domingo, 2 de fevereiro de 2025

Newton Sampaio (Capítulo das vozes noturnas)

Largado no banco do jardim, meio escondido na sombra da palmeirinha, Boito percebe o ruído que vem de pertinho.

A luz que sai da sala caminha no terraço, insinua-se pelo gradil, vai projetar-se, mansa, no canteiro bem desenhado. E morre de supetão. Morre onde começa o rastilho do luar. Do luar que está cobrindo a cidade. Raras vozes na sala. O mudinho limpando as mesas. Um som de talheres crescendo na velha cozinha.

Sai o tenente, mais a mulher. O tenente gasta uma pose. Pose de marechal.
 
Boito se assusta.

— Será ela?

Curva-se um pouco.

— É mesmo.

Dulce nem olha pros lados.

— Psiu!

— Ah! Você? Não tinha visto...

— Eu sou o homem invisível.

(E a inflexão de Boito é forçada, cheia de intenções).

— Lembra-se da fita? A cabeça enrolada, o nariz escondido assim... as orelhas, o queixo, tudo igual.

— Deixe de histórias, viu?

— Não são histórias, filha. São fatos.

— Que nada! Tirando os panos, vai ficar como era antes.

— O que era antes? Pobre de mim...

(Ela corta o assunto).

— Bem. Chega de tristezas.

(Muda o tom de voz).

— Como vão as meninas?

— Parece que estão vivas.

— Então vamos entrar? Aqui você se resfria.

— Não tem importância.

(Há uma pausa difícil).

— Por que não veio a Dorita?

— Por nada. A coitadinha está muito aborrecida. Ficou chorando no quarto. Ela quer ir à festa na casa do Crespo.

— E não vai?

— Falta de companhia.

— E você?

— Eu?

— Sim. Por minha causa não se prenda. Nem somos noivos ainda. Faça o que quiser. Divirta-se.

— Não fica bem.

— Fica bem, sim senhora. Pra desgraças chegam as minhas.

— Que exagero, Boito!

— É isso mesmo. Vá. Divirta-se. O que é que tem?

— Prefiro não ir.

— Bobagem. Por minha causa não se prenda. Afinal de contas, que culpa tem a Dorita de minhas loucuras? Nenhuma. Vão à festa do Crespo. E divirtam-se. Até o fim.

Dulce não sabe o que dizer. Para falar a verdade, é bem grande o desejo de ir.

— E... Se eu for, você não zanga?

— Claro que não.

— Prometo me comportar.

— Não precisa prometer.

— E sair bem cedo. Só pra contentar a Dorita, que gosta tanto dessas coisas, você sabe.

Desaparece a moça na esquina e Boito sobe ao quarto. Fica ali na janela um tempão.

Quando vê, o relógio da Prefeitura está batendo onze vezes. 

Deserta a rua. Chegam de longe, vez ou outra, sons perdidos, indistintos. São bailes principiando. Grandes farras que começam. E a noite fria, fria, insinuando aconchegos misteriosos.

Damião passeia no quarto do lado. Tosse duas vezes a tossezinha desconsolada de todas as horas.

A mocinha triste de seu Valério está sozinha na sala. E não para de olhar a lua. Busca o violino. E se põe a tocar uma velha melodia. Velha, mansa, triste. Um noturno. O mesmo que a Carmita toca de vez em quando. Mas a mana Carmita não atinge nunca a surdina da mocinha de defronte. Porque a mocinha de defronte é que sabe escutar as fundas vozes ansiadas.

Lá embaixo, na calçada, passa um garoto de casaco esfarrapado. Segura a cestinha. E grita pra rua deserta:

— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiiinho...

O violino não descansa. A música fica mais angustiada. É um soluço feito harmonia.

Já vai distante o garoto do casaco esfarrapado. Oferece outra vez a sua mercadoria. E, no esforço medonho de encontrar freguês, o pregão morre, na noite quieta, longe, longe.

— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiiinho…
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NEWTON SAMPAIO, natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Conto publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 21/10/1936. Disponível em Domínio Público.
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Vereda da Poesia = 211

Poema de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

JOROPO PARA TIMPLES E HARPA

Em duas asas prontas para o voo
assim se foi em par a minha vida
e com rilhar de dentes me perdoo
trilhando as horas nuas na medida

Bilros tecendo rendas amarelas
bordando em vão um tempo já remoto
no sol dos girassóis da cidadela
canto um recanto que me faz devoto

A dor que existe em mim raiz que medra
no rastro mais sombrio as minhas luas
talvez não fora Sísifo ou a pedra

que encontro todo dia pelas ruas
ao revirar as heras nessa redra
trilhando na medida as horas nuas
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Trova de
MARIA LUIZA WALENDOWSKY
Brusque/ SC

A imensidão desse amor,
que me transcende o presente,
faz suportar minha dor,
quando seu corpo está ausente.
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/ PR

A aranha
firmou a rede
Pra caçar
Raios de sol.
Mas nela
Quem ficou presa
Foi a chuva
De cristal.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

UM RIO QUE BUSCANDO UM MAR ME DÓI
(Augusto Nunes in "Os Espelhos da Água", p. 87)

Um rio que buscando um mar me dói
Brota destes meus olhos tão magoados
Por tantos sonhos mortos e enterrados
No meu peito que a dor esmaga e mói.

