quinta-feira, 1 de maio de 2025

Antonio Juraci Siqueira (O vaga-lume e o sol)

(Texto baseado no soneto Círculo Vicioso" de Machado de Assis).


 Numa densa floresta vivia um vaga-lume que quando a noite caía, ficava pirilampeando pra lá e pra cá em companhia de outros vaga-lumes com suas luzinhas esverdeadas. Mas ele não estava nem um pouco satisfeito com sua vida de pirilampo, vagalumeando livre pelas matas e campos, por isso vivia resmungando para si mesmo:

 – Eita, vidinha mais besta e sem graça esta minha!... De que me adianta ter luz própria e liberdade para voar se ninguém me vê no meio desta mata? Bem que eu queria ser uma estrela para ficar piscando no céu e ser visto por todo mundo...

 Mal sabia o vaga-lume que na imensidão do céu,  uma daquelas estrelas piscava que piscava de descontentamento e tristeza, enquanto pensava:

 – Ai de mim... Que sina ingrata a minha: ficar eternamente piscando anonimamente ao lado de zilhões de estrelas. De que me vale ter brilho próprio e ficar aqui no céu se ninguém sequer sabe o meu nome? Feliz, mesmo, é a lua, que além de ter nome próprio e ser a musa dos namorados ainda serve de inspiração para poetas, músicos, pintores...

 Enquanto a estrela assim divagava, a lua  vagava solitária pelos mares do céu, mergulhada em luares de tédio e melancolia.

 – Pobre de mim, como sou infeliz – dizia de si para si a bela Selene –  de que adianta ser a musa dos namorados, interferir no ciclo das marés e servir de inspiração para os artistas se nem consigo ser eu mesma o tempo todo, se estou sempre mudando de fase, perambulando de quarto em quarto e nem luz própria eu tenho? Feliz eu seria se fosse o sol, senhor da vida e da morte, o astro-rei a reinar absoluto no céu sobre tudo e sobre todos!...

 Não sabiam, entretanto, o vaga-lume, a estrela e a lua, que o sol também não estava satisfeito com o seu destino de astro-rei, que sofria entre o poder e a impotência, matutando sobre seu próprio brilho:

 – Como eu gostaria de não ser quem sou!... Como seria bom não viver preso a uma órbita e assim poder ir aonde eu quisesse... Ah, se não pesasse sobre mim a responsabilidade pela vida e a culpa por tanta morte advinda das secas que provoco, mesmo não passando de uma estrela de quinta grandeza... Daria tudo para ser um simples vaga-lume a voar livre, dono tão somente do meu destino, sem levar nas costas o fardo da responsabilidade e do remorso... 

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
ANTÔNIO JURACI ALMEIDA SIQUEIRA, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes:
Antonio Juraci Siqueira. O devorador de metáforas e outras histórias. Belém/PA: 2014.
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Figueiredo Pimentel (A rainha das águas)


O reino da Pérsia foi há séculos passados governado pelo rei Nebul.

Esse rei, que vivia muito feliz governando o povo com sabedoria, um dia ficou cego.

Mandou chamar todos os médicos do seu reino, todos os curandeiros, todas as feiticeiras, para lhe darem algum remédio que o curasse.

Nada puderam conseguir.

Já estava Nebul desanimado, e conformado com a sua triste vida, quando um dia, apareceu uma velhinha, pedindo esmola.

Sabendo que o rei havia cegado, pediu para lhe ensinar o remédio que o havia de curar.

O rei mandou entrar a velhinha, que lhe disse:

– Saiba vossa real majestade que no mundo só existe um remédio capaz de o fazer recobrar a vossa preciosa vista. Existe num reino muitíssimo distante daqui, uma fonte chamada de rainha das Águas. Se alguém conseguir um pouco dessa água, e colocá-la sobre os olhos, imediatamente verá tão bem como um pássaro. Mas é muito difícil ir a esse reino. Quem for buscar a água deve se entender com uma velhinha que mora perto da fonte. Essa velhinha é quem há de informar se o dragão que vigia a entrada da fonte está dormindo ou acordado, porque a fonte está situada atrás de umas montanhas muito altas, e, se alguém for visto pelo terrível bicho, morrerá no mesmo instante.

