quarta-feira, 29 de maio de 2024

Sílvio Romero (O rei Andrada)

(Folclore do Sergipe)

Havia um rei de nome Andrada, que tinha três filhas, e lhes disse que o que sonhassem lhe contassem todos os dias pela manhã. 

Uma delas, logo no dia seguinte, contou ao rei um sonho que foi o seguinte: “Sonhei que havia de mudar de estado nestes poucos dias, e cinco reis haviam de me beijar a mão, e entre eles el-rei meu pai.” 

O rei ficou muito zangado com a filha e lhe ordenou que, se de novo sonhasse aquilo, não lhe contasse mais, senão a mandaria matar. 

A moça tornou a sonhar coisa semelhante, e pela manhã, apesar de lhe rogarem as irmãs, ela contou o sonho ao pai. Ele mandou matá-la, e cortar-lhe o dedo mindinho que os matadores lhe deviam trazer.

Os criados do rei levaram a princesa para um ermo, e tiveram pena de a matar; cortaram-lhe somente o dedo, que levaram ao rei, deixando a moça nas brenhas. 

Ela começou a caminhar, e, muito longe, encontrou um buraco, e entrou por ele dentro, e, quanto mais entrava, mais o buraco se alargava até que ela foi dar num rico palácio. Aí ela tinha o almoço, a janta, e a ceia, sem ver ninguém, porque o palácio era encantado. Apenas ela ouvia, de um quarto que estava fechado, falar um papagaio. 

Depois de alguns dias, apareceu-lhe um lindo moço que lhe deu a chave do quarto, e disse que o abrisse e respondesse ao papagaio coisa que fizesse sentido ao que ele dissesse. O moço desapareceu. 

A princesa abriu o quarto, e o papagaio, que era muito grande e bonito, e das asas douradas, ficou muito alegre, sacudindo-se todo, e disse:

“Como vem a filha
Do rei Andrada
Tão bonita,
Tão formosa,
E tão ornada!”

— Ó meu papagaio dourado,
Eu das tuas ricas penas
Pretendo fazer um toucado.

Aí o papagaio desencantou-se no lindo moço que antes lhe tinha aparecido. O moço mandou logo vir um padre e se casou com a princesa, mandando convidar cinco reis, que no cortejo beijaram a mão de sua noiva. 

No meio deles veio o rei Andrada. Todos os outros beijaram a mão da princesa, e, quando chegou a vez do rei Andrada, a nova rainha não lhe quis dar a mão; pelo que ele ficou muito injuriado, e foi queixar-se ao rei seu amigo, e dono da casa. 

O noivo, indo perguntar a razão daquilo, a moça lhe contou a sua história, o que sabendo o rei Andrada foi pedir perdão à sua filha.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1885. Disponível em Domínio Público. 

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Daniel Maurício (Poética) 67

 

Laé de Souza (Mudanças de um tocador)

Eminiana conhecia muito bem o Laureano. Nos seus quase dez anos de casados pouca coisa tinha mudado no moço.

Era tradição, no final do dia, trancar-se no quarto e tocar pelo menos por uma hora suas músicas de rock. 

Eminiana segurava os filhos para não importunar o cantor. Se quisessem ouvir que colassem o ouvido na porta. Ferrenho crítico e de ouvido apurado, repetia por diversas vezes a mesma canção, até que se desse por satisfeito e, aí sim, tocaria numa reunião com amigos.

Por mais que insistissem, se não estivesse com os acordes perfeitos, ritmo e harmonia acasalados, não tocaria uma canção, mesmo que embalado por churrasco e bebedeira e ainda que algum se oferecesse a acompanhá-lo ou a fazer uma segunda voz.

Muitos achavam o fulano esnobe, metido e extremamente carinhoso com seu instrumento. Até brincavam: "Podem arranhar e amassar a mulher do Laureano, mas ai de quem melindrar o seu violão." Mas todo artista tem o seu estilo e o Laureano era criterioso com sua arte. E foi num animado churrasco na casa do Doidão que, pela primeira vez, Eminiana percebeu que, embalado pela caipirinha, o tocador batia um sertanejo acompanhado em coro pelos amigos. Apareceram até com uma revista de músicas do Zezé di Camargo e Luciano, que jogaram nas mãos do Laureano que se esforçava no pontear de boleros sertanejados e no arrastar de voz. A alegria era geral com o novo estilo do violeiro.

'Agora sim! Tá do jeito que a gente gosta", dizia o Doidão. Mas Eminiana não se entusiasmava nem entrava no clima. Estava no seu canto, apagada e pensativa com aquela mudança de estilo do marido. E foi no refrão de Pão de Mel, música que o marido já sabia de cor, que ela abriu um choro baixinho, daqueles que perturbam mais que um berreiro, e que acabou com a festa. Questionamentos sobre o quê? Qual o problema?... E nada. Conjecturas e comentários em cochichos, Mas foi quando o Laureano lhe perguntou qual a dor que lhe incomodava, que ela se abriu: 

"Dor de coração. E a mudança no teu estilo Laureano. Como é que tu, que só queria saber de rock e só tocava quando atingia a perfeição, me vem com estes sertanejos e melodias dengosas e ainda arranhando o violão de qualquer jeito?"

