sábado, 3 de maio de 2025

Edgar Allan Poe (Morela)

Ele mesmo, por si mesmo unicamente, eternamente Um e único 
PLATÃO
ERA COM SENTIMENTOS de profunda embora singularíssima afeição que eu encarava minha amiga Morela. Levado a conhecê-la por acaso, há muitos anos, minha alma, desde nosso primeiro encontro ardeu em chamas que nunca antes conhecera; não eram, porém as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu espírito a convicção crescente de que eu não podia, de modo algum, duvidar de sua incomum significação, ou regular-lhe a vaga intensidade. Conhecem-nos, porém, e o destino conduziu-nos juntos ao altar; mas nunca falei de paixão ou pensei em amor. Ela, contudo, evitava companhias e, ligando-se só a mim, fazia-me feliz. Maravilhar-se é uma felicidade; e é uma felicidade sonhar.

A erudição de Morela era profunda. Asseguro que seus talentos não eram de ordem comum, sua força de espírito era gigantesca. Senti-a e, em muitos assuntos, tornei-me seu aluno. Logo, porque verifiquei que, talvez por causa de sua educação, feita em Presburgo, ela me apresentava numerosos desses escritos místicos que usualmente são considerados como o simples sedimento da primitiva literatura germânica. Por motivos que eu não podia imaginar eram essas obras o seu estudo favorito e constante. E o fato que, com o correr do tempo, se tornassem elas também o meu, pode ser atribuído à simples mas eficaz influência do costume do exemplo.

Em tudo isso, se não me engano, minha razão tinha pouco a fazer. Minhas convicções, ou me desconheço, de modo algum eram conformes a um ideal, nem se podia descobrir qualquer tintura das coisas místicas que eu lia, a menos que esteja grandemente enganado nos meus atos ou nos meus pensamentos.

Persuadido disso, abandonei-me implicitamente à direção de minha esposa e penetrei, de coração resoluto, no labirinto de seus estudos então... então, quando, mergulhado nas páginas nefastas senti um espírito nefasto acender-se dentro de mim. Morela colocava a mão fria sobre a minha e extraía das cinzas de uma filosofia morta algumas palavras profundas e singulares, cujo estranho sentido as gravava a fogo em minha memória.

« Santa Maria! Volve o teu olhar tão belo, de lá dos altos céus, do teu trono sagrado, para a prece fervente e para o amor singelo que te oferta, da terra, o filho do pecado. Se é manhã, meio-dia, ou sombrio poente, meu hino em teu louvor tens ouvido, Maria! Sê, pois, comigo, ó Mãe de Deus, eternamente, quer no bem ou no mal, na dor ou na alegria! No tempo que passou, veloz, brilhante, quando nunca nuvem qualquer meu céu escureceu, temeste que me fosse a inconstância empolgando e guiaste minha alma a ti, para o que é teu. Hoje, que o temporal do destino ao passado e sobre o meu presente espessas sombras lança, fulgure ao menos meu futuro, iluminado por ti, pelo que é teu, na mais doce esperança! »

E então, hora após hora, eu me estendia a seu lado, imergindo-me na música de sua voz, até que, afinal, essa melodia se maculasse de terror; então caía uma sombra sobre minha alma, eu empalidecia, tremia internamente àqueles sons que não eram da terra. Assim a alegria subitamente se desvanecia no horror e o mais belo se transformava no mais hediondo, como o Hinnon se transformou em Geena.

É necessário fixar o caráter exato dessas inquisições que, irrompendo dos volumes mencionados, formaram, por longo tempo, quase que único objeto de conversação entre mim e Morela. Mas os instruídos no que se pode denominar moralidade teológica facilmente o conceberão e os leigos, de qualquer modo, não o poderiam entender. O extravagante panteísmo de Fichte; a palingenésia* modificada de Pitágoras; e, acima de tudo, as doutrinas de Identidade, como as impõe Schelling, eram esses geralmente os assuntos de discussão que mais beleza apresentavam à imaginativa Morela .

