quarta-feira, 22 de maio de 2024

Vereda da Poesia = 14 =


Trova Humorística, de São Paulo/SP

Heribaldo Gerbasi

O careca que tem cuca,
tem solução para tudo:
puxa três fios da nuca
e se julga um cabeludo!
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Aldravia do Rio de Janeiro/RJ

Luiz Gondim

incorporo
emoções
onde
debruço
meus
cansaços
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Poema de Porto/ Portugal

Pedro Machado Abrunhosa

VIAGENS

Já vai alta a noite, vejo o negro do céu,
deitado na areia, o teu corpo e o meu.
Viajo com as mãos por entre as montanhas e os rios,
e sinto nos meus lábios os teus doces e frios.
E voas sobre o mar, com as asas que eu te dou,
e dizes-me a cantar: "É assim que eu sou".
Olhar para ti e ver o que eu vejo,
olhar-te nos olhos com olhares de desejo.
Olhar para ti e ver o que eu vejo,
olhar-te nos olhos com olhares de desejo.
Eu não tenho nada mais pra te dar,
esta vida são dois dias,
e um é para acordar,
das historias de encantar,
das historias de encantar.
Viagens que se perdem no tempo,
viagens sem princípio nem fim,
beijos entregues ao vento,
e amor em mares de cetim.
Gestos que riscam o ar,
e olhares que trazem solidão,
pedras e praias e o céu a bailar,
e os corpos que fogem do chão.
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Trova Premiada  em Maranguape/CE, 2008 

Flávio R. Stefani 
Porto Alegre/RS

Um sonho é sonho, mais nada,
mas, às vezes, na emoção,
deixa marcas na calçada
das ruas do coração.
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Poema de Ubiratã/PR

Alessandra Guimarães

MADRUGADA FRIA

Todos dormem,
num profundo sono.
Rua deserta e silenciosa,
pássaros quietos, se escondem.
Somente gotículas de orvalho,
caindo sobre a calçada,
na madrugada fria.

A lua se esconde,
atrás de uma nuvem que passa,
tornando a noite mais escura.
Nuvens formosas,
carregadas d’água,
se congelam,
na madrugada fria.

O brilho das estrelas,
no infinito desaparecem.
O riacho murmura, levemente,
o vento sopra calmamente,
o eco se cala lentamente,
somente o amor vibra,
na madrugada fria.
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Quadra Popular

Vai-te, carta venturosa,
vai ver a quem quero bem,
diz-lhe que eu fico chorando
por não poder ir também.
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Décimas de Teixeira/PB

Ugolino do Sabugi
(Ugolino Nunes da Costa)
1830 – 1893

AS OBRAS DA NATUREZA 

As obras da Natureza 
     São de tanta perfeição, 
     Que a nossa imaginação 
     Não pinta tanta grandeza! 
     Para imitar a beleza 
     Das nuvens com suas cores, 
     Se desmanchando em louvores 
     De um manto adamascado, 
     O artista, com cuidado, 
     Da arte, aplica os primores.

Brilham, nos prados, verdumes 
     De um tapete aveludado; 
     Brilha o rochedo escarlado*, 
     Das penhas seus altos cumes; 
     Os montes formam tais gumes, 
     Que a gente, os observando, 
     Vê como que se alongando, 
     Sumir-se na imensidade ... 
     Nossa visibilidade 
     os perde se está olhando.
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* Escarlado = Cor brilhante de carmesim vivo
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Triverso de Curitiba/PR

Paulo Leminski
Curitiba/PR, 1944 – 1989

tudo dito,
nada feito,
fito e deito
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Soneto de União da Vitória/PR

Pedro Mello

PEQUENO TRATADO SOBRE A DOR

A dor do infarto, dor que chama a morte,
a dor que ataca um mal cuidado dente,
a dor pós-cirurgia, a dor do corte,
a dor da cãibra, o músculo torcente...

o chute acidental... e um homem forte
da partida-batalha sai dormente...
a dor do câncer faz perder o norte,
a dor do parto abala quem a sente...

Mas entre dores tantas, afinal,
qual é a que faz alguém perder o sono
e despencar o pranto sem contê-lo?

...É a dor de todos, dor universal,
amargo resultado do abandono,
a dor pior... é a dor de cotovelo…
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Trova de Mogi-Guaçu/SP

Olivaldo Junior

Entre velhos pergaminhos,
chilreando feito gralhas,
namorados são pombinhos
que dividem as migalhas.
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Spina de Maceió/AL

Isabel Pernambuco

JARDIM EM FLOR...