Não adiantou ele retrucar que estava em voga, A Eminiana rebateu que ele nunca foi de modismo e que, pelo que se sabia, o que estava em moda e crescendo no gosto do povo era o forró e não aquelas canções que ele estava tocando num jeito apaixonado. Embora o tocador argumentasse que forró e sertanejo eram quase iguais, a mulher chamava-lhe ã atenção de que ele era muito bom de ouvido e de viola para querer confundir os ritmos.

A festa acabou, a viola está por uns dias encostada e até empoeirando, mas não me sai da cabeça e nem da cuca da Eminiana que o jeitão do Laureano é de quem está com o coração com paixão nova, o que faz com que ela se ligue em outros comportamentos do mancebo e fique a observar suas conversas com amigas que sejam caídas por moda caipira.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor. 

Leon Tolstói (A menina-camundongo)

Um homem andava perto do rio e viu um corvo levando um camundongo pelo bico. O homem jogou uma pedra e o corvo largou o camundongo; o camundongo caiu na água. O homem tirou o camundongo da água e levou para casa. 

Ele não tinha filhos e disse:

− Ah! Quem dera esse camundongo virasse uma menina!

E o camundongo virou uma menina. 

Quando a menina cresceu, o homem perguntou para ela:

− Com quem você quer casar?

A menina disse:

− Quero casar com o mais forte do mundo.

O homem foi falar com o sol e disse:

− Sol! Minha menina quer casar com o mais forte do mundo. Você é o mais forte de todos; case com minha menina.

O sol respondeu:

− Não sou o mais forte de todos: as nuvens me escurecem.

O homem foi falar com as nuvens e disse:

− Nuvens! Vocês são os mais fortes de todos; casem com minha menina.

As nuvens responderam:

− Não, nós não somos os mais fortes de todos, o vento nos espalha.

O homem foi falar com o vento e disse:

− Vento! Você é o mais forte de todos; case com minha menina.

O vento respondeu:

− Não sou o mais forte de todos: as montanhas bloqueiam minha passagem.

O homem foi falar com as montanhas e disse:

− Montanhas! Casem com minha menina; vocês são os mais fortes de todos.

As montanhas responderam:

− Mais forte que nós é o rato. Ele nos rói.

Então o homem foi falar com o rato e disse:

− Rato! Você é o mais forte de todos; case com minha menina.

O rato concordou. O homem voltou para casa e disse para a menina:

− O rato é o mais forte de todos: rói as montanhas, as montanhas bloqueiam a passagem do vento, o vento espalha as nuvens, as nuvens escurecem o sol e o rato quer casar com você.

Mas a menina disse:

− Ah! O que vou fazer agora? Como posso casar com o rato?

Então o homem disse:

− Ah! Quem dera minha menina virasse de novo um camundongo!

E a menina virou camundongo e casou com o rato.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.  Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Tiro ao Álvaro)


Compositores: Osvaldo Molles / Adoniran Barbosa

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
(Não tem mais)

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
Não tem mais

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

O Amor e Suas Metáforas em 'Tiro Ao Álvaro'
A música 'Tiro Ao Álvaro', interpretada por Elis Regina em parceria com Adoniran Barbosa, é um clássico da música popular brasileira que utiliza metáforas bem-humoradas para descrever os efeitos do amor e da paixão. A letra compara o olhar da pessoa amada a uma série de elementos perigosos e letais, evidenciando o impacto profundo que esse olhar tem sobre quem o recebe. A expressão 'táubua de tiro ao Álvaro' faz referência a uma superfície repleta de furos, sugerindo que o coração do eu lírico já foi 'atingido' inúmeras vezes pelo olhar da pessoa amada, a ponto de não haver mais espaço para novos 'ferimentos'.

Elis Regina, conhecida por sua voz marcante e interpretação intensa, dá vida à canção de maneira única, transmitindo a mistura de dor e deleite que o amor pode causar. Adoniran Barbosa, por sua vez, é reconhecido por suas composições que retratam o cotidiano e a cultura paulistana com linguagem coloquial e humor. A música faz uso de comparações exageradas, como 'mata mais do que bala de carabina' ou 'que peixeira de baiano', para enfatizar a força do olhar da pessoa amada, que é descrito como mais letal do que armas ou venenos.

A escolha de elementos tão diversos e potencialmente mortais para descrever o olhar da pessoa amada serve para ilustrar a intensidade da paixão, que pode ser tanto avassaladora quanto perigosa. 'Tiro Ao Álvaro' é uma música que brinca com a ideia de que o amor pode ser tão impactante quanto um tiro, e que o coração apaixonado é um alvo constante, sempre vulnerável aos 'tiros' do ser amado. A canção permanece como um exemplo da habilidade de Elis Regina e Adoniran Barbosa em transformar sentimentos complexos em arte, utilizando a música como veículo para expressar as nuances do coração humano.

domingo, 26 de maio de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “15”

 

Geraldo Pereira (Consertador de Panelas)

O último artigo que escrevi nesta página do Jornal do Commercio – “Macaxeira Rosa” –, fazendo um comentário a propósito de antigos vendedores de rua da cidade, desaparecidos, em maioria, nesses tempos de globalização e de mundialização do tudo e de todos, obteve junto ao leitor generosa repercussão. Recebi alguns telefonemas e outros tantos cumprimentos pessoais, pelo resgate, sobretudo, de figuras assim, típicas da cidade provinciana, ainda, como era o Recife em décadas passadas. Foram muitas as contribuições sobre personagens que terminei omitindo, por falha mesmo da memória, haja vista os 53 anos bem vividos, já. 

