quinta-feira, 28 de março de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (O cego que se fazia esbofetear)

Desde a minha infância, ó Comandante dos Fiéis, fui condutor de camelos. E graças à minha perseverança, comprei oitenta camelos que alugava para negócios ou peregrinação, aumentando constantemente meu capital. Só tinha um sonho: tornar-me o homem mais rico de minha profissão em todo o Iraque. Um dia, voltando com meus animais de Basra após despachar mercadorias destinadas à Índia, parei perto de um poço para permitir a meus camelos refrescarem-se e pastarem. Enquanto estava lá, vi um dervixe aproximar-se de mim. Cumprimentamo-nos e convidei-o a partilhar comigo o pão e a água, conforme as tradições do deserto. E ficamos a conversar, e falei-lhe de meu sonho. Após ouvir-me sem me interromper, disse: 

“Ó Baba-Abdala, trabalhas e labutas visando a um resultado modesto, quando o destino pode num piscar dos olhos tornar-te não somente mais rico que todos os condutores de camelos do Iraque, como o homem mais rico do planeta. Nunca ouviste falar dos tesouros escondidos embaixo do solo?” 

Respondi que estava a par dessas coisas e sabia que certos dervixes possuíam segredos que podiam fazer do mais pobre o  homem mais rico. O dervixe parou de mexer com a areia e disse: 

“Ó Baba-Abdala, ao me encontrar hoje, encontraste o próprio destino.” 

- Se for assim, estou pronto a aceitar-lhe as dádivas com um coração reconhecido. 

- Então, levanta-te e segue-me. 

Levantei-me e andei atrás dele através de vales e planícies até que chegamos ao sopé de uma montanha íngreme. 

“Este é o lugar”, disse o dervixe, parando diante de um grande rochedo. Acendeu um pequeno fogo, jogou nele incenso, pronunciou palavras que não entendi. E logo, uma coluna de fumaça se elevou no ar e o rochedo abriu-se ao meio, dando passagem a uma caverna. Entramos e achamo-nos numa grande sala repleta de montões de moedas de ouro e de joias. Seguindo o conselho do dervixe, desprezei as moedas de ouro, que dariam uma carga muito pesada, e enchi os sacos com joias, mais leves e mais preciosas, lamentando apenas possuir oitenta camelos em vez de oito mil. 

O dervixe apanhou um pequeno vaso de ouro que continha, ao que me disse, uma pomada para os olhos. Saímos da gruta, e outras palavras incompreensíveis fizeram a rocha fechar-se e retomar seu aspecto normal. 

“Baba-Abdala,” disse o dervixe, “voltaremos agora ao lugar onde nos encontramos e lá partilharemos essas riquezas na amizade e na igualdade.” 

Enquanto andávamos, a ganância fez seu trabalho em minha cabeça: “Com que direito esse dervixe ficará com a metade do tesouro que talvez estivesse escrito em meu nome, e só pudesse ser aberto na minha presença?” raciocinei comigo mesmo. “E com que direito ficaria com quarenta de meus camelos?” 

Quando o momento da partilha chegou, disse ao dervixe: “Ó santo homem, que vais fazer com quarenta camelos e suas cargas, já que tua vida é consagrada a Alá? Não estarás cobrando um preço alto demais por me ter indicado o tesouro?” 

O dervixe não se zangou, mas respondeu num tom ameno: “O que estou levando não é para mim, mas para distribuir aos indigentes e necessitados. Quanto ao que chamas de preço cobrado, esqueces que um centésimo do que te dei faria de ti o homem mais rico de Bagdá?” 

Assim mesmo, aceitou ficar apenas com vinte camelos. Mas mal tínhamos iniciado nossos caminhos, eu para Bagdá e ele para Basra, a inveja e a ingratidão voltaram a apossar-se de mim. Corri atrás dele e convenci-o a ficar apenas com dez camelos. Assim mesmo, não me dei por satisfeito. Minha avidez crescia em vez de diminuir. Voltei a argumentar e solicitar e me humilhar e ameaçar, a fim de convencê-lo a ceder-me todos os camelos. No fim, ele desistiu de qualquer participação e disse-me: 

“Meu irmão, faze bom uso das riquezas que Alá te concedeu e lembra-te, às vezes, do dervixe que encontraste no ponto em que teu destino mudou.” 

Mas em vez de me regozijar por ter ficado com todo o tesouro, fui dominado mais uma vez pela avareza, e me convenci de que o pequeno vaso de ouro com a pomada também me pertencia, pois o dervixe poderia obter tantos vasos iguais quantos quisesse. Usei novamente minhas manhas e solicitações, e mais uma vez o dervixe cedeu. Quis também que ele me revelasse a utilidade da pomada e o modo de usá-la, pensando: “Se ele recusar, sou mais forte que ele, saberei como subjugá-lo e, se for necessário, matá-lo.” 