Passeio num jardim
de flores perfumadas
regadas com carinho

Lindas borboletas celebram a vida,
atraídas pelas cores que cintilam!
Colibri em liberdade constrói ninho,
sugando suave néctar das amarílis!
Rosas, lírios, ipês, ornam caminho.
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Haicai de São Paulo/SP

Guilherme de Almeida
(Guilherme de Andrade de Almeida)
Campinas/SP 1890 – 1969 São Paulo/SP

EQUINÓCIO

No fim da alameda
há raios e papagaios
de papel de seda.
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Soneto de Portugal

Florbela Espanca
(Florbela de Alma da Conceição Espanca) 
Vila Viçosa/Portugal, 1894 – 1930, Matosinhos/Portugal

AMOR QUE MORRE

O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há de vir!
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Setilha de Caicó/RN

Professor Garcia

Casinha à beira da estrada
com chão de terra batida,
fiz do teu portão de entrada
o meu portão de saída,
parti morto de saudade
tangendo os sonhos da idade
pelas estradas da vida!
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Epigrama do Rio de Janeiro/RJ

Millôr Fernandes
(Milton Viola Fernandes)
1923- 2012

Aqui jaz minha mulher
que partiu para o Além.
Agora descansa em paz
e eu também.
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Soneto de Porto Alegre/RS

Ialmar Pio Schneider

O SONETO

Para escrever quatorze linhas, tenho
que dedicar o tempo disponível,
e embora seja humilde meu engenho,
vale a pena, afinal, tornar possível

esta tarefa nobre de alto nível...
É preciso sonhar e ter empenho
de alimentar um grande amor incrível,
somente realizável por um gênio...

Sinto, no entanto, que não devo alçar
voo tão alto, e me penitenciar
de assim querer e então me comprometo

a desobedecer esta vontade;
e caindo, por fim, na realidade,
aqui me despedir... Eis o Soneto !…
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Trova de Sorocaba/SP

Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

O sol, silencioso, desce,
e é mais um dia a morrer;
mas do outro lado, uma prece
lhe agradece o renascer.
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Poema de Santos/SP

Carolina Ramos

BOÊMIO

Boêmio – em turbilhão intenso a vida esbanjas,
escravo de emoções em noites deturpadas.
Teu sol, luz de abajur, a arder envolto em franjas,
tem o álgido livor das frias madrugadas.

Volúvel, novo amor te aguarda em cada esquina,
e insatisfeito vai teu coração repleto
dessa ânsia de viver, que arrasta, que fascina,
alheio à paz de um lar, à placidez de um teto!

Boêmio, a mocidade é curta… logo passa!
A seara, quando má, provém de mau plantio!
Apressa-se o amanhã… o nada te ameaça
e a solidão abraça o coração vazio!
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Limerique* de São Paulo/SP

Tatiana Belinky
São Petersburgo/Rússia, 1919 – 2013, São Paulo/SP

Quem pensa que eu sou uma ogra
No seu pensamento malogra.
Língua bifurcada?
Só quando enfezada.
Porque eu sou mesmo é sogra.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

* Limerick ou limerique é um poema monostrófico de cinco versos, com ritmo anapéstico ou anfíbraco. O nome do poema é geralmente considerado como uma referência à cidade irlandesa de Limerick, que é onde acredita-se tenha tido origem, mas seu uso foi documentado pela primeira vez na Inglaterra em 1846, quando Edward Lear publicou A Book of Nonsense. 

Versa, na maioria das vezes, temas de tendência humorística, por vezes obscenas. Os versos 1, 2 e 5 são maiores, geralmente com três pés de três sílabas (anapestos ou anfíbracos), rimando entre si, e os versos 3 e 4 menores com dois pés de 3 sílabas, também rimando entre si. O esquema rítmico é AABBA.

No Brasil, a arte do limerique também foi representada por escritores como Joaquim de Sousândrade e Clarice Lispector, sendo que os mais famosos foram escritos pela escritora de livros infantis Tatiana Belinky (http://pt.wikipedia.org/wiki/Limerick_%28poema%29)

Como Escrever uma História Curta e Engraçada – 1

A criação de um conto de humor é uma experiência agradável que combina a comédia e a escrita criativa com um formato literário interessante e envolvente. O humor pode aliviar a tensão de situações difíceis e unir as pessoas através do riso, um subterfúgio muito útil se a trama em questão for tensa ou perturbadora. Não importa se você está escrevendo uma dissertação para a escola ou se simplesmente deseja contar uma história insana e engraçada através de um projeto literário, a combinação da comédia com a escrita poderá ajudá-lo a expressar criatividade e senso de humor.