Outros, também, pediram que continuasse a crônica, seguindo o tema e a tônica anterior, para complementar a lista. Faço isso, pois, em atenção àqueles que se ocupam de meus escritos e com isso me dão satisfação especial. 

Como esquecer do consertador de panelas, que passava oferecendo os seus préstimos às custas do toque cadenciado e peculiar de um pequeno varão de ferro sobre uma frigideira usada? O simples escutar dessa musicalidade característica, produzia na cozinha um rebuliço e as peças de alumínio furadas eram, de logo, selecionadas e entregues ao especialista na arte do remendo. Voltavam novas, praticamente, trazendo no fundo, sempre, o acréscimo de que precisavam e tinham a destinação habitual, a do cozimento, a depender, apenas, da receita do dia. Quando a galinha ia para a mesa, por certo que fora comprada ao homem que a cavalo trazia dois caçuás de penosas, um de cada lado. Cabia ao comprador sustentar a ave pelas asas e optar pela de peso maior, pois que o preço era unitário somente, não interessando os quilogramas a mais, de um ou de outro exemplar.

Musicalidade mais apurada, entretanto, era a do amolador de tesouras, de facas, também, que usava um instrumento assemelhado a um realejo, do qual nasciam as notas da oferta. Um desses tinha parte do antebraço amputada, mas com um revestimento de couro, uma luva apropriada, manuseava a peça, cega por hora. Usava um carrinho que vinha empurrando e ao primeiro sinal de serviço a ser realizado, invertia a posição, alinhava a polia grande de borracha e com o pé num pedal artesanal girava o esmeril. Na realidade, terminava desgastando as lâminas a serem amoladas e em casa de toda a gente algumas das facas não serviam mais para atender às visitas ou aos mais cerimoniosos da família. Eram facas da cozinha. 

O vendedor de pirulitos, com uma tábua toda furada e os doces cônicos encaixados, usava um apito e ia passando adiante o seu produto de fabricação caseira, que pregava nos dentes.

Já o homem das vassouras e dos espanadores era diferente, trazia um material de cabos coloridos e de pilosidade formando desenhos, para o chão da casa e a poeira dos móveis, além de vender, também, o vasculhador, que passado no teto sacudia as aranhas, afugentando-as das teias. Tinha um grito característico, chamando a atenção para a sua variedade em material assim, destinado à coleta do lixo doméstico, o grosso e o fino. Mas a oferta da lã de barriguda para travesseiro era cantada em versos sem muita rima: “Eu tenho lã de barriguda/Para travesseiro.” E como não havia a espuma de hoje, sintética e mais prática, conseguia boa freguesia nas ruas por onde passava. Era preciso encher esses apetrechos, que nos servem à cabeça, para um bom e reparador sono, a intervalos de tempo certos.

O peixe, do mesmo jeito, chegava à porta de casa, vinha em dois balaios, os quais, sustentados por cordas à ponta de um suporte de madeira carregado às costas, pendiam livres, quase, balançando, pra lá e pra cá, à medida que o vendedor andava pelas ruas e oferecia o produto gritando. Alguns desses homens do peixe faziam verdadeiros malabarismos com os balaios. Paravam, então, e apresentavam as espécies e as espécimes de que dispunham, utilizando-se depois de uma tábua para preparar as postas, tudo segundo as preferências do freguês. Peixe fresco, ao tempo, sem a ação, às vezes deletéria, do gelo, que da carne branca rouba o sabor. Com os anos, apareceram os frigoríficos e a albacora popularizou-se na mesa do recifense. Mas, o nome desse bicho dos mares era muito aplicado como apelido para as mulheres gordas, ricas em adiposidades.

E foi de Leda Alves a lembrança do vendedor de cambará: “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém...” E do poeta Paulo Montezuma a saudade do acendedor de lampiões nas ruas do Recife, iluminando os passeios da gente faceira. Não esqueço, todavia, do acendedor das lâmpadas, já, nos velhos postes de meu bairro, ligando as chaves e alumiando o tempo.

Fonte: Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

Monteiro Lobato (A nuvem de gafanhotos)

Ser empregado público de categoria inferior e por mal de pecados demissível: será isso programa que seduza alguém?

— É.

Para Pedro Venâncio mais que seduzia — sorria. Foi, pois, com enlevo de alma que recebeu a notícia de sua nomeação para fiscal da Câmara Municipal de Itaoca.

— Vou sossegar — disse consigo, esfregando as mãos de contentamento. — Cavei o meu osso e agora é roê-lo pela vida afora na santa paz do Senhor.

E ferrou o dente no ossinho.

Mas acontece que há osso e osso. Osso de bom tutano e osso pedra-pomes. No andar dos tempos verificou Venâncio que o tal ossinho era desses que embotam os dentes sem dar o mínimo de suco.

Gastar a vida inteira naquilo? É ser tolo, cochichou-lhe a humana ambição de melhoria, engenhosa fada a quem se devem todos os progressos do mundo. Assim espicaçado, entrou Venâncio a fariscar tutanos. Recorreu antes de mais nada à loteria, pois que é a Sorte Grande o supremo engodo dos pés-rapados. Venham gasparinhos! Todas as semanas adquiria um — e sonhava. O mesmo vendeiro que lhe fornecia aos sábados a semanal quarta de feijão, os semanais oito litros de arroz e o semanal cento de cigarros, juntava na conta mil-réis de sonhos. E Venâncio, comido o feijão, fumado o cigarro, sonhava. Sonhava o doce beijo da Fortuna, boa deusa que o despegaria do atoleiro com um simples toque de sua asa potente.

