terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Caldeirão Poético LXXIII


Nilo Aparecida Pinto
Caratinga/MG, 1915-1974, Rio de Janeiro/RJ

CASA GRANDE

A Casa Grande, na fazenda, eu via
abrindo ao sol, com modos patriarcais,
o alpendre, onde meu pai lia e relia
"A Morgadinha dos Canaviais"...

Ficava ao pé da serra, em que eu ouvia,
naqueles dias calmos e rurais,
a cachoeira que, a saltar, gemia,
como eu a dor do que não volta mais.

Meu pai envelheceu. Desfez-se a casa.
Nem ele mais sua bondade expande,
porque a morte o levou, num rufio de asa...

Mas, se o procuro — o seu amor me atrai —,
parece ainda maior que a Casa Grande
a sepultura estreita de meu pai!…
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Nilo Bruzzi
Pomba/MG, 1879 – 1978, Rio de Janeiro/RJ

A VOZ AMIGA

— “Tu que passaste a vida sem roseiras
que dessem flores para perfumá-la;
tu que tiveste sombras agoureiras
que emudeceram sempre a tua fala;

tu que desceste mudo as cordilheiras
de teu sonho — gigante cor de opala;
que sozinho choraste horas inteiras
por entre a pompa, a graça, o brilho, a gala;

toma o meu braço carinhoso e amigo
e caminhemos com tranquilidade,
toma o meu braço e eu morrerei contigo...”

— Parei diante da sombra triste e esguia...
Era a voz compassiva da Saudade
que estas palavras mansas me dizia...
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Octávio Venturelli
Rio de Janeiro/RJ, 1937 – 2019

MINHA LEI

Venho de Zambi, Pai Onipotente,
e de Oxalá, o Rei maior da Umbanda,
e de meu Pai Xangô, do sol nascente,
da pedreira, e dos raios que comanda.

Sou filho dessa Oxum bela e potente,
faz do amor as armas da demanda.
Senhora universal da água corrente
sentada está no trono de Aruanda!

Para seguir tranquilo a minha estrada,
levo também a proteção firmada
da Orixá do trovão, lansã querida.

A todos querer bem é minha sorte!
E assim eu hei de ser até que a morte
venha mostrar-me o rumo de outra vida...
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Osório Dutra
Vassouras/RJ, 1889 – 1968

TAPIR SELVAGEM

Deve correr dentro das minhas veias
o sangue puro de um tapir selvagem:
amo a tranquilidade das aldeias
e a música do vento na ramagem.

Indiferente às intenções alheias,
bebo a luz policroma da paisagem,
e durmo sobre a colcha das areias,
tendo a lua, que sonha, por miragem.

Bendito seja este rincão fecundo,
que põe, assim, dentro de cada planta,
toda a harmonia de um pequeno mundo!

Sei que sou rude. A minha voz espanta,
mas o meu coração guarda no fundo
a doçura de um córrego que canta.
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Palmira Wanderley de França
Natal/RN, 1894 – 1978

PITANGUEIRA

Termina Agosto... A pitangueira flora...
A umbela verde cobre-se de alvura;
e, antes que de Setembro finde a aurora,
enrubesce a pitanga... Está madura.

Da flor, o fruto é de esmeralda, agora...
Num topázio, depois, se transfigura,
e, pouco a pouco, um sol de estio a cora,
dando a cor dos rubis à carnadura.

A pele é fina, a carne é veludosa,
vermelha como o sangue, perfumosa
como se humana a sua carne fosse...

Do fruto, às vezes, roxo como o aspargo,
a polpa tem um travo doce-amargo,
— o sabor da Saudade, amargo e doce...
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Rodrigues Crespo
Campos/RJ, 1896 –  1976, Belo Horizonte/MG

A INCÓGNITA DO SER

Viver, ou não viver? Que mais importa?
Que tem por fim a vida? A própria vida?
Entramos, ao nascer, por uma porta,
e só na morte achamos a saída...

Viver só por viver não nos conforta.
Falta-nos uma causa mais subida.
Mas, o que fica da carcaça morta?
Restará algo da expressão perdida?

Consola-nos a hipótese da alma.
Mas, por que sobrevive? Por que existe?
Só tem por meta uma existência calma?

Corpo ou alma, afinal, em que consiste
sua razão de ser? E sua palma?
Ah! Como a vida, na incerteza, é triste!

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Contos das Mil e Uma Noites (O Belo adolescente triste)

Fica sabendo, ó meu irmão, que eu também sou filho de rei, e minha história é tão incomum que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos serviria de lição a toda pessoa que gosta de se auto aperfeiçoar. 

Nasci na terra de Kabul onde meu pai, Tigamos, é rei. Ao mesmo tempo poderoso e justo, ele tem sob sua suserania sete reis tributários. Desde a minha infância, meu pai cuidou que fosse instruído nas ciências, nas artes e nos esportes, de maneira que aos quinze anos já era considerado um dos cavalheiros mais finos do reino. Dirigia as caçadas e as corridas, sentado no meu cavalo, mais veloz que um antílope. 

Certo dia, durante uma caçada, ao crepúsculo, vi a poucos passos uma gazela airosa que, ao me ver, fugiu como uma flecha. Segui-a com meus sete mamelucos até que chegamos a um rio caudaloso onde esperávamos acuá-la e prendê-la. Ela, porém, se jogou no rio e nadou com velocidade até a outra margem. Apeamos sem demora, confiamos nossos cavalos a um dos mamelucos, saltamos num barco de pescar que estava lá e fomos em perseguição à gazela. Mal atingimos o meio do rio, perdemos o comando da embarcação e fomos levados pela correnteza. Passamos assim aquela noite e o dia seguinte, incapazes de controlar a violência da água e do vento, receosos, a cada minuto, de bater contra alguma rocha e morrer afogados. 