PLANEJANDO O CONTO

1. Escolha um cenário.

Alguns escritores preferem planejar a trama antes de escolher um ambiente, mas, na literatura cômica, o humor costuma se basear em situações. Antes de começar a criar o enredo do conto, considere onde a história se passaria e como você poderia extrair humor de tal cenário.

Tente ser original na hora de escolher um ambiente. Os leitores podem se desinteressar pela obra se estiverem muito familiarizados com o cenário, já que sentirão que história foi reciclada.

Nos contos, o ideal é manter o menor número de cenários possível. Tente trabalhar dentro de apenas um ambiente e, se não for possível, não use mais de dois.

2. Invente uma trama.

O enredo é o componente mais importante da história e abrange o que acontece no conto, quem está envolvido e como a série de eventos se desenvolve.

A maioria das histórias cativantes tem começo, meio e fim, e através dessa linha de tempo uma tensão cresce gradualmente, seguida do clímax (o momento auge da tensão) e do desdobramento que conduz ao final do conto.

Pense em qual elemento seria a fonte de drama ou tensão do enredo e tente trabalhar esses fatores no cenário escolhido para a história.

Considere como a fonte de tensão poderá funcionar no cenário escolhido. Por exemplo, talvez o ambiente aumente a tensão ou propicie uma situação cômica que contraste com o local onde os eventos se desenvolvem.

3. Planeje as personagens.

Toda história precisa de personagens interessantes e realistas. 

Um conto engraçado deverá apresentar personagens com qualidades cômicas ou que se encontrem em situações divertidas.

A forma como as personagens são retratadas dependerá das personalidades e circunstâncias únicas de cada uma delas, dentro da história.

Por exemplo, você poderia criar uma personagem "idiota" e estabanada que se depara com situações engraçadas, ou uma personagem sarcástica que acredite saber de tudo mas acabe percebendo que não sabe nada sobre as próprias circunstâncias de sua vida.

As personagens devem ser realistas e plausíveis. Elas devem ter sentimentos e opiniões e reagir de forma realista às diferentes situações do conto.

Considere quais tipos de personagens poderiam tornar o cenário divertido ou vice-versa.

Todos os elementos do conto (ambiente, enredo e personagens) devem trabalhar em conjunto, combinando bem um com outro ou criando contrastes engraçados e inesperados.

continua… Incorporando o humor

Fonte> wikihow 

Recordando Velhas Canções (Nos Bailes da Vida)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Só quem toma um sonho
Como sua forma de viver
Pode desvendar o segredo
De ser feliz

Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão
Que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim

Cantar era buscar o caminho que vai dar no Sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe, tudo tão bom
Até a estrada de terra na boleia de caminhão
Era assim

Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se foi assim, assim será
Cantando me desfaço e não me canso
De viver nem de cantar

Cantar era buscar o caminho que vai dar no Sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe, tudo tão bom
Até a estrada de terra na boleia de caminhão
Era assim

Com a roupa encharcada, a alma repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se foi assim, assim será (assim será)
Cantando me desfaço e não me canso
De viver nem de cantar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Jornada do Artista em 'Nos Bailes da Vida'
A música 'Nos Bailes da Vida', interpretada por Milton Nascimento em parceria com o grupo Roupa Nova, é uma homenagem à trajetória dos artistas, especialmente músicos, que percorrem caminhos muitas vezes árduos em busca de realização e reconhecimento. A letra fala sobre a persistência e a paixão pela arte, independentemente das dificuldades encontradas no caminho.

O refrão 'Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão' evoca a imagem de músicos que começam suas carreiras tocando em locais pequenos e muitas vezes precários, mas que são movidos pelo sonho de viver de sua arte. A expressão 'em troca de pão' sugere que muitas vezes esses artistas tocam não apenas por amor à música, mas também como meio de subsistência. A música destaca a importância de se aproximar do público, de 'ir aonde o povo está', reforçando a ideia de que a arte deve ser acessível e estar em contato direto com as pessoas.

A canção também aborda a resiliência e a dedicação dos artistas, que 'não se cansam de viver nem de cantar', mesmo diante de adversidades. A 'roupa encharcada e a alma repleta de chão' simbolizam as experiências vividas e as marcas deixadas pela jornada. 'Nos Bailes da Vida' é um tributo àqueles que encontram no ato de cantar e tocar um caminho de luz e felicidade, apesar dos obstáculos enfrentados.

Aparecido Raimundo de Souza (Um dia, o amor)

SEM MEDO DE ERRAR, aquele se fazia um coração que batia descompassado, como se dançasse tresloucado ao som de uma música envolvente, porém, que só ele conseguia ouvir. Esse coração pertencia a Lafaiete que amava profundamente, mas cujo amor, por algum motivo desconhecido, não se fazia retribuído. Assemelhava, sem tirar nem pôr, a um amor unilateral, tipo essas paixões doidivanas que ardem como fogo em um dos lados e permanecem frios e gélidos no outro.