O futuro almejado se destrói
Pelo nefasto e negro fel dos fados
Que os seus voos lhe traz tão amarrados
À humana pequenez que sempre os rói.

Fosse outra a sorte e a obra outra seria
Do tamanho e da cor de uma utopia
Talhada num perfume de mulher.

Fruto de tantos súbitos acasos
Se os meus olhos eu trago de água rasos
É porque o meu destino assim o quer.
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Do que agitou nossas almas,
restam sonhos calcinados,
cingindo as crateras calmas
de dois vulcões apagados!
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

TERCETOS  I

Noite ainda, quando ela me pedia
Entre dois beijos que me fosse embora,
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:

“Espera ao menos que desponte a aurora!
Tua alcova é cheirosa como um ninho...
E olha que escuridão há lá por fora!

Como queres que eu vá, triste e sozinho,
Casando a treva e o frio de meu peito
Ao frio e à treva que há pelo caminho?!

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito!
Não arrojes à chuva e à tempestade!
Não me exiles do vale do teu leito!

Morrerei de aflição e de saudade...
Espera! até que o dia resplandeça,
Aquece-me com a tua mocidade!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar, como há pouco repousava...
Espera um pouco! deixa que amanheça!”

- E ela abria-me os braços. E eu ficava.
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Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

A saudade me consome
e as angústias são pesadas,
quando eu murmuro teu nome
e o vento... dá gargalhadas...
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Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!
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Trova de
RENATO ALVES
Rio de Janeiro/RJ

Da água, a grave escassez
não se mede pela escala,
e sim pela insensatez
de não sabermos usá-la!
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Haicai de
JOÃO BATISTA SERRA
Caucaia/CE

Azulão contempla 
O firmamento azulado: 
Deseja ser livre. 
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Poema de
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul/ RS

JUSTIÇA

Ontem eu não era nada.           
E eles zombavam de mim...             
E eu, boba,        
Chorei, infeliz.             
Agora sou bastante...       
E estão me parabenizando.       
Alguns “parabéns” são de coração,
outros, cheios de disfarces.           
A justiça ê uma Deusa implacável.         
Não permite colheitas aleatórias...
Nem deixa faltar chuva no solo
de quem planta amor...
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Deserto o mundo seria,
sem vida, luz e calor,
se nos faltasse algum dia
a grande força do amor!
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Hino de 
CAROLINA/ MA

Conterrâneos num canto vibrante
Exaltemos a nossa cidade,
Que com justas razões se destaca,
Na cultura e na sociedade.

Até poucos decênios atrás
Quase nada do avanço mostrava
Totalmente isolada do mundo
Com entraves bem fortes lutava.

Saudemos seu fundador
A figura insinuante
De Elias Ferreira Barros
Um perfeito bandeirante

Mas depois, com os tempos mudados
E mais livre de tanto embaraço,
A buscar novas fontes do luz,
Desferiu belo voo pelo espaço

Numa marcha feliz vai seguindo
Já um lindo porvir vislumbrando
De gozar a sua luz benfeitora,
Muito perto, talvez estejamos.

Saudemos seu fundador
A figura insinuante
De Elias Ferreira Barros
Um perfeito bandeirante

Exaltemos com a doce esperança
Confiemos na Graça Divina
E o Progresso com seus benefícios,
Há de em breve atingir Carolina

Nosso anseio resume-se em vê-la
Elevada a certa grandeza
De maneira que possa dar lustre
Às insígnias reais de princesa

Saudemos seu fundador
A figura insinuante
De Elias Ferreira Barros
Um perfeito bandeirante

Salve, pois, o feliz sertanista,
Cujos passos ficaram imortais
Salve os outros que tem trabalho
Pelos seus interesses vitais.

Praza os céus que as vindouras centúrias
Tenha a dita de vir encontrá-la
Em um trono ideal de Princesa.
Ostentando os seus trajes de Gala.

Saudemos seu fundador
A figura insinuante
De Elias Ferreira Barros
Um perfeito bandeirante 
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

NOVO DESPERTAR

Um novo despertar, para quem busca a Paz
ou só continuar, um sonho muito antigo,
que nos dá  alegria em tudo que se faz
cultivando-se o amor num mundo mais amigo.