Mas ele atendeu-me com um sorriso, dizendo: “Se passares esta pomada no teu olho esquerdo, verás todos os tesouros escondidos no mundo e o lugar onde estão escondidos. Mas se a passares no teu olho direito, ficarás cego dos dois olhos.” 

Pedi-lhe aplicar a pomada no meu olho esquerdo para que eu aprendesse como usá-la. E ele, sempre calmo e agradável, atendeu. Depois, disse-me: “Agora, fecha o olho direito e abre o esquerdo.” 

Todas as coisas habituais desapareceram e vi grutas subterrâneas e marinhas, troncos de árvores gigantes com buracos cheios de ouro e mil outros esconderijos transbordando de pedras preciosas, ouro, prata e tudo mais. Fiquei encantado, mas minha natureza perversa prevaleceu sobre mim mais uma vez. Pensei: “Será possível que a mesma pomada aplicada num ou noutro olho possa produzir efeitos opostos? Não será que o dervixe me está enganando? Não será que, aplicada no olho direito, a pomada me permitirá conquistar todos os tesouros que vi com o olho esquerdo?” 

Pedi ao dervixe como último favor que aplicasse a pomada no meu olho direito. Ele teve um movimento de impaciência e disse-me: “Baba-Abdala, não sejas o inimigo de ti mesmo. Se insistires, arrepender-te-ás por toda a tua vida. Separemo-nos antes como amigos, e que cada um siga seu caminho.” 

Mas na minha teimosia e desconfiança, ameacei-o. Ele tornou-se pálido e disse-me num tom duro que não lhe conhecia: “Ficarás cego pelas próprias mãos.” 
 
E aplicou a pomada no meu olho direito. E, de fato, tornei-me imediatamente cego. Estendi as mãos, suplicando: “Salva-me, salva-me, meu irmão.” Mas não houve resposta. Ouvi-o juntar os oitenta camelos, conduzi-los e ir embora. 

Caí no chão, e teria morrido lá de remorso e aflição, não fosse por uma caravana que, tendo pena de mim, trouxe-me até Bagdá. Desde então, eu, que tive nas mãos as riquezas da terra, vivo mendigando o pão de cada dia. Meu arrependimento por ter sido tão ávido, avaro, ingrato e estúpido e por ter estragado assim as dádivas de Alá penetrou profundamente no meu coração. E, para me castigar, jurei que, cada vez que recebo uma esmola, pedirei à mão caridosa dar-me uma bofetada. 

-Ó Baba-Abdala, disse o califa, teu crime foi grande, mas a compaixão de Alá é maior para os que se arrependem. Não te atormentes mais. E para te evitar esta vida de mendicância, mandarei o vizir dar-te uma esmola de quatro dracmas por dia, até o fim de tua vida.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Samba em prelúdio)


(samba, 1963) 

Baden Powell e Vinícius de Moraes

Eu sem você 
não tenho porquê
Porque sem você 
não sei nem chorar

Sou chama sem luz, 
jardim sem luar
Luar sem amor, 
amor sem se dar

E eu sem você 
sou só desamor
Um barco sem mar, 
um campo sem flor

Tristeza que vai, 
tristeza que vem
Sem você, meu amor, 
eu não sou ninguém

Ai que saudade, 
que vontade de ver renascer nossa vida
Volta querida, 
os teus braços precisam dos meus
Meus abraços precisam dos teus

Estou tão sozinho, 
tenho os olhos cansados de olhar para o além
Vem ver a vida
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A canção 'Samba em Prelúdio', é uma expressão lírica da saudade e da incompletude que o eu-lírico sente na ausência do ser amado. A letra utiliza uma série de metáforas para descrever o vazio deixado pela falta do amor, como 'chama sem luz', 'jardim sem luar' e 'barco sem mar', que evocam imagens de algo que perdeu seu propósito ou beleza essencial.

A repetição do verso 'Eu sem você' enfatiza a dependência emocional do eu-lírico em relação ao seu amor, sugerindo que a vida sem a presença do outro perde seu significado. A música transmite uma sensação de tristeza profunda e um desejo ardente pelo retorno do amado, como se apenas essa volta pudesse restaurar a alegria e o sentido da existência do eu-lírico.

A música também reflete a habilidade do poeta em capturar a essência do sentimento humano através de sua poesia e música. 'Samba em Prelúdio' não é apenas uma canção de amor, mas um retrato da alma apaixonada que se encontra em desalento pela separação, clamando por um reencontro que traga de volta a luz e a cor para a vida que agora se apresenta desbotada e sem direção. 
(https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49283/significado.html)

Jaqueline Machado (“Macbeth”, de William Shakespeare)


Numa floresta misteriosa, três irmãs, uma espécie de bruxas ou pitonisas estranhas, ao ver Macbeth passar fazem reverência e o chamam de rei.