Foi só na manhã do segundo dia que conseguimos desembarcar numa terra coberta de árvores e atravessada por um córrego. Mas um homem refrescava os pés no córrego. Quando nos viu, pulou, e seu corpo dividiu-se em dois na altura da cintura. Somente a metade superior veio a nós. De repente, de todos os cantos do jardim, apareceram outros homens iguais a ele.

Jogaram-se sobre três mamelucos e começaram a comê-los vivos. Eu e os três outros pulamos no barco, preferindo ser engolidos pela água do que por aqueles monstros. Dois dias depois, desembarcamos novamente numa terra coberta de árvores frutíferas e flores aromáticas. Percorrendo este novo asilo, chegamos a um palácio vazio, com pavilhões de cristal. Entramos. 

Na sala principal, havia um trono de ouro. Sentei-me nele. Mas logo ouvimos um barulho parecido com o tumulto do oceano e vimos uma procissão entrar no palácio, composta de emires, vizires e outros notáveis, todos eles macacos. Uns eram anões; outros, gigantes. O vizir, um macaco de estatura enorme, veio até mim, inclinou-se respeitosamente e informou me, numa voz humana, que seu povo me reconhecia como rei e meus três mamelucos como comandantes do exército. Informou-nos também que estavam prestes a atacar seus vizinhos e inimigos, os Ghuls. Não tínhamos escolha. Montamos em três cães enormes que nos trouxeram e encabeçamos a marcha das forças armadas. E chegamos logo à terra dos Ghuls, os seres mais horrendos que já vira. Alguns tinham cabeças de touro e corpos de camelo. Outros eram como hienas. Outros tinham formas tão estranhas que não se assemelhavam a nada que conhecêssemos. 

Quando os Ghuls nos viram, arremessaram sobre nós uma chuva de pedras, às quais nosso campo respondeu da mesma forma numa batalha terrível. Eu e meus mamelucos usamos nossos arcos e matamos muitos Ghuls, o que nos assegurou a vitória e encantou meus novos vassalos. Incompreensivelmente, esses vassalos me abandonaram após a vitória. E, montado no meu cão, recomecei a errar naquela terra desconhecida.

Um dia, cheguei à cidade dos judeus, que viviam lá desde o tempo de Soleiman. Ao entrar, ouvi um pregoeiro gritar: “Quem quiser ganhar mil libras de ouro e uma jovem escrava, trabalhando apenas uma hora, que me siga.” Segui-o. Na realidade, era o único a segui-lo. Levou-me a um velho judeu que me recebeu com muita simpatia, deu-me um saco contendo mil peças de ouro e me apresentou a uma jovem de grande beleza. - Fica com ela três dias e três noites, disse-me. Depois, irás fazer o trabalho pelo qual estás sendo pago. 

A moça era virgem. Passei com ela as únicas horas felizes de minha vida. No terceiro dia, o velho judeu deu-me uma mula e uma faca e disse-me: “Mata esta mula e separa-lhe a pele do corpo.” Obedeci. Então, disse-me: “Deita sobre esta pele e junta-a em volta de teu corpo. Um abutre gigante vai levar-te no seu bico até o cume de uma montanha. Deixa-te levar sem esboçar um movimento - senão serás morto na hora.”

No alto da montanha para onde o abutre me levou, encontrei um palácio suntuoso e alguém esperando por mim na porta. “Descansa e diverte-te neste palácio, entrando nos aposentos que quiseres com uma única exceção: o aposento que abre com esta chave de ouro,” disse-me o homem. E partiu. 

Passei dias naquele palácio vazio, lutando contra a tentação de abrir a porta proibida. No fim, minha curiosidade prevaleceu. Abri a porta proibida. Havia lá uma piscina e quatro moças nuas tomando banho, como se quatro luas se estivessem refletindo na água. Apaixonei-me por uma delas, denominada Chams, Sol. Esperei até que estivessem todas dentro da piscina e, correndo mais rapidamente que a luz, apanhei a roupa da jovem que amava. Disse-me: “Adolescente bonito, como ousas apoderar-te do que não te pertence?” 

Respondi: “Minha pomba, sai da água e vem falar comigo.” 

Respondeu com suavidade: “Luz de meus olhos, se fizer o que me pedes, estarei plantando uma faca no meu próprio coração.”

Assim mesmo, consegui pegá-la e levá-la até o trono de rubi que estava lá. Vendo que não poderia escapar, cedeu a meus desejos e, pondo seus braços em volta de meu pescoço, deu-me beijo por beijo e carinho por carinho, enquanto suas irmãs sorriam para nós e vigiavam para que não fôssemos surpreendidos.

Momentos depois, meu velho protetor abriu a porta e entrou. Levantamo-nos em sua homenagem. E ele dirigiu a cada um de nós dois palavras carinhosas e incentivou-nos a nos casar, dizendo a Chams: “Minha filha, este moço que te adora é de ilustre linhagem. Seu pai é um rei. Farás bem em aceitá-lo por esposo e eu persuadirei teu pai, rei Nasr, a abençoar-vos.” 

- Ouço e obedeço, disse a moça. 