Aquela identidade que se chama pessoal, Locke, penso, define-a com realismo, como consistindo na conservação do ser racional. E que por pessoa compreendemos uma essência inteligente dotada de razão, e desde que há uma consciência que sempre acompanha o pensamento, é ela que nos faz, a todos, sermos o que chamamos nós mesmos, distinguindo-nos por isso de outros pensamentos e dando-nos nossa identidade pessoal. Mas o indivíduationis*, a noção daquela identidade que, com a morte está ou não perdida para sempre, foi para mim, em todos os tempo questão de intenso interesse, não só por causa da natureza embaraçosa e excitante de suas consequências como pela maneira acentuada e agitada com que Morela as mencionava.

Na verdade, porém, chegara o tempo em que o mistério da conduta de minha esposa me oprimia como um encantamento. Eu não podia suportar mais o contato de seus dedos lívidos, nem o grave de sua fala musical, nem o brilho de seus olhos melancólicos. E ela sabia de tudo isso, porém não me repreendia; consciente de minha fraqueza ou de minha loucura, e, a sorrir chamava-a Destino.

Parecia também consciente de uma causa, para mim ignota, do crescente alheamento de minha amizade; me dava sinal ou mostra da natureza disso. Era, contudo, mulher e fenecia dia a dia. Por fim, uma rubra mancha se fixou, firmemente, na sua face e as veias azuis de sua fronte pálida se tornaram proeminentes; por instantes minha natureza se fundia em piedade mas, a seguir, meu olhar encontrava o brilho de seus olhos significativos e minha alma enfermava e entontecia, com a vertigem de quem olhasse para dentro de qualquer horrível e insondável abismo.

Poderei dizer então que ansiava, com desejo intenso e devorador pelo momento da morte de Morela? Ansiei; mas o frágil espírito agarrou-se à sua mansão de argila por muitos dias, por muitas semanas, por meses penosos, até que meus nervos torturados obtiveram domínio sobre meu cérebro e me tornei furioso com a com demora e com o coração de um inimigo, amaldiçoei os dias, as horas e os amargos momentos que pareciam ampliar-se cada vez mais, à medida que sua delicada vida declinava como as sombras ao do morrer do dia.

Numa tarde de outono, porém, quando os ventos silenciavam nos céus, Morela chamou-me a seu leito. Sombria névoa cobria a terra e um resplendor ardia sobre as águas e entre as bastas folhas de outubro na floresta, como se um arco-íris tivesse caído do firmamento.

- Este é o dia dos dias - disse ela, quando me aproximei. O mais belo dos dias para viver ou para morrer. É um belo dia para os filhos da terra e da vida... ah, e mais belo ainda para as do céu e da morte!

Beijei-lhe a fronte, e ela continuou:

- Vou morrer e, no entanto, viverei.

- Morela !

- Jamais existiram esses dias em que podias amar-me… mas aquela a quem na vida aborreceste, depois de morta a adorarás.

- Morela !

- Repito que vou morrer. Mas dentro de mim há um penhor desta afeição - ah, quão pequena! - que deveste sentir por mim, Morela . E quando meu espírito partir, a criança viverá - teu filho e meu filho, o filho de Morela. Mas os teus dias serão dias de pesar, que é a mais duradoura das impressões, do mesmo modo que o cipreste é a mais resistente das árvores. Porque as horas da tua felicidade passaram e alegria não se colhe duas vezes numa vida, como as rosas de Paesturo duas vezes num ano. Não jogarás mais, com o tempo o jogo do homem de Teos, mas, não conhecendo o mirto e a vinha, levarás contigo, por toda parte, a tua mortalha como o muçulmano a sua em Meca.

- Morela! - exclamei. Morela! Como sabes disto?

Ela, porém, voltou o rosto sobre o travesseiro. Leve tremor agitou-lhe os membros e assim ela morreu, não mais ouvindo eu a sua voz. Entretanto, como o predissera ela, seu filho, a quem, ao morrer, dera a vida, que só respirou quando a mãe deixou de respirar, seu filho, uma menina, sobreviveu. E, estranhamente, cresceu em estatura e inteligência, vindo a tornar-se a semelhança perfeita daquela que se fora. E eu a amava com um amor mais fervoroso acreditava fosse possível sentir por qualquer criatura terrestre.