Nessa ocasião, ele acabara de sair vitorioso de uma guerra. Ele, junto de seu amigo, Banquo, pararam para ouvi-las. E elas revelaram ao guerreiro que ele seria o futuro rei da Escócia. E que Banquo seria pai de reis.

O protagonista fica ansioso com a possibilidade de se tornar um grande rei. E começa a pensar como agilizar o processo. Enquanto continua em viagem, decide escrever uma carta à esposa, Lady Macbeth, que é o próprio espírito da ambição em forma humana. Melhor dizendo, sem humanidade alguma, pois logo incorpora à mente do marido, que ele deve matar o rei. E direcionar a culpa para os empregados de casa. 

O marido fica na dúvida, mas sua mulher tenta persuadi-lo e mexer com suas emoções dizendo- lhe coisas do tipo: - Você não é homem suficiente?

Pois mesmo rica, cercada de luxos, tudo o que ela queria era se tornar rainha da Escócia.

O rei Duncan, que também estava em viagem, logo resolve passar a noite na casa dos Macbeth, e é assassinado por seu guerreiro. 

Eles tinham um grau de parentesco e se davam bem. Mas depois da decisão tomada, nada disso serviu de motivo para desistir do crime.

Ao ver o rei ensanguentado, Lady Macbeth imerge na realidade sombria do fato e diz a famosa frase da obra: “Quem diria que o velho tem tanto sangue?...” E a partir daí ela começa a lavar as mãos compulsivamente e perambular sonâmbula pelo castelo.

A ambição era tanta, que não pararam para pensar que o rei tinha filhos, mas estes, fugiram, e o assassino era o que ficou na linha de sucessão. 

Então, até este momento o plano deu certo. Mas Macbeth lembra que as bruxas disseram que Banquo seria pai de reis, então ele também mata o melhor amigo.  

O novo rei dá um banquete. E o fantasma de Banquo aparece para o amigo. e ele se descontrola perante os convidados, que não entendem o que está acontecendo.

Macbeth procura as bruxas em busca de ajuda. Elas enxergam um bebê com manchas de sangue e dizem: “– Ninguém que é parido de mulher será capaz de te matar.”

E ele pensa: “Todo mundo é nascido de mulher. Ninguém vai me matar.“

Depois elas veem uma criança coroada com um raminho na mão. E traduzem o significado da mensagem: - Você vai ser o rei até que a floresta em frente ao castelo esteja caminhando em direção a você.

Ao retornar para casa ele recebe a notícia de que a esposa, que havia enlouquecido, estava morta. 

A obra não esclarece o tipo de morte que deu fim à mulher.

Os outros senhores da guerra, desconfiados, atacam o castelo. Nesse momento, Macbeth começa a enxergar a floresta se mover.

É morto por MacDuff, que nasceu de cesariana. Foi tirado da barriga da mãe por um homem.

Um dos filhos de Banquo vira sucessor, e mais para frente, na linha de sucessão, os netos e bisnetos do antigo rei.  

De que adiantou tanta sede por poder, se o casal não aproveitou nada? Eis a pequena prova Shakespeariana de que o poder pode, além de emburrecer, cegar e enlouquecer. 

Fonte> Enviado por Jaqueline.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 31

 

Lançamento do E-almanaque “Baú de Trovas”, organizado por José Feldman


Em suas 38 páginas:

– Trovas de hoje e de ontem, de recantos do Brasil, Portugal e países de língua hispânica.

– Na Tertúlia da Saudade, o médico curitibano Maurício Friedrich, trovas e biografia.

– Trov’Humor, com algumas trovas humorísticas da magnífica trovadora Therezinha Brisolla.

– Primeira parte da Didática da Trova, de autoria de Nilton Manoel, que faleceu recentemente.

- 2 Concursos com inscrições abertas.

Foi distribuído por email a 201 trovadores e não trovadores, que possuía contato. 

Ou baixe para seu computador no link a seguir:

Arthur Thomaz (Ponteiros centenários)

Um magnífico carrilhão no canto de vetusto salão no casarão da tradicional família paulistana entoa seu maravilhoso som, informando as horas. 

Os ponteiros entreolharam-se. “O das horas” diz ao outro que hoje completavam 100 anos de existência e que está muito cansado.

O “ponteiro dos minutos” retrucou, afirmando que ele se movimentava 60 vezes, enquanto o outro fazia isso somente uma vez, e que por causa disso, estava muito mais extenuado.

Ambos concordaram que devido a esses fatos mereciam um descanso, e resolveram parar sua centenária labuta.