No dia seguinte, apresentou-me ao pai, o rei Nasr, dono dos gênios, o qual me abraçou e ordenou grandes festas para celebrar o casamento. Mandou também confeccionar um trono tão vasto que, nos seus degraus, podiam ficar em pé duzentos gênios machos e duzentos gênios fêmeas. Sabendo que meus pais estavam ansiosos por minha volta, mandou um exército inteiro de gênios levantar o trono em que minha mulher e eu estávamos sentados e carregá-lo através do espaço até o palácio de meu pai em Kabul. 

A viagem, que leva normalmente dois anos, foi feita em dois dias. Meus pais regozijaram-se e celebraram minha volta e meu casamento com festas mais suntuosas que tudo que tinha sido visto até então. No fim do ano, que passou como uma primavera, minha mulher quis rever seu pai e mãe. Concordei alegremente; mas, para minha infelicidade, foi uma viagem azarenta. Subimos em nosso trono e nossos Afarit carregaram-nos. 

Viajávamos de dia e descansávamos de noite. Uma noite, Chams quis tomar banho num belo rio onde paramos. Tentei dissuadi-la, mas insistiu. Estava no meio da água com suas escravas como a lua no meio das estrelas quando lançou um grito lancinante e caiu morta. Uma serpente das águas, particularmente venenosa, a mordera no calcanhar. Vendo Chams morta, desmaiei. E fiquei tanto tempo desmaiado que julgaram-me morto. Mas, ai de mim, eu devia sobreviver à minha amada para chorá-la e construir-lhe o túmulo que vês. 

Quanto a esse  segundo túmulo, é o meu próprio. Aqui vivo, chorando e rememorando com nostalgia os anos que passamos juntos enquanto se esgota o tempo insuportável que me separa do dia em que dormirei para sempre ao lado de Chams, longe do reino a que renunciei, longe do deserto deste mundo. 

Nasceste de barro e viraste  homem. E aprendeste a retórica e as ciências. Depois, morreste e voltaste à terra como se tivesses sido sempre barro.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Adega de Versos 116: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Mensagem na Garrafa – 47 -


Vinicius de Moraes
(Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes)
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - 1980

O bom pastor

Amo andar pelas tardes sem som, brandas, maravilhosas
Com riscos de andorinhas pelo céu.
Amo ir solitário pelos caminhos
Olhando a tarde parada no tempo
Parada no céu como um pássaro em voo
E que vem de asas largas se abatendo.
Amo desvendar a vaga penumbra que desce
Amo sentir o ar sem movimento, a luz sem vida
Tudo interiorizado, tudo paralisado na oração calma…
Amo andar nessas tardes…
Sinto-me penetrando o sereno vazio de tudo
Como um raio de luz.
Cresço, projeto-me ao infinito, agitando
Para consolar as árvores angustiadas
E acalmar os pinheiros moribundos.
Desço aos vales como uma sombra de montanha
Buscando poesia nos rios parados.
Sou como o bom-pastor da natureza
Que recolhe a alma do seu rebanho
No agasalho da sua alma…E amo voltar
Quando tudo não é mais que uma saudade
Do momento suspenso que foi…
Amo voltar quando a noite palpita
Nas primeiras estrelas claras…
Amo vir com a aragem que começa a descer das montanhas
Trazendo cheiros agrestes de selva…
E pelos caminhos já percorridos, voltando com a noite
Amo sonhar…

Geraldo Pereira (Uma Sereia no Timbó)

 
Aqui, às margens do Timbó, onde as águas do rio se entregam à enormidade maternal dos mares, a madrugada pariu o dia e a manhã ganhou os ares nos braços do astro que é rei, depois a tarde embalou a noite, trazendo outra vez a negritude das trevas. E a noite se foi, parindo outro dia! Eis a metamorfose do tempo! 

Um pescador muito velho, de barbas longas e brancas, tomou a jangada bem usada e se fez ao mar, jogando, seguidamente, a rede, de cujo conteúdo há de alimentar a família. Outro, pisando as areias cálidas da praia, tão alvas quanto a pureza do lírio, de tarrafa à mão, reunia no samburá já surrado as espécimes que podia, de tainhas fresquinhas, fresquinhas. 

O forasteiro, sentado ao largo, vestido à moda urbana, de camiseta estilizada, com inscrição posta na língua lá de fora e de sandálias cobrindo os pés, assistia a tudo isso. Via as mudanças e as transformações, qual observador do cotidiano, anotando vivências e convivências, com as águas sobretudo. Nos dedos contou os barcos e passou de dez nesse exercício, contabilizou gente que ia adentrando as águas, cumprindo o desiderato milenar de buscar nessas intimidades o pão de cada dia. Aceitou o cumprimento respeitoso do caçador de lagostas, de ferro afiado pendendo do indicador e com o apetrecho destinado à sua própria flutuação: “Bom Dia!” E o imaginário soltou-se, libertou-se das amarras que a intelectualidade pode trazer, para rever o tudo e o todo, dali e de fora, do presente e do passado, permitindo-se indagações sobre o futuro.

Como era diferente ele – o forasteiro –, daquele povo simples e aparentemente sem complexos e sem neuroses que por ali passava, livre das injunções sociais, de preceitos e de preconceitos! Ficou filosofando assim ou matutando apenas, sentado como estava, mantendo a sua condição de invasor daquele ambiente tão sagrado e tão puro. Com o calor da manhã e com o sol a pino, viu as lanchas sofisticadas roubarem as águas alheias, provocando ondas no mar, querendo repetir espumas que na beira da praia beijam as areias, deixando telúricos ósculos. 

Assistiu o desfilar de outros forasteiros, veranistas também, de coloridos trajes, falantes e desinibidos, com intenções modernas de relax e de outras práticas. Furtam, na verdade, os ares que desses nativos sempre foram!