Com menos aspereza a vida é mais bonita,
Em uma nova aurora, o amor renascerá
E aquele que foi triste agora  vem, se agita
E um novo despertar por certo encontrará.

Numa vida tranquila em tudo fluirá
Cumprindo a nossa parte é certo que teremos
Com leveza e alegria  aquilo que queremos.

A Paz que vou buscar é  certo que virá
Por falta de equilíbrio ou de organização
não a deixarei ir, tenho-a firme na mão.
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Uma Lengalenga de Portugal
ARCO DA VELHA *
  
 Arco da velha,
 Tira-te daí,
 Menina donzela
 Não é para ti,
 Nem para o Pedro
 Nem para o Paulo,
 É para a velha
 Do rabo cortado
  
* Arco-da-velha é uma expressão usada quando se quer referir algo espantoso, inacreditável, inverossímil. Trata-se de uma forma reduzida de arco da lei velha, em referência ao arco-íris, que, segundo o mito bíblico, Deus teria criado em sinal da eterna aliança entre ele e os homens.
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Você diz que me quer bem,
eu também quero a você;
onde há fogo há fumaça,
quem quer bem logo se vê.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

LAMBREQUINS

O tempo passeia sem pressa
Impresso nos antigos  lambrequins,
Enquanto uma saudade azul
Toca os sinos-de-vento,
Uma borboleta pousa em minha mão…
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Estante de Livros ("Fim da Eternidade", de Isaac Asimov)

"Fim da Eternidade" é um romance de ficção científica escrito por Isaac Asimov, publicado originalmente em 1955. A história se passa em um futuro distante, onde a humanidade vive em uma sociedade altamente tecnificada e controlada por uma organização chamada Eternidade. Esta organização é composta por "Eternos", que têm a capacidade de viajar no tempo e modificar eventos históricos para evitar desastres e garantir a sobrevivência da humanidade.

O protagonista, Andrew Harlan, é um técnico de Eternidade que trabalha na manipulação do tempo. Durante uma de suas missões, ele se apaixona por Noÿs Lambent, uma mulher que pertence ao "tempo real". Ao longo da trama, Harlan descobre que as intervenções da Eternidade, embora bem-intencionadas, têm consequências inesperadas e, muitas vezes, desastrosas para o desenvolvimento da humanidade.

Quando Harlan se vê diante da possibilidade de perder Noÿs devido às regras rígidas da Eternidade, ele começa a questionar a moralidade de suas ações e a própria natureza desta organização. A história culmina em uma série de revelações sobre o verdadeiro propósito da Eternidade e a necessidade da mudança, levando Harlan a tomar decisões que podem alterar o curso da história humana para sempre.

TEMAS

1. Tempo e Mudança
Um dos temas centrais de "Fim da Eternidade" é a relação entre tempo e mudança. Asimov explora a ideia de que o tempo é uma construção complexa e que as ações de um indivíduo podem ter repercussões significativas em eventos futuros. A Eternidade, ao tentar controlar o tempo, acaba limitando o potencial humano para a inovação e o crescimento. Harlan, ao se apaixonar por Noÿs, representa a luta entre a necessidade de controle e a inevitabilidade da mudança.

2. Moralidade e Ética
Asimov também levanta questões morais e éticas sobre o controle do tempo. Os Eternos agem com a intenção de proteger a humanidade, mas suas intervenções frequentemente resultam em consequências não intencionais. A história incentiva os leitores a refletirem sobre a moralidade de alterar eventos históricos e as implicações de se considerar a vida humana como um mero experimento. Harlan, ao questionar as regras da Eternidade, representa a busca por uma ética mais flexível e humana.

3. Desenvolvimento de Personagens
Andrew Harlan é um personagem complexo que evolui ao longo da narrativa. Sua transformação de um técnico obediente para um homem que desafia as regras da Eternidade é central para a história. O relacionamento dele com Noÿs é fundamental, pois representa a luta entre a razão e a emoção. Noÿs, por sua vez, é uma figura que encarna a liberdade e a espontaneidade, desafiando as limitações impostas pela Eternidade.

4. A Natureza da Realidade
Asimov também aborda a natureza da realidade e como ela pode ser moldada pelas ações humanas. A Eternidade, ao intervir no tempo, altera a percepção do que é "real" e "natural". Essa manipulação levanta questões sobre o que significa viver uma vida autêntica. O dilema de Harlan em escolher entre a Eternidade e sua relação com Noÿs reflete a luta pela autenticidade em um mundo onde tudo pode ser controlado.

ESTRUTURA NARRATIVA E ESTILO
O estilo de Asimov em "O Fim da Eternidade" é marcado por diálogos inteligentes e uma narrativa fluida. Ele utiliza uma prosa clara e concisa, típica de sua obra, que facilita a compreensão de conceitos complexos. A construção do mundo é habilidosa, com explicações sobre a Eternidade e suas operações apresentadas de forma acessível ao leitor.