Mas dentro em pouco o céu dessa pura afeição se enegreceu e melancolia, o horror, e a angústia nele se acastelaram como nuvens. Disse que a criança crescia, estranhamente, em estatura e inteligência. Estranho na verdade, foi o rápido crescimento de seu tamanho corporal, mas terríveis, oh! Terríveis eram os tumultuosos pensamentos que sobre mim se amontoaram, enquanto observava o desenvolvimento de sua mentalidade. Poderia ser de outra forma, diariamente, descobria eu nas concepções da criança as energias adultas e as faculdades da mulher? Quando as lições da experiência brotavam dos lábios da infância? E quando eu via a sabedoria ou as paixões da maturidade cintilarem a cada instante nos olhos grandes e meditativos? Quando, repito, quando tudo se tornou evidente aos meus sentidos aterrados, quando não o pude ocultar à minha alma nem repeli-lo dessas percepções, tremiam ao recebê-lo, há de que admirar-se que suspeitas de natureza terrível e excitante se introduzissem no meu espírito, ou que meus pensamentos se tenham reportado, com horror, às estórias espantosas e às arrepiantes teorias da falecida Morela?

Arranquei à curiosidade do mundo uma criatura a quem o destino me compeliu a adorar e, na rigorosa reclusão de meu lar, velava com agoniante ansiedade tudo quanto concernia à bem-amada.

E enquanto rolavam os anos e eu contemplava, dia a dia, o seu rosto santo, suave e eloquente, e estudava-lhe as formas maturescentes, dia após dia descobria novos pontos de semelhança entre a criança e sua mãe, a melancólica e a morta. E a todo instante se tornavam mais negras aquelas sombras de semelhança e mais completas, mais definidas, mais inquietantes e mais terrivelmente espantosas no seu aspecto. Porque não podia deixar de admitir que o sorriso era igual ao de sua mãe; mas essa identidade demasiado feita fazia-me estremecer; não podia deixar de tolerar que seus olhos fossem como os de Morela; mas eles também penetravam vezes nas profundezas de minha alma com a mesma intensa e desnorteante expressividade dos de Morela . E no contorno de sua fronte elevada, nos cachos de seu cabelo sedoso, nos seus dedos pálidos que nele mergulhavam, no timbre musical e triste de sua fala e sobretudo oh! Acima de tudo, nas frases e expressões da morta sobre os lábios da amada e da viva, encontrava eu alimento, um pensamento horrendo e devorador - para um verme que não queria morrer.

Assim se passaram dois lustros de sua vida, e, contudo, permanecia minha filha sem nome sobre a terra. "Minha filha" e “meu amor" eram os apelativos usualmente ditados por minha afeição de pai, e a severa reclusão de sua vida impedia qualquer outra relação.

O nome de Morela acompanhara-a na morte. Da mãe falara à filha; era impossível falar. De fato, durante o breve de sua existência, não recebera esta última impressões do mundo exterior, exceto as que lhe puderam ser proporcionadas pelos estreitos limites de seu retiro. Mas afinal a cerimônia do batismo sentou-se a meu espírito, naquele estado de agitação e enervamento como uma libertação imediata dos terrores do meu destino. E na fonte batismal hesitei na escolha de um nome. E numerosas denominações de sabedoria e de beleza, de tempos antigos e modernos, de minha e de terras estrangeiras, vieram amontoar-se nos meus com outras tantas lindas denominações, de nobreza, de ventura, de bondade. Quem me impeliu então a perturbar a memória da sepultada? Que demônio me incitou a suspirar aquele som e simples lembrança sempre fazia fluir, em torrentes, o sangue das fontes do coração? Que espírito maligno falou dos recessos minha alma quando, entre aquelas sombrias naves e no silêncio da noite, eu sussurrei aos ouvidos do santo homem as sílabas "Morela? Quem, senão o demônio, convulsionou as feições de minha filha e sobre elas espalhou tons de morte, quando, estremecendo ao aquele som quase inaudível, volveu os olhos límpidos da terra para o céu e, caindo prostrada sobre as negras lajes de nosso mausoléu de família, respondeu: "Estou aqui!"?