Lafaiete por conta desse vazio terrificante, vivia batendo cabeça entre as estrelas e a melancolia. Entre o sonho não vivenciado e uma realidade não palpável. Nas noites mais escuras, olhava demoradamente para o céu e imaginava que cada estrela representava uma quimera não decantada, um desejo não correspondido, um tempo incerto e não vivenciado. Cada brilho distante se adumbrava como uma lembrança dolorosa; um eco daquilo que poderia ter sido; mas nunca se fez palpável.

Por conta disso, “trocentas” vezes mergulhava em pensamentos ociosos, relembrando os momentos cavernosos e anoréxicos, em que a pessoa amada estava por perto, sem estar. Cada sorriso, cada olhar, cada toque, eram guardados como preciosidades raras em seu coração. Contudo, ao mesmo tempo, essas lembranças e regalos também se transformavam em punhais perfurando a sua alma com a certeza de que nunca seriam mais do que isso: lembranças.

O amor não correspondido, para ele, se assemelhava a uma ferida que não cicatrizava. Se fazia pesado numa dor que não se resolveria com remédios ou palavras de consolo. Tudo se agigantava numa sensação estranha e densa de estar desabrigado, de não ter um lar para o aconchego do coração. Lafaiete se perguntava: “como poderia algo belo e intenso, causar angústia tão degradante”?

Todas as noites, depois que chegava do trabalho, se trancava em seu quarto. Sentava na escrivaninha e escrevia cartas. Compunha missivas longas que nunca seriam enviadas. Poemas que jamais seriam declamados. Redigia para exorcizar a dor, para dar voz e forma aos sentimentos que o sufocavam interiormente. Assim, meio que abrupto, nasceu um poeta dentro dele. Cada verso, uma lágrima transformada em palavra, cada linha uma saudade eternizada na tinta de sua caneta esferográfica.

Mas o tempo passou, e Lafaiete aprendeu, a trancos e barrancos, que o amor não correspondido não mostrava o fim do mundo. Ele descobriu que a amargura poderia se transformar em algo mais suportável. Que as mágoas, em uma série de versos, os seus pensamentos dariam lugar à aceitação. Afinal, o amor não é apenas sobre ser amado ou ter alguma compensação em troca. É sobre sentir, assimilar, viver, usufruir, gozar, mesmo que num determinado ponto, alguma coisa descambe para a dor causticante e estupadorada na sua maior forma de expressão.

Assim, entre as estrelas e a melancolia, a consternação e a repugnância, Lafaiete se deparou com um novo caminho a ser seguido. Percebeu que o amor não correspondido não o mataria, ao contrário, o transformaria num novo ser. Um corpo de concepções vivificadas. Quem sabe; talvez um dia; encontrasse alguém de verdade. Uma criatura que olhasse para o mesmo céu e visse as mesmas estrelas. Alguém de olhos deslumbrantes que igualmente tivesse um coração descompassado, dançando ao som de uma música elegantemente invisível, contudo, maviosa e fruitivamente sonorosa.

Quem sabe, outro lado da mesma moeda, nesse encontro de almas solitárias, oxalá o amor finalmente se tornasse recíproco, mútuo e equivalente. Até lá, enquanto a esperança não bate definitivamente em sua porta, Lafaiete continuará a grafar as suas crônicas, suas poesias e cartas não enviadas. Afinal, o amor não correspondido ou não galardoado, também tem a sua beleza, a sua amenidade, a sua magia e a sua profundidade.  

Um dia (sempre há um dia), ele, Lafaiete, se torne o protagonista único de uma história de amor marcante, chique, saliente e infinita, tipo um conto perpétuo e, que não caiba apenas entre as estrelas... também se coadune nos braços de uma jovem elegante que o ame de volta, com a mesma intensidade e deleite. E cujo amor ardente e garboso será incondicionalmente palpável até o final de seus dias.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

terça-feira, 21 de maio de 2024

Varal de Trovas n. 601

 

A. A. de Assis (E o homem veio)

No princípio era o verde. O verde a perder de verde, guardando o chão vermelho que aguardava o homem vir. E o homem veio, viril, varão, varonil. Veio enxertar a terra, que, no cio, vermelha, de viridência vestida, aguardava o homem vir. E o homem veio, viril. E a terra prenha pariu.