Passaram e sujaram, fizeram de seus luxos os lixos daquele canto, um recanto, ainda, das reflexões de Deus. Vieram das paragens sulinas, a tirar pelo sotaque de todos e pelas conversas que vão fiando, trouxeram a fadiga internalizada na bagagem e largaram por cá esses restos de civilização, contaminando o tempo e maculando o espaço. Promoveram no povo daqui mudanças de hábitos, desusados dantes. Pescadores transformados em guias de turismo, carregando pra lá e pra cá gente de fora, em passeios à Ilha de Itamaracá ou à Coroa do Avião. Homens mais velhos com os barcos ancorados, oferecendo passeios, à prainha dizem, seduzindo os outros, como se faz na cidade.

Mas, é do mister de quem observa, anota e vai se permitir a criação do texto, no transbordar do coração diante da inspiração, como agora, madrugada quase de um sábado, aproveitar-se de um cumprimento e fiar conversa, de logo. Como estava o movimento de turistas mandados de São Paulo e do Rio, de outros lugares também? Ruim, respondeu o homem, pescador por profissão e guia por precisão! Depois que fechou o hotel, fugiram daqui os viajantes, foram parar noutros lugares, explicou, justificando! E ficamos a ver navios, disse, fazendo metáfora com as coisas do mar. Tocou a falar de suas experiências, depois que a civilização aportou nessas bandas e o simplesmente nativo foi se adaptando ao inteiramente novo, uma figuração do desenvolvimento emergente. Vira de um tudo por cá, do comum ao inusitado, gente que vai chegando e se deslumbrando com a paisagem do mar, cujo horizonte beija as águas ou com a beleza do coqueiral, no balanço mais do que cadenciado das folhas, ao sabor lúdico dos ventos de janeiro. O coqueiro é a árvore do adeus, as suas palhas se despedem, o tempo todo, do viandante que se vai, entrando nas águas em direção às funduras do mar! 

E o que mais lhe impressionara  nesse tempo das novidades? Confessou, então, a sua perplexidade quando nas águas do rio Timbó viu, depois de trinta anos se pouco, a sereia de seus devaneios e de seus sonhos emergindo, sorrindo para o mundo. Não se falaram, complementou, porque perderam a intimidade, sem precisar aludir a Fernando Veríssimo, mas filosofando à sua maneira!

Entreolharam-se, somente, nada mais!

E para findar a crônica no melhor dos estilos, passou Vando, que da peixaria é o dono, esquipando no alazão tupiniquim, manga-larga da periferia, deixando um dourado aqui e outro ali, um serra para o irmão Getúlio e uma cioba para o escriba. E para Capiba, conterrâneo de Surubim, a prece a Maria Betânia, entoada sob a sonoridade das ondas! E Beto da Goiabeira, que do frágil arbusto caiu em seu primeiro alumbramento, sem invocar o poeta do rio das capivaras, aprendeu de Bandeira os versos cantados na Várzea, dos encantamentos primeiros!

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Contos e Lendas da África (Por que os bodes são animais domésticos?)

Personagens

Tomba-Ya-Taba (bode)
Etoli — (camundongo)
Vyâdu — (antílope)
Njâ (leopardo)
Ko (rato silvestre)
Njâku (elefante)
Homem
Nyati (boi)

O Bode vivia com sua mãe na aldeia. Um dia ele disse:

— Consegui uma poção que me fará vencer qualquer luta. Ninguém será capaz de me derrubar ou derrotar. Vencerei todos os animais. 

Os outros animais ficaram sabendo dessa bravata e foram desafiá-lo. Os primeiros a chegar foram os camundongos, centenas deles, e assim se deu o primeiro embate. O Bode derrotou um por um de seus duzentos desafiantes. Os camundongos reconheceram que não eram páreo para ele e foram embora.

Então os ratos silvestres chegaram e lutaram com o Bode. Mais uma vez, todos foram derrotados e voltaram para casa.

Em seguida vieram os antílopes. O Bode venceu cada um do bando, nenhum foi capaz de derrotá-lo. E também se foram.

Os elefantes foram os próximos, a manada inteira veio desafiar o Bode. Todos voltaram para casa derrotados.

E assim aconteceu com todos os outros animais. Chegavam e eram vencidos da mesma maneira e, como os outros, também iam embora. Apenas um ainda não havia tentado. O Leopardo decidiu enfrentar o Bode, certo de que sairia vitorioso. No entanto, também foi derrotado e assim ficou provado que não havia um único animal na selva capaz de vencer o Bode.

O Pai de Todos-os-Leopardos ficou sabendo daquilo e disse:

— Que vergonha um animal desse tamanho derrotar um de nossa espécie. Vou matá-lo!

E planejou sua vingança. Foi até a nascente usada pelos Homens e se escondeu ali perto. Alguns moradores da cidade apareceram para pegar água e o Leopardo matou dois deles. As pessoas então foram até o Bode e pediram:

— Vá embora daqui! O Leopardo está matando nosso povo por sua causa.

A mãe do Bode então aconselhou seu filho:

— Se isso for verdade, devemos ir visitar meu irmão Antílope.

Então foram até a aldeia do Tio Antílope e contaram tudo o que estava acontecendo.

— Pois fiquem em minha casa! — disse Antílope. — Quero ver se o leopardo tem coragem de aparecer aqui!