O rei Nebul deu à velhinha grande quantia e retirou-se para os seus aposentos.

Mandou preparar uma grande esquadra composta de duzentos navios, e enviou seu filho mais velho, o príncipe Agar, para buscar a água, dizendo que lhe dava o prazo de um ano para estar de volta, aconselhando-o que não saltasse em país algum, para não se distrair; e que, se naquele prazo não voltasse, considerá-lo-ia morto pelo dragão.

O moço partiu: e depois de viajar muito, foi aportar a um país estranho e mito rico.

Saltou em terra, e começou a se divertir a ponto de gastar todo o dinheiro que levava, e a contrair dívidas, pelo que ficou preso.

Passado o ano, Nebul, não o vendo voltar, ficou triste, julgando-o morto.

Mandou preparar nova esquadra de quinhentos navios, porque supunha que seu filho morrera na guerra que travara no reino das Águas, em busca do remédio para a sua cegueira.

Enviou seu segundo filho, o príncipe André.

Fez-lhe a mesma recomendação:

– Se no prazo de um ano, meu filho, não estiveres de volta, terei que chorar a tua morte.

Partiu André e, depois de muito viajar, aportou ao mesmo país que seu irmão Agar.

Aí, fascinado pelas festas, gastou tudo quanto levara, contraiu grandes dívidas, e, como seu irmão, ficou preso.

Passado um ano, vendo o rei que o seu outro filho não voltava, ficou desanimado, e sem esperanças de recuperar a vista, pois supunha que André houvesse tido o mesmo fim que o primeiro.

Então, o mais moço, o jovem Oscar, que ainda era menino, foi se oferecer para ir buscar o remédio.

– Agora, quero ir eu, meu pai; e se for, garanto que lhe trarei a água.

O rei começou a brincar.

– Como queres tu ir, meu filho? Não vês a sorte de teus irmãos mais velhos? Que é feito deles? Morreram. Como posso eu deixar que faças semelhante viagem? Seria até um contrassenso.

O menino tanto insistiu, tanto pediu, tanto rogou, que, afinal, o rei, para o contentar, lhe concedeu a licença pedida.

Mandou preparar uma esquadra de cem navios, menor que a dos outros dois príncipes, e disse a Oscar que partisse quando quisesse.

O menino, antes de partir, foi assistir à missa no palácio, e pediu com todo o fervor a Nossa Senhora que o protegesse na empresa a que ia se arriscar.

Partiu no dia seguinte, e, depois de muito navegar, foi aportar no mesmo país onde estavam seus irmãos presos por causa das dívidas.

Pagou-as e soltou-os.

Os dois irmãos aconselharam-lhe que não continuasse a viagem o que era tempo perdido, pois aquele país era muito divertido, e que se deixasse ficar por ali.

O menino nada quis ouvir, e, embarcando de novo, partiu em direção ao reino das Águas.

Chegando aí, desembarcou sozinho, e foi procurar a velhinha, que morava perto da fonte, a qual, quando o viu, ficou admirada e disse:

– Ó meu netinho, que veio cá fazer? Olhe que você corre grande perigo. O dragão, guarda da fonte, que fica por trás daquelas montanhas, é uma princesa encantada, que tudo devora. Procure uma ocasião em que esteja dormindo, para entrar, e repare bem que, quando estiver com os olhos abertos, é que está dormindo; mas, se estiver com os olhos fechados, acautele-se, senão morre.

O menino tomou as suas precauções, de modo que, ao chegar à fonte encontrou a fera com os olhos abertos.

Aproximou-se da fonte, e encheu a garrafa que levava.

Já ia se retirando, quando o dragão acordou, e avançou sobre ele.

– Que atrevimento é esse, menino mortal, que faz com que tenhas a audácia de vir aos meus reinos?

O moço só teve tempo de desembainhar a espada.

Em um dos botes a fera foi ferida, e, com o sangue que gotejava, se desencantou numa formosa princesa.

– Devo casar-me com o homem que me desencantou. Dou-te um ano, jovem príncipe, para me vires buscar. Leva a água a teu pai, e volta. Se dentro deste prazo não estiveres aqui, irei buscar-te, onde estiveres.