Sem a percepção do porquê, instalou-se o caos na residência. A cozinheira atrasou o almoço, consequentemente o marido chegou tarde ao escritório de sua empresa.

A esposa deparou-se com os portões da escola fechados ao levar os filhos para as aulas, e assim não pôde ir trabalhar.

O filho adolescente nem notou a alteração de horário porque nunca ia à aula na USP. Assim, continuou entretido em seu videogame.

Ao retornar, a família procurou entender a razão desta repentina e inesperada alteração do cotidiano.

Todos os olhares voltaram-se ao lindo e esquecido relógio, e então, perceberam que, inconscientemente, todos eles se guiavam pelo som emitido nas horas, sempre com a precisão suíça, sem sequer dirigir o olhar para ele.

Talvez, pela primeira vez, tenham entendido o valor do carrilhão em suas atarefadas existências.

Nesta mesma noite, os ponteiros entreolharam-se novamente e um deles disse que havia valido a pena parar, pois além do merecido descanso após tantos anos, haviam recebido um afago do dono ao acertar as horas.

Quinze para as três da madrugada, um observador atento poderia identificar um largo sorriso no mostrador do relógio.

A partir desse acontecimento, quase todos na casa passaram a olhar com mais atenção e puderam então apreciar a beleza do esplendoroso relógio, o que envaideceu os diligentes ponteiros.

A exceção fica por conta do jovem aluno da USP que nada notou e continuou absorto em seu videogame.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 4


BERIMBAU

Três anjos desceram do teto
da igreja e vieram indagar
o que se passou entre nós
dois.

E como eu os repreendesse
me jogaram pedras depois.

Em vão duas borboletas, tímidas,
no meu ombro pousaram, brancas,
movendo duas douradas vírgulas:
por que não nos contas o que houve,
esta manhã, entre vocês
dois?

Porém, nada lhes contei eu;
antes, me escondi nas palavras.
Tive medo do meu segredo;
pois

há certas coisas tão bonitas
que mesmo as borboletas brancas
não deverão saber depois.

Nem as gentis damas da noite.
Nem os lírios nascidos entre
bois.

Ciganas que me procurais,
maliciosas, cantarolando,
é inútil! Porque há certas graças,
tão puras, por serem secretas,
que perdem o encanto, depois.
E que dignas de saber não
sois.

Ah, nem Deus saberá, jamais,
o que se passou entre nós
dois.
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CANÇÃO PARA PODER VIVER

Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.

Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:

E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa

Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!
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CANÇÃO PLUVIAL

O vento canta como um pião de brejaúva
(quando se desenrola no ar a fieira branca e lépida de chuva)

Surdas goteiras cá por dentro
que batem
que batem-batem
num fundo canoro de lata
os seus contínuos, dolorosos zé-pereiras,
estão tocando agora a música simbólica
de uma enfadonha serenata.

Meus soldadinhos de papel, vestidos de amarelo
estão marchando muito longe...coitadinhos!
(minha saudade, a ouvir o canto das goteiras
batendo batendo batendo no fundo de lata
parece que ouve ainda muito longe muito longe
um tamborzinho de prata).

As madrugadas coloridas
as tardes polichinelos
embrulharam-se bem nas nevoentas vapotas*
e foram se esconder lá no fundo das grotas...

O dia de cara suja
suja com a cinza dos poentes de brasa
parece uma enorme coruja
que está pousada há três dias
no teto da minha casa.
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* vapotas = vapores
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CANTILENA, EM AGUDO

No fim da estrada está quem quero,
Alguém que espera por mim.
Mas como pode chegar ao meu fim,
Quando um pássaro canta assim?

A única coisa que não cansa
já se cansou – a esperança.
Esperança, não de esperar,
mas de procurar algum fim.

É a hora em que ouço, lá longe,
o canto agudo do “sem-fim”,
feito de suor e de flautim.
O canto que é cantar por mim.

A voz do não sei de onde vim
Me pergunta, mais pontiaguda
do que a ponta de um florim,
para onde vou, qual o meu fim.

Ah, eu não sei de onde vim
— gota de esmeralda ou sal —
se dos olhos de uma medusa,
se de um chim*, de um espadachim.

Dizem que a maior dor de todas
é a de quando um bem começa
e já de nos ferir não cessa
a certeza do seu fim.

Para mim, a maior não é essa.
É o não Ter fim, quando se pede
que a manhã, olhar de clarim,
nos traga uma solução, enfim.
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* chim = chinês.
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CATEGIRÓ

1
Santo António do Categiró*
na igreja de Nossa Senhora do Ó
Faça com que os homens
se entendam
dentro de um mundo só.

E que gorjeiem, todos,
numa língua só.
E que cada palavra tenha
um sentido só,
para todos.
E que todos sejam um só.