Ninguém sabe exatamente quem foi o primeiro a aqui chegar. Nem se estava sozinho ou se com ele havia mais alguém. Alguém chegou aqui primeiro. Decerto alguém de muita coragem, muito peito, ou quem sabe movido por um pouco de abençoada maluquice.

De onde veio? Não se tem a menor ideia. Veio em busca de um lugar novo onde fazer o pé-de-meia, ou veio simplesmente trazido pelo espírito de aventura? De qualquer modo, veio. Viril, varão, varonil, atraído pelo aroma da mata e pelo cheiro da terra. Alguém veio, pediu licença à floresta, abriu nela o primeiro espaço, construiu o primeiro rancho, plantou a primeira roça, colheu o primeiro grão.

Depois chegou o primeiro vizinho, mais outro, mais outro. Fizeram-se amigos, os primeiros amigos, as primeiras famílias. Ergueram a primeira igreja, a primeira escola. Alguém abriu a primeira vendinha que vendia de um tudo – de melhoral a carne-seca, de sal e açúcar a querosene.  

Criaram o  Aero Clube e o Grêmio dos Comerciários para ter onde dançar e namorar. Criaram a Associação Comercial, a Santa Casa, a Maçonaria, o Rotary, o Lions, o Ginásio Maringá, o Colégio Santa Cruz, o Marista, o Santo Inácio, a primeira faculdade, a primeira universidade. Fundaram o Albergue, o Lar dos Velhinhos, o Lar Escola das Crianças. Construíram o Grande Hotel. Ergueram a Catedral. Formaram a Cocamar. Criaram o glorioso Grêmio Esportivo Maringá.   Fundaram o Maringá Clube, o Country, o Olímpico, o Clube Hípico, o Centro Português, a Acema, o Teuto.

E foi chegando gente e mais gente, de todas as origens. E foram abrindo lojas e mais lojas, bancos e mais bancos, indústrias e mais indústrias, hospitais e mais hospitais, restaurantes e mais restaurantes, shoppings e mais shoppings, supermercados e mais supermercados.  

Projetada pela companhia colonizadora para ser uma cidade de 100 mil habitantes, Maringá já abriga mais de 410 mil, sem contar os tantos mais que moram nas comunidades vizinhos, porém trabalham aqui, estudam aqui, fazem suas compras aqui – ao todo, mais de um milhão de pessoas que foram chegando após a vinda daquele primeiro arrojado mateiro que aqui armou seu primeiro rancho quando os ruídos mais frequentes eram ainda o miado das onças e o gorjeio dos sabiás.

Um lugar de bravos e bravas. Ah, as bravas mulheres primeiras. As pioneiras. Algumas delas, raras, estão ainda entre nós. Uma delas pode ter sido sua avó ou bisavó. Que vida difícil elas enfrentaram nos primeiros tempos desta cidade forte e linda. Quanto barro, quanta poeira.

Onde quer que agora estejam, Deus as abençoe.

Maringá está completando oficialmente 77 anos. Quase todos os que vieram primeiro já estão na eternidade. Lá no assento etéreo onde se encontram, estarão certamente felizes e faceiros, contemplando a bela obra que nos legaram. 

A cada um deles, o nosso muitíssimo obrigado.

Fonte: Portal do Rigon. 09.05.2024

Vereda da Poesia = 13 =


Trova Humorística, de São Gonçalo/RJ

Gilvan Carneiro da Silva
 
O truque falha...vermelho,
o mágico diz que o enguiço
é culpa do seu coelho
que ainda é novo no serviço...
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Soneto de Cururupu/MA

Raimundo Correia
Cururupu/MA, 1860 – 1911, Paris/França

FIM DE COMÉDIA

O pano sobe, e o povo, satisfeito,
Aplaude a farsa, e ao riso não resiste;
“Gosta um moço da filha de um sujeito,
E este não quer que a filha case; ao triste

No fundo do jardim promete a amante
Um rendez-vous, longe do pai tirano;
Mas pilha o velho o escândalo flagrante,
E ambos vão casar-se… e cai o pano.”

Dizem os velhos que o teatro ensina.
Então tu podes sem pesar, menina,
Seguir este conselho: solta a rédea

Deste amor, que é o meu e o teu tormento,
Que há de a nossa comédia em casamento
Findar, como findou a tal comédia.
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Aldravia de Pirapetinga/MG

Amélia Luz

Fui
linha
e
ponto
tecendo
remendo
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Martelo Agalopado, de Riacho de Santana/BA

Marco Haurélio 

GALOPANDO O CAVALO PENSAMENTO 
(duas estrofes de cordel)

A Senhora dos Túmulos observa 
O vaivém da tacanha mocidade,
Que despreza a virtude e a verdade
E dos vícios se mostra fiel serva,
Porém nada no mundo se conserva:
Sendo a vida infindo movimento,
É a Morte um novo nascimento
A inveja é o túmulo dos vivos —
O herói repudia esses cativos,
Galopando o Cavalo Pensamento.