Como sinal de ser reconhecido, deu-lhe a princesa um anel com um brilhante enorme.

O príncipe Oscar voltou ao país, passando pelo reino onde estavam seus irmãos, levou-os para bordo, com o fim de os conduzir ao palácio do rei Nebul, seu pai.

Quando os dois irmãos mais velhos souberam que o principezinho tinha se saído bem da empresa, ficaram invejosos e planejaram roubar a garrafa que continha a preciosa água.

Essa garrafa estava na mala do príncipe Oscar, que não a deixava um minuto sequer, guardando consigo a chave, quando se ia deitar.

Propuseram ao irmãozinho dar um grande banquete a bordo do navio, convidando para isso toda a oficialidade, banquete esse em regozijo por se ter encontrado a água que havia de dar a vista ao velho rei Nebul.

O príncipe Oscar consentiu, e os irmãos, cujo fim era embebedá-lo, durante as saúdes que se fizessem, ficaram contentes com a aquiescência do principezinho.

Fizeram a coisa tão bem-feita que o jovem Oscar se excedeu nas saúdes, a ponto de ficar embriagado.

Os dois irmãos, assim que o viram naquele estado, correram à mala, e trocaram a garrafa da fonte por uma de água do mar.

Oscar, assim que ficou bom, tratou de ver a sua mala, e, como a achou intacta, não desconfiou da troca.

Quando a esquadra se apresentou no porto da cidade onde vivia o rei Nebul, houve satisfação geral, sendo o principezinho recebido entre gerais aplausos.

Assim que deitou a água nos olhos de seu pai, este ficou desesperado de dor. Então, os dois irmãos, chamando o mais moço de impostor, trouxeram a garrafa que haviam roubado, e puseram a água nos olhos do ei, que recuperou imediatamente a vista.

Começaram as festas em regozijo ao grande acontecimento de haver Nebul recobrado a vista.

Agar e André recebiam aplausos de todo o mundo, que admirava a sua intrepidez, arriscando a vida em uma viagem tão perigosa.

O rei Nebul não quis que o príncipe Oscar assistisse às festas. Mandou matá-lo, dizendo que um impostor como ele, merecia ser queimado vivo.

No dia em que devia começar a festa em homenagem a tão valentes príncipes, seguiu de manhã cedo, para uma floresta muito longe do castelo, o príncipe Oscar, acompanhado de um batalhão enorme que devia matá-lo.

Os soldados, assim que chegaram no meio da floresta, tiveram pena do principezinho, e, em vez de matá-lo, cortaram-lhe um dedo, que foram levar ao rei Nebul, como prova de sua morte.

Oscar, assim que se viu livre da morte, começou a procurar a vida, porque naquele lugar, tão deserto, morreria de fome ou nas garras de algum animal feroz, dos que ali havia em quantidade.

Depois de andar muito, foi ter à casa de um lavrador, a quem ofereceu os seus serviços.

O lavrador, vendo aquele menino, só, naquele lugar deserto, tomou-o para escravo, e o maltratava todos os dias.

Já havia passado um ano, e era esse o tempo marcado pela rainha das Águas para o príncipe Oscar ir buscá-la, e efetuarem o casamento.

Não aparecendo, resolveu ir buscá-lo.

Mandou preparar uma esquadra de cem navios, e partiu em direção ao reino do rei Nebul.

Aí chegando, mandou um de seus generais avisar ao rei que lhe mandasse o príncipe que, um ano antes, havia ido aos eu reino buscar água de uma fonte que lhe havia de restituir a vista, e que tendo o príncipe lhe prometido casamento, e não voltando, ia à sua procura.

Mandava dizer ainda que se o príncipe não viesse, arrasaria a cidade em meia hora, com os poderosos canhões de sua esquadra.

Nebul, à vista da intimação, ficou aflito, e mandou que o príncipe Agar fosse a bordo se apresentar à princesa.

Chegando a bordo, lhe disse ela:

– Homem atrevido, como tens coragem de aparecer aqui? Onde está o sinal que te dei para o nosso reconhecimento?