Distinta, fria e calmamente precisos, esses tão poucos e tão simples sons penetraram-me nos ouvidos e, depois, como chumbo retido, rolaram, sibilantes, dentro do meu cérebro. Anos e anos podem-se passar, mas a lembrança daquela época, nunca. Desconhecia eu de fato as flores e a vinha, mas o acônito e o cipreste ensombraram-me noite e dia. E não guardei memória de tempo ou de lugar, e as estrelas da minha sorte sumiram do céu e desde então a terra se tornou tenebrosa e suas figuras passaram perto de mim como sombras esvoaçantes, e entre elas só uma vislumbrava: Morela. Os ventos do firmamento somente um nome murmuravam aos meus ouvidos e o marulho das ondas sussurra "Morela!" Ela, porém, morreu e com minhas próprias mãos levei-a ao túmulo. E ri, uma risada longa e amarga, quando não achei traços da primeira Morela no sepulcro em que depositei a segunda.
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* Vocabulário
Indivíduationis = é a forma do conhecimento do indivíduo, ou o princípio de razão.
Palingenesia = é um conceito de renascimento ou recriação, usado em vários contextos em filosofia, teologia, política, e biologia. Eterno retorno. Renascimento.

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EDGAR ALLAN POE nasceu em 1809, em Boston, Massachusetts, e morreu em 1849, em Baltimore, Maryland. Ele foi um poeta, contista, editor e crítico literário, amplamente reconhecido como um dos pioneiros do conto de terror e do gênero policial. Poe teve uma infância difícil, perdendo os pais ainda muito jovem. Foi criado por uma família adotiva, os Allan, mas nunca teve uma relação próxima com eles. Estudou na Universidade da Virgínia, mas abandonou os estudos devido a problemas financeiros e pessoais. Sua obra mais conhecida inclui contos como "O Corvo," "A Queda da Casa de Usher" e "O Gato Preto," que exploram temas de morte, loucura e a condição humana. Além disso, ele foi um dos primeiros a desenvolver o gênero do mistério e do suspense, influenciando gerações de escritores. Teve uma vida marcada por dificuldades, incluindo a luta contra a pobreza e problemas de saúde. Sua morte prematura, em circunstâncias misteriosas, contribuiu para o seu status de ícone literário. Hoje, ele é celebrado como um dos grandes mestres da literatura americana e um precursor do horror psicológico. 

Fontes:
Edgar Allan Poe. Histórias do Grotesco e do Arabesco. Publicado originalmente em 1835. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Asas da Poesia * 15 *


 Soneto de 
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

E o carnaval começa

Rompem-se os diques da alma. Nas retinas,
confundem-se as visões do Bem e o Mal.
Momo sacode os guizos! Nas esquinas
e nos salões, estronda a bacanal!

No entanto, há mais Pierrôs e Colombinas,
Palhaços e Arlequins, na vida real,
que os que atiram confetes... serpentinas,
alegria a fingir no Carnaval!

Cinzas! Máscaras rolam! Mas... só a morte,
a derradeira máscara é quem tira.
Momo sorri - talvez da própria sorte!

E o amargor numa dúvida se expressa:
- O Carnaval findou?! - Cruel mentira!
– A vida marcha... E o Carnaval começa!...
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Soneto de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Se quiseres

Se quiseres palmilhar o meu caminho
abandona tuas asas e teu ninho
que impedem teu livre caminhar.

Se quiseres pernoitar na minha tenda
retira, antes de entrar, a venda
que não te deixa ver a estrela-guia.

Se quiseres repousar na minha cama
remove do teu corpo a lama
comprada no igapó das ilusões.

Se quiseres meu amor, rasga teu peito
e arranca dele o preconceito
que não te deixa ver-me como sou.

E se afinal quiseres decifrar meu canto,
destrói na sarça ardente o cetro e o manto
e só então verás a essência do meu ser.
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

O meu sertão IV

O meu sertão virou quase cidade:
as terras divididas em herança
vão partindo os talhões pela metade 
e aproximando, assim, a vizinhança.