Das trombetas ecoam novo som,
O tinido das armas me atordoam,
O rufar de tambores longe soam,
Destruindo o último Panteon
Será esse sinal o Armagedon?
Ou apenas mais um renascimento
De um ciclo que traz o advento
Duma aurora de brilho sem igual,
Sem início, sem meio e sem final,
Galopando o cavalo pensamento.
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Epigrama de Salvador/BA

Roberto Correia
1876 – 1937

Burro, a cegueira da sorte
Elevou-te e, ao sol, espelhas
Mas guardas o mesmo porte
E as mesmíssimas orelhas.
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Soneto de São Luís/MA

Artur de Azevedo
(Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo)
São Luis/MA, 1855 – 1908, Rio de Janeiro/RJ

TERTULIANO, O PASPALHÃO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!
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Trova de Curitiba

Helena Kolody
Cruz Machado/PR, 1912 – 2004, Curitiba/PR

A vida o tempo devora;
o próprio tempo não dura.
Colhe a alegria de agora,
para a saudade futura!
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Poema de São Francisco de Itabapoana/RJ

Roberto Pinheiro Acruche

QUEM SOU EU

Eu sou um caso,
um ocaso!
Eu sou um ser,
sem saber quem ser!
Eu sou uma esperança,
sem forças!
Eu sou energia,
ora cansada!
Eu sou um velho,
ora criança!
Eu sou um moço,
ora velho!
Eu sou uma luz,
ora apagada!
Eu sou tudo,
não sou nada!
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Haicai de Magé/RJ

Benedita Azevedo

Barulho estridente
no bosque ao lado da casa –
Ah! Um pica-pau.
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Soneto de Miguel Couto/RJ

Edmar Japiassú Maia

A MISSA DO COMPADRE 

Ia vivendo meio aposentado, 
celibatário que era por vontade, 
por ter sofrido, em plena mocidade, 
uma desilusão de amor frustrado… 

Porém, um dia, foi comunicado 
da morte do compadre na cidade, 
e este fato lhe trouxe, na verdade, 
a esperança deixada no passado… 

O infausto passamento deu-lhe o ensejo 
de sentir despertado um só desejo, 
que trazia no peito adormecido… 

E foi durante a missa do compadre, 
que, amparando em seus braços a comadre, 
baixinho, agradeceu ao falecido!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Vila Nova de Gaia/Portugal

Alexandre Rodrigues Fernandes

Quem me dera ser quem era,
em vez daquilo que sou...
Voltas sempre, primavera.
Minha infância... não voltou!
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Poema de Portugal

Vitório Nemésio
(Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva)
Ilha Terceira/Açores, 1901 – 1978, Lisboa/Portugal

A CONCHA

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
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Quadra Popular

Hoje não venhas tarde
Dizes-me tu com carinho
Ou compras um relógio novo
Ou amanhã vai de carrinho.
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Spina de São Paulo/SP

Solange Colombara

ENTRE FRESTAS E OLHARES

Marejam aos infortúnios
do destino, harmonizam
em crepúsculos serenos,

são apenas arco-íris tênues, plenos.
Acalmam sorrindo ou lançam luzes
em pequenas doses, sutis venenos.
Teus raios iluminam minhas noites;
sois na vida, espetaculares acenos.
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Trova Premiada em Amparo/SP, 1999

Sérgio Ferreira da Silva 
São Paulo/SP

Nos mais difíceis momentos,
tuas virtudes revelas:
quando o barco enfrenta os ventos,
mostra a beleza das velas!
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Décima de Natal/RN

José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Até parecem mentira
Certas coisas deste mundo:
Numa fração de segundo
A roda do tempo gira;
Um instante se retira,
Outro pula no tablado;
O tempo é tão apressado
Que passa pisando a gente…
Futuro é quase presente,
Presente é quase passado.
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A Décima, mais usada pelo repente, é uma estrofe de dez versos de sete sílabas poéticas, ela é o gênero usado pelos cantadores repentistas para os versos de mote. Nas décima, as rimas são: o primeiro  verso rima com o quarto e quinto, o segundo rima com terceiro, o sexto rima com o sétimo e décimo, e o oitavo rima com o nono. 