Só assim, boca no pó,
céu comum, chão comum,
ninguém estará só.
Dentro de um mundo só.

2
Santo António do Categiró
na igreja de Nossa Senhora do O
(santo preto, e só
por ser preto)
faça da estrela dalva
um amor só.
Não pela cor do rosto
mas pela do sangue
(rubra)
nas mesmas feridas, 
rosas feridas.

Nem orgulho, nem dó, 
mas uma coisa só.
Nem Agá Kan*, nem Jó,
mas uma coisa só. 
Ó Santo António do Categiró,
na igreja do Ó

3
Canário e noitibó**
cantarão juntos, mas só
quando a manhã for uma
só.

Ninguém se achará só
dentro de um mundo só.

Santo António do Categiró.
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* Agá Kan (Agacão) = título hereditário tipo Comandante em chefe, na Pérsia.
* Noitibó = Pássaro caprimulgídeo de plumagem castanho-ruiva, que à noite caça insetos voando com o bico de todo aberto; curiango.
* Santo António do Categiró = António de Categiró foi um escravo que se tornou santo. Nasceu na Cirenáica, uma região do norte da África, no fim do século XV. Na terra natal praticou a religião chamada Islamismo, que foi fundada por Maomé. Depois, capturado como escravo, foi levado para a ilha da Sicília, sul da Itália. Aí foi vendido para um senhor cristão. Naquele tempo o escravo era comprado por um valor equivalente ao valor de dois cavalos. Muito bom e humilde, Antônio era chamado de Tio António. Foi instruído pelos patrões sobre a vida e a missão de Jesus Cristo. Tornou-se cristão. Não foi, porém um cristão comum, muito menos, um cristão relaxado. Praticava a lei de Deus com todo o fervor. Amava a Deus, procurando estar sempre com Ele por meio da oração. Procurava conhecer também a palavra de Deus na Bíblia. Orava muito, até durante a noite. Sempre se confessava. Como a vontade de Deus é amemos também nossos irmãos, ele amava realmente o próximo.

Era muito trabalhador, cumprindo sempre as ordens de seu patrão, que o encarregou de cuidar das ovelhas. Depois, tinha amor pelos pobres. Pedia ao povo da cidade onde morava, a cidade de Noto, esmolas, e distribuía pelos pobres, alimento e roupas. Ajudava aos pobres também distribuindo leite e queijo das ovelhas. Uma vez o patrão o proibiu de dar leite e queijo para os pobres. António obedeceu. Então a produção diminuiu bastante. O patrão viu que ia tomar prejuízo. Mandou então que António continuasse a atender os pobres. E as ovelhas continuaram a produzir como antes, para alegria do patrão. Deus deu a António o dom de fazer milagres, de modo especial de curar pessoas. Muitos o procuravam para alcançar a saúde. António humilde, dizia que ele não passava de um simples escravo, só Deus tem poder de curar. Impunha as mãos aos enfermos, rezava e Deus curava. Depois de sua morte continuou a fazer muitos milagres. Até hoje temos testemunhas de muitas pessoas que alcançaram grandes graças por intercessão de Santo António de Categeró.  (http://www.paulinas.org.br)
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Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

Laé de Souza (Revendo-se)

Sabe como a gente se sente naqueles dias nostálgicos, com lembranças da mocidade e de querer saber como e por onde andam os tantos amigos que passaram por nossa vida? Pois assim vinha o Belarmino de algumas semanas, Encucado com a ideia, andou por escolas buscando as listas dos alunos, investigou nomes de colegas de rua e depois de uma relação detalhada, procurou descobrir como se saíram. Alguns não viraram nada e não foi nenhuma surpresa. Uns faleceram de morte natural, outros de acidente ou assalto e teve uma colega que morreu no parto. Todos receberam uma missa com encomenda da alma. Tardia, mas com muita fé.

Mário e Julieta se casaram. Tinham um grande amor um pelo outro e não podia ser diferente. 

Matilde, depois de casada, fugiu com um taxista. Também normal, pois a bichinha já era sapeca e danadinha desde pequena.

Arnaldinho, depois de formado, entrou nos negócios do pai com ideias novas e uma administração arrojada, levando a loja do velho à falência. Era de se prever, pois ele sempre fazia besteiras. 

Messias virou um grande médico. Tinha jeito desde menino. 

Agora, com o que não se conformava mesmo o Belarmino era com o sucesso do Francis. O Francis era aquele que sempre sentava no fim da sala e quase sempre a bagunça se iniciava com ele. Difícil o dia em que não ficava de castigo ou não ia para a diretoria. O pai sempre era chamado na secretaria.