O príncipe, que não tinha ciência de sinal algum, voltou para terra, envergonhado de ter feito figura tão triste diante de uma formosa dama.

A princesa enviou nova intimação ao rei Nebul, e este, cada vez mais aflito, fez ir seu filho André à presença da princesa.

O segundo filho foi tão infeliz como seu irmão. Não tendo o reconhecimento da princesa, voltou envergonhado pelo fiasco que havia feito.

A princesa mandou nova intimação à terra, dizendo que, se em vinte e quatro horas o príncipe que lhe prometera casamento não lhe aparecesse, mandaria arrasar a cidade, e depois incendiá-la.

O rei ficou aflitíssimo, pois não tendo mais nenhum outro filho, esperava com ânsia o prazo marcado para o extermínio de seu povo.

Já estava arrependido de ter mandado matar Oscar, quando um dos soldados do batalhão que acompanhou o menino à floresta disse que eles não tinham tido coragem de matar o jovem moço, e só lhe haviam cortado o dedo.

Quando o rei soube disso, teve um raio de esperança. Mandou emissários por todo o seu grande reino, à procura do jovem príncipe Oscar, dando a todo mundo os sinais do moço, e prometendo uma grande fortuna a quem o trouxesse ao seu palácio.

Pediu à princesa que lhe desse cinco dias de espera, dizendo que seu filho Oscar, que lhe tinha prometido casamento, estava em viagem, mas que já o havia mandado chamar com urgência.

A princesa concedeu o prazo pedido, dizendo que mais um segundo não concedia, e que se, contados os cinco dias, o príncipe não chegasse, não responderia pela vida de ninguém daquela cidade.

Havendo tanta gente a procurar o príncipe Oscar, muito fácil foi encontrá-lo como escravo do lavrador, onde trabalhava todo o dia, fazendo serões até alta noite.

Quando o lavrador soube que o seu escravo era um príncipe, ficou mais morto do que vivo.

Carregou o mocinho nas costas, e foi chorando levá-lo ao palácio do rei Nebul.

Estava terminado o prazo, e a princesa já tinha mandado preparar os canhões para bombardear a cidade, quando o príncipe lhe fez sinal que esperasse, porque ia ter com ela.

Assim que o jovem chegou a bordo do navio onde estava a Rainha das Águas, colocou no dedo o anel de ouro.

Esta, reconhecendo o príncipe, mandou o general avisar ao rei Nebul que era aquele o seu noivo, e que podia ficar descansado porque não mais bombardearia a cidade, e que partiria no dia seguinte, com o noivo para seu reino.

O rei convidou, então, a rainha das Águas para vir visitá-lo, porque queria conhecer sua nora.

Estavam todos no palácio, quando apareceu uma velhinha pedindo uma esmola.

Oscar, vendo que era a mesma que lhe tinha ensinado o remédio para seu pai recuperar a vista, voltou-se para a noiva, e disse:

– É esta a velhinha, formosa princesa, a quem devo a felicidade de me casar e de ver meu pai com a vista que tinha perdido.

A rainha das Águas voltou para o seu reino e casou-se com Oscar, que ficou sendo o rei que governava o país mais rico e mais formoso do mundo.

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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terça-feira, 29 de abril de 2025

Asas da Poesia * 14 *

                               

Quadra de
ANTONIO ALEIXO
Vila Real de Santo António/Portugal, 1899 — 1949, Loulé/França

Da guerra os grandes culpados,
Que espalham a dor na terra,
São os menos acusados
Como culpados da guerra.
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Poema de 
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Protesto do rio

Quando Deus fez surgir, do nada, o mundo,
recortou-o de rios que em Seu plano
tinham valor imenso e tão profundo
quanto o fluxo arterial do corpo humano!

A terra floresceu. O amor fecundo
povoou lares. E o homem, sempre ufano,
o Éden que recebeu tornou imundo,
semeando em cada canto o desengano!

Ar e águas poluiu... E os próprios veios,
com seus desmandos, vícios e mazelas!...
E hoje... os rios ocultam, em seus seios,

as angústias das vozes sufocadas
pelos surdos gemidos das sequelas,
num protesto de artérias infartadas!
= = = = = = = = =  

Soneto de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Passarinho na gaiola

Sempre que a lida me isola
nas grades do dia-a-dia,
abro a porta da gaiola
com a chave da poesia.