Permaneceram na aldeia do Antílope por dois dias. No terceiro, por volta das oito da manhã, o Leopardo apareceu por lá como se estivesse apenas dando um passeio. Ao vê-lo, o Bode e sua mãe se esconderam, enquanto o Antílope foi conversar com ele:

— Qual é o problema? Por que você está bravo com meu sobrinho?

Antes mesmo que o Antílope terminasse de falar, o Leopardo arrancou-lhe uma orelha.

— Por que me atacou? — gritou Antílope.

— Mostre-me onde Tomba-Taba (bode) e sua mãe estão — ordenou o Leopardo.

Amedrontado, o Antílope respondeu:

— Venha hoje à noite e mostrarei onde dormem. Faça o que quiser com eles, mas não me mate.

O Bode ouviu a conversa e foi avisar sua mãe:

— Temos de fugir ou Njâ (leopardo) nos matará.

Quando o sol se pôs, o Bode e sua mãe fugiram para a casa do Elefante. O Leopardo voltou à aldeia do Antílope por volta da meia noite, conforme o combinado. Procurou em todas as casas do vilarejo e, contrariado por não encontrar o Bode, foi até o Antílope e o matou.

Continuou suas buscas e enfim encontrou o rastro de sua caça. Seguiu no encalço do Bode até chegar à vila do Elefante. Njâku (elefante) o recebeu com indignação:

— Qual é o problema? — e o Elefante repetiu as mesmas palavras que o Antílope.

E como o Bode e sua mãe fugiram para a aldeia do Boi, o Elefante teve o mesmo destino que o Antílope: acabou assassinado pelo felino.

O Leopardo então foi até a aldeia do Boi, que repetiu a mesma conversa e teve o mesmo destino dos outros antes dele. Foi assassinado, mas o Bode conseguiu escapar.

A mãe do Bode, já cansada de tanto fugir e desgostosa com a morte de seus protetores, enfim disse:

— Meu filho! Se continuarmos a fugir de aldeia e aldeia, Njâ nos seguirá matando todos os animais. Vamos para as casas dos Homens.

Fugiram novamente e chegaram até a aldeia dos Homens, onde contaram sua história e foram bem recebidos. Um dos moradores acolheu o Bode e sua mãe como convidados, e mais tarde deu a eles uma casa.

Certa noite o Leopardo chegou à cidade, procurando o Bode. O Homem, ao vê-lo, disse:

— Os animais que você assassinou não souberam te matar. Mas aqui na nossa cidade nós o mataremos.

O Leopardo então voltou para sua casa.

Dias depois, o Homem construiu uma armadilha com dois compartimentos. Colocou o Bode em um deles. Quando chegou a noite, o Leopardo saiu novamente à procura do Bode e voltou para a cidade. Apurou os ouvidos e farejou o cheiro de sua presa.

— Esta noite finalmente o matarei — pensou.

Notou uma trilha que levava até uma casa. Abriu o que acreditou ser uma porta e caiu na armadilha. Podia ver o Bode pelas aberturas da parede, sem conseguir tocá-lo.

— Meu amigo! Você queria me matar, mas não vai conseguir — caçoou o Bode.

Quando o dia amanheceu, os habitantes da cidade encontraram o Leopardo preso na armadilha. Mataram-no a tiros e golpes de facão. O Homem então disse ao Bode:

— Não volte mais para a floresta. Fique aqui para sempre. 

Esta é a razão de os bodes viverem junto dos homens: o medo dos leopardos.

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Versejando 127

 

Mensagem na Garrafa – 46 –


Cecy Barbosa Campos
Juiz de Fora/MG

SOLIDÃO

Muitas pessoas veem a solidão como um problema. Porém, o que é a solidão? Entende-se que é o fato de estar só. E estar só é um problema? Isto depende da situação de cada um. Há quem se aceite como uma boa companhia e que se adapte a viver sozinho, sem família ou amigos ao redor.

Quando a solidão é resultante de separação física, forçada ou voluntária, é natural que o sentimento de perda cause sofrimento a quem ficou só, entretanto, o sofrimento pode ser superado pelas boas lembranças. Sentir falta de alguém é um indício de que há coisas boas a serem lembradas, e se temos boas lembranças, elas tolhem o sentimento de solidão.

Diz-se que a pior solidão é aquela de quem vive cercado de muita gente. Neste caso, ela não é aparente, mas é intensa. O indivíduo passa a levar uma vida artificial, ensimesmado em seu interior. Nega-se a aceitar o mundo em que vive, e sua revolta é tão grande que passa a rejeitar o convívio das pessoas que lhe são próximas. Cultiva a sua dor, apieda-se de si próprio e consegue, afinal, afastar de si os amigos bem intencionados que o perturbam.

Conciliando as presenças que habitam em nosso coração com aquelas que, hoje, fazem parte de nossas vidas, nunca nos sentiremos sozinhos e amargurados por problemas de solidão.

Monsenhor Orivaldo Robles (Lágrimas de homem)

Se, como dizem, homem não chora, estou mal na foto. Por muito pouco, mesmo com esforço para segurar, acabo caindo no choro. Justifico-me apelando para as sete décadas que carrego nas costas. Idosos são emocionalmente mais frágeis que jovens. O duro é que no meu caso deve ser não consequência da idade, mas jeito da madeira. Minha saída de Paranacity foi prova clara. Eu estava com trinta anos. No discurso de despedida daquele povo que eu tanto amava, destampei numa choradeira inconsolável. Não consegui pronunciar mais que três ou quatro palavras. Dei um vexame histórico.