Em matéria de cultura não era Venâncio de todo cru. Lia suas coisas e tinha lá suas ideias. Revelara desde cedo grande aptidão para a lavoura e documentava o pendor assinando quanta publicação oficial existe. Publicações gratuitas...

Assim, nas palestras da farmácia ninguém piava sobre lavoura sem que ele pulasse no meio com a sua colher torta. E era de ver o calor da sua argumentação e a riqueza das suas citações estatísticas.

Fazendeiro que nesses momentos passasse havia que parar e abrir bem aberta a boca. Venâncio possuía planos grandiosos para salvar o café e pô-lo aí a quarenta mil-réis a arroba...

— Quarenta mil-réis, Venâncio? Não acha meio muito? 

Venâncio incendiava-se.

— Por que muito? Não somos os maiores produtores? Não temos o quase privilégio dessa cultura? Se é assim, o lógico é que imponhamos o preço. Eu disse quarenta, não foi? Pois digo agora quarenta e cinco! Digo cinquenta!

—!!!

— Não se espantem. Eu provo que pode ser assim e que os americanos têm que gemer ali no dolarzinho, queiram ou não queiram!

—!!!

— Queiram ou não queiram! — reafirmava o salvador, escandindo as palavras.

E provava.

Também extinguia em menos de um ano a lagarta-rosada, mais o curuquerê (larva do algodão); e triplicava a corrente imigratória; e extraía o azoto do ar, pondo o adubo ao alcance de todos, a cem réis o quilo, talvez mesmo a setenta.

— Porque, como os senhores sabem, a química agrícola demonstra que...

E demonstrava.

Num desses rompantes demonstrativos, o coronel da terra, de passagem pela rua, deteve-se a ouvi-lo e, finda a tirada, disse-lhe à queima-roupa:

— Que excelente ministro da Agricultura não daria você! Duvido que os Calmons e os Bezerras entendam mais de lavoura...

— Está caçoando, coronel! — murmurou Venâncio com modéstia, embora no íntimo convencido da justiça da apreciação.

— Falo sério. Bem sabe que não brinco.

Os circunstantes sorriram discretamente, enquanto o massa de ministro se lambia todo, como boi feliz.

Em casa repetiu à esposa a opinião do chefe político.

— Brincadeira dele, Pedro! — objetou a sensatíssima consorte. — Não está vendo?

— Brincadeira nada! O coronel é homem que não brinca, você bem sabe...

Desde esse dia, imaginariamente, Venâncio transformou-se num maravilhoso ministro da Agricultura. Plantou-se de armas e bagagens no casarão da Praia Vermelha e com raro tino administrativo salvou o país. Que eficácia de medidas! Que sábias leis protetoras! Que maravilhosos resultados! Lagarta nos algodoais? Nem umazinha para remédio! Curuquerê? Nem sombra! O café trepou à casa dos quarenta...

— Por arroba?

— Por dez quilos, homem!

E, firmíssimo, revelava tendências para alta ainda maior. Os mais pessimistas já concediam que não era de admirar fosse a cinquenta.

A borracha do Norte arrancou-se ao marasmo em que emperrava e voltou a ser um pactolo (fonte de riquezas) de esterlinas.

Azoto andava por aí aos pontapés, como um trambolho.

E na cabeça de Venâncio os sonhos lotéricos desapareceram trocados pelos sonhos administrativos, muito mais amplos e de muito maior alcance patriótico.

A consequência foi que Venâncio se eternizou no Ministério. Vários presidentes se sucederam sem que nenhum ousasse tocar em sua pasta. Era sagrado aquele gênio de ministro, que salvara o país, enriquecera a lavoura, desafogara o comércio, consolidara a indústria e que, adorado pela nação, teria estátua em vida.

Que teria? Que teve! Por mais que em sua infinita modéstia o grande ministro recusasse tal homenagem, a gratidão nacional teimou em glorificá-lo no bronze.

Inesquecível a manhã em que Venâncio, de lágrimas nos olhos, viu rasgarem-se os véus do seu monumento.

AO SALVADOR DA PÁTRIA,
O POVO AGRADECIDO.

Agradecido ou enriquecido? A turvação dos olhos não lhe permitiu distinguir a expressão exata — e por longo tempo semelhante dúvida o torturou.

Mas a grande recompensa teve-a ele em casa, ouvindo da esposa estas deliciosas palavras:

— Agora, sim, Venâncio, acredito que você é mesmo o que dizia. Até estátua!...

A boa senhora só se convencia com provas de bronze...

O doloroso, porém, era o contraste das duas vidas — ministro por dentro e fiscal da Câmara por fora, obrigado a interromper a matutação de um projeto salvador da pátria para ir, de bonezinho na cabeça, cercar na rua carros de boi não aferidos...

Um ano se passou assim, no qual os gasparinhos (menor fração de bilhete de loteria) falharam lamentavelmente. O mesmo dinheiro; zero, zero, zero; o mesmo dinheiro; zero, zero. Os seus rapapés (lisonjas) à Sorte Grande recebiam da grande cortesã apenas esta magra resposta. Tábuas sobre tábuas; carranca amarrada sempre e jamais o sorrisinho de uma “aproximação” para consolo.