IMPACTO NA FICÇÃO CIENTÍFICA
"Fim da Eternidade" é considerado uma obra significativa dentro da ficção científica, influenciando autores e obras posteriores. A exploração do tempo como um tema central e a introdução de conceitos éticos em narrativas de ficção científica ajudaram a expandir os limites do gênero. A obra continua relevante, especialmente em uma era em que questões sobre tecnologia e controle social estão cada vez mais em debate.

CONCLUSÃO
"Fim da Eternidade" é uma obra-prima de Isaac Asimov que combina elementos de ficção científica com profundas questões filosóficas e morais. Através da história de Andrew Harlan, Asimov explora a complexidade do tempo, a moralidade das intervenções humanas e a busca pela autenticidade. A narrativa provoca reflexões sobre o papel da mudança na vida humana e sobre as consequências de tentar controlar o incontrolável. A obra permanece pertinente e instigante, consolidando Asimov como um dos grandes mestres da ficção científica.
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ISAAC ASIMOV (Isaak Yudovich Ozimov) (1920-1992) foi um escritor norte americano, considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica do século XX. Nasceu em Petrovisk, Rússia, em 1920. Com três anos de idade, mudou-se com a família para os Estados Unidos onde foi criado em Nova York. Em 1928, naturalizou-se cidadão americano. Seu interesse pela ficção científica começou ainda menino. Com 14 anos, publicou sua primeira história em um jornal do colégio. Em 1935, Isaac Asimov iniciou o curso de Química na Universidade de Colúmbia. Em 1939, concluiu a graduação. Ainda em 1939, Isaac Asimov vendeu seu primeiro conto, “Marooned off Vesta”. Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu como químico, na Estação Experimental Naval Air, na Filadélfia. Em 1945 publicou o primeiro conto da saga “Fundação”. Em 1948, Isaac Asimov conclui o doutorado em Bioquímica, pela Universidade de Columbia. No ano seguinte tornou-se professor de Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de Boston. Em 1958, Asimov deixou o cargo na universidade, para se dedicar inteiramente à sua atividade de escritor. O Robô foi o assunto favorito do escritor. Suas obras mais famosas e populares estão nas séries: Robôs, Império e Fundação. Dentro da série Robô, Asimov publicou: “Eu Robô” (1950), “As Cavernas de Aço” (1954), “O Sol Desvelado” (1957) e “Os Robôs do Amanhecer” (1983). Em 1950, publicou o primeiro livro da série Robô, intitulado “Eu, Robô”, que se tornou um clássico da ficção científica, onde em uma série de nove histórias, o autor narra o desenvolvimento dos robôs, desde o seu começo no estado natural, em meados do século XX, até o estado de extrema perfeição, em que robôs governam o mundo dos homens, no seu próprio interesse. Nessa obra, o autor introduziu as três leis fundamentais da robótica: 1 – um robô não pode causar dano a um ser humano, nem por omissão permitir que um ser humano sofra. 2 – um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto quando essas ordens entrarem em conflito com a primeira lei. 3 – um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa proteção não se choque com a primeira nem com a segunda lei da robótica. A série “Fundação” de Isaac Asimov teve início com a trilogia: “Fundação” (1951), “Fundação e Império” (1952) e “Segunda Fundação” (1953). A obra foi eleita, em 1966, como a melhor série de ficção científica e fantasia de todos os tempos. A trilogia conta a história da humanidade, em um ponto distante no futuro, no qual o visionário cientista Hari Seldon prevê a destruição total do império humano e de todo o conhecimento acumulado por milênios. Incapaz de impedir a tragédia, ele arquiteta um plano ousado, no qual é possível reconstruir a glória dos homens. Depois de quase 30 anos, Isaac Asimov escreveu uma extensão da “Trilogia Fundação” procurando inserir cada livro na linha cronológica do “Universo”, são eles: “Limites da Fundação” (1982), “Fundação e Terra” (1986), “Prelúdio Para Fundação” (1988) e “Origens da Fundação” (1993). Asimov publicou quase 460 livros, entre romances, contos e publicações de divulgação científica. Seu nome tornou-se familiar tanto para leitores de ficção científica como para cientistas. Sua linguagem simples abriu as portas das descobertas científicas para um público leigo. Faleceu em Nova York, Estados Unidos, em 1992, vítima da AIDS, contraída através de uma transfusão de sangue. 

Fontes:
José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: Copilot/ Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

sábado, 1 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 16 *

 

Hans Christian Andersen (Os sapatos vermelhos)

Era uma vez uma menininha - uma menina muito linda, muito delicada. No verão ela andava descalça, porque era muito pobre. No inverno usava uns sapatos de pau, grosseiros e pesados, de modo que o peito do pé ficou todo vermelho, bem vermelho.