Remexendo o fundo do baú de meu coração mole, encontro o pesar imenso que me causa a dor especialmente de crianças. O sofrimento desses inocentes – ah, não dá – me engrola a língua e me arranca lágrimas. Isso vem de longe. Eu tinha três ou quatro anos quando a mãe nos contou, a mim e a meu irmão, um episódio que só de recordar ainda me entristece. O Eraldo, mais velho, já um pouco habituado, quem sabe, às brutalidades da vida, não pareceu ter-se impressionado tanto. Mas a mim, que não podia imaginar ninguém mais pobre do que nós – e, contudo, nunca nos faltara o que comer – por noites seguidas, foi-me difícil conciliar o sono. Voltava-me à imaginação a pobre mulher (que não vi, mas a mãe contou), em conversa com o filho pequeno a lhe implorar comida. Ela argumentava: “Mas você não comeu duas veis (sic)”? Ainda que repetido, o prato não fora bastante para seu infantil apetite. Ou para sua fome, que é mais pungente que qualquer apetite. Não sei que providência minha mãe tomou. Com certeza, não foi capaz de dar solução definitiva ao problema.

Sofrimento de criança não é aceitável para ninguém. Adulto ainda vá lá; pode explicar a dor ou lhe oferecer resistência. Mas criança, não. Para criança a vida teria que reservar sorriso e nada mais. Criança é botão de flor que desabrocha. É manhã de dia que o sol clareia.

Tristeza de criança me desata um pranto que, só a custo, quando consigo, não deixo rolar dos olhos. Como no atendimento à jovem mulher que veio lamentar o sumiço do companheiro. Não dava notícia havia três meses. Ela não sabia para onde ele fora nem se voltaria. Estava sem dinheiro para o leite do garotinho. Não sabia a quem recorrer. Podia trabalhar, mas com quem deixá-lo? Enfrentaria qualquer serviço, mas não dispunha de ninguém para cuidar do pequeno. O bebê tinha uma beleza de chamar a atenção. Como pode alguém, especialmente o pai, abandonar criança tão linda? Fitava-me com olhos imensos e inexpressivos. Um pouco assustada com o choro que a mãe fazia força para lhe ocultar. Brinquei com ele, fiz-lhe mil festas. Não lhe arranquei sequer um arremedo de sorriso.

Dei à mulher uma importância que poucos lhe dariam. Saiu agradecida. Em nenhum momento o bebê desviou de mim seus olhos lindos e distantes.

Dirão que fui tolo, eu sei. Se fui levado na conversa, não terá sido a primeira vez. À Assistência Social, não a mim, cabe resolver esse problema. Não é meu papel. Mas a criança me desmontou. Disfarçando para não chorar, dei dinheiro para o leite de vários dias. Mamadeira vazia criança nenhuma merece.

Ainda me faz sofrer a lembrança daquele rostinho lindo, dolorido, sem o encanto de um sorriso.

Fonte: Portal do Rigon. 29/03/2014
https://angelorigon.com.br/2014/03/29/lagrimas-de-homem/

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXV


DEMOCRACIA PRAIANA...

MOTE:
Na praia afinal achei-a:
a total democracia,
tudo é de todos: a areia,
o sol, a onda, a alegria!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)

GLOSA:
Na praia afinal achei-a:
tão parelha, tão igual,
de muita alegria cheia
numa paz fenomenal!

A total felicidade!
a total democracia,
eu encontrei, é verdade,
enfeitando cada dia!

Desde o canto da sereia
até o rendado de espuma...
tudo é de todos: a areia
e a beleza até das dunas!

Liberdade para amar,
num azul quase magia,
de mãos dadas faz ficar
o sol, a onda, a alegria!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

DESTROÇOS...

MOTE:
A naufrágios não atraias
meu coração sofredor,
pois vão dar em tuas praias
os meus destroços de amor...
Edmar Japiassú
(Miguel Pereira/RJ)

GLOSA:
A naufrágios não atraias
assim, os meus sentimentos,
eles não serão cobaias,
pois são fortes como os ventos!

Um mar de pranto inundando
meu coração sofredor,
vai a tudo transformando
de modo devastador!

Pressinto eternas tocaias,
que nada valem, enfim,
pois vão dar em tuas praias
restos que sobram de mim!

As ondas do mar, confortam
no seu modo encantador,
pois sabem que, em ti, aportam
os meus destroços de amor…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MAR SEM EMOÇÃO...

MOTE:
Na praia, a areia se esconde
ante uma onda incontida...
- Parece a ilusão, por onde
se derrama a própria vida!
Eduardo A. O. Toledo
(Pouso Alegre/MG)

GLOSA:
Na praia, a areia se esconde
embaixo da onda mansa
e é esse o lugar aonde,
a areia, afinal, descansa!

Vez por outra, titubeia,
ante uma onda incontida...
e sentindo medo, a areia
se esconde e chora escondida!

Teme, então, que a onda estronde,
estremece de pavor!
– Parece a ilusão, por onde
escapam sonhos de amor!

Sem sonhos, o coração
lembrando a ilusão perdida,
sente que, sem emoção
se derrama a própria vida! 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

ESTRELAS DO MAR…

MOTE:
Eu comparo o meu sonhar
com quem na praia, anda ao léu,
colhendo estrelas do mar
querendo as que estão no céu...
Gerson César Souza
(São Mateus do Sul/PR)

GLOSA:
Eu comparo o meu sonhar
que é tão lindo, tão bonito,
com uma luz a brilhar,
lá no espaço do infinito!

Eu quero andar de mãos dadas
com quem na praia, anda ao léu,
que, crendo em contos de fadas,
jamais será um incréu!