Mas um dia...

Nesse dia Venâncio disputava com a esposa, que pedia dinheiro para umas compras.

— Estamos com a louça reduzida a cacos. Xícara de chá, duas e desbeiçadas. De café, três e sem asas. Ontem, quando aquele chato do Freitas esteve aqui, fui obrigada a pedir emprestada uma xícara da vizinha. Veja que vergonha...

Venâncio relutou.

— Mas por que é que quebram a louça? O ano passado, lembro-me, eu mesmo comprei meia dúzia de cada.

Dona Fortunata pôs as mãos na cintura.

— Por que quebram? A pergunta é bem idiotinha... A louça quebra-se porque é quebrável. Se fosse inquebrável não se quebraria. Parece incrível que um homem já indicado para ministro...

— Não admito ironias! Quer louça? Compre com o dote que trouxe...

— Já esperava por essa resposta. Está mesmo uma resposta de ministro... do coronel — concluiu dona Fortunata venenosamente.

Venâncio, engasgado de cólera, ia replicar, quando a porta da sala se abriu e o vendeiro irrompeu como um pé de vento:

— Deixe ver o seu bilhete! Se é o 3.743, deu a tacada!

O improviso do lance transformou em estupor a cólera de Venâncio, que entrou a piscar, numa tonteira, como quem leva porretada no crânio.

— Quê? Que há? — tartamudeava ele. O vendeiro bateu o pé, impaciente.

— O bilhete, homem! Deixe ver o seu bilhete, homem de Deus! Parece estuporado...

Custou a Venâncio encontrar na papelada agrícola que lhe enchia os bolsos o raio do bilhete. Suas mãos tremiam e o cérebro andava-lhe à roda.

Por fim achou-o. Era o 3.743.

Pegara os vinte contos.

Estas revoluções operadas pela sorte em cérebros venancinos não há aí quem as conte. É banho de ópio, é fumarada de haxixe, é gole de cocaína, é bebedeira que rompe toda a velha cristalização dos miolos. A ebriaguez do ouro vale pela soma da essência última de todas as mais ebriedades. Só ela abre a gaiola a “todos” os sonhos e põe o homem leve, com pequeninas asas em cada célula do corpo.

No caso do Venâncio, porém, não houve muita vacilação. Sua diretriz estava traçada pelo insopitável pendor agrícola.

Uma fazenda, uma grande fazenda, a melhor fazenda do município — a fazenda-modelo da zona. Da zona? Do país, por que não? E depois — quem sabe? — o ministério, desta vez de verdade. O mundo dá tantas voltas...

E faria isto mais aquilo, e mais isto e mais aquilo. Meu Deus! Como a fazenda se foi aperfeiçoando, e a que requintes de primor atingiu! Legiões de curiosos vinham de longe visitá-la, e pasmavam. A fama corria, os jornais estudavam-na em artigos longos. Por fim o Governo, impressionado com a voz pública, mandava examiná-la e propunha-lhe compra. Era forçoso que pertencesse ao patrimônio da nação uma coisa daquelas para que todos pudessem aprender na maravilhosa escola as palavras últimas do aperfeiçoamento agrícola.

Mas vendê-la? A um particular, nunca! À nação, sim, coagido pelo patriotismo. Isso mesmo, porém sob uma condição! Oh, sim, uma condição sine qua non: darem-lhe a pasta da Agricultura...

— Porque eu, senhores, farei do Brasil inteiro o mimo que fiz da minha fazenda. Um vergel florido! A nova Califórnia! O paraíso terreal!...

O Governo chorava de emoção e dava-lhe a pasta, sob as aclamações do povo agradecido...

Infelizmente, os vinte contos não eram elásticos e Venâncio teve que arrepiar da vertigem megalomaníaca e adquirir um pequeno sítio aí de trinta contos de réis. Deu quinze à vista e ficou a dever quinze sob hipoteca.

Sítio velho, de terras cansadas, mas isso mesmo queria ele, para estrondosa demonstração do axioma tantas vezes berrado na botica:

— Não há terras más, há más cabeças. Com a química agrícola na mão esquerda e o arado na direita, eu faço o Saara produzir milho de pipoca!

— Mas, Venâncio...

— Não há “mas”, há “más”; más cabeças, já disse. De pipoca!

Tinha agora de provar o asserto.

Começou mudando o nome antigo — Sítio do Embirussu — por este muito mais adiantado — Granja-Modelo de Pomona.

Apesar do lindo nome, o sítio permaneceu a pinoia que sempre fora. Barba-de-bode, guanxuma, saúva, cupins, joveva, geadas — todos os mimos da brasileiríssima deusa Praga.

Em compensação, no tocante ao pitoresco poucos haveriam mais bem arranjados. Tudo velho e musgoso e carcomido, como o quer a estética. Vate de cabeleira que ali caísse desentranhava-se logo em sonetos do mais repassado bucolismo; e o pintor de paisagens encontrava quadrinhos já feitos, encantadores, que era um gosto trasladar para a tela.

As paineiras laterais à casa faziam em setembro o enlevo dos colibris e das abelhas — mas a paina (fibras sedosas de algodão) produzida mal dava para encher um travesseiro.

O pomar, velhíssimo, lembrava um ninho de faunos tocadores de avena (flauta pastoril), laranjeiras de cinquenta anos, pitangueiras altíssimas, ameixeiras musgosas, jabuticabeiras, romeiras — o que há de virgiliano e romântico e sombrio e parasitado. Renda, porém, zero.