Foi ameaçado de expulsão diversas vezes. Nunca foi visto estudando. Passava raspando e, muitas vezes, com ajuda.

Quando lhe falaram que o Francis comandava a equipe em que estavam alguns dos colegas que eram bons mesmo, ele não quis acreditar. Estranhou que o Francis que só passava na cola, nunca foi de estudar e era previsível que nunca seria nada, estava com tudo. Achou estranho também que ele, o Belarmino que era da turma que passava cola e sempre empurrou o cara de um ano para o outro não fosse convidado para fazer parte na tal equipe.

Questionou um e outro sobre aquele absurdo.

Gildásio, mais ousado, lhe fez algumas indagações. Perguntado sobre onde sentava o Francis no dia de prova.

Belarmino disse que o cara era esquisitão. Cada dia sentava em um lugar. Se sabia o porquê, respondeu que ignorava. Foi quando Gildásio lhe apontou o que ele nunca percebera: "Na prova de português, sentava na carteira atrás do Farias, na de matemática, ao lado da Beatriz, na de geografia, no fundo perto do Giba, que também era bagunceiro, mas era encanado na matéria, na de ciências ao lado do Messias, na de química, do teu lado, Belarmino. Como vês, o homem não era fraco não. Enquanto a gente se ralava, ele ficava na dele explorando o talento de cada um. 

Tu sabias quem era melhor em qual matéria? Pois é, Belarmino, o sujeito tem um grande senso de observação e administração de talentos que permanece até hoje.

Belarmino inconformado por estar fora da turma, tentou tirar uma satisfação. Não conseguiu, engoliu a raiva e ficou por isso mesmo.

Gildásio, perverso como ele só, opinava: "Talvez você tenha ficado de fora por causa dessa mania doida que tu tens (que certamente o Francis já percebera há muito tempo), de ficar com uma coisa na cabeça e não pensar em outra.”

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Marcha de quarta-feira de cinzas)


(marcha-rancho, 1963) 

Carlos Lyra e Vinícius de Moraes

Acabou nosso carnaval 
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações 
Saudades e cinzas foi o que restou

Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando   
cantigas de amor

    E no entanto é preciso cantar
    Mais que nunca é preciso cantar
      É preciso cantar e alegrar a cidade

A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida,    
feliz  a cantar

    Porque são tantas coisas azuis
    E há tão grandes promessas de luz
      Tanto amor  para amar
De que agente nem sabe

Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto  de paz
        Seu canto de paz
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A Melancolia Pós-Carnaval em 'Marcha de Quarta-Feira de Cinzas'

A canção 'Marcha de Quarta-Feira de Cinzas', reflete sobre o sentimento de melancolia que sucede a euforia do Carnaval. A letra descreve o silêncio e a tristeza que tomam conta das ruas após o término das festividades, um contraste marcante com a alegria e a vivacidade características desse período.

A música evoca a imagem de pessoas que, após se entregarem à celebração coletiva, agora caminham sem se notar, sem o calor humano que antes era tão presente. A referência às 'cinzas' não é apenas literal, remetendo à Quarta-Feira de Cinzas, mas também simbólica, representando o que resta após a chama da festa se extinguir. No entanto, Vinicius de Moraes insere um elemento de esperança, um chamado para que a alegria seja retomada e a cidade se reanime, apesar da tristeza momentânea.

A canção termina com uma visão otimista, lembrando que existem 'tantas coisas azuis' e 'grandes promessas de luz', metáforas para as possibilidades e o amor que ainda estão por vir. O desejo do poeta de reviver a beleza dos carnavais passados e de ver a paz cantada pelo povo reflete uma esperança resiliente, um anseio por dias felizes que, apesar de tudo, permanecem no horizonte.

Irmãos Grimm (Os três irmãos)

Era uma vez um homem que tinha três filhos, e não possuía nada mais no mundo além da casa onde viviam. E aconteceu que cada um dos filhos queria ficar com a casa depois que o pai deles morresse; mas o pai amava a todos eles igualmente, e não sabia o que fazer; ele não desejava vender a casa, porque ela havia pertencido a seus antepassados, caso pudesse ele venderia e teria dividido o dinheiro entre eles. Até que finalmente ele teve uma ideia, e disse aos seus filhos: 

"Cada um de vocês deve sair pelo mundo, e tentar uma profissão, e quando todos vocês voltarem, aquele que fizer o melhor trabalho ficará com a casa."

Os filhos ficaram todos satisfeitos com isto, e o mais velho decidiu que seria ferreiro, o segundo barbeiro, e o terceiro professor de esgrima. Eles fixaram uma data quando todos deveriam voltar para casa, e assim cada um seguiu seu caminho.

E aconteceu que todos eles encontraram mestres bastante habilidosos, que ensinaram muito bem a eles todas as profissões. 