Nesta vida quanta gente
na incerteza do arriscar,
olha o mundo aberto à frente
porém tem medo de voar...

Teu amor, gaiola aberta;
meu coração, passarinho
que por nada se liberta
das grades do teu carinho.
= = = = = = = = =  

Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Profissão de fé

Folhearei as Tuas escrituras
em busca de melhor discernimento,
de compreender o mundo e o sentimento
que envolve o Criador e as criaturas.

Respeitarei, Senhor, Teu mandamento
para que um dia eu possa, nas Alturas,
estar em meio as almas fiéis e puras 
que aqui seguiram Teu ensinamento…

Mas, me perdoa, ó Deus, se Te questiono
ao ver tantas famílias no abandono
entre os escombros mórbidos da guerra.

Falsos pastores traem nossa fé;
conspiram nos porões da Santa Sé...
Não Te esqueças da gente aqui na Terra!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Morena, quando eu morrer,
me enterre no mesmo dia;
Eu quero ser enterrado
no coração de Maria.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

A duas flores

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu…

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar…

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
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Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/ Portugal

O teu encanto

Tudo em ti é beleza
mesmo nas horas de tristeza
és um ser simples e natural
Fazes tudo com paixão
Tens uma força visceral
que me arranca o coração
Já não és só poema és canção!

Deslumbras quem te conhece e,
sem saberes, até parece que és tu
que todos queres conhecer

Tens ímã no sorriso
e a luz nos teus olhos
são botões de rosa
que espalhas aos molhos
pelos que por ti passam
nem tens noção do bem que fazes
e, quando te elogiam
ficas sem saber qual a razão

Quando falas, as tuas palavras
são gotas de água fresca
que caem em cascata
refrescam a mente mais sombria

Tu nunca és noite és sempre dia

Sempre motivas quem se cruza contigo
És conselho sem saber e abrigo
= = = = = = = = =  

Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A velha candeia,
piscava quase sem luz;
ó, que noite feia!
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Como quem não tem mais onde ir
(verso de Ana Margarida da Silva Ferreira)

Como quem não tem mais para onde ir
Fui buscar nas palavras o acalanto
Que lavem as poeiras do quebranto
Que me deram os anos de existir.

Qual bálsamo, poção ou elixir
As palavras trouxeram-me o encanto
Que eu havia perdido num recanto
Do canteiro que não chegou a abrir.

As palavras me envolvem como um véu
E do chão levam-me ao azul do céu
Num crescendo de sons e de magia.

E os dias, em fortuna, tão avaros
Fazem-se mais ridentes e mais claros
Quando me beija a sombra da Poesia.
= = = = = = = = = 

Soneto de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

O desfecho

Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilhão,
Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a águia em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
= = = = = = 

Haicai de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Bom entardecer

solzinho de outono 
aquece a novata haijin —
sua luz inspira
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Versos da noite

É noite. O céu azul, todo estrelado,
a brisa perfumada vem do mar,
lembrando aquele sonho do passado,
a teu lado viver, sorrir e amar...

Por que será, destino malfadado,
que a ventura se foi sem começar?
Hoje vejo em ruínas meu reinado
nesta noite tão bela a me saudar.

Breve os clarões da loura madrugada
vão surgir, como prece, em clarinada,
e em borbotões meus versos vão jorrar.

Para que ao lê-los, saibas da verdade:
aqui tens um poeta sem vaidade
que, os teus pés, inspirado vem beijar!
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Fantástico evento:
 o fascinante momento
em que o botão
vira rosa.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

As palavras são janelas ou muros
Levadas a tribunal de audição 
Juízes ou carrascos atentos
São libertação ou podem ser condenação

Entrego as minhas palavras
Como uma bandeira branca
Desfraldada em campo sereno
Onde conseguimos a reconciliação 
No espaço do maravilhoso criar
Onde somos dom e inspiração

Sempre estivemos nesse lugar
Da comunicação em união 
Mas inseguro tropeço em fragilidade 
Nesta minha latente imperfeição

Sejamos então abraço e voz de alma
Que nos transcende e acalma.
= = = = = = = = =  

Dobradinha Poética de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Amor platônico

De repente, o seu olhar
encontrei na multidão
e vi a vida passar...
Ele esqueceu... mas, eu não!
* * *
Desconheces que te amo e, com certeza,
não supões quanto eu sofro ao te encontrar.
Em meio à multidão, com que tristeza,
o meu olhar procura o teu olhar!