No centro da aldeia morava a mulher do velho sapateiro, uma senhora já muito idosa. Ela se pôs a coser, e fez um par de sapatinhos, de umas tiras de pano vermelho. Esmerou-se e fez o melhor que pode, mas os sapatos eram muito esquisitos. Contudo, foram feitos com boa intenção, e ela os deu a Karen.

A boa mulher deu-lhe os sapatos, e ela teve de calça-los, pela primeira vez, mesmo no dia em que sua mãe foi sepultada. Certamente não eram próprios para o luto; mas a menina não tinha outros, por isso meteu neles os pezinhos nus e foi seguindo atrás do pobre esquife de pinho.

Aconteceu que passou uma grande carruagem, levando uma velha senhora, que ficou com muita pena da menina. E ela disse ao pároco:

- Dê-me essa menina! Eu me encarreguei de educá-la, e serei boa para ela.

Karen pensou que tinha agradado a senhora por causa dos sapatos. mas a velha dama declarou que eram horrorosos, e mandou queimá-los. E a menina recebeu roupas boas e apropriadas, e aprendeu a ler e a coser. Diziam que ela era agradável, mas seu espelho, esse, dizia-lhe:

- És muito mais do que agradável - és linda!

Naqueles dias andava a rainha de viagem pelo país, e levava consigo a filhinha, a princesa. O povo amontoava-se ao redor do palácio para vê-las - e Karen lá estava também. 

A princesa postou-se em uma sacada para que todos a vissem; não tinha comitiva, nem trazia coroa de ouro, vestia um lindo vestido branco, e calçava uns sapatos muito lindos, de verniz vermelho.

Karen recebera um vestido novo, e precisava também de um par de sapatos para completar o traje. O rico sapateiro da cidade encarregou-se de fazê-los. A loja, em que ela foi para que ele tomasse as mediada, estava cheia de vitrines, onde se viam muitos sapatos lindos, de couros brilhantes. Era uma vista encantadora, mas a velha dama, que não enxergava bem, não se interessou em examiná-los, porque não tinha nenhum prazer nisso. Entre os sapatos havia um par vermelho, exatamente como os da princesinha. E que lindos eram! Disse o sapateiro que tinham sido feitos para a filha de um conde, mas que ficaram justos demais.

- Isto deve ser verniz - disse a velha senhora- são tão brilhantes!

- Sim, eles brilham! - replicou Karen.

E ficaram-lhe bem nos pés, e foram comprados. Mas a velha dama não sabia que eram vermelhos.

No domingo seguinte seria celebrada a Sagrada Comunhão, e Karen iria participar dela pela primeira vez. Ela olhou para os sapatos brancos, olhou para os vermelhos, olhou de novo para os vermelhos - e acabou por calça-los.

Era um dia muito luminoso. Karen e a velha dama iam pelos campos, pelo meio dos trigais, e havia muito pó. À porta da igreja estava um velho soldado barbudo, com a sua muleta porque era inválido. A barba do velho era esquisita, mais vermelha do que banca. Era de fato quase completamente vermelha. O velho inclinou-se até o chão e perguntou à velha senhora se podia escovar-lhe os sapatos. E Karen também estendeu o pezinho.

- Vejam que lindos sapatos de dança! - disse o soldado velho. - Não se esqueçam de apertar bem, quando dançarem!

E, dizendo isto, deu palmadinha nas solas. A velha dama  deu-lhe uns cobres e entrou na igreja com Karen.

Todas as pessoa na igreja olhavam para os sapatos vermelhos de Karen. Quando ajoelhou à mesa da Comunhão, ela só pensava nos sapatos vermelhos, parecia-lhe vê-los flutuando diante dos olhos. E ela se esqueceu de rezar as orações.

Saíram todos da igreja, e a velha dama entrou na carruagem. Já Karen ia erguendo o pé para subir também, quando o velho soldado, que ainda estava parado ali, disse:

- Olhem que lindos sapatos de dança!

Karen não pode resistir. Deu alguns passos de dança e, sem poder dominar-se, seus pés continuavam a dançar. Parecia que os sapatos tinham adquirido poder sobre ela. Saiu dançando, rodeou, dançando, a igreja, sem conseguir parar - o cocheiro teve de ir buscá-la e erguê-la nos braços, para metê-la no carro. Mas os pés continuavam dançando, de sorte que ela batia com eles na boa velha, machucando-a. Afinal, tiraram-lhe os sapatos e os pés ficaram quietos.

Quando chegaram na casa, os sapatos foram guardados em um armário, mas Karen não podia deixar de ir olhar para eles.