O ferreiro tinha de cuidar das patas dos cavalos do rei, e ele pensava consigo mesmo, "A casa será minha sem dúvida." 

O barbeiro fazia a barba somente de pessoas importantes, e ele também acreditava que a casa seria dele. 

O professor de esgrima também era muito habilidoso com seus golpes, mas ele mordia os lábios, e não deixava que nada o aborrecesse; pois, dizia para si mesmo, "se você tiver medo de enfrentar, você jamais ficará com a casa."

Quando chegou a data que haviam marcado, os três irmãos voltaram para casa do pai deles, mas eles não sabiam qual era o melhor momento para fazerem a demonstração do que haviam aprendido, então, eles se sentaram e conversaram. 

Durante a conversa, de repente, uma lebre veio correndo e atravessou o campo. "Ah, rá, agora é a hora!" disse o barbeiro. Então, ele pegou a bacia e o sabão, e começou a fazer espuma até que a lebre apareceu; então, ele ensaboou e aparou o bigode da lebre enquanto esta estava correndo no máximo da sua velocidade, sem nem sequer ferir a pele da lebre nem tocar em nenhum pelo do seu corpo. 

"Muito bem!" disse seu pai, "teus irmãos terão que se esforçar bastante, ou a casa será tua."

Pouco depois, um nobre chegou em sua carruagem, correndo a toda velocidade. 

"Agora o senhor vai ver o que posso fazer, meu pai," disse o ferreiro; então, ele correu atrás da carruagem, tirou todas as quatro ferraduras dos pés de um dos cavalos, com a carruagem em movimento, e colocou quatro novas ferraduras sem precisar parar o veículo. 

"Você é um profissional muito habilidoso, e tão esperto quanto teu irmão," disse o pai; "Já estou ficando em dúvida a qual dos dois eu deixaria a casa."

Então, o terceiro filho disse: 

"Pai, deixa que eu faça a minha demonstração, por favor;" e, como estava começando a chover, ele tirou a espada, e a brandiu para frente e para trás acima da altura da cabeça de modo tão rápido que nem uma gota de chuva caiu sobre ele. A chuva ficava cada vez mais forte, até que começou a chover torrencialmente; mas ele apenas fazia movimentos giratórios com a espada cada vez mais rápidos, e ficou tão seco como se ele não tivesse saído de casa. 

Ao ver tudo isso seu pai ficou assombrado, e disse: 

"Esta foi a melhor demonstração de habilidade, a casa fica para você!"

Como haviam concordado anteriormente, seus irmãos ficaram satisfeitos com a decisão, e, porque tinham muito amor uns pelos outros, todos eles ficaram juntos na casa, exerceram suas profissões, e, como eram exímios no que haviam aprendido e eram muito inteligentes, eles ganharam muito dinheiro. E assim viveram juntos e felizes até que a velhice chegou. 

Finalmente, quando um deles ficou doente e morreu, os outros dois lamentaram tão dolorosamente que eles também adoeceram, e morreram pouco depois. E por terem sido muito amigos uns dos outros, e terem se amado como irmãos durante toda a vida, todos foram colocados na mesma sepultura.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 25 de março de 2024

IV Concurso Internacional de Cartrovas (1º de abril a 31 de agosto de 2024.)


REGULAMENTO

MODALIDADE: 
Cartrova

ÂMBITOS: 
Estadual ; Nacional ; Internacional

CATEGORIAS: 
Veteranos ; Novos Trovadores

TEMA: 
Mário Quintana (para todas as categorias e âmbitos).

DESENVOLVIMENTO: 
A Cartrova é uma carta escrita em 4 trovas, com sentido único e relacionadas a um assunto, ou tema específico. Nesse caso, o poeta gaúcho Mário Quintana.

DESAFIO:
O concurso de Cartrovas realizado desde 2021 visa homenagear personagens reais ou fictícias, através de cartas escritas em quatro trovas literárias. Este ano homenageamos o ilustre poeta, Mário Quintana, pela passagem do trigésimo ano do seu falecimento.

Mário Quintana foi poeta, tradutor e jornalista. Nasceu em Alegrete, RS, em 30/06/1906 e faleceu em Porto Alegre, RS, em 05/05/1994. Talvez, seu poema mais famoso foi: “todos esses que aí estão atravancando meu caminho. Eles passarão... Eu passarinho”!

O objetivo é dirigir, em forma de trovas, uma mensagem de reconhecimento ao nobre poeta pelo vasto legado literário deixado. 

Envie suas cartrovas por e-mail ou via correio, conforme abaixo. 

Lembre-se, Mário Quintana, aqui, é o centro predominante da cartrova. 

Não esqueça de mencionar seu nome e endereço completos, e-mail e telefone. 