E passas sem me ver... eu, indefesa,
sufoco a dor, tentando disfarçar
a emoção que mantém a chama acesa
dessa paixão, que só me faz penar!

Ouço a razão... Mas, antes de partir
atendo o apelo do meu coração.
Quero passar por ti... e me iludir

que o teu olhar, amor de minha vida,
encontre, enfim, em meio à multidão,
meu triste e meigo olhar... de despedida!
= = = = = = = = =  

Poema de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Retratos

Partiste, mas tenho no peito ferido
Guardadas as cenas, lembranças pungentes
Dalguma esperança talvez as sementes
Ou meros resquícios do amor destruído.

Resgato o retrato das tardes prazentes,
Concertos suaves, jardim colorido,
Romance perfeito, casal embebido
Em mélicos sonhos, desejos ardentes.

Não deixo que o tempo cruel amarele
Aquelas imagens sublimes, bonitas,
A plena expressão de felizes instantes.

Queria sorrir, celebrar como dantes
Em minhas quimeras, senhora, inda habitas.
Não pude esquecer esse olor, essa pele... 
= = = = = = = = =  

Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

Colo de mãe

Mudei de cadeira, mudei de xícara,
joguei  fora o adoçante
e recriei meu café da manhã.
De nada adiantaram as mudanças,
tudo  tem outro gosto, tudo é fastio,
tudo  é uma esquisitice  aguda.
Estou macambúzia, gripada, mas nada dói em meu corpo.
Minha gripe é na alma, congestionada de saudade.
Ah, meu Deus! Dá-me a canequinha de lata,
o tamborete antigo e o colo de mãe
que  foram deixados  numa cozinha farta de aconchego.
Dá-me o fogão à lenha, o café de um coador de  pano
e os meus despreocupados anos de infância .
Hoje eu quero um remédio que me cure
dessa  dor inquietante de não  ser mais criança.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Colibrizando 

Fotografei, num flash, um beija-flor.
peguei-o distraído a distrair-me, 
movi-me cauteloso e ele ali, firme,
polinizando o meu tímido  amor.

Que pássaro feliz... sinto assim,
voando... quando faço  poesias,
criando minhas doces fantasias
com cada flor que enfeita meu jardim.

Amei aquele lindo passarinho
tão frágil, com a lírica missão
de  abençoar alguém  que ele nem vê...

Por isso é  que oferto meu carinho
a que quem conversa com meu coração 
no instante mais feliz com  que me lê.
= = = = = = = = =  

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Mulher... A vida!...

A partir dela, começa nova vida...
Mulher, gênese maior da concepção!
Faz-se ímpar protetora do embrião,
Num sublime encargo, por Deus escolhida!

Em seu ventre, traz o feto com amor.
Dá à luz!... A espécie que se perpetua!
Amamenta, por missão somente sua;
No crescer da cria, dá-lhe mais calor.

Vive, dos filhos, as vitórias e fracassos;
Muitas vezes, no lugar de mãe e pai.
São momentos em que sempre sobressai
A intuição do ser mulher ao dar os passos.

Mulher... A vida!... Missão polivalente!
Ela é mãe, tão companheira e tão amante!
Para o homem, faz-se trunfo exuberante,
É com ela que ele põe a vida à frente!

Mulher... A vida!... Coberta só de glória!
Competência a impulsionou rumo à conquista,
Eis que pela sociedade agora é vista
Pari passu ao homem, a fazer a História.
= = = = = = = = =

Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Música

Noite perdida,
Não te lamento:
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
— rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada...
(Asa da lua
quase parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua

a minha vida
num chão profundo!
— raiz prendida

a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,

muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada

ao tempo lento..
Minha partida,
minha chegada,

é tudo vento...

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada…
= = = = = = = = =