Um dia a velha dama adoeceu, e disseram que não poderia sarar. Precisava agora que alguém tratasse dela, e ninguém mais do que Karen devia incumbir-se dessa tarefa. Mas ia realizar-se um baile na cidade, e ela foi convidada. Karen olhou para a sua mãe adotiva, que talvez não escapasse da morte, olhou para os sapatos vermelhos, e achou que não tinha obrigação de ficar junto à doente. Calçou-os e foi para o baile - ou antes, eles foram para o baile, e começaram a dançar!  Mas quando Karen queria ir para a direita, eles dançaram para esquerda; quando ela quis dançar em uma ponta, desceram a escada, saíram para a rua, atravessaram as portas da cidade. 

Dançando saíram da cidade, e dançando foram para a floresta sombria - e ela tinha de dançar! Viu então que alguma coisa brilhava acima das árvores, e pensou que fosse a lua, porque parecia uma cara. Mas enganara-se, era o rosto do soldado velho de barba vermelha, e ele acenou-lhe, dizendo:

- Vejam que lindos sapatos de dança!

Ficou a menina muito assustada, e quis lançar fora os sapatos vermelhos, mas eles se lhe apegaram aos pés com tanta força, que não pode tirá-los. Rasgou as meias e arrancou-as, mas os sapatos pareciam enraizados nos pés, e continuavam a dançar, e ela teve de ir dançando pelos campos e pelas pastagens, à chuva e ao sol, de dia e de noite.

Dançou no cemitério, que estava aberto, mas os mortos não a acompanharam na dança, tinham coisa melhor a fazer. Quis sentar-se em um túmulo pobre, onde crescia a losna, mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando ia dançando para a porta da igreja, que estava aberta, viu  que lá estava parado um anjo de longas vestes brancas e de asas tão compridas que chegavam até os pés. O rosto era severo e grave, e tinha na mãos uma espada larga e brilhante.

- Piedade! - gritou Karen.

Mas nem chegou  a ouvir a resposta do anjo, porque os sapatos a arrastaram - levando-a porta afora para os campos, para as estradas, para os caminhos, por cima de tocos e de pedras, por toda a parte era ela obrigada a dançar.

Uma manhã passou dançando pela frente de uma porta aberta, e que ela conhecia muito bem. Vinham trazendo para fora um esquife, coberto de flores. Viu então que a velha dama tinha morrido, e pareceu-lhe que estava agora abandonada de todos, e condenada pelo Anjo do Senhor.

E ela dançava sempre, era compelida a dançar, mesmo dentro da noite negra. Os sapatos arrastavam-na por sobre as sarças e os espinheiros, e ela já tinha os pés escorrendo sangue.

Foi, então, sempre dançando, pelo trigal afora, que chegou a uma linda casinha solitária. Sabia que morava ali o carrasco, e bateu com os nós dos dedos na vidraça e disse:

- Sai, sai cá para fora! Eu não posso entrar, porque tenho de dançar!

O carrasco disse-lhe:

- Acaso não sabes quem sou? Eu sou o homem que corta a cabeça dos malvados, e vê como meu machado está impaciente!

- Não, não me cortes a cabeça! Senão nunca poderei arrepender-me das más ações. Mas peço-te que me cortes os pés, com estes sapatos vermelhos!

Contou, então, o que acontecera. O carrasco cortou-lhe fora os pés com os sapatos vermelhos - e eles lá se foram dançando, para as profundezas das floresta.

Então ele fez para ela um par de pernas de pau, com muletas, e ensinou-lhe um cântico, aquele que os condenados sempre cantavam, e ela beijou a mão que brandia a acha, e foi embora, pelo meio da charneca.

- Muito tenho padecido por causa daqueles sapatos vermelhos! - disse ela. - Irei agora à igreja, para que  todos me vejam!

E foi, o mais depressa que pode, para a igreja. Quando lá chegou, viu os sapatos vermelhos que dançavam na sua frente. Ficou muito assustada, e voltou para casa.

Passou toda a semana muito triste, e chorou muitas lágrima, mas quando chegou o domingo, disse:

- Agora já sofri e lutei tanto... creio que estou tão boa como qualquer daqueles que entram na igreja de cabeça tão erguida!

E lá se foi ela, com ar insolente; mas ainda não tinha passado do portão, e já avistou os sapatos vermelhos que dançavam diante dela! Ficou mais assustada do que nunca, e deu volta - mas desta vez tinha no coração um verdadeiro arrependimento. Foi à casa do pároco, e pediu-lhe que a tomasse como criada, que seria diligente, e faria tudo quanto pudesse, que não fazia questão de salário, pois só queria um teto para se abrigar, e viver com pessoas bondosas. 

A mulher do pastor ficou compadecida da menina e tomou-a ao seu serviço. E ela mostrou-se mesmo diligente e fiel. À noite, quando o pastor lia a Bíblia, ela ouvia atentamente, muito quieta. Todas as crianças gostavam muito dela, mas quando falavam a respeito de vestidos, e de coisas de luxo, ela sacudia a cabeça.