Ganhou a noite tanta claridade
e incrivelmente chega a insegurança,
na gente que era só simplicidade
e sofre o destempero da mudança.

Os vagalumes, feito lamparinas,
faziam noites tão mais genuínas,
o céu mais parecia um véu de estrelas…

Mas já não vejo tantas qual outrora,
com tanta luz, eu acho, vão-se embora…
e eu olho o céu e não  consigo vê-las!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Coração de pedra dura,
da mais dura que houver;
eu jurei de te amar,
enquanto vida tiver.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Canção do boêmio

Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vós?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola...

Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto
"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona "por que tardas tanto?
Quero aquecer-te rapariga linda."

Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo Garcia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo— no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime
Pra adormecer... inquietações tamanhas...

Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,

Dizei se há dor, que se compare à minha!...
Nini! o horror deste sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.
Deus do Boêmio!... São da mesma raça

As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno.
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno

Mesmo eu tomara a primavera a prêmio..
No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes

Rompera o canto... Que esperança inglória...
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande' ó Glória!...
Batem!... que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!

Sejam teus braços... do martírio a cruz!…
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Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Desespero inevitável

Queria fugir de mim,
dos meus desencantos,
e não consigo...
Melhor seria assim
Do que viver pelos cantos
na triste espera do fim.
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Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/ Portugal

A música faz sonhar
Lembrar, sorrir
Ficar sentada
Fluir no oceano
Que nos acolhe
E escolhe o que merecemos
E queremos tudo de bom
Porque queremos
Ser como somos
Ser nós!

Com os abraços amigos
Sem estarmos sós
Queremos o som
E, na madrugada
Saborear fruto bom
Antes de irmos para a estrada
Somos quem somos
E, não temos de ser mais nada!

Chegamos, partimos
Andamos a deambular pela estrada
Sempre pensamos em quem nos ama
Sempre somos acarinhados pelos amigos
Somos nós 
Com todas as imperfeições
e. se não estivermos sós
somos bons nas nossas relações
de amizade, da amor e carinho
assim vamos caminhando
nesta estrada dura do destino!
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Aquele sem teto,
que tem a noite por leito,
precisa de afeto! 
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Dos gestos com que amor se manifeste
(Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés" p. 206)

Dos gestos com que Amor se manifeste
De todos o sorriso é tão primeiro
Que sendo puro, aberto e verdadeiro
Parece a luz que vem do azul celeste.

Se de um sorriso o olhar se enfeita e veste
O nosso coração bate ligeiro
Parece o peito ser quente braseiro
E de rubor o rosto se reveste.

Quando o sorriso nasce nada é feio
E as almas ficam presas nesse enleio
Que tanta coisa diz sem dizer nada.

Ficam palavras presas na garganta
E aquela que de todas mais encanta
É no fundo da alma que é guardada.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Tente mais tarde

O destino, às vezes, contraria
aquilo que imaginamos ser o certo
e transfere sempre para outro dia
tudo que imaginávamos estar perto.

Achamos que é defeito do destino,
mas no final as coisas vão mostrando
que nos faltava o principal: o tino
para saber o quê, o onde e o quando.

O que termina foi melhor assim,
e  sábio, o destino armou o fim
que de algum jeito foi anunciado.

Veja o exemplo que ocorre a mim,
que tento te ligar e ouço enfim
que está fora do ar ou desligado.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Persistência

Sou persistente como o garimpeiro
que busca a joia rara e deslumbrante,
cavando a terra, construindo aceiro,
para encontrar, altivo, o diamante.

Sou incansável pelo tempo inteiro,
busco a palavra e o brilho fascinante
do verso ardente, puro e verdadeiro
que brilha como o sol, inebriante.

Ninguém me deterá neste garimpo,
irei, se for preciso até o Olimpo
buscar minha divina inspiração.

E nestes versos pobres, mas floridos
meus sonhos ficarão mais coloridos,
oriundos do Amor, do coração!
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Ninguém é grande
sozinho.
Mesmo o Amazonas,
gigante,
de afluentes precisou. 
= = = = = = = = =  

Poema de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Herança poética
(Homenagem a Mário Quintana)

Pede cautela a razão,
no labirinto da vida...
mas, sei que o meu coração
também conhece a saída.
* * *
Na sua ruazinha sonolenta,
a velha casa, onde nasceu, resiste.
Da porta aberta quando à noite, venta
do "catavento" eu ouço o canto triste.