Recordando Velhas Canções (Roda Viva)


Compositor: Chico Buarque

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
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A Inexorável Passagem do Tempo em 'Roda Viva'
A canção 'Roda Viva', composta por Chico Buarque, é uma reflexão poética sobre a passagem do tempo e a efemeridade da vida. A letra utiliza a metáfora da 'roda-viva' para representar o ciclo incessante de mudanças e a forma como o tempo arrasta consigo pessoas, sonhos e realizações, muitas vezes contra a nossa vontade.

No primeiro verso, o sentimento de estagnação contrasta com o crescimento do mundo, sugerindo uma desorientação diante da rapidez das transformações sociais e pessoais. A 'voz ativa' que o eu lírico deseja ter em seu destino é constantemente desafiada pela 'roda-viva', que simboliza o destino e a força do tempo que tudo leva. A repetição do refrão 'Roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião' enfatiza a ideia de movimento contínuo e incontrolável.

A música também aborda a resistência e a luta contra as adversidades ('A gente vai contra a corrente'), mas reconhece a inevitabilidade de ceder em algum momento ('Na volta do barco é que sente'). A 'roda-viva' não poupa nem mesmo as tradições culturais, como a serenata e a roda de samba, que são levadas pelo tempo. A saudade se torna 'cativa' no peito, mas mesmo ela é carregada pela roda-viva. A canção, portanto, é um lamento pela perda e uma meditação sobre a impermanência da vida.

Figueiredo Pimentel (As aventuras do Zé Galinha)

José Joaquim de Souza e Silva veio da terra e foi para Jacarepaguá, onde se estabeleceu, protegido pelo Manoel da Venda, seu primo. Aí dedicou-se ao comércio de aves domésticas e ovos, que comprava em porção, enviando-os em seguida à Praça do Mercado e outros pontos da cidade. A sua lida com a criação, desde a manhã até a noite, durante anos, sempre na mesma casa, eternamente no mesmo lugar, valeu-lhe a alcunha de Zé Galinha, porque era conhecido, verdadeiramente popular em Jacarepaguá e terras adjacentes. Ninguém sabia quem era o Souza e Silva, nem José Joaquim. Perguntassem, porém, pelo Zé Galinha, que todo o mundo apontaria a sua casa.

E o Souza desesperava-se com aquilo: ralava-o a antonomásia (apelido) que lhe haviam posto, e daria bem um par de contos se conseguisse ser chamado de outra forma. 

Nos primeiros tempos, quando começara a vida, pouco se lhe dava que o chamassem assim ou assado: queria ganhar dinheiro, fazer fortuna e voltar à aldeia. Mas, depois de vinte anos, aclimado em Jacarepaguá, rico, já casado e com filhos, resolveu ficar. Abraçou outro ramo de negócio, abriu um grande armazém de secos e molhados, e acabou o negócio de galinhas, patos e perus.

A alcunha, porém, ficou. Ele era o Zé Galinha. Parecia até que aquilo era proposital. Quanto mais se enfurecia, e maiores esforços empregava para que a antonomásia fosse esquecida, toda a a gente se obstinava em chamá-lo assim.

Foi então que o Souza resolveu comendadorizar-se. Veio ao Rio, e conversou com o barão de S. Caetano, chefe da colônia, assinou dez contos para o Asilo dos Órfãos Lusitanos, recentemente fundado, e esperou a comenda.

Durante uma semana passou ele na cidade, divertindo-se à farta, para compensar um pouco a sua vida cheia de trabalhos.

Havia chegado no domingo, e o João Carne Seca, da rua das Violas, em cuja casa se hospedara, levou-o ao teatro, que ele não conhecia.

A princípio o Zé Galinha não queria ir, mas o outro incentivou-o tanto, animou-o de tal forma, que resolveu finalmente.

Enfiado numa sobrecasaca de pano comprada feita na rua do Hospício, encartolado, de calças brancas e botinas de verniz, o futuro comendador ficou disfarçado. Nem ele mesmo se reconheceu!

Ao entrar no Cascata, onde o João ia tomar café, a sua figura exótica refletiu-se em um dos espelhos. E como caminhasse em frente, vendo aquele cavalheiro que se dirigia para ele, em sentido oposto, recuou delicadamente para a direita, a fim de ceder o lugar. E vai o “outro”, justamente na mesma ocasião, recua. O Zé tomou a esquerda; o “outro” idem. O Zé parou; o outro imitou-o.

Vendo aquela contradança, o João, que já estava sentado, perguntou-lhe:

— Que diabo estás a fazer aí, ó Souza?

E o Souza, sorrindo-se, medonhamente encalistrado:

— Estou dando lugar para aquele cavalheiro passar.

O João rompeu numa gargalhada colossal:

— Ó rapaz! pois não estás vendo que aquilo é a tua imagem no espelho?