Na parte superior da cartrova coloque, como exemplificado abaixo. 

A separação das sílabas poéticas será em conformidade ao que está registrado no Dicionário Português (do Brasil).

EXEMPLO: 

DE: 
Xxxx Yyyy (nome do participante)

PARA: Mário Quintana

MÁXIMO: 
até 2 cartrovas por participante.

ENVIO: 

via e-mail: 

lucibarbijan@gmail.com

CLASSIFICAÇÃO: 
Serão classificadas 5 (cinco) cartrovas em cada âmbito e categoria.

PREMIAÇÃO: 
Cada classificado (a) receberá um diploma, via e-mail.

DATA e LOCAL: 
As cartrovas classificadas serão apresentadas ao público durante a Feira do Livro de Caxias do Sul/2024, em horário a data a ser determinada.

OBSERVAÇÃO:
Será vedada a participação neste concurso, dos membros da diretoria da Seção promotora do evento, e as decisões tomadas pela comissão julgadora serão irrecorríveis.

Fonte: Enviado por Luiz Damo, presidente da seção

domingo, 24 de março de 2024

José Feldman (Versejando) 134

 

A. A. de Assis (Palavra bonita)

Manuel Bandeira costumava falar de um velho hotel carioca chamado "Península Fernandes". Dizia que certa vez, passando em frente em companhia de um primo, não resistiu à curiosidade. Entrou e perguntou qual o motivo da denominação. O dono explicou simplinho: "Ora, Fernandes porque é o meu nome, e Península porque acho bonito".

Pronto. Bandeira, consagrado poeta, imortal da Academia, respeitável professor de literatura no Colégio Pedro II, acabara de finalmente aprender o que de fato é poesia.

Na minha cartilha do grupo escolar havia um textinho de leitura cujo titulo era "Plenilúnio". De primeira fiquei encantado com essa palavra, e até hoje ela me alvoroça os instintos líricos. Chego mesmo a pensar que uma lua cheia, para ter de fato jus a ser chamada de plenilúnio, tem que nascer moldada no máximo capricho. Daquelas que só Catulo e Sílvio Caldas sabiam descrever com a devida lindura em verso e música.

Claro: todo idioma tem palavras especialmente bonitas: O francês tem "papillon", o italiano tem "giardino", o espanhol tem "naturaleza", o latim tem "pluvia", o japonês tem "saionara", o inglês tem "forever"... Mas o português é demais - é uma língua riquíssima em palavras fortes, belas, marcantes.

Bom exemplo é a letra do Hino Nacional, com aquela vigorosa sucessão de proparoxítonas: margens plácidas, raios fulgidos, gigante impávido, risonho e límpido, berço esplêndido, florão da América, e de acréscimo um estrelado lábaro.

Aliás, qualquer discurso ganha impulso heroico se é recheado com uma boa dose de proparoxítonas: alvíssaras, efêmero, fantástico, implícito, intrépido, patético, píncaro, ríspido, unânime, uníssono. Até xingamento parece chique se tem tônica esdrúxula; energúmeno.

Olhos e ouvidos, por dom natural, gostam de palavra bonita. Se você perguntar a um grupo de pessoas quais são as mais belas da língua portuguesa, aposto que, entre muitas outras, entrarão estas na lista: alvorada, aquarela, assobio, aurora, borboleta, elegia, epifania, espuma, horizonte, jasmim, lagoa, liberdade, lírio, macio, murmúrio, penumbra, pirilampo, planície, primavera, saudade, sereno, silêncio, ternura, tiquinho, vereda, violeta.

Sem dúvida, entrarão também muitas daquelas doces palavras que aprendemos com os irmãos africanos: acarajé, berimbau, cafuné, dendê, maxixe, quitanda, quitute, e com os irmãos tupis-guaranis: araçá, arara, canoa, juriti, jururu, sabiá, siri.

Só não vale confundir falar bonito com falar difícil.

Isso me faz lembrar um episódio ocorrido no Início dos anos 1960. Um então famoso poeta estava em andanças pelo interior fluminense como candidato a deputado. Num dos comícios, um orador que curtia esmerar no vernáculo saudou-o com estabanada saraivada de adjetivos: "Ilustre, insigne, ínclito, preclaro e mentecapto poeta das multidões!..."

O candidato sorriu meio sem jeito, respirou, respondeu: "Chamaste-me 'mentecapto', / mas tudo bem, caro irmão... / A mim me importa de facto / é a tua santa intenção...". Tenho dito.
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A Gralha Azul, na imagem, é a ave símbolo do Paraná

Fonte> A. A. de Assis. Histórias da história de Maringá. Maringá/PR: Zuli, 2024. 
Livro entregue pelo autor.