Eu sigo em meu caminhar
pelas areias bem finas,
colhendo estrelas do mar,
vendo as ondas dançarinas!

Abro meus olhos e vejo,
tirando deles , o véu,
meu verdadeiro desejo
querendo as que estão no céu…
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GEMIDO DO MAR...

MOTE:
O mar, num gemer sentido,
à praia abraçar-se vem;
e, eu sinto que o seu gemido,
geme em meu peito também!...
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
O mar, num gemer sentido,
parece chorar ao léu,
feito um pássaro ferido
querendo voar ao céu!

Chorando um pranto tão triste
à praia abraçar-se vem;
parece que nada existe,
na solidão, sem ninguém!

Tenho o coração partido,
ao ouvir o seu lamento,
e, eu sinto que o seu gemido,
chega a mim, na voz do vento!

Eu sofro com sua dor.
Sinto no eterno vai-e-vem
que esse gemido de amor
geme em meu peito também!…

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Novembro de 2004.

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 3

Voltando aos cavalos - já que o capítulo lhes pertence. A fazer jus à simpatia que a autora tem por eles, mais três episódios vêm à tona, tendo-os como principais atores.

Campos do Jordão - Dois desses episódios vieram à luz nessa linda região paulista, alvo principal de férias anuais, em minha juventude.

Um daqueles deliciosos janeiros, guardião das férias, aconteceu quando minha adolescência cursava ainda o ginásio, lá pelos idos de 1938.

A adolescência, todos sabemos, é fase bastante importante para os jovens, a incluir urgência de firmação da personalidade e, também, uma certa audácia, como se a vida fosse a cada passo nova conquista. Um tremendo desafio a ser enfrentado com desassombro e ausência total de medos.

O preâmbulo faz-se necessário. Para um adolescente, ter medo é símbolo de derrota. Algo constrangedor e inadmissível. Caso esse medo não seja dominado, e se agravado pela timidez, atrapalhará seus passos por toda vida.

Precisamente, isto é o que se constata após franca e corajosa autoanálise. E é preciso lembrar que era precisamente esse, o período enfrentado nos episódios que ora serão rememorados.

A Pensão de dona Eulah, em Campos do Jordão, depois da Vila de Capivari, encostava-se ao morro que fecha a estrada, tendo, à direita de quem ia, o desvio que leva à Lagoinha.

Geralmente, essa pensão, bastante familiar, cômoda e simples, recebia os mesmos hóspedes a cada janeiro, na maioria ingleses, como a proprietária, ou, alemães, como seu marido. E, também, alguns brasileiros - minha mãe e eu entre eles.

Vez ou outra, aparecia também por lá gente nova. O que aconteceu, no ano em foco. E quem chegou daquela vez, dentre outros, foi um rapazote de nariz empinado que - com base no que dizia, considerava-se superior aos demais que não tinham a sua nacionalidade. Gabava-se, entre outras coisas, de ser um bom cavaleiro.

Não raro, seus apartes irônicos chegavam a ser constrangedores, a ponto de Dona Eulah, certa vez, ter-lhe dado, veladamente, um chega pra lá, em plena mesa do café matinal - o que, na surdina, deliciou muita gente.

Mas... por que, acontece este comentário desairoso, fora dos moldes de quem narra? - Simplesmente, porque, como diz o povo - "o castigo vem a cavalo!" - E foi exatamente isso que aconteceu:

Numa daquelas manhãs campesinas, frescas, apesar de douradas de sol, a turma jovem dos hóspedes de Dona Eulah resolveu programar um passeio a cavalo. Claro, que eu fazia parte dessa turma... E também, o tal jovem petulante.

E lá fomos nós, jovialmente, passear pelas bandas daquele recanto belo, já citado, que estende a exuberância do seu paisagismo através de amplos gramados adornados, aqui e ali, por tufos de digitalis - campânulas bastante decorativas, cor lilás, dispostas entre espelhos d'água, a justificar o nome- Lagoinha. 

E foi, justamente, dentro da placidez daquele passeio matutino, que tudo aconteceu:

Cavalgávamos em grupo. Éramos seis... (com permissão da nossa romancista Leandro Dupré), dois rapazes e quatro moças. E eu, a mais jovem delas.

Tudo calmo, até que um pássaro qualquer, pousado à margem esquerda do caminho, espantou-se com o vozerio chegado, que quebrava a placidez ambiental. E, num voo súbito e rasteiro, cortou a frente da pequena tropa. Fato mais do que suficiente para que se descubra se um cavalo é "passarinheiro", ou não.

Para quem desconheça o termo "passarinheiro", que se diga ser ele atribuído àquele cavalo assustadiço, que estranha e reage a qualquer movimento brusco que lhe perturbe os passos. Fato que poderá colocar em situação de risco a quem, incauto, ou menos destro, o cavalgue - candidato a beijar o chão, a qualquer momento, ao menor descuido.

Aquele episódio provou que o Balão era um desses cavalos "passarinheiros", por excelência. E, quem o montava? Justamente aquele jovem de narizinho empinado que se dizia um ótimo cavaleiro - logo, nada a temer.

Mas... o que terá acontecido? 

- Um flash da cena:

Subitamente, aquele pássaro saído da beira da estrada, voou, quase a raspar os cascos do Balão. Este, assustado, desviou o corpo e ergueu-se nas patas traseiras, enquanto o nosso vaidoso herói, atirado ao chão, foi, humildemente provar o gosto que tem a abençoada terra brasileira!

Graças a Deus, tudo não passou de valente susto, sem maiores consequências.

