONHO

Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho...
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajeto é florido e risonho.

Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca…

Vistos dessa eminência, o mundo e as suas sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.

Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir...
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!

Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio, através do destino,
Ventura sem pesar só na memória existe..

Coelho Neto (Lavradores)

Encontraram-se em caminho e, como o sol abrasava, acolheram-se os dois à sombra da mesma árvore, cuja ramagem frondosa formava verde cúpula sobre a serena fonte. Velhinhos, ambos levavam ferros de lavoura e, sentando-se na alfombra, ficaram ouvindo o suave murmúrio d'água e o chilro dos passarinhos que voavam de ramo a ramo. E disse um deles:

— Bom vai o tempo para a sementeira. A terra está úmida e sente-se-lhe a seiva. O arado desliza fácil e, nos sucos que deixa, medra com vigor a semente. Vamos ter a compensação da miséria do ano passado, ano estéril de fome e de tristeza. Levo a taleiga (saco pequeno e largo) cheia e o que vai ao meu ombro, em fardo quase insensível, voltará do campo carregando com excesso os carros.

— Que levas para semeadura? 

— Linho e pão. E tu? – O outro sorriu sem responder. – Que terras lavras?

— Eu? terras eternas em que rebenta a flor, quer o sol seja ardente, quer as chuvas alaguem, nunca uma só das minhas sementes deixou de vir a jorros. Sou um homem feliz, as minhas terras são bentas.

— Quanto colhes no outono?

— Tenho abegão para tal serviço. Não sei quanto produzem as sementeiras que planto. Afirmo, porém, que são sempre fartas as colheitas do meu campo. A ti falta, às vezes, o sol; outras vezes é a chuva que não vem e ora vês o talhão esturrado, ora o encontras em alagadiço. Para os meus há sempre luz e há sempre rega: chamas de círios e fios de lágrimas. Os meus canteiros são lindos e a flor que deles sobe é a mais bela que Deus criou, nem há outras no Paraíso.

— E dá fruto?

— Sim, dá fruto.

Nesse tempo ouviu-se o rinchar do um carro e o velho, que falava da fertilidade da terra, soergueu-se dizendo:

— É o carro da minha herdade. São meus filhos que vão para a lavoura.

E disse o outro:

— Eu semeio e não me preocupo com o que fica na terra. A flor sobe e sobe tanto que é lá em cima, no céu, que exala o perfume. Deus colhe-a, extrai-lhe a essência e espalha-a pelo mundo.

— E o fruto?

— O fruto é o alimento melhor dos homens.

— Melhor que o pão?

— Melhor que o pão, porque é eterno. O trigo dá a farinha e morre; o fruto da minha sementeira não o devoram vermes, não o bicam passarinhos, as chuvas não o apodrecem, não o engelham os sóis. A flor chama-se Bondade; o fruto chama-se Exemplo. Olha em volta de ti e hás de ver a flor e o fruto das minhas plantações.

O velho relanceou o olhar em torno. Mas um rumor que se aproximava levou-lhe a atenção para a estrada: Era um grupo de crianças, de branco, que passava conduzindo um pequenino esquife coberto de rosas.

— Um enterro.

— Enterro!

— Sim, enterro de um anjo.

— Ainda bem, é a minha sementeira que passa. A sombra está deliciosa e a voz dos passarinhos mais afinada que nunca, mas a obrigação reclama-me. Eu sabia que tinha hoje uma roseira a plantar, deixei a cova pronta e lá vou ao serviço.

— Uma roseira?

— E que são crianças mortas senão plantas de flor? A roseira não dá mais que a rosa; a criança é apenas inocência. Os frutos são próprios das árvores de vida longa, são os benefícios de que gozamos nós outros: o linho tecido em pano, a farinha amassada em pão, o forno que cose a broa, a casa que nos abriga, o carro que vai ao campo, a azenha, a nora, o jugo, o ferro do arado, que é tudo isso? frutos da minha lavoura. Outros vieram depois, mais perfeitos, com a enxertia das raças, com o amanho mais cuidadoso do progresso e são as ciências que multiplicam os bens humanos. Tu és lavrador...

— E tu?

— Coveiro, lavrador também. Meu campo chama-se Eternidade, o meu outono é a Vida. Vai-te ao trigo e ao unho, eu vou ao enterro. O cemitério é a minha leira. 

Uma voz desferiu no bosque vizinho:
O amor é um bem que tortura
É o espinho d'uma flor;
Quem ama só tem ventura.
Quando sofre pelo amor.

Olharam-se os dois velhos e o lavrador de trigo e linho perguntou:

— Quem cantará?

— Que importa a pessoa? é o Amor. Essa voz que nos chega penetra a terra, chega às covas, acorda a vida no seio da morte, como o calor do sol atravessa a superfície do solo e faz estalar a semente que espalhas, tirando dela o renovo que se faz árvore. O que chamamos Amor chama-se, lá em cima, Fecundidade — é o apelo eterno à Vida. Como entendes de lavouras eu entendo de cemitérios e assim como falas, de colheitas fartas, eu posso falar da Eternidade. 

E adeus, vai ao teu trigo e ao teu linho, que eu vou agasalhar na terra a roseirinha mimosa.

Sementes e cadáveres... tudo germes. Coveiros somos ambos.

Adeus!

Fonte: Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. Disponível em domínio público.