No domingo, ao saírem para a igreja, perguntaram-lhe se ela queria ir com eles. Mas Karen olhou tristemente para as muletas, com os olhos cheios de lágrima, e foram sem ela. Foram ouvir a palavra de Deus, e ela ficou sentada no seu quartinho, sozinha. No quarto só cabiam a cama e uma cadeira. Sentou-se, pois, com o livro de oração nas mãos, e quando estava lendo com um espirito cheio de humildade, ouviu o som do rojão, que o vento trazia da igreja, ergueu o rosto banhado de lágrima, dizendo:

- Oh! Senhor! Ajuda-me!

Então o sol brilhou com todo o esplendor, e o Anjo de vestido branco, aquele mesmo Anjo que ela vira naquela noite, à porta da igreja, estava diante dela. Não tinha a espada afiada na mão, trazia agora um ramo verde, coberto de rosas. Tocou com ele o teto - e o teto foi se erguendo, se erguendo... e onde o Anjo tocava aparecia imediatamente uma estrela de ouro. Tocou então as paredes e elas foram se afastando para longe, para longe... e ela viu o órgão, que ressoava tão belos hinos - porque a igreja tinha vindo ter com a pobre menina, no seu pequenino quarto, ou o seu quarto se havia transformado em igreja. Ela estava, também entre os fieis. Alguém, a seu lado, lhe disse:

- Que bom que vieste, Karen!

- Foi pela graça de Deus! - respondeu ela.

Soou o órgão, espalhado suas notas cheias de alegria. As vozes das crianças ergueram-se, suaves, cantando em coro, o sol, que entrava pela janela, veio direito ao banco onde estava Karen, enchendo-a de fulgor, e seu coração sentiu-se tão cheio de luz, e de paz, e de alegria, que estalou. E sua alma voou para o céu, em um raio de sol.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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Estante de Livros ("O Homem que Adivinhava", de André Carneiro)

"O Homem que Adivinhava" é um conto do autor brasileiro André Carneiro (Atibaia/SP, 1922 – 2014, Curitiba/PR), que explora a vida de um indivíduo chamado João, um homem comum que possui a habilidade extraordinária de adivinhar o que as pessoas estão pensando. João vive em uma cidade onde essa habilidade o torna tanto admirado quanto temido. Sua capacidade de ler mentes gera uma série de situações inusitadas e revela as complexidades das interações humanas.

A narrativa começa a se desenvolver quando João se vê cada vez mais isolado devido ao temor que sua habilidade provoca nas pessoas ao seu redor. Enquanto alguns o buscam para obter conselhos ou soluções para problemas pessoais, outros o evitam, temendo que ele descubra seus segredos mais íntimos. A solidão e a incompreensão se tornam temas recorrentes na vida de João.

Ao longo do conto, ele reflete sobre a natureza da sua habilidade, questionando se é realmente um dom ou uma maldição. A história culmina em uma série de eventos que revelam a dualidade da condição humana, mostrando os desejos, medos e anseios que todos compartilham, mas que muitas vezes ficam ocultos sob a superfície.

No final, João percebe que, apesar de suas capacidades, ele não consegue mudar as pessoas nem salvar a si mesmo da solidão. A história termina de forma melancólica, enfatizando a dificuldade de conexão humana e a fragilidade das relações.

TEMAS

1. Solidão e Isolamento
Um dos temas centrais do conto é a solidão de João. Embora possua uma habilidade extraordinária, ele se torna um parágrafo isolado na sociedade. Isso reflete a ideia de que, muitas vezes, as habilidades ou características que nos tornam únicos também podem nos alienar. A solidão de João é um comentário sobre como as pessoas podem ser vistas como estranhas ou ameaçadoras quando possuem algo que foge ao comum.

2. A Dualidade da Habilidade
A habilidade de João de adivinhar o que as pessoas estão pensando é apresentada como um dom, mas também como uma maldição. André explora essa dualidade ao longo do conto, mostrando que conhecer os pensamentos mais profundos das pessoas pode ser tanto uma vantagem quanto um fardo. João se vê em uma posição em que a verdade que descobre sobre os outros não traz felicidade, mas sim um peso emocional.

3. Relações Humanas e Conexão
A dificuldade de João em se conectar com os outros é um reflexo das complexidades das relações humanas. Sua habilidade deveria, teoricamente, facilitar suas interações, mas, na prática, ele se torna um observador distante. As revelações que ele faz sobre os pensamentos de outras pessoas não resultam em conexões mais profundas, mas sim em desconfiança e medo. A história sugere que o verdadeiro entendimento entre as pessoas vai além do que é visível ou audível.