Tudo mais pelo mesmo teor.

Venâncio mediu com os olhos penetrantes a grandeza da sua tarefa e sorriu.

Tinha tanta convicção de transmutar aquele bucolismo em fonte de lucros...

Começou pelas aves. Em vez daquele sórdido restolho de galinhame da terra, sem sangue de pedigree, venham Leghorns para ovos e Orpingtons para carne. Imbecil o fazendeiro que não adota as belas raças americanas!

A mesma coisa com os porcos. Nada de canastrões ou tatuzinhos, tardios ou degenerados. Venham o Yorkshire, o Duroc-Jersey!

E venham mudas de boas árvores frutíferas, caquis, ameixas-do-japão, damascos, maçãs, peras, tudo isto com explicações ao eterno nariz torcido da esposa:

— Porque você vê, Fortunata, dá o mesmo trabalho e vale cinco vezes mais. Um ovo de Orpington, por exemplo: quanto vale no Rio? Dois mil-réis; mais que uma dúzia de ovos crioulos!

E venham sementes de capim-de-rodes para as pastagens.

E venha um aradinho de disco, e agora uma semeadeira, e uma carpideira, e uma grade...

E venha isto e mais aquilo — e as novidades vinham vindo e os cinco contos iam indo muito mais depressa do que ele o imaginou.

Tudo isso não seria nada se não viesse também uma coisa bem fora dos cálculos de Venâncio: visitas.

Um belo dia o correio trouxe uma carta do Rio: “... e soubemos que V. está de maré, empacotado pela sorte grande (200 ou 500?) e já montado em linda fazenda. E como andamos todos aqui muito amarelos, e a Bibi necessitada, a conselho médico, de ares de campo, lembramo-nos de passar uns dias aí, se o caro parente não levar isso a mal...”.

— “Caro parente”?!...

Venâncio releu a missiva.

— Quem será este novo parente, Ladislau Teixeira? 

Consultou a mulher. Dona Fortunata refranziu a testa.

— Vai ver que é aquele filho da Carola...

— ??

—... que casou por lá com uma tipa de beiço rachado...

— Ahn!...

—... e esteve uma vez em Itaoca um ano atrás.

— Em casa do Estevinho, sei...

— Isso. Um tal Lalau.

— Sei, sei... Mas que diabo de parentesco tem ele comigo? Só se por parte de Adão e Eva...

— Você já reparou, Venâncio, quantos parentes estão aparecendo agora?

— É verdade. Com este, cinco. E amigos, então? Nunca imaginei que os possuísse tantos...

Venâncio respondeu que a casa, casa de pobres, estava às ordens; que viessem. Vieram. Quinze dias depois um trole despejava no terreiro um senhor de meia-idade, sua esposa Filoca, três filhas empalamadas, Bibi, Babá, Bubu, e mais uma preta mucama. Venâncio reconheceu-os vagamente, mas por delicadeza fingiu intimidade.

— Bem-vindos sejam à casa do parente pobre! 

Lalau abraçou-o carinhosamente.

— Não diga isso! Você é hoje a glória da família. Recebeu a recompensa que merecia. Quantas vezes eu não disse à Filoca: aquele nosso parente vai longe, porque quem planta colhe. Não é verdade, Filoca?

Dona Filoca sibilou através do beiço rachado uma confirmação plena:

— É sim! Nós nunca duvidamos do futuro do “primo” Venâncio.

— Ia-me esquecendo... Vieram conosco umas vizinhas, moças muito boazinhas, as Seixas. Não te avisei na carta porque foi coisa de última hora. Devem ser parentas de dona Fortunata, ao que me disseram...

Venâncio interrogou furtivamente a esposa com o olhar e esta respondeu-lhe com um imperceptível movimento de beiço.

Apearam do segundo trole três moças e uma negrinha. Lalau apresentou-as.

— Dona Fafá, dona Fifi, dona Fufu.

As moças abraçaram os fazendeiros com grande cordialidade e abriram-se em louvores às belezas bucólicas.

— Veja, Fifi, que coisa estupenda esta paineira!

— Nem diga! E aquele maravilhoso beija-flor? Que belezinha! Como ficaria bem no meu chapéu azul...

E Babá para Venâncio:

— Que ar, primo! Que pureza de ar! A vida aqui deve ser um encanto. E que apetite dá! Eu, que não como nada, seria capaz de devorar um leitão inteiro hoje!

A Bibi conversava com a “prima” Fortunata:

— Leite há muito, já sei. Fazenda quer dizer fartura. Lá na capital o leite é água de polvilho, e caríssimo! É como os ovos: pela hora da morte e metade chocos. Sua galinhada, quantas dúzias põe por dia?

E a Fifi para a Bubu:

— Pesei-me antes de vir: 49 quilos, veja que miséria! Mas daqui não saio sem alcançar 58! Ah, não saio! O meu peso normal deve ser este, diz o médico. 

Dona Fortunata atendia a todos, sorrindo amavelmente, enquanto Lalau, já no pomar, investia contra as laranjas com fúria de “retirante”.

— A minha conta, quando me pilho num pomar, são três dúzias. Pelo-me por laranjas!

Venâncio, armando cara alegre, dizia-lhe que era chupar, chupar...