Saindo do café, dirigiram-se os dois para o teatro.

Deslumbrado, nunca tendo visto daquilo, o nosso homem quase não podia caminhar. Foi com dificuldade que o João o arrastou até as cadeiras, em uma das filas centrais.

Já havia começado o espetáculo, e o negociante permanecia de pé, não consentindo assim que os espectadores das filas atrás vissem o que se representava.

Então, algumas pessoas, aborrecidas com aquele estafermo, das torrinhas e da plateia, bradaram:

— Senta!... Senta!...

Zé Galinha, imperturbável, voltou-se para trás, e no meio do silêncio que se fizera, respondeu:

— Não se incomodem, meus senhores; estou bem de pé, muito obrigado.

Cessado o ligeiro incidente, depois de alguns segundos de prolongada hilaridade, tendo João obrigado o companheiro a sentar-se, o Souza e Silva, conhecido em Jacarepaguá por Zé Galinha, assistiu calmamente a representação.

O primeiro ato correu sem novidade, salvo uma ou outra asneira, que perguntava ao companheiro, em voz baixa, para não fazer novo fiasco.

Representava-se uma comédia Uma hospedaria na roça. Quando o ator entra em cena e procura pela mulher, que está escondida atrás da porta, volta-se para a plateia e interroga “Onde estará ela? Onde estará a Chiquinha? Onde estará?”. E leva alguns minutos a procurá-la com açodamento, examinando o aposento.

Nessa ocasião, o ilustre jacarepaguense não pode resistir, e, querendo mostrar a sua perspicácia, berrou:

— Está aí atrás da porta, escondida para que o senhor não a veja.

Durante a semana em que Zé Galinha passou no Rio de Janeiro, nem um só dia deixou de ir ao teatro. Ficara gostando imensamente, e andava maníaco.

De volta para Jacarepaguá, levava na mala uma enorme coleção de dramas, comédias, cenas cômicas e monólogos, comprados na Livraria Quaresma, que principiou a ler com animação.

Estava à espera da comenda que o barão de São Caetano lhe prometera, e que havia de desaparecer para sempre a sua terrível alcunha. Lembrou-se então de mandar edificar um teatrinho, onde tencionava representar, fundando também uma sociedade dramática.

Em menos de um mês estava tudo pronto, e inaugurava-se o Ginásio Dramático Beneficente Estrela de Ouro de Jacarepaguá, sob a presidência do comendador José Joaquim de Souza e Silva.

O ilustre comerciante queria realizar imponentes festas para comemorar dignamente a sua comenda. Seriam três dias de pândega, havendo em todas essas noites espetáculos e bailes.

A primeira peça escolhida para a estreia foi a tragédia em oito atos D. Nuno Álvares ou O poder do lusitano.

O comendador Souza e Silva fazia o papel de Conde de Tomar.

Ao aparecer na primeira cena, passeava lentamente, mudo, pensativo. A marcação da tragédia dizia: “O conde entra, mas não fala...”

E vai o Zé, avança pelo palco, e exclama com voz de trovão:

— E conde entra, mas não fala!

Como estava radiante o comendador José Joaquim de Souza e Silva! Durante aqueles três dias nem uma só vez ouvira pronunciar a terrível alcunha de Zé Galinha. Jacarepaguá em festas tinha esquecido e agora só o chamava comendador.

Havia chegado a terceira noite, e nova tragédia ia exibir-se: O punhal envenenado ou A nódoa de sangue.

Logo no primeiro ato, ao erguer-se o pano, o Souza aparecia disfarçado com longas barbas e longa cabeleira, de capa e espada. A cena, quase às escuras, fingia um bosque.

D. Rufo, o chefe dos salteadores, entrava, e dizia:

— Noite propícia; nem uma estrela brilhando no firmamento!

Fez-se profundo silêncio quando ele apareceu, e a frase foi bem lançada.

Mas de repente, no meio da quietação sepulcral, ouviu-se uma voz de criança exclamar:

— Ó mamãe! Aquele não é o seu Zé Galinha?

Escândalo nunca visto! Rebentou uma gargalhada uníssona, colossal.

Então, o Souza, vendo perdido o seu tempo, o trabalho que tivera, e o cobre com que comprara a comenda, ficou desnorteado; e arrancando com gesto brusco as barbas e a cabeleira, exclamou indignado:

— Zé Galinha é você, seu malcriado! O culpado fui eu, metendo-me com essa gentinha! Arreia o pano!

E assim acabou-se o Ginásio Dramático Beneficente Particular Estrela de Ouro de Jacarepaguá.

Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.