4. Reflexão sobre a Natureza Humana
O escritor utiliza a habilidade de João para refletir sobre a natureza humana. O conto revela que todos nós temos pensamentos e sentimentos que preferimos esconder, e a ideia de que alguém possa conhecê-los pode ser assustadora. Isso levanta questões sobre privacidade e a forma como nos apresentamos ao mundo. A história convida o leitor a considerar a tensão entre a autenticidade e a fachada que as pessoas constroem em suas vidas.

ESTILO E NARRATIVA

A prosa é clara e envolvente, com uma narrativa que flui de maneira natural. O autor utiliza descrições vívidas para criar uma atmosfera que reflete a solidão de João e o ambiente social ao seu redor. O uso de diálogos e monólogos internos permite que o leitor compreenda a complexidade emocional do protagonista, tornando sua jornada íntima e acessível.

RELEVÂNCIA SOCIAL E CULTURAL

"O Homem que Adivinhava" também pode ser visto como uma crítica social. A habilidade de João de adivinhar pensamentos pode ser interpretada como uma metáfora para a pressão social que as pessoas enfrentam para se conformar a determinadas normas e expectativas. A história questiona a autenticidade das interações sociais em um mundo onde a superficialidade muitas vezes predomina.

CONCLUSÃO

"O Homem que Adivinhava" é um conto que combina elementos de fantasia com uma análise profunda das relações humanas e da solidão. André Carneiro utiliza a figura de João para explorar temas universais que ressoam com a experiência humana, como a busca por conexão e a dificuldade de ser compreendido. A narrativa provoca reflexões sobre a natureza da empatia e a complexidade das interações sociais, tornando-a uma leitura significativa e impactante. Através da habilidade de adivinhar pensamentos, André nos convida a olhar para dentro de nós mesmos e considerar o que realmente significa conhecer e ser conhecido.
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ANDRÉ GRANJA CARNEIRO foi escritor, poeta, fotógrafo, cineasta, artista plástico, publicitário, ensaísta, hipnotizador clínico, entre outras atividades, sendo premiado em todas áreas no Brasil e no exterior, nasceu em Atibaia/SP, em 1922 e faleceu em Curitiba/PR, em 2014, quase totalmente cego. Em 1969, dirigiu os trabalhos no histórico “Simpósio de FC”, um evento integrante do 2º Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro. André Carneiro contava ter assistido ao filme Metrópolis ao lado de Fritz Lang, assim como 2001 – Uma Odisseia no Espaço ao lado de Arthur C. Clark, convidados do Festival, entre outros grandes nomes da literatura mundial de Ficção Científica. Participou do movimento de renovação da poesia do país, como um dos poetas da chamada Geração de 45. Produziu o jornal literário Tentativa (1949), considerado importante representante da terceira geração modernista. Tentativa tinha entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional da época como Oswald da Andrade (que escreveu a apresentação do jornal), Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Teles e muitos outros, Na fotografia, André Carneiro foi um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro. Sua fotografia “Trilhos”, de 1951, um dos marcos do Modernismo fotográfico no Brasil, está no Tate Gallery, em Londres, em exibição permanente e no MoMA, de Nova York. Representou o Brasil, no Concurso Internacional para Filmes Artísticos, realizado na Inglaterra, com o filme “Solidão” (que também foi exibido na França e na Itália). Foi roteirista para as produções de cineastas da envergadura de Abilio Pereira de Almeida, Roberto Santos e Carlo Ponti. Algumas de suas obras literárias foram adaptadas para a TV e o cinema. Como fotógrafo artístico foi premiado em vários salões nacionais e também na Itália e Holanda. Desde 2014, a Prefeitura de Atibaia, de São Paulo e o Coletivo André Carneiro promovem todo mês de maio, a Semana André Carneiro, evento oficial da cidade para homenageá-lo. Em 2018, foi criado o Centro Cultural André Carneiro, para abrigar este evento. E, durante o ano, o espaço tem uma variada programação oferecida pela Secretaria de Cultura como exposições artísticas e culturais, além de espaço para apresentações.

“Conheci André Carneiro em 1991, em uma oficina que ele ministrava na Casa Mário de Andrade, “Ficção científica na literatura e no cinema”, frequentei 3 cursos dele, sendo que no último, em 1994, vim a conhecer quem seria minha esposa. Fiz amizade com ele desde o início, a paixão pela literatura e pela música que nos unia, frequentávamos ora a casa dele, ora a minha, sempre em reuniões com diversos escritores e músicos. Em 1998 eu mudei para o Paraná, mas mantínhamos sempre contato por e-mail, mesmo quando ele se mudou para Curitiba devido a já estar só com 30% da visão. Continuamos nos correspondendo virtualmente até a sua morte. Uma perda irreparável para a literatura brasileira, tinha renome internacional e tão pouco valorizado no Brasil.” (por José Feldman)

Fontes:
José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: Copilot/ Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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