Mas lá consigo pensava que naquela toada não venderia aquele ano uma dúzia sequer. Só o Lalau daria cabo da safra inteira em quinze dias...

À decima quinta laranja Lalau parou, entupido.

— Estou por aqui! — grugulejou, riscando no pescoço o nível do caldo.

— Agora, que ninguém nos ouve, diga lá a verdade: duzentos ou quinhentos contos?

Venâncio não teve ânimo de pronunciar a palavra vinte. Também não quis mentir, e marombou (enganou):

— Não chega lá. Tirei apenas uns cobrinhos...

— Está escondendo o leite? Faz muito bem, que isso de arrotar grandeza é transformar-se em “fruteira”: todo mundo pega a aproveitar-se.

E dando-lhe o braço:

— Conselho de velho: defenda os arames, enforque a cobreira! Do contrário, começam a aparecer amigos e parentes que não acabam mais.

Venâncio entreparou pasmado.

— É o que lhe digo — prosseguiu Lalau. — Enquanto não possuímos nada, ninguém se importa com a gente. Mas logo que a maré chega, brotam da terra aproveitadores — como cogumelos!

Venâncio pasmou dois pontos mais, e Lalau, lendo a seu modo aquele pasmo, insistiu:

— É o que lhe digo! Como cogumelos! Você é inexperiente ainda, não tem os anos que tenho, e deve, portanto, ouvir-me. Como parente próximo, zelo pela família e faço grande empenho em abrir os seus olhos contra a caterva (tropa) de parasitas que vai por este mundo de Cristo. Quer saber de uma coisa? Foi por esse motivo que eu vim. Motivo real! O resto foi pretexto, você compreende. Eu disse à Filoca: é preciso abrir os olhos do primo; dinheiro escorrega das mãos como peixe e se lhe não acudo com os meus conselhos, adeus sorte grande! Vê? Foi por este motivo que vim.

Ainda atônito, Venâncio balbuciou umas palavras de agradecimento pela generosa intenção, e Lalau, colhendo nova laranja, continuou:

— Porque, cá comigo, é assim: para salvar um parente não poupo sacrifícios! Ah, não poupo! Vou longe atrás dele, gasto dinheiro, mas aviso-o. Pensa que não foi um sacrifício esta minha viagem? Só de trem, duzentos mil-réis! Mas, como já disse, não olho a despesas. É parente? É amigo? Não olho a despesas. Ah, não olho! Não acha que devo ser assim?

— Está claro! — sussurrou Venâncio.

— Parece claro, mas poucos pensam deste modo e, em vez de sacrificarem um bocado das suas comodidades e virem abrir os olhos ao parente em perigo, sabe o que fazem?

— ?

— Vêm explorá-lo. Vêm ex-plo-rá-lo, primo! Admira-se? Pois saiba que o mundo está cheio de gente assim. Olhe, eu conheço um caso que...

Nessa noite o casal de fazendeiros passou a dormir na cozinha. Tiveram que ceder seu quarto ao Lalau e à esposa. As B... acomodaram-se na sala de espera. As F..., numa alcova. As duas criadas, na despensa. Ficou a casa repleta, tendo a cozinheira de dormir fora, no paiol.

Venâncio perdeu o sono. Altas horas ainda matutava:

— Não sei como está para ser! De um momento para outro, onze bocas a mais...

— E que bocas! — observou dona Fortunata. — Como comem! A tal Fifi, que é um bilro e parece viver de brisas, bebeu um litro de leite para “rebater” meia dúzia de ovos. E sabe o que disse, toda espevitada? “Isto é para começarrrr... O médico mandou-me ir aumentando as doses aox poucox...” Veja você!

— Parece que chegaram da seca do Ceará! Lalau chupou duma assentada quinze laranjas, e das de umbigo...

— Esse não me admiro, que é homem e grandalhão. Mas aquele figo seco da tal prima Filoca? Com partes de enfastiada, foi à cozinha e chamou para o bucho todos os torresmos que eu tinha guardado para você. Dizem que é o ar...

— Ar! Ar! Eu respiro o mesmo ar e nunca tenho apetite. Esfaimados por natureza é o que eles são.

— E depois isto de comer à custa alheia deve ser um regalo! — concluiu dona Fortunata, valente criatura que jamais provara um quitute que não fosse preparado por suas próprias mãos.

O sono custou a vir, mas veio, e com ele um sonho. Sonhou Venâncio que uma nuvem de gafanhotos vinda do Sul se abatera no sítio, deixando-o nu em pelo, sem folha nas árvores, nem soca de capim nos pastos.

Despertou sobressaltado. A manhã ia alta, com réstias de sol a coarem-se pelos vidros. Saltou da cama e foi à janela. Um vulto caminhava rumo ao pomar, de pijama, faca de mesa na mão, assobiando despreocupadamente o pé de anjo.

— Lá vai ele! — murmurou Venâncio. — Lá vai às laranjas-baianas...

— Quem? — indagou a esposa, interrompendo o amarrar da saia.

— Ora quem! O gafanhoto-mor.

E como a esposa fizesse cara de interrogação, Venâncio contou-lhe o sonho da nuvem.

Dona Fortunata concluiu o nó da saia apreensivamente:

— Queira Deus não dê certo!