Sua "cadeira de balanço" tenta
ninar meus sonhos... quanto pede e insiste!
Mas, a saudade chega e ciumenta
ocupa o seu lugar e não desiste.

Abro o "baú de espantos", comovida!...
Seu "sapato florido", ao ganhar vida,
vai procurar seu dono... e, por instinto,

eu levo o seu "espelho com magia",
que me fará cativo da poesia
e hei de encontrar você no "labirinto".
= = = = = = = = =  

Poema de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Plangência

Disseste adeus, pereci nesse instante,
Faltou-me o chão, foi-se o brilho da vida,
Senti cravado um punhal lacerante,
Resta aqui dentro a saudade doída.

Os arrebóis não mais têm formosura,
Lágrimas rubras me escorrem na face
Extravasando a perversa tristura,
Sofro lembrando o cruel desenlace.

Sem teus afagos decerto definho,
Prevejo ser a ruína completa,
Um negro manto recobre o caminho
Em que vagueio, princesa dileta.

Eis o meu brado plangente, sincero
Se decidires voltar, inda espero.
= = = = = = = = =  

Poema de
MILTON S. SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Nem sei porque sou assim

Nem sei porque sou assim:
Cada sonho que acalento
Se agarra tanto aqui dentro
Que vira parte de mim.

Fui assim desde criança
Sonhadora incorrigível
Procurando no impossível
Uma luz ... uma esperança.
Pareço pombinha mansa
Mar não gosto de enganar
Se um sonho me faz voa
Nem um corisco me alcança.

O sonho nos assegura
Que o céu não é tão distante
Ele grita... e nos garante
Que vale a pena a procura.
Quem sonha se transfigura
Mudando o brilho do olhar,
Que sonha pode mudar
Qualquer sorte... por mais dura.

Nem sei porque sou assim:
cada sonho que acalento
se agarra tanto aqui dentro
que vira parte de mim.

Por isso é que choro tanto
Ao ver um sonho morrer
Sonhar é mais que viver:
É da vida ter o encanto.
Cada sonho é um acalanto
Que embala nossa alma...E traz
Um misto de guerra e paz
No feitiço do seu canto.

Um sonho pode fazer
O inverno virar verão,
Pode entrar num coração
Quietinho...sem ninguém ver
Pode até mesmo acender
Alguma estrela apagada,
E as vezes, sem trazer nada
Enche a gente de prazer.

Sonhar é uma forma bonita
De atender o que a alma exige
Somente um sonho corrige
qualquer vida mal escrita.
E quando agente acredita
Torna reto o rumo torto
E até mesmo um sonho morto
Muitas vezes ressuscita.

Se sonhando eu sempre vim
Porque é assim meu coração,
Pouco me importa a razão
Desse meu sonhar sem fim.
Nem sei porque sou assim:
cada sonho que acalento
se agarra tanto aqui dentro
que vira parte de mim.
= = = = = = = = =  

Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Serenando tua dor

Tu serenas, quando o verso que tu traças, 
descompassa tua dor e harmoniza 
todo amor que ainda tens e que suaviza 
teu silêncio, pois desfaz tuas mordaças.

E são  tantas... tantas vezes te calaste
ante cada infeliz perspectiva
de viver uma aventura expressiva,
quando nela, muito mais te aprofundaste.

O nostálgico  sentir te dissocia 
do amor que tu precisas despertar.
mas se a dor é a artéria da poesia,

tua doce fantasia há de mostrar 
o caminho que produz toda magia 
que conjuga, na poesia, o verbo... amar.
= = = = = = = = =  

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Estanca teu pranto!

Não!... Não chores, estanca teu pranto;
Doutro Plano, não sejas omisso!
Tinhas que sofrer o desencanto
Pra quitar, de vez, um compromisso.