Perplexidade geral! Embora a figura do cavaleiro, irado, a sacudir as roupas e a injuriar a montaria, logo acabasse por provocar reação contrária.

Os risos discretos não tardaram, embora disfarçados em nome da boa educação. Logo depois, quase incontidos, quando cavaleiro frustrado resolveu, quixotescamente, rejeitar "aquele cavalo desastrado!", decidindo-se a voltar para casa a pé, puxando a montaria pelas rédeas - muito embora todos lembrassem termos hora marcada para o almoço - à exceção dele.

E foi aí que entrou a atitude solidária, (que hoje considero ingênua), daquela adolescente, (que era eu) e que, solícita, ofereceu ao jovem de orgulho abatido a possibilidade de ambos trocarem de montaria.

Quem leia este relato, poderá pensar que o dono daquele narizinho em pé, poderia ostensivamente recusar a oferta. Ou, até mesmo sentir-se humilhado com a proposta feita por aquela meninota, julgando-a irônica, embora ainda hoje eu possa garantir que jamais me ocorreria tal indignidade, já que, na maior inocência, pretendi, tão somente, ser útil tentando resolver o impasse.

Com certeza, eu jamais humilharia quem quer que fosse. E, muito menos, quem já deveria estar bastante humilhado pelas circunstâncias.

A surpresa, entretanto, foi o oposto. E deveu-se ao fato daquele cavaleiro vaidoso ter aceito, de pronto, e sem qualquer objeção, o que lhe fora proposto por aquela garota solícita. Muito embora, num rasgo de responsabilidade, ele fizesse questão de alertar: - "Mas... este cavalo é perigoso!" - Ao que a ingenuidade daquela garota prontamente retrucou, com base na "larga experiência" dos tempos da fazenda:

- Não é perigoso, não... Ele é apenas "passarinheiro"... É preciso estar sempre muito atento, ou ele derruba, de surpresa, quem o monte.

Afinal, tudo acabou bem. Trocamos de montaria e o grupo chegou de volta para o almoço, sem qualquer problema, nem atraso. 

E o Balão? Balão comportou-se de maneira impecável - um verdadeiro gentleman.

O melhor de tudo, entretanto, foi constatar que, a partir daquele incidente, não mais ouvimos à mesa, ou em lugar algum, as bravatas deselegantes e as depreciações constrangedoras, por parte daquele que, de repente, ao cair do pedestal, virou um simpático amigo. E o saldo foi ainda mais lucrativo - pois acabamos por ganhar um companheiro cordato, nada arrogante, o que tornou os passeios seguintes muito mais agradáveis e proveitosos.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Estante de Livros (“Contos índios”, de Ruth Guimarães)


Com sua visão antropológica da cultura, Ruth Guimarães, dedicou seus escritos e estudos para abordar o cotidiano caipira na literatura, o que, particularmente envolve os nossos antepassados indígenas. Citando a autora “O índio, nós trazemos em nós”
 
Como povo, somos uma mistura de raças, e o livro traz essa valorização e engrandecimento para com as nossas origens ameríndias. Fato que vem proporcionar ao leitor um momento de autoconhecimento sobre o seu espaço. 
 
Para quem ainda não conhece a obra de Ruth Guimarães, para elaborar as histórias, ela se auxilia basicamente no povo, essa gente simples, que assim como ela gostam de ouvir e contar causos. Buscando sempre a forma descontraída para ilustrar os acontecimentos e mistérios que envolvem o mundo. 
 
Tanto que ao coloca-las no papel, a autora sempre prezou por essa mesma simplicidade em sua linguagem ao registrá-las. 
 
“Quanto à linguagem, claro, recontei à minha moda. Sou portador. Sou caipira. Tenho direito”. 
 
Em seu conteúdo, as histórias começam com os “Contos dos curumins”, que apresentam os índios Puris, primeiros habitantes da região valeparaibana, e por diante o seu cotidiano se envolve com a dos animais e figuras folclóricas das florestas. 
 
“Que conheciam os índios? O sol, a noite, o rio, o macaco, a preá, a onça. Que queriam eles? Viver. Além do comer, do beber, do reproduzir-se, queriam também saber quem os tinha feito. Que faziam eles neste mundo”.
 
Assim, as divisões dos capítulos seguem com os ciclos do macaco, do jabuti, da onça, curupira e da cobra-grande. Ao final de cada fábula há uma consideração da autora sobre a sua pesquisa de acordo com o assunto, apontando as suas variações nas demais regiões e a modificação na grafia de alguns nomes. 
 
Sobre isso, o escritor Daniel Munduruku, apresenta no prefácio um belo texto sobre as versões de histórias que ocorrem entre os povos, devido as diferentes construções. Também coloca a literatura e a produção de livros como atividades essenciais para que as culturais antigas não sejam esquecidas. 
 
“Este importante livro da saudosa Ruth Guimarães é um documento essencial para não esquecermos nossas próprias origens ancestrais”. 
 
Sobretudo, ler e falar sobre Ruth Guimarães é uma grande aprendizagem sobre nós mesmos. Além disso, quem se dispõe a conhecer sua ampla obra, abre-se para um universo simples do respeito pela diversidade dos povos. Como também é uma ponte de apego pela nossa gente: a que gosta de comer iça e mantém o seu vínculo com a sabedoria dos antepassados. 
 
Diante da avançada modernidade e suas tecnologias a distância de um toque, Contos índios, é uma maneira intima de se ver a vida.

Fonte:
texto de Renisse Ordine para o Potiguar Notícias. 14/01/2021