Deu certo. Nunca um sonho profético antepintou o futuro com maior precisão. Os hóspedes devoraram o sítio do Venâncio em poucas semanas. Foram-se todos os porcos, transfeitos em torresmos, lombo assado e linguiça. Os lindos leitõezinhos que brincavam no terreiro acabaram no espeto, um por um. O mesmo destino tiveram as aves, com exceção do casal de Orpingtons, amarelas, que muito tentou a gula dos hóspedes, mas que Venâncio, por precaução, mandou esconder em casa de um vizinho. Os ovos, porém, se perderam.

— Sabe, — disse dona Fortunata ao marido uma noite (era sempre à noite, na cama, que murmuravam contra a praga dos gafanhotos) — sabe que a ninhada de ovos de raça já se foi?

— Não me diga! — exclamou Venâncio.

— Pois escondi-os num canto, no quarto dos badulaques, mas aquele pau de virar tripa da Bubu meteu o nariz lá e descobriu-os e veio berrando muito lampeira: “Prima, suas galinhas estão botando no quarto dos cacaréus. Olhe que lindos ovos encontrei lá! Duas dúzias: a continha certa para hoje”. Expliquei-lhe o caso, contei que eram ovos de raça, caros, que você reservava para chocar. Sabe o que a bisca respondeu? “Ora, não seja somítica (avarenta). Nós vamos embora logo e suas galinhas ficam por aqui botando ovos pelo resto da vida.”

Venâncio suspirou.

Um mês. Dois meses. Três meses.

No dia em que os hóspedes se foram, Venâncio mais a esposa deram uma volta pelo sítio, em desconsoladora inspeção. Tudo deserto. Nem um frango no galinheiro, nem uma goiaba no pomar, nem um porquinho na ceva.

— Comeram até o cachaço! — murmurou Venâncio, sacudindo a cabeça. Na horta, as leiras de couve só apresentavam talos esguios — folhas nenhuma. Os pés de abóbora davam dó: nem uma aboborinha, nem um broto...

— Como eles gostavam de cambuquira! — recordou dona Fortunata. 

Finda a inspeção, um olhou para o outro, com desanimadíssimos focinhos.

— E agora? — indagou a mulher.

— Agora? — repetiu Venâncio. — Agora é fazer a trouxa e tocar para Itaoca antes que morramos de fome.

— E volta você para o empreguinho?

— Que remédio? Os “primos” devoraram a carne; tenho que roer o osso.

E foi graças ao apetite daqueles bem-aventurados primos que Itaoca viu reintegrar-se em seu seio um precioso elemento social. As palestras da botica andavam mortas, e sempre que se ventilava um ponto agrícola todos lamentavam a ausência do argumentador seguro, que sempre detivera com tanto brilho a palma da vitória.

Mas a volta de Venâncio foi uma decepção. O antigo entusiasmo murchara-lhe e nunca mais em sua vida piou sobre o tema favorito. E se acaso falavam perto dele em pragas da lavoura, geada, ferrugem, curuquerê ou o que seja, sorria melancolicamente, murmurando de si para si:

— Conheço uma muito pior...

E conhecia.

Fonte: Monteiro Lobato. O macaco que se fez homem. Publicado originalmente em 1923. Disponível em Domínio Público. 

Recordando Velhas Canções (Lua Branca)


Compositora: Chiquinha Gonzaga
(moda, 1911)

Oh, Lua branca de fulgores de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Oh, Vem tirar dos olhos meus o pranto
Oh, vem matar essa paixão que anda comigo

Oh, por quem és desce do céu, oh, Lua branca
Essa amargura do meu peito, oh, vem, arranca
Dá-me o luar da tua compaixão
Oh, vem, por Deus, iluminar meu coração

E quantas vezes lá no céu me aparecias
A brilhar em noite calma e constelada
A tua luz então me surpreendias
Ajoelhado junto aos pés da minha amada

E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo
Vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo
Ela partiu, me abandonou assim
Oh, Lua branca, por quem são, tem dó de mim
Ela partiu, me abandonou assim
Ó, Lua branca, por quem são, tem dó de mim 
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A Melancolia e o Consolo da 'Lua Branca' de Chiquinha Gonzaga
A canção 'Lua Branca', composta pela pioneira Chiquinha Gonzaga, é uma obra que transborda sentimentalismo e melancolia. A letra da música evoca a Lua como uma entidade capaz de oferecer consolo e alívio para as dores de um coração apaixonado e sofredor. A figura da Lua, tradicionalmente associada à feminilidade e ao amor, é invocada pelo eu lírico como uma confidente e uma fonte de compaixão diante do abandono amoroso que enfrenta.

A repetição do apelo à Lua para que desça do céu e alivie a amargura do peito do narrador reforça a intensidade do seu sofrimento. A Lua é personificada e recebe um pedido quase desesperado por empatia e luz, elementos que poderiam mitigar a solidão e a dor da perda. A música também remete a lembranças de um passado feliz, quando a luz da Lua testemunhava momentos íntimos e amorosos entre o eu lírico e sua amada. Essa recordação torna a ausência ainda mais pungente e a necessidade de consolo ainda mais urgente.

Chiquinha Gonzaga, uma compositora brasileira do século XIX, foi uma figura revolucionária tanto na música quanto na sociedade de sua época. 'Lua Branca' reflete não apenas o estilo romântico da época, mas também a capacidade de Chiquinha de expressar emoções profundas e universais através de sua música. A canção se tornou um clássico da música brasileira, eternizando a sensibilidade e a genialidade de sua autora.