Nesta tão prematura partida
De alguém muito querido em teu lar,
Não te olvides, é etapa vencida
De um pretérito a se resgatar.

Apesar de profunda essa dor
Do trespasse de um filho querido,
Agradece aos Céus, ao Criador,
O ditoso resgate assumido.

A agonia que sentes agora
Não é síndrome que te convém.
Calma, pois o ser que foi embora
Certamente te espera no Além!

A presente Passagem é acúmulo
De um saber tal que se perpetua.
E ele mostra que além do vil túmulo,
Nossa vida, por Deus, continua...
= = = = = = = = =

Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
= = = = = = = = =

Sextilha de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Podemos trocar carinhos
por e-mails todo dia,
e podemos divulgar
mensagens, versos, poesia,
repartindo com o mundo
a nossa eterna alegria!
= = = = = = = = = = =


Newton Sampaio (Quinze minutos)


Para falar verdade, a ruazinha é bem insignificante. Mas é simpática. Simpática, comprida, estreitíssima. É comprida e vai terminar nos fundos de uma igreja muito velha. O que, aliás, não tem importância, porque, desgraçadamente, eu não sei mais entrar em igrejas. Não sei entrar nas igrejas nem pela porta grandiosa, nem pela porta dos fundos. Por isso, eu entro, mas é no estabelecimento Élite, muito embora o meu sangue seja bem ordinário e provenha de um cabo da polícia pernambucana que se casou de supetão com a filha de uma quitandeira baiana muito gorda. O estabelecimento Élite é campeão no gênero, põe saltinhos em cinco minutos e meias-solas garantidas num simples quarto de hora. 

O freguês entra, esconde só as pernas no cubículo, dá o sapato pra o italiano proprietário, o qual distribui o serviço pra os brasileiros sapateiros. Eu agora estou preso em um dos cubículos, e fico espiando o movimento, desde que não tenho um só jornal vespertino cheio de grandes títulos onde possa conhecer a mais recente cena de sangue de qualquer subúrbio abandonado. 

A meu lado, um homem de imensos bigodes pitorescos recebe o sapatão de cano alto, acha que o serviço não prestou, paga só quatro mil e quinhentos, vai embora pisando duro. Estamos em março (quer dizer que, até fins de junho, não precisarei voltar aqui), pergunto que horas são, me respondem que são duas horas e quinze.

Os sapateiros brasileiros suam sem parar, o ambiente continua abafado, cheirando a couro, a suor, a tinta. Todos os três cheiros são fortes e nenhum deles me é agradável.

Presto atenção e concluo que o dono do estabelecimento usa camisa preta. Sinto ganas de dar um viva à Abissínia (só para anarquizar a geografia) mas tenho medo de ser posto na rua descalço e de meia furada.

Entra uma radiosa mocinha, que põe o embrulho em cima do balcão e dá instruções ao homem. Um dos artífices conhece a mocinha e diz:

— Como vai, sérrgipana? (abre o e e carrega no r).

Ela sorri, olha pra mim não sei por que, me acha simpático. Eu lhe pergunto:

— Conhece o Tobias Barreto?

A mocinha fala:

— Em que time joga esse bicho?

Dou uma bruta gargalhada, fico sério de uma hora pra outra, todos pensam que eu sou louco, mas eu não sou louco não. O que eu sou é um homem triste, desesperado, desesperadíssimo, porque minha mulher geme com pneumonia, meu garoto sofre com sarampo, meu sapato está cheio de buracos. Eu sou um homem desesperado, desesperadíssimo, que quer sair do cubículo, que está doente de amor pela mulher pneumônica, pelo filho sarampento, que não aguenta mais o calor, nem o estabelecimento Élite, nem a rua comprida e estreitíssima.

A sergipana foi embora, não sei nada do que se passou, todos estão agora me olhando, o italiano proprietário até me vem ajudar, mas eu não aceito o favor e enfio sozinho a botina consertada. Não digo até logo, piso a rua comprida.

A rua é comprida, vai dar no fundo de uma igreja muito velha, mas isso não tem importância porque eu não sei mais entrar nas igrejas. Nem pela porta gloriosa, nem pela porta dos fundos.

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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
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